BAKUNIN-Memórias Póstumas

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Memrias revoluo

pstumas

do

Exu

da

Aos vermes que me roeram em vida e hoje roem a carne fria do meu cadver dedico como proftica lembrana estas Memrias Pstumas.. Berna 03/07/1876

I. bito do autor

Sempre hesitei em escrever minhas memrias, a vida me absorvia... Porm o agito, o vai-vem do shopping center prximo ao cemitrio de Brungartenwald em Berna, Sua, os junkies e punks ao redor de minha tumba me fizeram acordar de um longo e frio sono. Alm do que no sou e nunca fui um sbio nem um filsofo, menos ainda um escritor de profisso, mas o vazio do alm tumba estimula minha memria. Dito isto, expirei s 11:56, quase meio dia de 1 de julho de 1876, um sbado, no hospital de Hugbraum na cidade de Berna. Tinha sessenta e dois anos de lutas e sonhos e nenhuma riqueza. Prepararam meu frio e cansado corpo para o enterro

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s dezesseis horas do 3 de julho. Fui acompanhado ao cemitrio de Brungartenwald por mais ou menos quinze amigos. Zukovskij lembrou meu romantismo e fez-me alegre ao comparar-me com uma primavera perptua, o bom e dedicado Eliseo Reclus disse que eu repreendia e berrava, animava e decidia, continuamente o dia inteiro, a noite inteira e acusou a minha atividade, a minha ociosidade, o meu apetite e at o meu suor constante de passarem da mdia humana e ao escut-lo pensei com os meus vermes: "Bakunin, fique onde ests!". Carlo Salvioni falou em nome dos internacionalistas

italianos e exagerou a minha participao no socialismo anti-autoritrio da pennsula itlica - ah esses italianos e espanhis que trazem e traro sempre a chama da revolta nos olhos -, falaram ainda Brousse, o operrio Betsien e junto aos amigos de toda a vida, os Adolfos Reichel e Vogt, Adhmar Schwitzgubel, - outro velho camarada- leu os telegramas de condolncias das sees da Associao Internacional do Trabalhadores que tambm enviaram as horrveis coroas de flores. Pensava na vida que tinha estrebuchado-me no peito h dois dias quando ouo soluos, o choro convulsivo apagando as palavras que o bom Guilhaume tentava em vo proferir... o corpo j fazia-se planta, e pedra, e ldo, e sonhos futuros e coisa nenhuma. Morri de inflamao crnica dos rins, paralisia da bexiga, hipertrofia do corao, hidropisia e muito, muito cansao. possvel que voc no o creia e, todavia verdade. Vou expor-lhe resumidamente o caso. Julgue-o por si.

II. As ltimas duas semanas Vindo de Lugano, cheguei ao anoitecer em Berna, a noite parecia aliviar meu estropiado corpo juntamente com os cuidados do sempre solidrio Adolfo Reichel e do meu querido sapateiro Santandrea. s vezes, sentia-me como um balo prestes explodir e os mdicos com sua cientfica sabedoria me diziam: " apenas um paralisia na bexiga...". Quarta-feira, 14 de junho de 1876, minha ltima noite fora da priso

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hospitalar, Reichel e outros amigos msicos tocavam aqueles que seriam os ltimos acordes de minha agitada existncia. Em meio melodia que me animava Vogt insistia que aps a colocao de uma sonda no dia seguinte eu melhoraria e argumentava: "alm de tudo, meu querido, isso te far ter uma vida mais ordenada" - e, segundo minha memria desencarnada parece-me ter lhe respondido: "Blargh, sempre vivi de forma desordenada e poderia se dizer de mim: Teve uma vida inteira desordenada mas a morte muito bem ordenada!". O frio parecia atravessar meus ossos, tremia e enquanto escutava a eternidade de Beethoven a vida parecia querer me abandonar. Caro leitor, para atenuar-lhe a narrativa de meus suplcios desde que fui enviado ao inferno hospitalar, darei-lhe uma sumria crnica dos meus ltimos dias: 28 e 29/06/1876, quarta e quinta-feira: A sonolncia me dominava, dormia e pouco abria os olhos e quando

Reichel me ofereceu a sopa disse-lhe: - "no preciso de nada, j terminei a minha tarefa". Mas eu no queria morrer e no pude recusar um pouco de kasha preparada por Maria Reichel, a companheira russa de Adolfo, ela no sabia que ao me dar colheradas da sopa de nossa terra preparava-me para o undiscovered country de Hamlet e levavame para Tver na Rssia, onde nasci. Viajando na minha infncia dormi toda sexta-feira e, como j disse, expirei ao quase meio dia de sbado. 26 e 27/06/1876, segunda e tera-feira: Conversei com Reichel sobre nossa grande paixo, a msica e

especialmente Beethoven e deleitei-me com suas palavras sempre inspiradas, mas quando chegamos a Wagner no pude evitar um severo julgamento sobre seu carter e sua msica apesar de eu e ele nos encontrarmos na fala de Sigfrido: - "Quo feliz estou / De me fazer livre / Sem nada para me sujeitar nem me obrigar!" Numa de minhas escapadelas do torpor lembro-me ter dito a Reichel: "Venha, venha me abraar, meu bom amigo." 24 e 25/06/1876, sbado e domingo:

