Barthes, Roland. Escritores Intelectuais Profess Ores

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    Barthes, Roland. Escritores, intelectuais, professores. In: __________________. Escritores,Intelectuais, Professores e outros ensaios. Lisboa: Presena, 1975. p. 25-61

    ESCRITORES, INTELECTUAIS, PROFESSORES

    O que se segue decorre da ideia de que h uma ligao fundamental entre o

    ensino e a fala. Esta verificao muito antiga (no nasceu todo o nosso ensino da

    Retrica?), mas pode-se consider-la hoje de um modo diferente do de ontem; em

    primeiro lugar porque h uma crise (poltica) do ensino; depois porque a psicanlise

    (lacaniana) desmontou as voltas e as reviravoltas da fala vazia; finalmente porque a

    oposio da fala e da escrita entra numa evidncia de que h que comear a tirar poucoa pouco as consequncias.

    Perante o professor, que est do lado da fala, chamemos escritor a todo o operador de

    linguagem que est do lado da escrita; entre os dois, o intelectual: aquele que imprime e

    publica a sua fala. No h nenhuma incompatibilidade entre a linguagem do professor e

    a do intelectual (muitas vezes elas coexistem num mesmo individuo); mas o escritor

    est s, [p.26] separado: a escrita comea onde a fala se torna impossvel (podeentender-se esta palavra: como se diz duma criana).

    DOIS CONSTRANGIMENTOS

    A fala irreversvel, isto : no podemos corrigir uma palavra, excepto se

    dissermos precisamente que a corrigimos. Aqui, rasurar acrescentar; se eu quiser

    apagar o que acabei de expor, s o poderei fazer mostrando a prpria borracha (devo

    dizer: ou antes ... , exprimi-me mal ... ); paradoxalmente, a fala, efmera, que

    indestrutvel, e no a escrita, monumental. fala s se pode juntar outra fala. O

    movimento correctivo e perfectivo da fala a balbuciao, tecelagem que se esgota a

    corrigir-se, cadeia de correces aumentativas onde se vem instalar preferentemente a

    parte inconsciente do nosso discurso (no casualmente que a psicanlise est ligada

    fala, e no escrita: um sonho no se escreve): a figura epnima do falante Penlope.

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    Isto no tudo: s podemos fazer-nos compreender (bem ou mal) se

    mantivermos ao falar uma certa velocidade de enunciao. Somos como um ciclista ou

    um filme condenados a andar, a prosseguir se no quiser cair ou encravar-se: o silncio

    ou a hesitao da palavra so-me igualmente proibidos: a velocidade articulatria sujeita

    cada ponto da frase [p.27] ao que o precede ou segue imediatamente (impossvel fazer

    partir a palavra para paradigmas desconhecidos, anormais); o contexto um dado

    estrutural, no da lngua, mas da fala; ora o contexto por estatuto redutor de sentido, a

    palavra falada clara; a eliminao da polissemia (a clareza) serve a Lei: toda a

    palavra est do lado da Lei.

    Quem quer que se disponha a falar (em situao docente) deve estar consciente

    da encenao que lhe impe o uso da fala, sob o simples efeito duma determinaonatural (que reala a natureza fsica: a do sopro articulatrio). Esta encenao faz-se da

    seguinte maneira. Ou o locutor escolhe com toda a conscincia um papel de Autoridade;

    neste caso, basta-lhe falar bem, quer dizer falar em conformidade com a Lei que est

    em toda a fala: sem repeties, na velocidade certa, ou ainda: claramente ( o que

    pedido a uma boa fala do professor: a clareza, a autoridade); a frase clara bem um

    julgamento, sententia, uma palavra penal. Ou ento o locutor constrangido por essa

    Lei que a sua fala vai introduzir no assunto; ele no pode na verdade alterar o seu

    discurso (que o condena clareza), mas pode desculpar-se de falar (de expor a Lei):

    usa ento a irreversibilidade da fala para perturbar a sua legalidade: corrige-se,

    acrescenta, balbucia, entra na infinidade da linguagem, sobrepe mensagem [p.28]

    simples que toda a gente espera dele uma nova mensagem, que destri a prpria ideia de

    mensagem, e pelo prprio reflexo das impresses defeituosas, das quebras com que ele

    acompanha a sua linha de fala, pede-nos que acreditemos com ele que a linguagem no

    se reduz comunicao. Por todas estas operaes, que aproximam a balbuciao do

    Texto, o orador imperfeito espera atenuar o papel ingrato que faz de todos os falantes

    uma espcie de polcia. Contudo, aps esse esforo para falar mal, h ainda um papel

    que lhe imposto: porque o auditrio (o leitor no para aqui chamado), tomado no seu

    prprio imaginrio, recebe estas tentativas como sinais de fraqueza e devolve-lhe a

    imagem dum mestre humano, demasiado humano: liberal.

