BARROS, José D'Assunção. a Fonte Histórica e Seu Lugar de Produção. Cadernos de Pesquisa Do CDHIS, Universidade Federal de Uberlândia, V. 25, n. 02, Jul.-dez. 2012, p. 407-429

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  • Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 407

    A fonte histrica e seu lugar de produo

    Jos DAssuno Barros 1

    Resumo: Este artigo busca desenvolver algumas consideraes relacionadas metodo-logia de tratamento de fontes histricas. Aps algumas consideraes relacionadas es-colha e constituio de fontes histricas, discutida uma questo mais especfi ca: o lugar de produo de um texto tomado como fonte histrica. As questes tratadas neste artigo referem-se mais especifi camente aos textos autorais.Palavras-chave: Fontes histricas. Teoria da Histria. Metodologia.

    Abstract: This article aims to develop some considerations related to the methodology for treatment of historical resources. After some considerations about the choice and cons-titution of the historical resources, it is discussed a specifi c question: the production place of a text constitute as an historical resource. The questions treated in this article refer most specifi cally to the authorial texts.Keywords: Historical resources. Theory of History. Methodology.

    1 Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

    KeshiNotaBARROS, Jos D'Assuno. A fonte histrica e seu lugar de produo. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Universidade Federal de Uberlndia, v. 25, n. 02, Jul./Dez. 2012, p. 407-429

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    Consideraes iniciais

    O presente artigo pretende abor-dar algumas questes primordiais para a prtica historiogrfica, mais especificamente aquelas que se re-ferem ao tratamento das fontes his-tricas. Como relacionar fontes e problemas? Que questes e dilemas historiogrficos surgem a partir da delimitao de um tema, da especi-ficao de um problema, da formula-o de hipteses, quando se trata de constituir o corpus documental que dar suporte emprico pesquisa his-trica? Quais os cuidados a serem to-mados na prpria constituio de um corpus documental em termos de ho-mogeneidade, pertinncia, represen-tatividade em relao ao problema e ao tema estudado? Qual a relao en-tre os problemas que podem ser pen-sados a partir de uma fonte e o lugar que a produz como texto, documento ou objeto material? Questes como estas, e ainda outras, fazem parte de h muito do universo de preocupa-es dos historiadores. Sobre elas e mais especificamente sobre a necessi-dade de identificao de um lugar de produo das fontes histricas (para aqui retomar a clebre expresso de Michel de Certeau), refletiremos nas prximas linhas.

    Michel de Certeau e a refl exo sobre o lugar de produo da historiografi a

    A primeira refl exo mais sistemti-ca sobre o conceito de lugar de produ-o na historiografi a foi desenvolvida por Michel de Certeau em um texto de 1974 que se tornou clebre: A operao historiogrfi ca2. A percepo de que o historiador escreve de um lugar social, de que na operao historiogrfi ca ele escreve a partir de um ponto de vista, atravessado por subjetividades e inscri-es sociais vrias, j vinha naturalmen-te sendo elaborada pelos historicistas mais atuantes da segunda metade do s-culo XIX, tais como o historiador Gustav Droysen3 e o fi lsofo Wilhelm Dilthey4, entre outros. Historiadores oitocentistas como Gervinus, em uma obra de 1837 intitulada Fundamentos da Teoria da Histria5, j discorre detidamente sobre o que o fazer histrico e sobre o fato de que o historiador desenvolve esta ativi-dade a partir de uma posio especfi ca e de uma inscrio em uma sociedade e, com relao questo que lhe era mais cara, de um certo lugar nacional. Essa percepo de que o historiador escreve de um lugar, alis, foi uma pedra de to-

    2 CERTEAU, Michel de. A operao historiogr-fi ca, in A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1988. p.16-48 [original: 1974].

    3 DROYSEN, J. Gustav. Manual de teoria da Hist-ria. Petrpolis: Vozes, 2009 [original: 1868].

    4 DILTHEY, Wilhelm. A construo do mundo histrico nas Cincias Humanas. So Paulo: UNESP, 2010.

    5 GERVINUS, Georg. Fundamentos de teoria de Histria. Petrpolis: Editora Vozes, 2010.

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    que importante no desenvolvimento do historicismo, que j vinha contrastando com os historiadores positivistas do s-culo XIX em seu reconhecimento de que qualquer texto parte de um lugar e de um ponto de vista. Esta conscincia histri-ca prossegue de maneira cada vez mais afi rmativa atravs do sculo XX, com autores como Marc Bloch6, Lucien Feb-vre7 e inmeros historiadores ligados a movimentos como o dos Annales ou do Presentismo norte-americano e tambm a perspectivas como a do Materialismo Histrico ou da hermenutica alem8. De todo modo, pode-se dizer que, em seu texto de 1974, Michel de Certeau encon-trou a palavra certa para desdobrar uma arguta refl exo sobre o fazer historiogr-fi co. Lugar de Produo foi a expresso que Certeau celebrizou para expressar a idia de que o historiador, em sua prti-ca e operao historiogrfi ca, escreve ele mesmo a partir de um lugar, de uma ins-crio em uma sociedade e em uma co-munidade historiogrfi ca atualizada pela sua prpria poca, de um enredamento que o situa em uma instituio (univer-sitria, por exemplo), de uma teia de intertextualidades que o infl uenciam de mltiplas maneiras. O historiador, ho-mem de seu tempo, acompanha os ditos

    6 BLOCH, Marc. Apologia da Histria. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar, 2001 [original publicado: 1949, pstumo] [original de produo do texto: 1941-1942].

    7 FEBVRE, Lucien. Combats pour lhistoire. Paris: A. Colin, 1953.

    8 Entre estes ltimos, podemos lembrar o conjunto de refl exes de Gadamer sobre a Histria. GADA-MER, Hans-Georg. A conscincia histrica. Rio de Janeiro: FGV, 1998 [original: 1996].

    e enfrenta os interditos proporcionados por este lugar, que se instala ademais em uma complexa estrutura de poder9. O seu trabalho torna-se possvel neste lugar de produo especfi co, que pre-cisa ser adequadamente compreendido, para cada caso, quando se trata de com-preender a historiografi a ou um produto historiogrfi co. O prprio leitor ou be-nefi cirio do produto historiogrfi co, ele mesmo mergulhado em suas circunstn-cias e perfeitamente inscrito em uma so-ciedade e no prprio lugar que torna pos-svel as suas condies de leitura e a sua atividade como leitor, tambm interfere, sua maneira, neste lugar de produo que demarca as condies de trabalho do historiador10.

    Neste texto, estaremos direcionan-do o conceito de lugar de produo para um outro mbito, tambm perce-bido por Certeau e muito antes dele por uma grande tradio que remonta aos historicistas do sculo XIX, passando depois por diversos setores da historio-

    9 Assim se expressa Michel de Certeau no incio da primeira sesso de se seu artigo: Toda pesquisa histrica articulada a partir de um lugar de pro-duo scio-econmico, poltico e cultural. Im-plica um meio de elaborao circunscrito por de-terminaes prprias: uma profi sso liberal, um posto de estudo ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Encontra-se, portanto, submetido a opresses, ligada a privilgios, enraizada em uma particularidade. em funo desse lugar que se instauram os mtodos, que se precisa uma topo-grafi a de interesses, que se organizam os dossiers e as indagaes relativas aos documentos (CER-TEAU, op.cit., p.18).