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Com a ajuda do enfermeiro, marca de minha agonia, tomei um pouco de ch, um pouco de sangria e s vezes um pouco de gua, a mais gelada possvel. Ditei, em russo, cada ponto e cada vrgula, uma carta para minha companheira e mulher Antonia onde dizia-lhe da minha esperana de voltar nossa casa em Lugano dentro de quinze dias. No queria morrer. 22 e 23/06/1876, quinta e sexta -feira: Dopado, imerso no torpor de narcticos que me permitiam dormir, sentiame um estpido e percebia nos olhares de Vogt, Reichel que a doena me vencia... Bendito pio e no a religio que me aliviava as dores e me fazia dormir/sonhar... intoxicado pelos ambientes romnticos de minha juventude e cujos eflvios

narcotizantes jamais cessaram de produzir efeitos mesmo nas maiores adversidades, como agora diante da morte. Divolo. 21/06/1876, quarta feira: Sentia-me bem melhor e conversei longamente com Reichel sobre nossa juventude e sonhos em comum e ao ser perguntado porque jamais encontrei tempo para escrever minhas memrias respondi que no valeria a pena abrir minha boca. Hoje os povos de todas as naes perderam o instinto da revoluo. Todos parecem estar muito satisfeitos com sua situao e o medo de serem derrotados mais uma vez os fazem inofensivos e inertes. No, se ainda pudesse ter um pouco de sade, escreveria uma tica fundada nos princpios do coletivismo, sem frescuras filosficas ou religiosas. 19 e 20/06/1876, segunda e tera-feira: Uma diarria aumentou a lista de meus males e a sujeira que me cercava. Contra a minha vontade, meus amigos insistiam na presena de um enfermeiro dia e noite. Recuso, teimoso digo no essa regresso para a infantilidade, eu que nunca confiei cegamente nos mdicos e com eles discutia os diagnsticos, tive que ceder presena do enfermeiro. 17 e 18/06/1876, sbado e domingo:

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O velho Reichel havia viajado no fim de semana, timo, pois do leito hospitalar pude rejuvenescer-me nas conversas com seu filho e jovens amigos e lembrarlhes e lembrar-me o jovem que fui em 1842 e dizia: abram suas mentes; deixem os mortos enterrarem os mortos e convenam-se pelo menos de que o esprito, sempre jovem, sempre renascendo, no deve ser procurado nas runas que caem. A paixo pela destruio tambm uma paixo criativa... memrias fragmentadas, cacos com cheiro de suor e plvora compartilhados, reconstrudos...

16/06/1876, sexta feira: Um pouco mais disposto que na vspera, sempre desajeitado, no sabia como conviver com a sonda e acabava sem roupas na cama, assustando a todos por estar tal qual Ado no paraso. 15/06/1876:quinta-feira No leito do hospital, sob o olhar mdico de Adolf Vogt, superando crises de falta de ar e dores eu lia Die Welt als wille und Vorstellung de Schopenhauer e discutia com todos (mdicos, enfermeiros, companheiros, amigos) sobre filosofia e, pasmem, acima de tudo, sobre a vida. Consegui ficar contente com o estranho maquinismo que me introduziram para escoar meus lquidos e minhas dores.

III. Genealogia Mas, j que falei em Tver, a provncia Russa que nasci, deixem-me fazer aqui um curto esboo genealgico: O fundador de minha famlia foi um certo Miguel Vasilievich Bakunin que adquiriu na primavera de 1779 uma propriedade, as terras de Premujino. Meu av, Miguel Bakunin, recebeu a comenda de conselheiro de Estado na corte de Catarina II quando ainda era jovem, porm sem ambies polticas retira-se para Premujino e o que

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sei dele so as estrias contadas por tios e pais compondo em minha imaginao infantil uma figura de Hrcules por sua fora fsica, seu temperamento indomvel e suas

proezas de como pr para correr um bando de ladres apenas com um basto nas mos ou como teria levantado uma carroa e carroceiro jogando-os ao rio por ter sido desafiado pelo condutor... Nasci dia 30 de maio de 1814, na provncia de Tver entre Moscou e So Peterburgo e deram-me o nome de Miguel Alexandrovitch Bakunin em lembrana ao Sanso da famlia, o av que conheci por estrias. Meu pai, Alexandre, pertencia velha nobreza e educou-se em Florena. Ele s retornaria Rssia com a idade de 35 anos. Educou-se e passou sua juventude no estrangeiro. Meu pai era um homem muito espirituoso, muito instrudo, erudito, bastante liberal, filantropo, desta e um pouco ateu, antes de mais nada um livre pensador em contato com o que havia de celebridades polticas e cientficas na Europa e consequentemente em contradio completa com tudo o que existia e se respirava na Rssia de ento. Meu pai era extremamente rico. Era proprietrio de mil almas masculinas, as mulheres no eram contadas na servido, como se no as contam mesmo na liberdade. Ele era o senhor de mais ou menos 2.000 servos masculinos e femininos, com o direito de vend-los, de bater-lhes, de transport-los Sibria, de envi-los ao exrcito como recrutas e, sobretudo, de explor-los sem piedade ou simplesmente de roubar-lhes e viver de seu trabalho forado. J disse que meu pai chegou Rssia cheio de sentimentos liberais. A princpio seu liberalismo se revolta contra essa horrvel, infame posio de senhor de servos; chegou mesmo a tentar projetos mal calculados e mal executados de emancipao dos servos. Depois o hbito e a convenincia fizeram dele um proprietrio tranquilo e resignado servido de centenas de seres humanos de cujo trabalho tirava a sua sobrevivncia. ramos onze irmos. Fomos criados sob os cuidados de nosso pai, muito mais maneira ocidental do que maneira russa - vivamos, por assim dizer, fora da