    A alternativa triste: funcionrio correcto ou artista livre, o professor no escapa

    nem ao teatro da palavra, nem Lei que ai se representa: porque a Lei produz-se no

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    naquilo que ele diz mas no facto de ele falar. Para subverter a Lei (e no simplesmente

    transform-la) seria preciso destruir o recitativo da voz, a velocidade das palavras, o

    ritmo, e at uma outra inteligibilidade - ou no falar absolutamente nada; mas ento

    seria encontrar outras funes: ou a da grande compreenso silenciosa, cheia de

    experincia e mutismo, ou ento a do militante que, em nome da praxis, despede todo o

    discurso, ftil. Nada a fazer: [p.29] a linguagem sempre poder, falar exercer uma

    vontade de poder: no espao da fala, nenhuma inocncia, nenhuma segurana.

    O RESUMO

    Por estatuto, o discurso do professor est marcado por esta caracterstica: pode-se (ou poder-se-ia) resumi-la ( um privilgio que partilha com o discurso dos

    parlamentares). Como se sabe, h nas nossas escolas um exerccio que se chama a

    reduo do texto; esta expresso mostra bem a ideologia do resumo: h de um lado o

    pensamento, objecto da mensagem, elemento da aco, da cincia, fora transitiva ou

    critica, e do outro o estilo, ornamento que assinala luxo, ociosidade e, portanto,

    futilidade; separar o pensamento do estilo de algum modo desembaraar o discurso

    das suas vestes sacerdotais, laicizar a mensagem (donde a conjuno burguesa do

    professor e do deputado); a forma, pensa-se, compressvel, e essa compresso no

    julgada essencialmente prejudicial: com efeito, de longe, quer dizer a partir do nosso

    cabo ocidental, a diferena entre uma cabea de Jivaro vivo e uma cabea reduzida de

    Jivaro assim to importante?1. [p.30]

    difcil para um professor ver as notas que se tomam durante o seu curso; ele

    no se interessa por elas, quer por discrio (porque no h nada de mais pessoal que as

    notas, apesar do carcter protocolar da sua prtica), quer mais provavelmente pelo

    medo de se contemplar em estado reduzido, morto e substancial ao mesmo tempo, tal

    como um Jivaro tratado pelos seus semelhantes; no se sabe se o que apanhado

    (levantado antecipadamente) do fluxo da fala, so os enunciados variveis (frmulas,

    frases) ou a essncia dum raciocnio; nos dois casos, o que se perde o suplemento, l

    onde se arrisca o jogo da linguagem: o resumo uma recusa da escrita.

    1 Sabe-se que os Jivaros, ndios dos Andes equatoriais, cortavam as cabeas aos inimigos e reduziam-nas,secando-as com pedras quentes, para as transportarem como trofus. (N. do C.).

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    Por consequncia contrria, pode ser declarado escritor (designando sempre

    esta palavra uma prtica, no um valor social), todo o destinador cuja mensagem

    (destruindo por isso imediatamente a sua natureza de mensagem) no pode ser

    resumida: condio que o escritor partilha com o louco, com o fala-barato e com o

    matemtico, mas que precisamente a escrita (a saber uma certa prtica do significante)

    tem obrigao de especificar.

    A RELAO DOCENTE

    Como que se pode comparar o professor com o psicanalista? exactamente o

    contrrio o que se passa: ele o psicanalisado. [p.31]

    Imaginemos que sou professor: falo, sem fim, diante de e para algum que no

    fala. Sou aquele que diz Eu (que importam os rodeios do sujeito indeterminado, do ns

    ou da frase impessoal), sou aquele que, a pretexto de expor um saber, prope um

    discurso, que nunca sei como recebido, de modo que nunca posso, tranquilizar-me

    com uma imagem definitiva, mesmo ofensiva, que me constituiria: na exposio,

    melhor denominada do que se imagina, no o saber que se expe, o sujeito (eleexpe-se a aventuras difceis). O espelho vazio: s me devolve a defeco da minha

    linguagem medida que ela se desenrola. Tal como os Marx Brothers disfarados de

    aviadores russos (em Uma Noite na pera - obra que eu considero alegrica de muitos