    10 Sobre estes aspectos, so fundamentais as refl e-xes desenvolvidas por Paul Ricoeur no primei-ro volume de sua obra Tempo e narrativa (RI-COEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol.1: a intriga e a narrativa histrica. So Paulo: Martins Fontes, 2010).

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    grafi a do sculo XX. A nossa inteno ser aplicar o conceito de lugar de pro-duo aos textos que o historiador cons-titui como fontes histricas. claro que a percepo dos historiadores de que o seu prprio trabalho tambm se escreve em um lugar complexo social, institucio-nal, cultural, poltico, intertextual, epis-temolgico e que precisa ser conside-rado quando estes mesmos historiadores tomam conscincia das especifi cidades de suas prprias prticas, constitui de fato a questo crucial que logrou situar a historiografi a moderna em um novo pa-tamar de autoconscincia. Mas este no ser o tema do presente artigo, que busca mais especifi camente desenvolver uma refl exo sobre o tratamento das fontes histricas. Destarte, uma refl exo inicial sobre esta questo mostra-se imprescin-dvel.

    Pensadores como Certeau, e mais tarde Jorn Rsen11, foram fundamentais para o aprimoramento da clarifi cao de que, nas diversas operaes que consti-tuem a sua prtica, o historiador atra-vessado por intersubjetividades vrias, e tambm por condies especfi cas que defi nem o seu lugar social, institucional, e mais propriamente historiogrfi co. As-sim, apenas para dar um exemplo que

    11 (1) RUSEN, Jrn. Razo histrica Teoria da Histria I: os fundamentos da cincia histrica. Braslia: UNB, 2007a. (2) RUSEN, Jrn. Histria viva Teoria da Histria II: os princpios da pesquisa histrica. Braslia: UNB, 2007b. (3) RU-SEN, Jrn. Reconstruo do passado Teoria da Histria III: formas e funes do conhecimento histrico. Braslia: UNB, 2007c. (4) RUSEN, Jrn. Partidarismo e objetividade as potencialidades racionais da cincia da histria In Razo Histri-ca. Braslia: UNB, 2001 [original: 1983].

    no ser objeto deste artigo, a prpria escolha do tema de pesquisa, e a possibi-lidade de construir problemas mais sin-gulares a partir deste tema de pesquisa, constitui-se para o historiador uma ope-rao que deve ser compreendida a par-tir deste lugar complexo. A refl exo sobre esta questo nos levaria longe, e remete-ria tambm a autores como Max Weber (1904), entre vrios outros12.

    De igual maneira, o discurso produ-zido pelo historiador, com todas as suas especifi cidades e modos de expresso, ainda indelevelmente ligado ao lugar de onde fala o historiador, sociedade em que ele se inscreve, instituio qual se vincula, aos dilogos que estabelece com seus pares e, por vezes, a presses diversas advindas da comunidade de historiadores das quais no necessaria-mente cada historiador se apercebe. Tal como observa Certeau em a operao historiogrfi ca, meu dialeto [do histo-riador] demonstra minha ligao com um certo lugar13. O que se diz, e como se diz, relacionam-se naturalmente a este lugar, da mesma forma como se inscrevem em um lugar os modos a par-tir dos quais se estabelece um objeto de pesquisa e se viabiliza uma prtica a ela relacionada. A operao historiogrfi ca como um todo, enfi m, refere-se com-binao de um lugar social e de prticas cientfi cas14, e foi sobre todas as impli-

    12 WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas Cincias Sociais. So Paulo: tica, 2006 [ori-ginal: 1904].

    13 CERTEAU, op.cit, p.1614 CERTEAU, op.cit, p.18.

    KeshiRealce

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    caes de cada uma destas instncias lugar social e prtica cientfi ca que Certeau se disps a discorrer no ensaio a partir do qual se afi rmou defi nitivamente o conceito de lugar de produo. A par-tir daqui, refl etiremos, ao recorrer a este conceito, sobre uma questo especfi ca no interior da operao historiogrfi ca, que a da percepo de que os textos que os historiadores tomam para fontes his-tricas tambm foram produzidos, em sua poca, a parir de um lugar que pre-cisa ser compreendido e decifrado pelo historiador15.

    O problema histrico e a escolha da documentao adequada

    Vamos prosseguir, nesta refl exo sobre o fazer historiogrfi co, de um pon-to mais avanado na instituio do pro-cesso de pesquisa histrica. Suponha-mos que o assunto ou mesmo o Tema de nossa pesquisa, bem como o seu recorte espacial e cronolgico, j esto devida-mente delimitados (o que, tal como j se mencionou, constitui uma operao que tambm se associa ao prprio lugar de produo no qual se insere o historia-dor). Cabe agora um passo decisivo para o estabelecimento das condies iniciais do trabalho historiogrfi co. preciso de-terminar com clareza e preciso o uni-verso documental de nossa pesquisa. sobre este momento, primordial para

    15 O nosso objetivo, deste modo, ser estabelecer, a partir daqui, algumas consideraes de cunho metodolgico que se referem anlise de fontes histricas.

    a prtica historiogrfi ca, mas que natu-ralmente posterior, na concepo his-toriogrfi ca moderna, instituio de um problema histrico, que refl etiremos neste artigo.

    A Fonte Histrica, como se sabe, o elemento que assegura uma base cientfi -ca Histria; ou, caso se queira evitar a interminvel polmica sobre a cientifi ci-dade da Histria, o que d legitimidade ao discurso do historiador. um daque-les elementos que vai produzir a distin-o entre a Histria e o relato de fi co16. Qualquer afi rmao do historiador deve ser proposta a partir de uma base docu-mental; da mesma forma que as hipte-ses por ele levantadas devem ser com-provadas ou admitidas como aceitveis a partir do seu trabalho com as fontes17.

    Da decorre que a escolha do uni-verso documental deve estar intima-mente ligada s hipteses de trabalho, ao problema levantado, aos objetivos

    da pesquisa. Tudo isto, naturalmente,

    est associado ao lugar de produo no

    16 Isto , referimo-nos aqui, mais especifi camente, tradio historiogrfi ca que se desenvolveu na civilizao ocidental crist. Deve fi car bem enten-dido que h casos de outras civilizaes que de-senvolveram um fazer histrico que prescinde do documento.

    17 No nos referimos, naturalmente, literatura histrica oferecida ao pblico sem maiores pre-tenses cientfi cas ou acadmicas. A exigncia de uma base documental mormente uma exign-cia de historiadores para com historiadores, e que parte tambm de um pblico mais especializado. Em vista do pblico a que se destina, ou dos hori-zontes editoriais que norteiam o produto fi nal do discurso historiogrfi co (por exemplo: um livro), pode se dar tambm que no haja uma citao do-cumental, o que no quer dizer que o historiador no tenha construdo o seu trabalho a partir de documentos histricos.