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Rssia, num mundo cheio de sentimentos e fantasias, mas despojado de toda realidade. Nossa educao a princpio foi muito liberal. Algumas palavras sobre o meu desenvolvimento intelectual durante este perodo: falava muito bem em francs, a nica lngua que me fizeram estudar a

gramtica, um pouco de alemo e entendia razoavelmente o ingls, algumas palavras de latim e grego e no tinha nenhuma idia de gramtica russa. Meu pai nos havia ensinado pela Histoire Ancienne de Bossuet e me fez ler um pouco de Tito Lvio e de Plutarco, este na traduo de Amyot. Tinha algumas noes de geografia bastante incertas e vagas e, graas a um tio, oficial aposentado do estado-maior, tinha aprendido aritmtica, lgebra e planimetria. Esta era toda a bagagem cientfica que levei da casa de meu pai aos quatorze anos. Quanto ao ensino religioso, foi nulo. O padre de nossa parquia, excelente homem, do qual muito gostava pois me dava pezinhos de mel, deu-nos algumas aulas de catecismo que no exerceram absolutamente nenhuma influncia, nem positiva, nem negativa, quer seja no meu corao ou no meu esprito. Era mais ctico que crente, ou mais ainda, indiferente. Minhas idias sobre a moral, sobre o direito, sobre o dever, eram consequentemente vagas. Tinha sentimento, mas nenhum princpio. Amava

indistintamente, amava os bons e o bem e detestava os maus, sem saber o que constitua a maldade e a bondade, me indignava e me revoltava contra toda crueldade e contra toda injustia. Creio mesmo que a indignao e a revolta foram os meus primeiros sentimentos. Minha educao moral estava deformada pelo fato de que toda minha existncia material, intelectual e moral estava fundada sobre um injustia gritante, sobre a absoluta imoralidade, sobre a servido dos camponeses que permitia o nosso cio. Meu pai possua plena conscincia dessa imoralidade, porm, homem prtico, nunca nos falava sobre ela, e ns a ignoramos por muito tempo, tempo em demasia. Eu tinha ainda o esprito aventureiro. Meu pai, que havia viajado muito, contava-nos as suas viagens. Uma de nossas leituras favoritas, leituras que sempre fazamos com ele, eram as

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descries de viagens. Meu pai era um naturalista erudito. Adorava a natureza e nos permitia esse amor, essa curiosidade ardente por todas as coisas da natureza, sem nos dar contudo a menor noo cientfica. A idia de viajar, de ver novas regies, novos mundos, tornou-se uma idia fixa em ns todos. Esta idia contnua, persistente, desenvolveu minha fantasia. Nos momentos de descanso eu me contava histrias ou me via sempre fugindo da casa de meu pai e buscando aventuras longnquas... Alm disso, adorava meus irmos e minhas irms, estas sobretudo, e reverenciava meu pai como um Deus. Assim era quando, em 1828, entrei como cadete na Academia de Artilharia. Foi o meu primeiro contato com a realidade russa.

IV. A idia fixa Novas regies, novos mundos, essas idias depois de tantas cabriolas, constituiram-se idia fixa. No sabia se meu barco chocar-se-ia com as rochas, nem sabia o que ainda pior: se haveria de encalhar em algum banco de areia. Porm o que sabia com toda certeza que este barco no reduziria sua marcha enquanto restasse uma s gota de sangue nas minhas veias. No digo que eu fosse desprovido de amor-prprio, mas jamais este sentimento me dominou; ao contrrio, fui obrigado a lutar contra mim mesmo e contra a minha natureza toda vez que me preparava para falar publicamente ou mesmo para escrever para o pblico. E se eu sofresse de egosmo, este egosmo seria unicamente necessidade de movimento, necessidade de ao. Meu carter era marcado por um defeito capital: o amor ao fantstico, ao inslito, s aventuras inauditas, projetos abertos para horizontes infinitos e sem que ningum possa prever como iriam terminar. Numa existncia ordinria e calma eu sufocava, sentia-me mal em minha pele. Os homens procuram ordinariamente a tranquilidade e a consideram como o bem supremo; no que me concerne, ela me mergulhava no desespero; minha alma se encontrava em perptua agitao, exigindo ao, movimento e vida. Eu deveria ter nascido em algum