    problemas textuais) estou, no incio da minha exposio, enfarpelado com uma grande

    barba postia; mas inundado a pouco e pouco pelas torrentes da minha prpria fala

    (substituto da garrafa de gua com a qual oMudo, Harpa, mata a sede sofregamente, na

    tribuna do presidente da cmara municipal de Nova Iorque), sinto a minha barba

    descolar-se aos bocados em frente de toda a gente: mal fiz sorrir o auditrio com

    alguma observao fina, mal o sosseguei com algum esteretipo progressista, sinto

    toda a condescendncia destas provocaes; lamento a pulso histrica, quereria reav-

    la, preferindo demasiado tarde um discurso [p.32] austero a um discurso gracioso (mas

    no caso contrrio, a severidade do discurso que me pareceria histrica); se de facto

    algum sorriso responde minha observao ou alguma aprovao minha intimidao,

    conveno-me logo que estas cumplicidades manifestadas provm de imbecis ou de

    aduladores (descrevo aqui um processo imaginrio); a mim que procuro a resposta e me

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    deixo ir at a provocar, basta que me respondam para que eu desconfie; e se mantenho

    um discurso tal que desanima ou afasta toda a resposta, no me sinto mais afinado (no

    sentido musical) por isso; porque ento preciso de me vangloriar da solido da minha

    fala, dar-lhe o alibi dos discursos missionrios (cincia, verdade, etc.).

    Assim, em conformidade com a descrio psicanaltica (a de Lacan, da qual cada

    falante pode verificar aqui a perspiccia), quando o professor fala ao seu auditrio, o

    Outro que vem furar o discurso est sempre presente; e mesmo que o discurso fosse

    articulado por uma inteligncia impecvel, armado de rigor cientfico ou de

    radicalidade poltica, nem por isso seria menos furado: basta que eu fale, basta que a

    minha fala flua, para que ela se derrame. Naturalmente, embora todo o professor esteja

    em posio de psicanalisado, nenhum auditrio estudante pode aproveitar-se da situaoinversa; primeiro porque o silncio psicanaltico no tem nada de preeminente; e depois

    [p.33] porque por vezes um assunto desprende-se, no pode conter-se e vem queimar-se

    na fala, confundir na orgia oratria (e se o sujeito se cala obstinadamente, no faz mais

    que falar a obstinao do seu mutismo); mas para o professor, o auditrio estudante

    ainda assim o Outro exemplar porque parece no falar - e porque por conseguinte, do

    meio da sua opacidade aparente, ele fala em vs ainda mais fortemente: a sua fala

    implcita, que a minha, atinge-me tanto mais quanto o seu discurso no me embaraa.

    Esta a cruz de toda a fala pblica: que o professor fale ou que o ouvinte

    reivindique a fala, nos dois casos ir direito ao div: a relao docente no mais que a

    transferncia que ela institui; a cincia, o mtodo, o saber, a ideia vm por

    portas travessas; so dados a mais; so restos.

    O CONTRATO

    Na maior parte dos casos, as relaes entre os seres humanos so

    afectadas, muitas vezes at destruio, pelo facto de o contrato

    estabelecido entre eles no ser respeitado. Desde que dois seres

    humanos entram em relao recproca, o seu contrato, a maior parte

    das vezes mplcito, entra em vigor. Ele determina a forma das suas

    relaes, etc.

    (Brecht.) [p.34]

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    Embora o pedido que se enuncia no espao comunitrio dum curso seja

    fundamentalmente intransitivo, como deve ser em qualquer situao transferencial, nem

    por isso menos sobre-determinado e refugia-se atrs doutros pedidos, aparentemente

    transitivos; estes pedidos formam as condies dum contrato implcito entre o docente e

    o discente. Este contrato imaginrio, no contradiz em nada a determinao

    econmica que leva o estudante a procurar uma profisso e o professor a venerar um

    emprego.

    Eis em desordem (porque no h, na ordem imaginria, um motivo fundador) o

    que o docente exige do discente: 1) que o reconhea no importa em que papel: de

    autoridade, de acolhimento, de contestao, de saber, etc. (todo o aluno estrangeiro a um

    curso de quem no se sabe qual a imagem com que vos solicita torna-se inquietante); 2)que o substitua, que o estenda, que leve as suas ideias, o seu estilo ao longe; 3) que se

    deixe seduzir, que se preste a uma relao amorosa (conciliemos todas as sublimaes,

    todas as distncias, todos os respeitos conformes realidade social e vaidade

    pressentida desta relao); 4) por fim, que lhe permita honrar o contrato que ele prprio

    estabeleceu com o seu patro, isto com a sociedade: o discente a unidade de uma

    prtica (retribuda), o objecto duma profisso [p.35], a matria duma produo (embora

    seja delicada de definir).