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    qual se inscreve o prprio historiador,

    mas no desta questo to importante

    quanto especfi ca que trataremos agora.

    Queremos chamar ateno para o fato de

    que cada pesquisa em especial vai permi-

    tir determinadas alternativas de univer-

    sos documentais (alternativas que, ob-

    viamente, sero objetos de uma escolha,

    elas mesmas interferidas pelo prprio

    lugar de produo do historiador). O

    fato de que cada pesquisa em especial vai

    possibilitar ao historiador fazer suas es-

    colhas diante de determinadas alternati-

    vas de universos documentais constitui

    o mais ntimo sentido da prdica de que

    sempre se deve submeter um determina-

    do conjunto documental a uma anlise

    de adequao, com vistas a verifi car se

    as fontes propostas realmente estaro

    sintonizadas com o problema histrico

    proposto.

    verdade que pode se dar, em al-

    guns casos, que o universo documental j

    esteja determinado a priori pelo prprio

    objetivo da pesquisa defi nida de ante-

    mo pelo historiador ou pelas exigncias

    de seu ofcio no seio de uma instituio

    que o convocou para um trabalho espe-

    cfi co. Digamos, por exemplo, que uma

    instituio nos encomendou uma inves-

    tigao sobre os programas de todos os

    partidos polticos ofi ciais desde o incio

    da Repblica, ou ento sobre a corres-

    pondncia entre Getlio Vargas e seus

    aliados polticos. No primeiro caso, nos-

    so universo de fontes j est previamente

    defi nido. O prprio objeto da pesquisa j

    determina, a princpio, a base documen-

    tal. Meu primeiro passo ser percorrer

    os arquivos em busca dos programas dos

    partidos polticos ofi ciais desde o incio

    da Repblica. claro que, dependendo

    do tipo de anlise a que nos propuser-

    mos empreender, poderemos cotejar

    estas fontes com outras. Por exemplo, se

    quisermos investigar at que ponto estes

    programas foram cumpridos na prtica

    poltica e social, poderemos cotej-los

    com notcias de peridicos de cada po-

    ca, estatsticas ou registros diversos. Mas

    isto j ser uma outra etapa.

    No segundo caso, o nosso universo

    documental tambm aparece previa-

    mente delimitado a saber: a corres-

    pondncia particular de Getlio Vargas.

    Mas caber antes, preciso notar, defi nir

    quem iremos considerar como os alia-

    dos polticos de Getlio Vargas. Esta

    defi nio j impor, ela mesma, uma de-

    limitao dentro daquele universo maior

    que fora previamente determinado pe-

    los objetivos da pesquisa encomendada.

    Afi nal de contas, ser preciso extrair da

    massa documental as cartas dirigidas

    aos aliados polticos de Vargas, sepa-

    rando-as das cartas dirigidas aos adver-

    srios polticos ou s pessoas comuns.

    Decidir quem era um aliado poltico de

    Vargas: isto , em ltima instncia, uma

    deciso do historiador e na verdade a

    sua primeira interferncia no universo

    documental.

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    H ainda casos em que o objeto de

    investigao j um documento em si

    mesmo. Por exemplo, um historiador

    pode se propor a investigar certos as-

    pectos da stira renascentista literatura

    cavaleiresca a partir do Dom Quixote de

    La Mancha18. Neste caso, o documen-

    to tambm j se encontra previamente

    delimitado. O que no impede que de-

    limitaes ou ampliaes posteriores

    sejam efetuadas, conforme uma maior

    especificao sofrida pelo problema. Se

    tomamos por objeto no o Dom Qui-

    xote na sua totalidade, mas a questo

    da presena de provrbios populares

    naquela obra, torna-se imprescindvel

    cotej-la tambm com a tradio oral.

    Ou talvez nos interessem apenas as

    partes da obra em que se verifiquem

    dilogos entre o fidalgo e seu escudeiro

    Sancho Pana, este ltimo represen-

    tando a tradio popular.

    Mas na maior parte das vezes o

    historiador parte mesmo de um pro-

    blema histrico, mais amplo ou mais

    especfico, sem que este determine

    necessariamente o tipo de documento

    que poder embasar o seu trabalho.

    Abrir-se-o aqui algumas escolhas, e,

    para orient-las, a crtica de adequa-

    o ser particularmente importante.

    Por exemplo, suponhamos que o pro-

    blema investigar a qualidade de vida

    18 SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. El ingenio-so hidalgo Don Quixote de La Mancha. Madrid: 1605.

    da populao negra durante o Brasil

    Colonial. Que tipos de fontes nos per-

    mitiro uma aproximao do proble-

    ma? Documentos de compra e venda

    relativos ao trfico de escravos? No-

    tcias de peridicos? Registros carto-

    riais de nascimentos e mortes? Fontes

    iconogrficas que deixem transparecer

    algum tipo de informao sobre a vida

    cotidiana da populao negra? Relatos

    de militantes abolicionistas? Cantigas

    legadas pelos prprios negros tradi-

    o oral? Todos estes caminhos, e mui-

    tos outros, se abrem ao historiador.

    preciso, nestes casos, proceder

    constituio de um corpus documental

    adequado (Quadro 1). O corpus docu-

    mental pode ser definido como o con-

    junto de fontes que sero submetidas

    anlise do historiador com vistas a

    lhe fornecer evidncias, informaes

    e materiais passveis de interpretao

    historiogrfica. Sua constituio no

    gratuita: implica em escolhas e sele-

    es que devero atender a determina-

    das regras e critrios19.

    19 BARDIN, Laurence. Anlise de contedo. Lisboa: Edies 70, 1991, p.97.

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    Quadro 1. A constituio do corpus documental

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    Em primeiro lugar, deve-se atender ao critrio mais bvio da pertinncia. O documento selecionado deve ser adequa-do ao objetivo da anlise. Se queremos compreender o pensamento nazista a partir de suas motivaes internas, pou-co nos adiantar proceder a um levanta-mento exaustivo dos editoriais antifas-cistas do Partido Comunista Alemo. Da mesma forma, se pretendemos investigar a tortura e as infraes aos direitos hu-manos durante a ditadura brasileira de 1964, no conseguiremos obter muitas informaes a partir de peridicos com-prometidos com a difuso de uma boa imagem do regime militar junto popu-lao mais ampla. Tal tipo de documento somente ser til para investigar ques-tes relativas violncia simblica20, ao controle direto ou indireto dos gran-des meios de imprensa durante o regime ou ao receio dos jornalistas em se com-prometerem. Se quisermos informaes relativas prtica de tortura teremos de busc-las em outro tipo de documenta-o, como depoimentos de vtimas da tortura e de dissidentes do regime mili-

    tar, registros de desaparecidos polticos,

    arquivos secretos do SNI, ou quaisquer

    outros que permitam ao historiador mais

    do que uma aproximao ingnua do

    problema.