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lugar nas florestas americanas, entre os colonos do Far West, l onde a civilizao est ainda em seu incio e onde toda existncia nada mais do uma luta incessante e no numa sociedade burguesa organizada. E, tambm, se desde minha juventude o destino tivesse querido fazer de mim um marinheiro, eu seria ainda hoje, provavelmente, um bom homem, eu no teria pensado na poltica e no teria procurado outras aventuras e tempestades a no ser as do mar. Mas o destino decidiu de outra forma e minha necessidade de movimento e de ao permaneceu insatisfeita. Esta necessidade, junta, em seguida, exaltao democrtica, foi, por assim dizer, minha nica motivao. No que concerne a esta exaltao, ela pode ser definida em poucas palavras: o amor pela liberdade e um dio invencvel por toda opresso, dio ainda mais intenso quando esta opresso dizia respeito a outra pessoa, e no a mim mesmo. Procurar minha felicidade na felicidade do outro, minha dignidade na dignidade de todos aqueles que me cercavam, ser livre na liberdade dos outros, eis todo meu credo, a aspirao de toda minha vida. Eu considerava como o mais sagrado dos deveres o de me revoltar contra toda opresso. Sempre houve em mim muito de Dom Quixote, no somente na poltica, mas tambm em minha vida privada; eu no podia ver, com olhar indiferente, a mnima injustia, e, por uma razo ainda mais forte, uma gritante opresso. Seja compreensivo, leitor, para com minhas fantasias, utopias e no esteja da a torcer-me o nariz. Vamos l, retifique o seu nariz, e retornemos idia fixa. Minha existncia e obra caminharam juntas, nunca tive pacincia para levar uma atividade at o final. Iniciava caminhos que abriam veredas para novas aes e aventuras, comeava livros quilomtricos que jamais terminava. Vivi uma aventura interminvel, cheia de golpes de sorte, derrotas, dissabores e sempre disposto vida livre. Fui perseguido, caluniado por sempre ter exercido a tarefa de inverter simtricamente o imaginrio hierrquico. Desejei para mim e para os homens tarefas hericas: no ser criatura e sim criador, emancipar-se no apenas da tutela alheia mas tambm do hbito de guiar a

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outros. Se o Estado e a Igreja nos disciplinam a todos para renunciarmos s atividades vitais que nos so inatas -(tais como inventar-se, aperfeioar-se, conhecer-se e conhecer, rebelar-se, saciar-se, fazer amor prazeirosamente)- a nossa evoluo depender ento de esforos satnicos: a paixo pela emancipao e pela diferena, querer sempre uma queda infinita para a vida.

V. Episdios de 1848 Mas eu no quero passar adiante, sem contar sumariamente alguns do

mais felizes episdios de minha vida, acontecidos nas Revolues de 1848 e 1849, pois sentia que homens de minha tmpera crescem e fincam razes em meio aos furaces e amadurecem melhor no tempo das tormentas do que sob os raios do sol, como costumava dizer o amigo Adolfo Reichel. Enfim a revoluo acontece em fevereiro. Ao saber que se lutava em Paris emprestei, para qualquer eventualidade, um passaporte de um conhecido e me dirigi a Paris. Mas o passaporte foi intil. "A repblica foi proclamada em Paris", essas foram as primeiras palavras que ouvimos ao atravessarmos a fronteira. Ao ouvir a notcia arrepiei-me, fui a p at Vallenciennes pois a ferrovia tinha sido destruda. Em todos os lugares a multido, os gritos entusisticos, bandeiras vermelhas em todas as ruas, em todos os lugares, em todos os edifcios pblicos... Cheguei a Paris em 26 de fevereiro, trs dias aps a proclamao da repblica... Impressionou-me Paris, cidade enorme, centro da cultura europia, subitamente transformada nun Cucaso selvagem. Em todas as ruas, quase em todos os lugares, as barricadas insurgentes como montanhas se elevando.

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... A seguir, durante mais de uma semana morei com trabalhadores num alojamento na Rua Tournou, a dois passos do Palcio de Luxemburgo; este alojamente reservado guarda municipal era como tantos outros uma fortaleza republicana... Tive assim a ocasio de ver os trabalhadores, observ-los de manh at a noite. Jamais, em nenhuma parte, em nenhuma outra classe social, encontrei esta nobreza de abnegao, nem tamanha integridade, realmente tocante, delicadeza de maneiras e amabilidade unida a um herosmo mpar... ...Levantava-me s cinco ou quatro da manh e dormia s duas da madrugada, em p durante o dia inteiro, indo a todas assemblias, reunies, "clubs", passeatas, manifestaes; em uma palavra - respirava por todos meus sentidos e todos meus poros a embriagus da atmosfera revolucionria. Era um festa sem comeo nem fim; via todo mundo e no via ningum, pois cada indivduo se perdia na multido errante e annima; falava com todos sem depois lembrar das minhas palavras ou as dos outros, pois a ateno era absorvida a cada passo por fatos e coisas novas, pelas novidades imprevistas. Esta febre geral no se encontrava mediocremente apenas nas conversas, mas era reforada pelas notcias chegadas de outras partes da Europa, onde escutava-se palavras como estas: "Lutas em Berlim, o rei foge aps fazer um discurso! Luta-se em Viena, Metternich fugiu e a repblica foi proclamada! Toda a Alemanha est sublevada! Os italianos triunfaram em Milo, Veneza, tendo os austracos sofrido uma vergonhosa derrota! A repblica est proclamada, toda Europa torna-se uma repblica. Viva a repblica!" Parecia que o universo estava de pernas pro ar; o inacreditvel tornou-se o habitual, o impossvel possvel, e o possvel e habitual insensatos. Numa palavra, o estado de esprito era tal que se algum dissesse: "Deus foi derrubado, a repblica foi proclamada no cu", todos acreditariam e ningum ficaria surpreso... No acreditava que nenhuma teoria, nenhum sistema pr-estabelecido, nenhum livro pudessem salvar o mundo. Eu no pertencia nenhum sistema, era um