    Por seu lado, eis em desordem o que o discente exige ao docente: 1) que o

    conduza a uma boa integrao profissional; 2) que preencha os papis tradicionalmente

    atribudos ao professor (autoridade cientifica, transmisso dum capital de saber, etc,); 3)

    que lhe ensine os segredos de uma tcnica (de investigao, de exame, etc.); 4) sob a

    bandeira deste santo laico, o Mtodo, que seja um iniciador de asceses, um guru) 5) que

    represente um movimento de ideias, uma Escola, uma Causa e que seja o seu porta-

    voz; 6) que o admita a ele, ensinado, na cumplicidade duma linguagem particular; 7)

    para aqueles que tm o fantasma da tese (prtica tmida da escrita, ao mesmo tempo

    desfigurada e protegida pela sua finalidade institucional) que garanta a realidade deste

    fantasma; 8) por fim exigido ao professar que seja um encarregado de servios: assina

    inscries, certificados, etc.

    Isto simplesmente um Tpico, uma reserva de escolhas que no so

    necessariamente todas actualizadas ao mesmo tempo num indivduo. todavia ao nvel

    da totalidade contratual que funciona o bem-estar duma relao docente: o bom

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    professor, o bom estudante so aqueles que aceitam filosoficamente o plural das suas

    determinaes, talvez porque sabem [p.36] que a verdade duma relao de fala est

    noutro lugar.

    A INVESTIGAO

    O que uma investigao? Para o saber, preciso ter alguma ideia do que

    um resultado. O que que se descobre? O que que se quer descobrir? O que que

    falta? Em que campo axiomtico sero colocados o facto desprendido, o sentido

    publicado, a descoberta estatstica? Sem dvida que isto depende de cada vez da cincia

    solicitada. Mas desde o momento em que uma investigao interessa o texto (e o textovai muito mais longe que a obra), a investigao torna-se ela prpria texto, produo:

    todo o resultado para ela, letra, im-pertinente. A investigao ento o nome

    prudente que, sob o constrangimento de certas condies sociais, damos ao trabalho da

    escrita: a investigao est do lado da escrita, uma aventura do significante, um

    excesso da troca: impossvel manter a equao: um resultado em troca de uma

    investigao. por isso que a fala qual se deve submeter uma investigao (ao

    ensin-la), alm da sua funo parentica (Escrevam), tem como especialidade chamar a

    investigao sua condio epistemolgica: ela no deve esquecer, seja o que for que

    procure, a sua natureza de linguagem - e [p.37] o que finalmente torna inevitvel que

    ela encontre a escrita. Na escrita, a enunciao engana o enunciado sob o efeito da

    linguagem que o produz: isto define bastante bem o elemento crtico, progressivo,

    insatisfeito, produtor, que o prprio uso comum reconhece investigao. este o

    papel histrico da investigao: ensinar ao sbio que fala (mas se ele o soubesse,

    escreveria - e toda a ideia de cincia, toda a cientificidade seria mudada por isso).

    A DESTRUIO DOS ESTERETIPOS

    Escrevem-me que um grupo de estudantes revolucionrios prepara uma

    destruio do mito estruturalista. A expresso encanta-me pela sua consistncia

    estereotipada: a destruio do mito comea, a partir do enunciado dos seus agentes

    reputados, pelo mais belo dos mitos: o grupo de estudantes revolucionrios to forte

    como as vivas de guerra ou os antigos combatentes.

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    Geralmente, o esteretipo triste, porque constitudo por uma necrose da

    linguagem, uma prtese que vem fechar um buraco da escrita; mas ao mesmo tempo s

    pode provocar uma imensa gargalhada: toma-se a srio: julga-se mais prximo da

    verdade porque indiferente sua natureza de linguagem: ao mesmo tempo deformado

    e grave. [p.38]

    Pr distncia o esteretipo no uma obrigao poltica, porque a prpria

    linguagem poltica feita de esteretipos; mas uma obrigao crtica, quer dizer: que

    visa a pr em crise a linguagem. Em primeiro lugar, isso permite isolar esse gro de

    ideologia que existe em todo o discurso poltico, e declarar-se contra ele como um cido

    prprio para dissolver as gorduras da linguagem natural (quer dizer da linguagem que

    finge ignorar que linguagem). E depois, destacar-se da razo mecanista que faz dalinguagem a simples resposta a estmulos de situao ou de aco, opor a produo da

    linguagem sua utilizao simples e enganadora. E depois ainda, sacudir o discurso

    do Outro e constituir em suma uma operao permanente de pr-anlise. Por ltimo,

    isto: o esteretipo no fundo um oportunismo: conforma-se com a linguagem reinante,

    ou antes com o que, na linguagem, parece dirigir (uma situao, um direito, um

    combate, uma instituio, um movimento, uma cincia, uma teoria, etc.); falar por

    esteretipos colocar-se do lado da fora da linguagem; este oportunismo deve ser

    (hoje) recusado.