    Outro problema a ser considerado

    o da homogeneidade do corpus docu-

    mental. A documentao deve ser produ-

    20 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, J.C. La repro-duction. Elments pour une thorie du systme denseignement. Paris: Minuit, 1970.

    zida ou agrupada conforme critrios de identidade e de similaridade. Por exem-plo, se pretendemos fundamentar nosso trabalho em entrevistas, de fundamen-tal importncia que estas tenham sido obtidas por intermdio de tcnicas idn-ticas, alm de terem sido realizadas por indivduos semelhantes21. Uma entrevis-ta obtida por mecanismos de constrangi-mento ou de coao no pode ocupar o mesmo setor do corpus documental que uma entrevista colhida informalmente, ou sem a conscincia do entrevistado de que o seu depoimento iria posterior-mente ser registrado. Da mesma forma, entrevistadores com diferentes nveis de persuaso no podem produzir entrevis-tas homogneas.

    Em muitos casos, o corpus deve es-tar comprometido com a idia de totali-dade. Melhor dizendo, ele no pode con-ter lacunas derivadas da relao entre o historiador e seu documento, como a difi culdade de acesso, a falta de nimo em empreender uma traduo difcil, ou a pouca capacidade para decifrar uma caligrafi a menos transparente. As nicas lacunas admissveis so as que nos foram legadas pela prpria Histria. Uma vez defi nida a srie documental, no cabe ao historiador ocultar um documento ape-nas porque ele contradiz a hiptese que pretende demonstrar, ou porque ele difi -culta o andamento de suas investigaes.

    Em contrapartida, o corpus do-cumental pode ser constitudo a partir do critrio de representatividade. Isto

    21 BARDIN, op.cit, p.98.

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    , a anlise pode ser efetuada em uma amostra, desde que o material a isto se preste22. Se a amostra for uma parte re-presentativa do universo inicial, os re-sultados para ela obtidos podero ser generalizados ao todo. Por exemplo: co-locamos como problema a identifi cao das principais caractersticas estticas da pintura renascentista, para que depois se possa proceder ao relacionamento da-quelas com a sociedade do seu tempo. Seria praticamente impossvel, ou des-necessariamente exaustivo, proceder coleta de todos os documentos pictricos da poca, o que vale dizer, de todas as obras pintadas pela totalidade dos pin-tores renascentistas. Ento procedemos constituio de uma amostragem: re-colhendo duzentas obras signifi cativas, verifi camos se certas caractersticas pre-dominam no conjunto, de maneira que possam ser generalizadas como aspectos comuns a toda a produo renascentista.

    A questo : que obras deveremos tomar para compor este conjunto repre-sentativo? O procedimento que oferece menos riscos selecionar vrias obras de diversos autores. Se nos ativssemos produo de um ou dois pintores, cor-reramos o risco de tomar certas caracte-rsticas estticas individuais como carac-tersticas estticas da sua poca. O risco ainda seria maior se cometssemos a im-prudncia de selecionar pintores menos representativos da esttica do seu tempo, como por exemplo Hieronymus Bosch (c.1450-c.1516) e Pieter Bruegel, o Velho

    22 BARDIN, op.cit, p.97.

    (1525-1569), cada qual tendo desenvol-vido um estilo surpreendentemente sin-gular em meio ao modelo hegemnico da pintura renascentista. Um Rafael (1483-1520), por outro lado, um artista muito mais representativo do padro de exce-lncia renascentista, assim como Botti-celli, Leonardo da Vinci ou Miguel nge-lo. Assim que se pretendemos abarcar todo o perodo renascentista a incluso na amostragem de pintores diversifi ca-dos, bem distribudos ao longo de toda a durao considerada, e bem espalhados ao longo de todo o recorte europeu, nos dar uma margem muito menor de erro. Da mesma forma, se pretendemos levan-tar algo como a mentalidade de um ofi -cial da GESTAPO no tempo da Segunda Guerra, desnecessrio investigar a tota-lidade dos ofi ciais nazistas. Mas convm investigar o padro de comportamento no de um nico homem, e sim de um nmero signifi cativo deles.

    O que defi ne se uma determinada amostragem adequada ou no o pro-blema que temos em vista. Um balde de gua do mar pssimo para dar conta do rastreamento de toda a fauna mari-nha, j que, com muita sorte, s teramos capturado um nico peixe. E, no entan-to, uma simples gota dgua excelente para dar conta da diversidade de micro-organismos presentes no oceano. Tentar estudar o oceano atravs de uma gota dgua ... Essa foi, alis, a proposta de Le Roy Ladurie em seu famoso Montaillou, uma vila occitnica23. Montaillou era

    23 LADURIE, Le Roy. Montaillou, uma aldeia occi-tnica. Lisboa: Edies 70, 1990.

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    uma aldeia de camponeses do sudoeste da Frana, em que a heresia ctara teve infl uncia considervel em princpios do sculo XIV. Vinte e cinco dos herticos locais (10% da populao) foram proces-sados e punidos pela Inquisio24. Os re-gistros daqueles interrogatrios consti-turam precisamente a base documental de Le Roy Ladurie, que tal como observa Peter Burke em seu ensaio sobre a Esco-la dos Annales (1990), tratou-os como se fossem gravaes de um conjunto de entrevistas. Reordenando a informao fornecida pelos suspeitos aos inquisido-res, Ladurie reconstituiu tanto a cultura material como a mentalidade dos alde-es. Um pequeno conjunto de depoi-mentos, homogneo no que se refere sua produo, e representativo no que se refere aos aspectos que Ladurie preten-deu estudar, permitiu-lhe reconstituir algo do que foi a aldeia inteira. E, mais do que isto, a reconstituio dos aspec-tos da vida cotidiana daquela aldeia lhe possibilitou atingir no a histria de uma aldeia particular, mas o retrato de uma sociedade mais ampla, que os aldeos representavam, embora dentro de sua singularidade25.

    verdade que certos aspectos do tratamento dado por Ladurie s suas fontes foram criticados sobretudo a sua afi rmao de que se tratava de tes-temunhos sem intermedirios, que nos

    24 BURKE, Peter. A escola dos Annales 1929 - 1989: a Revoluo Francesa da Historiografi a. So Paulo: UNESP, 1991, p.96.

    25 BURKE, op.cit., p.96.

    trazem o campons sobre si mesmo26. Tal como observa Peter Burke, os alde-es depunham em occitans e seus tes-temunhos eram escritos em latim. No era uma conversa espontnea sobre si mesmos, mas respostas a questes sob a ameaa de torturas. Os historiadores, acrescenta, no podem permitir-se es-quecer esses intermedirios entre si e os homens e mulheres que estudam27.

    Em todo o caso, Montaillou per-manece como um exemplo magistral de como um historiador pode se aventurar a reconstituir toda uma sociedade a par-tir de um corpus documental perfeita-mente adequado ao seu problema. Como ilustrao fi nal, registramos um trecho da obra de Le Roy Ladurie. Nele o his-toriador revela toda a sua capacidade de extrair, de um simples fragmento docu-mental, informaes que vo desde a cul-tura material da aldeia de Montaillou at os modos de pensar e de sentir de seus habitantes, passando pelas convenes associadas s relaes de parentesco:

    Um dia [conta Guillemette Clergue, cujo marido violento] eu precisava de pedir emprestados alguns pentes para pentear o canhmo e fui, para esse efei-to, a casa de meu pai. E, quando a che-guei, encontrei o meu irmo que tirava o esterco de casa. E perguntei ao meu irmo: Onde que est a senhora minha me? E que lhe quereis? replicou ele. Quero alguns pentes, disse eu.