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autntico buscador. Sabia que a Revoluo apresenta trs quartos de fantasia e um quarto de realidade. A vida, caro leitor, sempre bem maior que uma doutrina... Inebriado pela atmosfera revolucionria me interessava muito pouco pelos debates parlamentares, a era parlamentar, a era das assembleias nacionais constituintes, etc., etc., havia terminado. Qualquer um que interrogue a si mesmo sobre este ponto descobrir que j no sente nenhum interesse - ou, apenas, um interesse forado e irreal - por essas formas polticas caducas. No que me dizia respeito, tenho de confessar que j no acreditava em constituies nem em leis de nenhuma espcie; a mais perfeita constituio do mundo no seria capaz de satisfazer-me. O que se necessita algo muito diferente: inspirao, vida e um mundo totalmente diferente do atual, um mundo sem leis, um mundo livre, em suma. Perseguido pela polcia prussiana obriguei-me a uma semi-clandestinidade e consegui um passaporte ingls falso com o nome de um tal de Anderson, o que me permitiu viajar. O primeiro de abril de 1849 marca a minha memria desercarnada talvez por estar agora rememorando-o da perspectiva do alm onde os limites entre a fico e o real so to incertos quanto os que separam o sonho da viglia, a mentira da verdade... Leitor, no tora-me, novamente, o nariz; voltemos narrativa, afinal aconteceu num primeiro de abril. Estava em Dresden, Alemanha, era um domingo de Ramos, e fui assistir ao concerto no Palcio da pera onde Ricardo Wagner regia a Nona Sinfonia de Beethoven. Ali o conheci quando aps o espetculo fui cumpriment-lo dizendo: "se toda a msica escrita at hoje estivesse sob o perigo de desaparecer numa guerra mundial, gostaria de salvar esta sinfonia mesmo que me custasse a vida". Fizemo-nos amigos e ainda me lembro da cara de espanto de Minna, companheira de Wagner, ao me observar comendo enormes pedaos de carne ou salsicha e bebendo taas de conhaque de um s trago, arengando que o esprito eterno

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que destri e aniquila, que a insondvel e eternamente criativa fonte de toda a vida estava para revelar-se e recusando o vinho por ser uma bebida inspida, outra taa de conhaque e todos na casa de Wagner concordando que ela estava prestes a chegar, a Revoluo. No dia 3 de maio vi erguerem as primeiras barricadas em Dresden, os insurgentes tentam tomar o Arsenal, o exrcito abre fogo e mata quinze pessoas. Percorria diariamente, junto a Heubner e outros, as barricadas discutindo, animando seus defensores. De tanto falar perdi a voz mas mesmo rouco continuava junto aos revolucionrios. Tristeza, no dia 6 de maio os insurgentes ateiam fogo no Palcio da pera (o mesmo onde ouvi a Nona Sinfonia), h dois dias eu no dormia, no comia, no bebia e sequer fumava e ainda fui injustamente acusado do incndio. Contudo pensava ,e ainda penso do alm, que as revolues no so um jogo infantil, nem um debate acadmico ou um jogo literrio. A revoluo a guerra, e quem diz guerra diz destruio de homens e de coisas. As tropas prussianas e saxnicas j ocupavam Desden e quando tudo j estava perdido propus que o governo provisrio revolucionrio tivesse a delicadeza de estourar pelos ares (junto comigo, bvio) quando da entrada das tropas do exrcito. Recusaram minha proposta por elevada maioria. Eu sabia que molestava como ainda molestam as minhas idias. Eu e outros tentamos ainda resistir em Chemnitz, cidade prxima a Dresden, estava extenuado, depois de mais de seis dias e seis noites sem dormir. Em 10 de maio de 1849 fui preso no Hotel Anjo Azul e escoltado pelo exrcito prussiano at Dresden.

VI. Triste, mas curto

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No nego que, ao avistar e pisar novamente o solo russo, depois de onze anos de ausncia, mesmo acorrentado e escoltado por soldados austracos que me entregavam aos seus colegas russos, no pude reprimir um sentimento quase de satisfao. No era efeito da ptria poltica; era-o do lugar da infncia, dos cheiros, cores e da lngua nativa. No resisti e disse aos soldados russos em nossa lngua: - "Pois bem rapazes, me alegro de haver retornado a minha terra, mesmo que seja para morrer nela". Esqueci que voltava como prisioneiro de um estado autoritrio mas um oficial logo lembrou-me dizendo: "Ests terminantemente proibido de falar". Voltei Rssia no dia 17 de maio de 1851, calma caro leitor no furtar-me-ei em falar brevemente dos dois anos passados desde a minha priso, coisas de memrias desencarnadas. Fiquei preso inicialmente em Dresden, depois em Knigstein,

aproximadamente um ano em Praga, cinco anos em Olmutz, completamente acorrentado e, em Olmutz, at mesmo acorrentado ao muro, fui em seguida transportado para a Rssia. Na Alemanha e na ustria minhas respostas s questes foram muito curtas: "Vocs conhecem meus princpios, eu os publiquei e fi-los conhecer em alta e

inteligvel voz; eu quis a unidade de uma Alemanha democrtica, a libertao dos eslavos, a destruio de todos os reinos cimentados pela violncia, antes de tudo, a destruio do imprio austraco; apanhado de armas na mo, vocs tm muitos elementos para me julgar. Eu no responderei mais a nenhuma de suas questes". Em maio de 1851 fui transferido para a Rssia, diretamente para a fortaleza Pedro e Paulo, na fortificao Aleksei, onde permaneci encarcerado por trs anos. Dois meses aps minha chegada, o conde de Orlov veio ver-me em nome de Nicolau I. "O soberano me enviou a voc e me ordenou dizer-lhe: "Diga-lhe que me escreva, como um filho espiritual escreve a um pai espiritual"; voc quer escrever?" Eu refleti um pouco e disse a mim mesmo que, diante de um juri, num processo pblico, eu deveria manter meu papel at o fim, mas entre quatro paredes, merc do urso, eu podia sem vergonha suavizar as formas; pedi ento prazo de um ms;