    Mas poder-se-ia ultrapassar o esteretipo, em vez de o destruir? Isto um

    voto irreal; os operadores da linguagem s tm como actividade em seu poder esvaziar o

    que est cheio: a linguagem no dialctica: s permite uma marcha a dois tempos.

    [p.39]

    A CADEIA DOS DISCURSOS

    porque a linguagem no dialctica (no permitindo o terceiro termo seno

    como pura clusula, afirmao retrica, voto piedoso) que o discurso (o discursismo),

    no seu desenvolvimento histrico, avana por repeles. Todo o discurso novo s pode

    surgir como o paradoxo que toma ao contrrio (e muitas vezes parte) a doxa

    circunvizinha ou precedente; s pode nascer como diferena, distino, destacando-se

    contra o que se cola a ele. Por exemplo, a teoria chomskiana constri-se contra obehaviourismo bloomfieldiano; depois uma vez liquidado por Chomsky o

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    behaviourismo lingustico, contra o mentalismo (ou o antropologismo) chomskiano

    que se procura uma nova semitica, enquanto o prprio Chomsky, para encontrar

    aliados, obrigado a saltarpor cima dos seus predecessores imediatos e a remontar at

    Gramtica de Port-Royal. Mas seria sem dvida num dos maiores pensadores da

    dialctica, Marx, que a natureza indialctica da linguagem seria mais interessante de

    constatar: o seu discurso quase inteiramente paradoxal, sendo aqui a doxa Proudhon,

    ali um outro, etc. Este movimento duplo de desprendimento e de retomada leva, no a

    um crculo mas, segundo a bela e grande imagem de Vico, a uma espiral, e neste

    deporte da [p.40] circularidade (da forma paradoxal) que as determinaes histricas

    vm articular-se. Portanto sempre preciso procurar a qual doxa se ope um autor (por

    vezes pode ser uma doxa da minoria, reinando num grupo restrito). Um ensinamento

    pode tambm ser avaliado em termos de paradoxo, se todavia se edifica nesta

    convico: que um sistema que reclama correces, transferncias, aberturas e recusas

    mais til que uma ausncia no-formulada de sistema: evita-se assim, por sorte, a

    imobilidade da tagarelice, encontra-se a cadeia histrica dos discursos, o progresso

    (progressus) do discursismo.

    O MTODO

    Certas pessoas falam do mtodo com gula, com exigncia; no trabalho, o que

    elas desejam o mtodo; ele nunca lhes parece suficientemente rigoroso,

    suficientemente formal. O mtodo torna-se uma Lei; mas como essa Lei est privada de

    todo o efeito que lhe seja heterogneo (ningum pode dizer o que , em cincias

    humanas, um resultado), infinitamente desiludida; colocando-se como uma pura

    meta-linguagem, participa na vaidade de toda a meta-linguagem. Do mesmo modo

    constante que um trabalho que proclama sem cessar a sua vontade de mtodo seja

    finalmente estril: tudo [p.41] se passou no mtodo, no resta mais nada escrita; o

    investigador repete que o seu texto ser metodolgico, mas esse texto nunca vem: nada

    mais certo, para matar uma investigao e faz-la juntar-se s grandes quebras dos

    trabalhos abandonados, nada mais certo que o Mtodo.