    26 LADURIE, 1990, p.9.27 BURKE, op.cit., p.97.

  • 418 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012

    A nossa me no est aqui, concluiu o meu irmo. Foi gua. S voltar da-qui a um bom bocado.No acreditei no meu irmo e tentei en-trar em casa. Ento, o meu irmo ps o brao defronte da porta e impediu-me de entrar (I, 337).

    Comentrio de Ladurie: Texto no-tvel! A porta estreita; foi barrada por um simples brao de homem: a porta cheira a esterco; Alazais Rives, a me, aguadeira da domus do seu homem, como todas as outras. Isto no impe-de que esta mam muito vulgar tenha o direito ao ttulo de Senhora (minha senhora!) por parte de sua fi lha Guille-mette Clergue. Esta famlia , por outro lado, um ninho de escorpies; os laos so no entanto ritualizados. O irmo tra-ta por vs a irm, o que no o impede de ser brutal para com ela.28.

    A identifi cao do lugar de produo da fonte histrica

    Um dos principais procedimentos para a anlise do documento, como to bem assinalou Jacques Le Goff em seu artigo Documento/Monumento29, a desconstruo da monumentalidade nele implcita uma monumentalidade que nos chega da prpria poca de pro-duo do prprio documento. Boa parte dos documentos produzidos intencional-

    mente, com uma finalidade (ou mes-

    28 LADURIE, 1990, p.252.29 LE GOFF, Jacques. Documento / Monumento

    In LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Cam-pinas: Unicamp, 1990. p.547.

    mo sem uma intencionalidade cons-

    ciente), so tambm monumentos:

    foram construdos para transmitir

    uma determinada imagem social,

    para atender a determinados interes-

    ses sociais ou polticos, para impor

    uma certa direo ao olhar. O docu-

    mento que hoje o historiador examina

    como fonte para o seu estudo hist-

    rico, um dia foi monumento atravs

    do qual aqueles que o escreveram ou

    produziram procuraram impressio-

    nar, manipular, convencer, mover,

    comover outros homens de sua pr-

    pria poca (ou mesmo as geraes fu-

    turas). Esta intencionalidade de agir

    sobre o outro atravs do documento

    como se este fosse um monumento,

    pode ser intencional em diversos n-

    veis, mas tambm possvel acom-

    panhar Le Goff quando este menciona

    uma intencionalidade inconsciente30.

    preciso ento compreender, ou mes-

    mo desconstruir passo a passo, essa

    dimenso monumental que se inscreve

    no documento esta dimenso atra-

    vs da qual os homens de uma poca

    falam conscientemente ou inconscien-

    temente aos seus contemporneos (e,

    consequentemente, falam tambm aos

    historiadores). O primeiro passo, por-

    tanto, a identificao de um lugar de

    Produo relacionado fonte histrica

    um contexto complexo que produz o

    documento em sua monumentalidade,

    e que cabe ao historiador decifrar, um

    30 LE GOFF, op.cit., p.547.

    KeshiRealce

    KeshiRealce

  • Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 419

    pouco maneira do psicanalista que

    preside decifrao de seu paciente31.Deve-se lembrar, antes de tudo, que

    a Contextualizao constitui um aspec-to fundamental para a compreenso da fonte histrica. Tanto quanto possvel, necessrio levantar a histria da fonte, enquanto texto, sendo tambm til le-vantar a histria da fonte, enquanto do-cumento material (se for o caso). Diga--se de passagem, para o caso das fontes de arquivo, mas tambm de outros tipos, vale lembrar as palavras de Marc Bloch:

    No obstante o que parecem pensar os principiantes, os documentos no apa-recem, aqui e ali, pelo efeito de qualquer imperscrutvel desgnio dos deuses. A sua presena ou a sua ausncia nos fun-dos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que no escapam de forma alguma anlise, e os problemas postos pela sua transmisso, longe de serem apenas exerccios de tcnicos, tocam, eles pr-prios, no mais ntimo da vida do passa-do, pois o que assim se encontra posto em jogo nada menos que a passagem da recordao atravs das geraes32

    A estas palavras Jacques Le Goff e Pierre Toubert acrescentam algo, na re-viso da noo de documento histrico proposta no 100 Congresso Nacional

    31 Mais adiante, Le Goff acrescenta: O documento monumento. Resulta do esforo de sociedades histricas para impor ao futuro voluntaria ou involuntariamente determinada imagem de si prprias. No limite, no existe documento-ver-dade. Todo documento mentira, Cabe ao histo-riador no fazer o papel de ingnuo (LE GOFF, 1990, p.548).

    32 BLOCH, op.cit, p.29-30.

    das Sociedades de Cultura Francesa, re-alizado em 1975:

    O documento no incuo. antes de mais nada o resultado de uma mon-tagem, consciente ou inconsciente, da histria, da poca, da sociedade que o produziram, mas tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silncio33.

    J com relao histria da fonte en-quanto texto produzido em determinada poca, esta estende-se at o momento em que esta fonte foi produzida, isto , at o momento que corresponde ao seu contex-to mais imediato. Para compreender este contexto em todas as suas implicaes, partiremos da noo de que todo texto, seja qual ele for, tem um emissor (aquele que produz o texto), um objeto (a men-sagem que transmitida) e um receptor (aquele a quem a mensagem se destina)34.

    Este tringulo, aparentemente to simples, traz em si complexidades que desde logo fi caro claras. Apenas para co-mear, lembremos que o emissor de um discurso nunca somente o seu autor no-minal, mas tambm a sociedade na qual ele se inscreve, a sua posio social, os constrangimentos aos quais ele est sub-metido, e tantas outras coisas que fazem do autor nominal apenas a ponta de um imenso iceberg. Chamaremos a este com-plexo conjunto que se esconde por trs do autor de um texto de lugar de produo.