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eu aceitei - e efetivamente escrevi um tipo de confisso, meus atos eram, por sinal, to manifestos, que eu no tinha nada a esconder. Aps ter, em termos gentis, agradecido ao monarca por sua complacente ateno, acrescentei: "Sire, Vs quereis que eu vos escreva minha confisso, est certo, eu a escreverei, mas sabeis que na confisso ningum obrigado a declarar os pecados de outro. Aps meu naufrgio, s me resta um nico tesouro, a honra e o sentimento de que no tra nenhum daqueles que confiaram em mim; consequentemente, no delatarei ningum". Dito isso, com algumas excees, contei a Nicolau toda minha vida no estrangeiro, inclusive todos os meus projetos, impresses e sentimentos. Sei que aps t-la recebido, ele nunca mais me interrogou sobre assunto nenhum. Encarcerado durante trs anos na fortaleza Pedro e Paulo, fui transferido no incio de 1854 para Schsselburg, onde permaneci detido ainda trs anos. Atingido pelo escorbuto, perdi todos os meus dentes. A priso perptua uma coisa terrvel, levar uma vida sem objetivo, sem esperana, sem interesse. Dizer a si mesmo todos os dias: "Eu me tornei hoje um pouco mais imbecil e amanh serei ainda mais imbecil".Com uma horrorosa dor de dentes que durava semanas e voltava pelo menos duas vezes por ms; no podendo dormir de dia nem de noite, fizesse o que fizesse, lesse o que lesse; e mesmo durante o sono sentir no corao e no fgado uma dor alucinante, com este sentimento fixo: eu sou um escravo, eu sou um morto, eu sou um cadver. Entretanto, no perdi a coragem; se a religio se manteve em mim, ela se desmoronou definitivamente nas fortalezas. Eu s tinha um desejo: no capitular, no me resignar, no me abaixar at procurar um consolo em no sei qual engano, guardar at o fim, intacto, o sentimento sagrado da revolta. Morto Nicolau, pus-me a esperar mais vivamente. Houve a coroao, a anistia. Alexandre Nikolaevitch, sucessor de Nicolau I, de seu prprio punho, riscou meu nome da lista que lhe haviam apresentado. Um ms se esgotou: recebi uma intimao para escolher entre a fortaleza ou a deportao para a Sibria. claro que escolhi a deportao. Minha libertao da forteleza no foi obtida

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facilmente; o monarca, teimoso como uma mula, recusou diversas vezes; um dia, entrou no gabinete do prncipe Gorchtakov (o ministro das Relaes Exteriores), com uma carta na mo (precisamente a carta que eu escrevera em 1851 a Nicolau) e lhe disse: "Mas eu no vejo o mnimo arrependimento nesta carta"; o idiota, ele queria um arrependimento! Finalmente, em maro de 1857, sa de Schlusselburg e ,com o consentimento do monarca, passei vinte e quatro horas com a minha famlia, em

Premujino; em abril, fui conduzido a Tomsk, Sibria. Vivi l aproximadamente dois anos e conheci uma encantadora famlia polonesa, cujo pai, Ksaverii Vasilievitch Kwiatkowski trabalhava na indstria aurfera. A um quilmetro da cidade, no campo, esta famlia habitava numa pequena casa, onde a vida passava na tranquilidade e no respeito das velhas tradies e costumes. Tomei o hbito de ir l todos os dias e propusme a ensinar o francs, etc., s duas moas; liguei-me afetivamente com a mais jovem, Antonia, minha esposa, ganhei sua inteira confiana (eu a amei apaixonadamente, ela tambm estava apaixonada por mim), de modo que a desposei; e j faz dois anos que estou casado e muito feliz. Em maro de 1859, instalei-me em Irkutsk, na Sibria oriental, onde entrei para o servio da Companhia fluvial do Amur. Sentia-me como se o gelo siberiano houvesse preservado minha carne como a de um mamute russo. Triste captulo; passemos a outro mais alegre.

VII. Curto, mas alegre. Fiquei prostrado. Havia percorrido mais de trs mil quilmetros nas geleiras da Sibria, sem dormir e sonhando com minha liberdade. Nas prises e no exlio aprendi que no existe estado mais deplorvel do que ver-se obrigado a permanecer eternamente preso em si mesmo... Somente em sociedade, com outros, e com ajuda dos demais, pode o homem sentir-se plenamente homem. No incio de julho de 1861 estava no porto de Nikolaevsk, um ms aps ter sado de Irkutsk, embarquei primeiramente no navio mercante Strelok de bandeira russa e consegui passar para o

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veleiro Vickery, de bandeira norte-americana, que fazia escala comercial nos portos japoneses. Tinha escapado das garras do urso de Moscou. Cheguei no porto de Hakodate, Japo, no incio de agosto e no dia vinte e quatro embarcava no vapor norte-americano Carrington para a Amrica. Cruzando os mares no pude deixar de lembrar da carta que havia escrito na priso de Pedro e Paulo em So Petersburgo h dez anos onde dizia que eu deveria ter sido marinheiro ou outra coisa qualquer. O destino me fazia marinheiro e me carregava para o Far West, onde um dia desejei ter nascido. Desembarquei em San Francisco, Califrnia em outubro e em lombo de burros, carroas, andando vivi minha rpida aventura americana at atravessar o istmo do Panam, como odiei os mosquitos daquela maldita selva... Embarquei para New York onde cheguei em 18 de novembro, revi velhos camaradas das revolues de 48, agora exilados na Amrica. Aps um ms e pouco estava desembarcando em Liverpool, donde dirig-me Londres. Dei a volta ao mundo em 150 dias. Em Londres fui imediatamente a casa de Alexandre Herzen. Era a noite do dia 27 de dezembro de 1861 e encontrei Herzen e famlia jantando. Subi rpido as escadarias e gritei jogando-me aos braos de Herzen: "- Onde h ostras frescas por aqui?". Depois de tanto tempo enterrado vivo sentia-me novamente um homem pleno e livre.