    O perigo do Mtodo (duma fixao ao Mtodo) vem disto: o trabalho de

    investigao deve responder a dois pedidos; o primeiro um pedido de

    responsabilidade: preciso que o trabalho aumente a lucidez, consiga descobrir as

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    implicaes dum processo, os alibis duma linguagem, constitua em suma uma crtica

    (lembremos ainda uma vez que criticar quer dizer: pr em situao crtica); aqui o

    Mtodo inevitvel, insubstituvel, no por causa dos seus resultados, mas

    precisamente - ou ao contrrio - porque cumpre o mais alto grau de conscincia duma

    linguagem que no se esquece de si prpria; mas o segundo pedido duma ordem

    totalmente diferente; o da escrita, espao da disperso do desejo onde a Lei

    despedida; portanto preciso num certo momento voltar-se contra o Mtodo, ou pelo

    menos trat-lo sem privilgio fundador, como uma das vozes do plural: como uma vista,

    em suma, um espectculo, inserido no texto: o texto que afinal de contas o nico

    resultado verdadeiro de toda a investigao. [p.42]

    AS PERGUNTAS

    Perguntar querer saber uma coisa. Todavia, em muitos debates intelectuais, as

    perguntas que se seguem exposio do conferencista no so de maneira nenhuma a

    expresso duma falha, mas a afirmao duma plenitude. A pretexto de perguntar,

    aumento uma agresso contra o orador; perguntarretoma ento o seu sentido policial:

    perguntar interpelar. Todavia, aquele que interpelado deve fingir que responde

    letra pergunta, no sua sagacidade. Estabelece-se ento um jogo: embora cada um

    saiba a que se agarrar sobre as intenes do outro, o jogo obriga a responder ao

    contedo, no sagacidade. Se, num certo tom, me perguntam Para que serve a

    lingustica?, querendo dizer-me desse modo que ela no serve para nada, devo fingir

    que respondo ingenuamente: serve para isto, para aquilo, e no em conformidade

    com a verdade do dilogo: A que propsito que me ataca? O que recebo, a

    conotao; o que devo devolver, a denotao. No espao da fala, a cincia e a lgica, o

    saber e o raciocnio, as perguntas e as respostas, as proposies e as objeces so as

    mscaras da relao dialctica. Os nossos debates intelectuais esto to codificados

    como as discusses escolsticas; ai encontram-se sempre funes de servio (o

    sociologista, o goldmanniano, o telqueliano, etc.) , mas [p.43] diferentemente da

    disputatio, onde esses papis teriam sido cerimoniais e teriam divulgado o artifcio da

    sua funo, o nosso comrcio intelectual d-se sempre ares naturais: pretende

    trocar s significados, no significantes.

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    EM NOME DE QU?

    Falo em nome de qu? Duma funo? Dum saber? Duma experincia? Que

    represento eu? Uma capacidade cientfica? uma instituio? um servio? Na verdade,falo s em nome duma linguagem: porque escrevo que falo: a escrita representada

    pelo seu contrrio, a fala. Esta distoro quer dizer que escrevendo sobre a fala (acerca

    da fala), estou condenado seguinte aporia: denunciar o imaginrio da fala por meio do

    irrealismo da escrita: assim, presentemente, no descrevo nenhuma experincia

    autntica, no fotografo nenhum ensinamento real , no abro nenhum arquivo

    universitrio. Porque a escrita pode dizer a verdade sobre a linguagem, mas no a

    verdade sobre o real (procuramos actualmente saber o que um real sem linguagem).

    A POSIO DE P

    Pode imaginar-se uma situao mais lgubre do que falar para (ou diante de)

    pessoas em p ou visivelmente mal sentadas? O que [p.44] que se troca aqui? De que

    preo esta falta de conforto? O que vale a minha fala? Como que a falta de

    comodidade em que o auditor se encontra no o leva rapidamente a interrogar-se sobre avalidade do que ouve? A posio de p no eminentemente crtica? E no assim,

    numa outra escala, que comea a conscincia poltica: no mal-estar? A escuta reenvia-

    me a vaidade da minha prpria fala, o seupreo, porque, quer eu queira quer no, estou

    colocado num circuito de troca; e a escuta tambm a posio daquele a quem me

    dirijo.

    O TRATAMENTO POR TU

    Acontece por vezes, runa de Maio, que um estudante trata um professor por tu.

    Isso um signo forte, um signo cheio, que reenvia ao significado mais psicolgico: a

    vontade de contestao ou de camaradagem: a fora. Visto que imposta aqui uma

    moral do signo, pode-se por sua vez contest-la e preferir-lhe uma semntica mais

    subtil: os signos devem ser manejados sobre um fundo neutro e, em francs, o

    tratamento por voc esse fundo. O tratamento por tu s pode escapar ao cdigo nos

    casos em que constitui uma simplificao da gramtica (se nos dirigimos, por exemplo,

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    a um estrangeiro que fala mal a nossa lngua); trata-se assim de substituir uma prtica

    transitiva [p.45] por um comportamento simblico: em vez de procurar significar por

    quem tomo o outro (e portanto por quem me tomo eu prprio), procuro simplesmente

    fazer-me entender bem por ele. Mas este recurso tambm, finalmente, retorcido: o

    tratamento por tu torna a juntar todos os comportamentos de fuga: quando um signo no

    me agrada, quando a significao me incomoda, desloco-me para o operatrio: o

    operatrio torna-se censura do simblico, e portanto smbolo do assimbolismo: muitos

    discursos polticos, muitos discursos cientficos so marcados por esta deslocao (que

    particularmente toda a lingustica da comunicao salienta) .