    33 LE GOFF, op.cit., p.547.34 BARDIN, op.cit., p.170.

    KeshiRealce

    KeshiRealce

    KeshiRealce

  • 420 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012

    A poca

    Defi niremos o lugar de produo de um texto a partir de um grande con-junto de coordenadas que principia com a sua prpria poca. s vezes possvel identifi car certo conjunto de caracters-ticas que abarca sociedades diversifi ca-das em um determinado perodo: por exemplo, o mundo feudal em boa parte ocidente europeu medieval, a cultura re-nascentista no mesmo recorte espacial no perodo seguinte. Assim, certas carac-tersticas mais amplas produtos da in-terao e do dilogo entre vrias culturas e sociedades habilitam a falar em uma sociedade feudal ou em um homem renascentista, antes de aprofundar o olhar em direo ao feudalismo francs, ao feudalismo ibrico, ao renascimento italiano ou cultura renascentista dos Pases Baixos. Se pretendo, por exemplo, estudar a Frana ou a Alemanha da vi-rada da dcada de 40, antes de me deter em cada estudo de caso devo considerar uma situao mais ampla: uma Europa convulsionada pela 2 Grande Guerra, na medida em que este confl ito interfe-riu em cada um dos pases europeus. Ou seja, uma sociedade difi cilmente est iso-lada de outras, e por vezes h situaes estruturais e conjunturais que as abar-cam.

    claro que esta coordenada mais ampla, a coordenada da poca, requer muitos cuidados por parte de um histo-riador. Deve-se sempre relativizar con-ceitos generalizadores como o homem medieval, o homem renascentista, a

    Europa da 2 Guerra. So expresses

    que tm sua validade para determinadas

    questes, mas no para todas j que

    rigorosamente so construes arbitr-

    rias do historiador, ainda que teis ou

    inevitveis. conhecida a querela em

    torno do conceito de mentalidade cole-

    tiva. At que ponto possvel falar em

    um homem medieval, enquanto uma

    designao que d conta de seus modos

    de pensar e de sentir, de suas vises de

    mundo predominantes, de seu conjun-

    to de valores? At que ponto legtimo

    saltar por sobre as especifi cidades re-

    gionais, ou ignorar as nuanas internas

    ao ocidente europeu medieval? No h

    uma resposta defi nitiva a estas ques-

    tes. Na verdade, a aplicabilidade da-

    quelas expresses abrangentes depende

    do prprio objeto de minha pesquisa,

    do problema que tenho em vista, das

    hipteses que orientam minha refl exo

    historiogrfi ca. Se a poca o primeiro

    interferente a ser considerado na deter-

    minao do lugar de produo de um

    texto, decorre da a necessidade de o his-

    toriador estabelecer com toda a preciso

    possvel a data (e o lugar geogrfi co) do

    documento. Boa parte dos documentos

    textuais j se apresentam ao historiador

    previamente datados, enquanto em ou-

    tros h que se proceder a esta datao, ou

    corrigir a data que uma primeira crtica

    externa colocou em dvida.

    Outro aspecto relativo ao proble-

    ma da identifi cao e caracterizao

  • Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 421

    da poca em que foi produzido o docu-

    mento histrico, que nem todo o texto tem apenas um s lugar de produo em termos cronolgicos. Por vezes h um imbricado de pocas e autores que atu-aram na produo do texto defi nitivo. Tomaremos como exemplo signifi cativo o conjunto das diversas narrativas bbli-cas. Textos como o Samuel ou o Reis I e II apresentam, alm de seu autor princi-pal que por sinal j construiu sua nar-rativa baseando-se em documentos mais antigos mais dois ou trs autores pos-teriores e outros tantos compiladores. Desta forma, trata-se de um discurso que sofreu alteraes e interpolaes. Assim sendo, um historiador no pode se pr a refl etir seriamente sobre uma narrativa bblica sem indagar pelos seus lugares de produo do discurso, caso contrrio sua leitura ser pouco menos ingnua que a de um fi el devoto que se ponha a meditar sobre o texto sagrado em uma manh de culto dominical.

    Um exemplo prtico poder ilus-trar o problema. O livro Samuel, que nos fala dos reis Saul e Davi, tem por objeto o perodo anterior ao do livro seguinte Reis que conta a histria a partir de 970 a.c. com Salomo e seus sucessores. A certa altura da narrativa sobre Samuel encontramos a seguinte profecia sobre Salomo, que posta na boca do profeta:

    desta forma que o rei vos governa-r: tomar os vossos fi lhos e os por

    nas suas carroas, e far deles moos

    de cavalos, e correro adiante dos seus

    coches, e os constituir seus tribunos, e

    seus centuries, e lavradores dos seus

    campos, e segadores de suas meses, e

    fabricantes de suas armas e carroas. E

    far de vossas fi lhas suas perfumadeiras,

    e cozinheiras, e padeiras. Tomar tam-

    bm o melhor dos vossos campos, e das

    vossas vinhas, e dos vossos olivais, e d-

    -los- aos seus servos. E tambm tomar

    o dzimo dos vossos trigos, e do rendi-

    mento das vinhas, para ter o que dar aos

    seus eunucos e servos. Tomar tambm

    os vossos servos e servas e os melhores

    jovens, e os jumentos, e os empregar no

    seu trabalho. Tomar tambm o dzimo

    dos vossos rebanhos, e vs sereis seus

    servos (I Samuel VIII, 11-17)

    Eis aqui uma profecia em que o

    profeta Samuel parece antecipar ad-

    miravelmente algumas medidas que

    de fato se verificariam no governo de

    Salomo, setenta anos depois, como

    o alistamento militar compulsrio, o

    trabalho forado nas grandes obras, e

    a tributao excessiva. Contudo, alguns

    estudiosos tm poucas dvidas em

    atribuir a profecia a uma interpolao

    de um dos dois autores posteriores do

    livro de Samuel, talvez aquele que es-

    creveu j de depois do exlio babilni-

    co, cerca de quatrocentos anos depois

    do primeiro autor do livro. Neste caso,

    o trecho deixa de ser profecia para se

    tornar uma crtica instituio da re-

    aleza, produzida depois de uma longa

    sucesso de fracassos que culminariam

    como saque de Jerusalm em 587 a.C.

  • 422 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012

    Quadro 2: A posio social do autor ou do emissor do discurso

    POSI

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    78

    9

  • Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 423

    A sociedade, a instituio, o lugar terico, a posio social

    A poca apenas uma primeira luz geral, por assim dizer, que se espalha pelo texto historicamente produzido por um autor. Para alm dela, o autor e seu texto tambm esto inscritos em uma so-ciedade, uma instituio, um lugar meto-dolgico, esttico, fi losfi co (Quadro 2). Em outras palavras, h grandes linhas que interagem nas condies de sua pro-duo textual e na constituio de seu universo mental. O homem medieval uma construo til de pensamento, mas que se dissipa no momento em que dirigimos o olhar para as especifi cidades regionais e para as estruturas de curta durao que se inscrevem na longa du-rao medieval. Assim que, a sociedade medieval ibrica ir diferir em diversos aspectos da sociedade medieval fran-cesa. Ou que, dentro da idia de uma sociedade medieval ibrica, Portugal se distinguir de Castela. Ou ainda: ser possvel em um momento posterior de aprofundamento identifi car as distines fundamentais entre o Portugal do sculo XIII e o Portugal do sculo XIV; se qui-sssemos, entre a regio da Beira e a re-gio do Minho.

    Mais ainda, uma determinada so-ciedade comporta uma multiplicidade de ambientes internos. Podemos por exem-plo refl etir sobre as distines entre o meio rural e o meio urbano, ou entre a corte rgia e as cortes senhoriais da Fran-a do Norte. O lugar de um autor est no apenas dentro de uma sociedade histori-

    camente localizada, mas tambm dentro de um ambiente social que caber ao historiador defi nir a partir do exame das muitas coordenadas que o determinam. diferente escrever de uma universida-de medieval, da corte de um monarca centralizador, de uma corte senhorial, da instituio eclesistica, ou da masmorra. Todos estes ambientes se inserem a prin-cpio dentro de uma sociedade medieval mais ampla, mas comeam a se opor no momento seguinte da investigao histo-riogrfi ca.