VII. Que escapou a Marx Outra coisa que tambm merece ser lembrada a metafsica de Herr Marx. Da mesma forma que escapou a Aristteles uma compreenso sobre a solidariedade do aborrecimento humano a Marx escapou a compreenso da liberdade. Marx e eu fomos velhos conhecidos. Encontrei-o pela primeira vez em Paris, em 1844. Mas sempre desconfiei da sua cincia e sempre estive mais prximo de

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Proudhon com o qual muito conversei e aprendi. Mas ramos bastante amigos, Marx e eu. Ele j era muito mais avanado do que eu ou pelo menos

incomparavelmente mais erudito do que eu. Na poca eu no entendia absolutamente nada de economia poltica e meu socialismo era puramente instintivo. Ns nos vamos frequentemente, pois o admirava muito por seu saber e por sua apaixonada e entusistica dedicao causa do proletariado, mesmo que mesclada com sua vaidade pessoal. Porm, nunca existiu entre ns uma franca intimidade. Nossos temperamentos no o permitiam. Ele me chamava de idealista sentimental e tinha razo. Eu o chamava de vaidoso, desconfiado, prfido e tambm tinha razo. Fomos nos encontrar novamente aps minha fuga da Sibria em 1864, quando fui convidado para visit-lo na sua casa em Londres. Foi a ltima vez que o vi pessoalmente e tivemos um encontro cordial. Das vrias injrias que Marx me agraciou, uma agradou-me em particular: - "Maom sem o Alcoro". No por Maom mas sim por ele ter reconhecido que nunca defendi um livro sagrado, uma ortodoxia. Por sua vez Marx s vezes me passava a imagem de querer ser Deus ou Zeus. Decida-o por si, caro leitor. Eu soube um dia por um amigo em comum, que quando Marx passava uma temporada na casa de seu amigo Kugelmann em Hannover, em 1867, sentiu uma estranha paixo pela cpia de um busto de Zeus encontrado na cidade italiana de Otricoli. Ele se achava parecido com o dspota do Olimpo na Grcia antiga. Para ficar ainda mais parecido com Zeus, semelhana tambm percebida por Kugelmann, Marx deixa crescer, a partir de ento, sua barba e cabelos que sempre usou aparados. A sua semelhana com Zeus, ou a de Zeus com Marx, - quem sabe - impressionou-o tanto que a cpia do busto de Zeus adorna seu escritrio em sua casa londrina de Maitland Park Road desde o Natal desse mesmo ano. Como j disse eu o chamava de vaidoso e tinha razo.

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Sempre denunciei as mentiras mais vis e terrveis que o nosso

sculo

engendrou: o democratismo oficial e a burocracia vermelha. Essa ltima com sua ditadura do proletariado construria um socialismo de caserna, onde a massa uniformizada dos trabalhadores e das trabalhadoras despertaria, adormeceria,

trabalharia e viveria ao som do tambor; para os hbeis e para os sbios que teriam o privilgio do governo. Num tal sistema, o fruto proibido que tanta atrao exerce sobre os homens e o diabo da revolta, este inimigo eterno do Estado, se revelam fcilmente nos coraes daqueles que no esto totalmente embrutecidos, e nem a educao, nem a instruo, nem mesmo a censura garantiro a tranquilidade de tal Estado. Ser necessrio uma fora policial devotada que supervisione e dirija a opinio pblica e as paixes populares. Contrriamente ao pensamento dos comunistas autoritrios, e a meu ver, erradamente, que uma revoluo social pode ser decretada e organizada quer por uma ditadura, quer por uma assemblia constituinte seguida de uma revoluo poltica, eu e meus amigos, pensamos que ela s pode realizar-se e ser conduzida ao seu pleno desenvolvimento pela ao espontnea e contnua das massas, dos grupos e associaes populares. A vida, no a cincia, cria a vida; a ao espontnea do povo s pode criar a liberdade. Os comunistas imaginaram que "sua ordem" poderia ser conseguida atravs do desenvolvimmento e organizao do poder poltico nas mos da classe trabalhadora e, particularmente, do proletariado industrial. Ns os socialistas revolucionrios acreditamos que tal objetivo s se pode alcanar atravs do poder social, no poltico e consequentemente anti-poltico, das massas trabalhadoras da cidade e do campo. Eu sempre exigi a mais absoluta liberdade do indivduo dentro da Associao Internacional dos Trabalhadores e acusava Marx e seu conselho geral de Londres de tentarem converter a Internacional numa espcie de Estado

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monstruosamente gigantesco, sujeito a um nico critrio social representado por uma forte autoridade centralizadora, a de Marx. Marx e os seus sempre afirmaram que essa autoridade, a ditadura do proletariado, um passo essencial para a completa liberdade; e que a sociedade sem Estado o objetivo mas que o Estado ou a ditadura so os meios. Falando dessa evidente contradio eu terminarei por aqui meus argumentos contra Marx. Ele afirmava que somente a ditadura poderia criar a vontade popular. Eu respondo que nenhuma ditadura pode ter nenhum outro fim exceto perpetuar a si mesma. A liberdade smente pode ser criada pela liberdade. Basta de Herr Marx, caro leitor.