    UM CHEIRO DE FALA

    Uma vez que se tenha acabado de falar, comea a vertigem da imagem:

    exaltamo-nos ou lamentamos o que dissemos, a maneira como dissemos, imaginamo-

    nos (tornamo-nos imagem); a fala est sujeita persistncia, ela cheira.

    A escrita no cheira: produzida (tendo completado o seu processo de produo),

    cai, no como uma bofetada que se d, mas como um meteorito que desaparece; vai

    viajar longe do meu corpo e todavia no um bocado desligado dele, retidonarcisicamente, como o a fala; o seu desaparecimento no deceptivo; [p.46] passa,

    atravessa, tudo. O tempo da fala excede o acto da fala (s um jurista podia fazer

    acreditar que as palavras desaparecem, verba volant). A escrita, essa, no tem passado

    (se a sociedade vos obriga a gerir o que escrevestes, s o podeis fazer no maior

    aborrecimento, o aborrecimento do falso passado). por isso que o discurso em que

    comentam a vossa escrita impressiona menos vivamente que aquele em que comentam a

    vossa fala (a entrada todavia mais importante): o primeiro, posso objectivamente t-lo

    em conta, porque eu j a no estou mais; o segundo, mesmo que seja lisonjeiro, s

    posso tentar desembaraar-me dele porque apenas restringe o impasse do meu

    imaginrio.

    (Portanto a que propsito que este texto me preocupa e que, uma vez acabado,

    corrigido, solto, fica ou reaparece em mim no estado de dvida e, para dizer tudo, de

    medo? No est ele escrito, libertado pela escrita? Vejo bem, todavia, que no posso

    melhor-lo, atingi a forma exacta do que queria dizer: j no uma questo de estilo.

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    Concluo daqui que o seu prprio estatuto que me incomoda: o que me aborrece nele

    precisamente que, ocupando-se da fala, no pode, na prpria escrita, liquid-la

    completamente. Para escrever sobre a fala (acerca da fala), quaisquer que sejam as

    distncias da escrita, sou obrigado a referir-me a iluses de experincias, de

    recordaes, de [p.47] sentimentos sentidos pelo sujeito que sou quando falo, que era

    quando falava; nesta escrita h ainda referente, e ele que cheira (s minhas prprias

    narinas).

    O NOSSO LUGAR

    Assim como a psicanlise, com Lacan, est a prolongar a tpica freudiana natopologia do sujeito (a o, inconsciente nunca est no seu lugar), do mesmo modo seria

    preciso substituir o espao magistral de outrora, que era em suma um espao religioso (a

    fala no plpito, em cima, os ouvintes em baixo; so as ovelhas, o rebanho), por um

    espao menos direito, menos euclidiano, onde ningum, nem o professor nem os

    estudantes, nunca estaria no seu ltimo lugar. Ver-se-ia ento que o que preciso tornar

    reversvel, no so os papis sociais (para qu disputar-se a autoridade, o direito

    de falar?), mas as regies da fala. Onde est ela? Na locuo? Na audio? Nas manhas

    de uma ou de outra? O problema no abolir a distino das funes (o professor/o

    estudante: afinal de contas, a ordem uma garantia do prazer, ensinou-nos Sade), mas

    protegera instabilidade, e se se pode diz-lo, a vertigem dos lugares de fala. No espao

    docente, ningum deveria estar no seu lugar em lado nenhum (tranquilizo-me com esta

    deslocao constante: [p.48] se por acaso encontrasse o meu lugar, no fingiria mais

    ensinar, renunciaria a isso).

    No tem, todavia, o professor um lugar fixo, que o da sua remunerao, o

    lugar que ocupa na economia, na produo? sempre o mesmo problema, o nico que

    tratvamos incansavelmente: a origem duma fala no a esgota; uma vez que essa fala

    partiu, acontecem-lhe mil aventuras, a sua origem torna-se turva, nem todos os seus

    efeitos esto na sua causa: este nmero excedente que ns interrogamos.