    Da mesma forma, um mosteiro be-neditino defende uma determinada posi-o dentro da instituio eclesistica que radicalmente distinta da posio defen-dida pela abadia cisterciense. E dentro de cada abadia ou mosteiro, deveramos em um segundo momento isolar a posi-o institucional do monge comum e do Abade. Alm disto, um autor participa de um determinado circuito de posies es-tticas, fi losfi cas ou metodolgicas que contrasta, por ventura, com as de um contemporneo pertencente a uma ou-tra corrente de pensamento. Assim que, dentro do pensamento iluminista fran-cs do sculo XVIII, iremos encontrar subcorrentes vrias, umas defendendo um maior ou menor grau de empirismo dentro da investigao cientfi ca, outras com uma maior infl uncia do racionalis-mo cartesiano; umas inteiramente mate-rialistas, outras destas; e, dentro deste ltimo grupo, umas destas clericais e outras destas explicitamente anticleri-cais. Em Voltaire temos uma clara pri-mazia do empirismo, enquanto que em

  • 424 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012

    Montesquieu j identifi camos uma maior esforo de sntese entre o empirismo e o racionalismo cartesiano; nos materialis-tas empricos como Condillac o atesmo explcito, ao passo que Voltaire j ex-pressa algo como um desmo anticlerical.

    Para alm disto, deveramos iden-tifi car a posio de classe de cada um destes iluministas franceses; distinguir por exemplo o baro Montesquieu do Voltaire descendente da pequena no-breza ou do Diderot, fi lho de um simples cuteleiro. E fazer isto no meramente para acrescentar um dado bibliogrfi co, mas para entender estas posies so-ciais como fatores interferentes na pro-duo do discurso de cada um dos seus autores. A posio social no deve ser compreendida ingenuamente, como um dado isolado e absoluto que aprisiona o autor dentro de um determinado ponto da hierarquia social. preciso pr o ex-trato social a dialogar com os objetivos do autor quanto sua insero na hie-rarquia social. Ele pode ser conformado com seu extrato social, ou crtico com relao a ele; neste ltimo caso, pode ter desenvolvido ao longo de sua vida deter-minadas pretenses de insero em um ambiente social que a princpio lhe foi vedado, ou pode engajar-se em uma re-voluo.

    A classe ou segmento social ape-nas uma categoria generalizante, que o historiador deve utilizar ou criticar con-forme as suas prprias necessidades. Um nobre do fi nal da Idade Mdia, por exemplo, deve ser avaliado no apenas a partir do extrato a que pertence (subca-

    tegorias dentro do estamento nobreza), mas tambm de sua posio econmica (havia nobres abastados e nobres empo-brecidos), de sua posio linhagstica (havia linhagens de alta a baixa estirpe), de sua posio dentro da linhagem (um homem podia pertencer a uma linhagem por linha bastarda), de sua posio den-tro do universo familiar (ser um primo-gnito em certas sociedades medievais era radicalmente diferente de ser um fi -lho segundo, j que era o primeiro que recebia a herana). todo este conjunto de coordenadas sociais a que chamare-mos a posio social de um indivduo.

    Tudo o que foi dito aqui com rela-o identifi cao do autor de um texto imediatamente aplicvel tambm para os personagens que aparecem no texto deste autor. No devemos aceitar neces-sariamente as opinies de um autor para com os homens que toma com objeto de sua refl exo (o que Voltaire pensa de Rousseau, por exemplo). Antes, devemos proceder ao nosso prprio levantamen-to se possvel utilizando outras fontes para depois pr em dilogo a perso-nagem que construmos e a personagem que foi construda pelo autor.

    Textos que interferem no texto

    No apenas a poca, a sociedade e a posio do autor interagem no lugar de produo de um texto, mas tambm outros textos, uns utilizados conscien-temente pelo autor, outros atuando sem a sua perfeita compreenso disto. Cha-maremos a este fenmeno de intertex-

  • Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 425

    tualidade e o discutiremos posterior-mente. Intertextualidade o dilogo, ou a relao dialgica, que se estabelece en-tre vrios textos. O lugar de produo de um texto tambm formatado pelo intercurso de outros textos.

    Voltaremos ao exemplo das narrati-vas bblicas. Tomemos o livro Reis I e II. parte a j mencionada consta-tao de que algumas destas narrati-vas bblicas possuem diversos autores uns interpolando novos trechos de discurso naqueles que j haviam sido produzidos por autores anteriores,

    outros empreendendo modificaes

    mais ou menos substanciais consi-

    deraremos ainda que alguns daqueles

    relatos foram produzidos a partir de

    fontes pr-existentes. Consideremos

    os documentos anteriores, crnicas

    perdidas, dos quais se valeu o pri-

    meiro redator do livro de Reis. So

    mencionados explicitamente no livro,

    quase como um historiador que cita

    suas fontes, alguns desses livros per-

    didos: o Livro dos Atos de Salomo

    (1Rs 11,4l), possivelmente escrito du-

    rante o reinado de Salomo entre 970

    e 931 a.c., o livro dos Anais dos Reis

    de Israel35 e o livro dos Anais dos Reis

    de Jud36, posterior ao cisma que em

    931 dividiu os reinos do norte e do

    sul. Outras fontes no mencionadas

    tambm so perceptveis, como as do

    35 citado dezoito vezes, entre 1Rs 14, 19 e 1Rs 15, 31.36 citado quinze vezes entre 1Rs 14, 29 e 2Rs 24, 25.

    ciclo de Elias e do ciclo de Isaas, pos-

    sivelmente escritas no mais no am-biente das cortes mas dos profetas37.

    Esta imensa variedade de textos por trs do texto pode nos dar uma idia do material a partir da qual o primeiro redator escreveu o livro dos Reis. Ela nos coloca diretamente dian-te do problema de que nenhum autor escreve um texto a partir do nada. Freqentemente ele trava dilogos com textos anteriores: ou de maneira explcita como foi o caso que aca-bamos de discutir ou de maneira implcita, por vezes at sem o prprio autor se dar conta disto. Um homem, j se disse, muito mais filho de seu tempo do que de seus prprios pais, e neste sentido est sempre em per-manente dilogo com sua poca. Mas uma poca tambm est em perma-nente dilogo com as suas anteriores, e isto tambm se inscreve no dilogo intertextual de um autor.

    somente depois de examinar estes autores ocultos que se inscre-vem nos autores principais sobre-tudo no caso de obras de pretenses historiogrficas e as demais po-cas que se insinuam por debaixo da sua poca, que podemos refletir sobre o autor ou autores explci-tos. No caso do primeiro e princi-pal redator de Reis, para continuar o nosso exemplo, assinalamos que ele escreve contemporaneamente