IX. O anarquismo Sempre neguei a centralizao e fui um apaixonado defensor das tradies comunitrias e federalistas. Percorri um crculo em minha vida agitada; minha infncia e adolescncia aconteceram nas cercanias de um Mir - comuna coletivista - na Rssia e na minha velhice vivi sob o federalismo cantonal suo. Sempre acusei Rousseau de inaugurar a mais sutil justificativa da razo de Estado, ou seja, aquela que se ampara numa desptica vontade geral que aniquila qualquer liberdade individual. Sempre escrevi, falei, que todo amo exige submisso, genuflexes, obedincia cega e por isso a organizao estatal a negao da prpria humanidade. No houve e no pode haver um Estado bom, justo, virtuoso. Todos os Estados so maus no sentido em que, pela sua natureza, pela sua base, por todas as condies e pelo fim supremo da sua existncia, so todos a oposio da liberdade, da moral e da justia humana. Eu no fui um filsofo ou criador de sistemas, como Marx, como um verdadeiro buscador sempre escutei a voz da vida que sempre mais vasta que qualquer doutrina. Sempre me neguei a criar projetos para sociedade futuras. O instinto de dominao, este instinto senhorial que impulsiona a

submeter sistemticamente tudo que lhe mais dbil, a mandar, a conquistar e a oprimir

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no menos sistemticamente, tem por corolrio a prudente e fcil submisso frente a fora triunfante com o pretexto da obedincia s autoridades chamadas legtimas. O sentimento de rebeldia, esse orgulho satnico que recusa a dominao de qualquer amo, divino ou humano, e que o nico que no homem revela o amor independncia e liberdade, esse o princpio que sempre defendi. Defendi ainda a substituio da ordem hierrquica fundada, de cima para baixo, por uma organizao nova no tendo outra base que os interesses, as necessidades e as atraes naturais das populaes, nem outros princpios que a federao livre dos indivduos nas comunas, as comunas nas provncias, as provncias nas naes. Rejeito toda a legislao, toda a autoridade e toda influncia privilegiada, patenteada, oficial e legal, mesmo sada do sufrgio universal, convencido de que ela nunca pode estar ao servio de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada. Eis, em que sentido eu sempre fui anarquista. Caro leitor deves estar perguntando: "mas ser que ele rejeita toda autoridade?" Longe de mim tal pensamento. Quando se trata de botas, recorro autoridade dos sapateiros; se se trata de uma casa, de um canal ou de uma ferrovia, consulto a do engenheiro ou a do arquiteto. Mas nunca deixei imporem-se-me nem o sapateiro, nem o arquiteto, nem nenhum sbio. Aceito-os livremente reservando sempre o meu direito incontestvel de crtica e de contrle; consulto sempre vrias autoridades especialistas, comparo suas opinies e escolho aquela que me parece mais justa. Mas nunca reconheci nenhuma autoridade infalvel, nunca tive f absoluta em ningum. Sempre recebi e doei, assim a vida humana. Cada um dirigente e cada um dirigido ao mesmo tempo. Portanto, no h autoridade fixa e constante, mas uma troca contnua de autoridade e de subordinao mtuas, passageiras e, sobretudo voluntrias. Sempre defendi, pois, a rebelio da vida contra a cincia, ou melhor, contra o governo da cincia. Seria melhor vivermos sem a cincia do que nos deixar governar pelos sbios.Nunca quiz nenhuma espcie de liderana. Os vermes devoram-me, porm o que

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eu sempre quiz foi o triunfo da liberdade. Sempre quiz, e do alm ainda quero, que a humanidade se veja realmente emancipada de toda autoridade e de todos os heris presentes e futuros.

X. De como no fui nem clich, nem salvador, nem burocrata, nem pontfice e nem gorila da esquerda ou da direita. ............................................................ ........................................................................ ........................................................................ .........................................................

XI. Das negativas. Minhas ltimas palavras, caro leitor, so todas negativas. No alcancei a celebridade, no fui ministro, no vi a vitria da revoluo. Verdade que, ao lado dessas negativas, coube-me a sorte de sempre contar com os amigos e viver livre. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginar que no houve mngua nem sobra, e consequentemente, que sa quite com a vida. E imaginar mal; porque ao chegar a este outro lado do mistrio, achei-me com um pequeno saldo, que a derradeira negativa desta lista de negativas: - No fundei partidos, no transmiti a nenhuma criatura o legado da autoridade. _______________________________________________________ P.S. Eu que psicografei as memrias pstumas de Mikhail

Alexandrovitch Bakunin atesto para os pesquisadores universitrios ter tido a garantia do sat da revoluo de que tudo o que foi relatado a mais absoluta verdade histrica. Digo ainda que essa coisa de psicografar complicada pois do alm um fantasma que se dizia chamar Brs Cubas insistia em cruzar a minha linha com Bakunin.

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Assis, outono de 1994. Sergio Augusto Queiroz Norte

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