    37 DELORME, J. Introduction la Bible. Paris: Des-cle, 1969, p.445.

  • 426 Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012

    Reforma Deuteronomista de Josias em 631 a.c., provavelmente de um meio sacerdotal38. A reforma deute-ronomista apresenta como dois aspectos fundamentais o rigor quanto s questes da unicidade de culto e da unicidade do lugar do culto. Precisamente, a luz ge-ral que atravessa o livro de Reis esta: a sucessiva avaliao de todos os reis, de Salomo ao exlio, conforme o grau com que eles se afastam ou se aproximam destes dois preceitos fundamentais. Ou seja, um rei tanto pior quanto mais fa-cilmente permite a pluralidade de cultos ou o enaltecimento de outros lugares de culto que no Jerusalm. Desta forma, a referncia padro o rei Davi, unifi cador do culto e conquistador de Jerusalm, e o antimodelo Jerobo, que mais permi-tiu a pluralidade de cultos e incentivou a diversidade de lugares santos39. Portanto, o que faz o primeiro redator de Reis se apropriar de toda uma srie de textos an-teriores e produzir deles uma nova leitu-ra, consoante os seus prprios interesses (de sua poca, sociedade, instituio). O seu novo texto gerado a partir do dilo-go entre o momento em que ele mesmo se inscreve e aquela srie de textos ante-riores. E a contribuio fi nal a este di-logo acrescentada pelos dois redatores posteriores do livro, um durante e outro

    38 Em que pese uma grande controvrsia a respeito, baseamo-nos nas concluses da maior parte dos autores modernos, entre os quais: DE VAUX, R. Les Livres de Rois. Paris: 1958; PFEIFFER, R. H. Introduction to the Old Testament. Londres: Harper & Brothers, 1941; e SNAITH, N. H. Old Testament. Oxford: T & T Clark, 1951.

    39 BALLARINI, T. Introduo Bblia. Petrpolis: Vozes, 1976. v. II/2, p.169.

    depois do exlio babilnico, que j refor-mulam a primeira redao em funo da catstrofe de 586 a.c..

    Completamos, assim, um rastrea-mento dos diversos fatores que fundam o lugar de produo de um discurso: Temporalidade, Sociedade e situao do autor no que se refere s posies so-cial, institucional, esttica, metodolgica alm de toda uma intertextualidade que circunda o autor e seu texto. Tudo isto posto em uma relao interativa que cabe ao historiador decifrar e interpretar luz das circunstncias de produo do discurso.

    Ultrapassando a superfcie das fontes

    Em certo trecho de seu ensaio Como se Escreve a Histria, publicado em 1971, Paul Veyne registra um conselho que de-veria ser recorrente para o aprendizado da prtica historiogrfi ca: No se pode contentar com as opinies e interpreta-es a mesmo com as escolhas de con-tedo que se do no interior do grupo no qual o fenmeno estudado ocorre40. Se todas as etapas e dimenses da operao historiogrfi ca so atravessadas por sub-jetividades e intersubjetividades que en-volvem o objeto histrico e o sujeito que produz o conhecimento historiogrfi co, esta a ingenuidade mais irredutvel que no se torna mais aceitvel nem mesmo pelo mais positivista dos historiadores:

    40 VEYNE, Paul. Como se escreve a Histria. Bras-lia: UNB, 1982 [original: 1971], p.105.

    KeshiRealce

    KeshiRealce

  • Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.25, n.2, jul./dez. 2012 427

    h que se ultrapassar a superfcie das fontes, este lugar no qual, ainda mais do que qualquer outro, a imerso dos ho-mens em sua prpria poca torna-se ex-plcita. Poucos pecados so to rejeitados para um historiador como o de reduzir--se no-criticamente opinio que fa-ziam de si mesmos os prprios homens de uma poca ou de um contexto histri-co. Estas opinies devem ser tratadas an-tes de tudo como materiais, como acon-tecimentos a serem analisados.

    Carlo Ginzburg, sempre um mes-tre no tratamento de fontes histricas, estabelece em um livro recente uma interessante analogia entre O Juiz e o Historiador, sendo este tambm o t-tulo de seu ensaio. Se em outras obras Ginzburg comparara o historiador ao detetive criminal, para chamar ateno para o paradigma indicirio aplicado ao tratamento das fontes, e em uma se-gunda obra evocara a analogia entre as fi guras do Inquisidor, do Antroplogo e do Historiador agora com vistas a es-clarecer aspectos relacionados anlise de fontes dialgicas em O Juiz e o Historiador Ginzburg pretende reforar a necessidade historiogrfi ca de buscar confrontaes externas s fontes (por exemplo, atravs da comparao de uma fonte com outras, ou do seu exame con-tra o fundo de outras sries de dados e evidncias). neste sentido que o micro--historiador italiano evoca a imagem do juiz, e no certamente no sentido que estava por trs das assertivas proferidas por Marc Bloch em sua Apologia da His-tria, postumamente publicada, sobre a

    necessidade no julgar, mas sim com-preender.

    Se o juiz aquele que profere ve-redictos, condenando e absolvendo e este gesto est certamente vedado ao his-toriador, como to bem ressaltou Marc Bloch41 por outro lado o juiz tambm aquele que confronta depoimentos, que os contrasta, que os pe a se ilumi-narem uns aos outros, que os denuncia como perspectivas pessoais com vistas a construir uma perspectiva mais plena, que a do juiz, mas tambm a do histo-riador. O confronto entre fontes, ou mes-mo entre um ponto do discurso e outro ponto que o contradiz, seja explcita ou implicitamente, faz parte certamente do mais simples repertrio de aes do historiador diante da documentao que sua problemtica levou a interrogar. Si-tuar a fonte em uma rede intertextual ou contextual equivale a nelas introduzir uma profundidade no apenas til, mas necessria ao historiador.

    Consideraes fi nais

    Considerar as fontes histricas em relao ao lugar onde foram produ-zidos, ou ao seu lugar de produo, uma questo fulcral para o trabalho do historiador. Esse lugar, como se viu neste artigo, atravessado por questes diversas que vo da inscrio em uma sociedade e em um tempo rede de in-tertextualidades que afetou a produo

    41 BLOCH, Marc. Apologia da Histria. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar, 2001, p.125.

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    do discurso veiculado pelas fontes, en-tre outras questes que tambm foram consideradas. Outrossim, claro que o texto que o historiador produz pode ser ele mesmo considerado como fonte para um outro tipo de anlise, e aqui adentra-ramos este campo da teoria da histria que se convencionou chamar de historio-grafi a no sentido de que se empreende aqui uma anlise do prprio trabalho do historiador.

    O historiador, acima de tudo, ele

    mesmo histrico, e, portanto, est igual-

    mente sujeito a uma inscrio no seu

    prprio lugar de produo. Conforme

    pontuamos no incio deste artigo, esta

    questo, igualmente primordial, remete-

    ria a uma outra ordem de consideraes,

    que no foi o objetivo mais especfi co

    deste artigo, embora a tenhamos pontua-

    do em certo momento. Entender o lugar

    de produo, enfi m, mostra-se impres-

    cindvel tanto para a prtica histrica

    como para a prtica historiogrfi ca esta

    ltima compreendida como o mbito no

    qual se estabelece uma refl exo sobre os

    modos como se desenvolve a operao

    historiogrfi ca e sobre o prprio texto

    que se apresenta como produto elabora-

    do pelo historiador.

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