    DUAS CRITICAS

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    Os erros que se podem dar ao passar mquina um manuscrito so outros tantos

    incidentes significativos, e esses incidentes, por analogia, permitem esclarecer o

    comportamento que devemos ter no que respeita ao sentido quando comentamos um

    texto.

    Ou a palavra produzida pelo erro (se uma m letra a deturpa) no significa nada,

    no reencontra nenhum plano textual; o cdigo simplesmente cortado: uma palavra

    assmica que criada, um puro significante; por exemplo, em vez de escrever oficial,

    escrevo ofivial, que no quer dizer nada. Ou a palavra errada (mal escrita), sem ser a

    palavra que se queria escrever, uma palavra que o lxico permite identificar, que quer

    dizer alguma coisa: [p.49] se escrevo ruga em vez de rega, esta palavra nova existe:

    a frase conserva um sentido, embora excntrico; a via (a voz?) do jogo de palavras, doanagrama, da mettese significativa, do trocadilho de slabas: h deslize no interior dos

    cdigos: o sentido subsiste, mas pluralizado, trafulhado, sem lei de contedo, de

    mensagem, de verdade.

    Cada um destes dois tipos de erros figura (ou prefigura) um tipo de crtica. O

    primeiro tipo afasta todo o sentido do texto tutor: o texto s deve prestar-se a uma

    eflorescncia significativa: s o seu fonismo que deve ser tratado, mas no

    interpretado: associa-se, no se decifra: dando a ler ofivial, e no oficial, o erroabre-me o direito de associao (posso fazer rebentar, minha vontade, ofivial para

    obvial, vivial, etc.); o ouvido deste primeiro crtico ouve no s os rudos do fono-

    captor, mas s quer ouvi-los a eles e faz deles uma nova msica. Para o segundo crtico,

    a cabea de leitura no rejeita nada: percebe no s o sentido (os sentidos) mas

    tambm os seus rudos. A entrada (histrica) destas duas crticas (gostaria de poder

    dizer que o campo da primeira a signijicose e o da segunda, a significncia)

    evidentemente diferente.

    A primeira tem a favor dela o direito do significante se abrir onde quiser (onde

    puder?) que lei, ou que sentido, vindos donde, viriam constrang-lo? Desde que se

    alargou a lei filolgica [p.50] (monolgica) e se entreabriu o texto pluralidade, porqu

    parar? Porqu recusar impelir a polissemia at assemia? Em nome de qu? Como todo

    o direito radical, este supe uma viso utpica da liberdade: revoga-se a lei

    imediatamente, fora de toda a histria, sem considerao por qualquer dialctica (aquilo

    em que este estilo de reivindicao pode finalmente parecer pequeno-burgus). Todavia,

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    desde que se livre de qualquer razo tctica continuando apesar disso implantado numa

    sociedade intelectual determinada (e alienada), a desordem do significante torna-se

    divagao histrica: libertando a leitura de todos os sentidos, e finalmente a minha

    leitura que imponho: porque neste momento da Histria, a economia do sujeito ainda

    no est transformada, e a recusa do sentido (dos sentidos) torna-se subjectividade;

    explicando melhor as coisas, pode dizer-se que esta critica radical, definida por uma

    excluso do significado (e no pela sua fuga), antecipa-se Histria, a um estado novo

    e inaudito, no qual a eflorescncia do significante no se contentaria com nenhuma

    equivalncia idealista, com nenhum encerramento da pessoa. Todavia, criticar (fazer

    crtica) : pr em situao crtica, e no possvel pr em situao crtica sem avaliar as

    condies da situao crtica (os seus limites), sem ter em conta o seu momento. Por

    isso a segunda crtica, a que se dedica diviso dos sentidos e ao [p.51] emprego de

    truques da interpretao, parece (pelo menos aos meus olhos) historicamente mais

    exacta: numa sociedade sujeita guerra dos sentidos, e por isso mesmo sujeita a regras

    de comunicao que determinam a sua eficincia, a liquidao da antiga crtica s pode

    progredir no sentido (no volume dos sentidos) e no fora dele. Por outras palavras,

    preciso praticar um certo adentrismo semntico. A crtica ideolgica est com efeito,

    hoje, condenada s operaes de roubo: o significado, cuja iseno a tarefa

    materialista por excelncia, o significado oculta-se melhor na iluso do sentido do que

    na sua destruio.

    DOIS DISCURSOS

    Distingamos dois discursos:

    O discurso terrorista no est obrigatoriamente ligado assero peremptria

    (ou defesa oportunista) duma f, duma verdade, duma justia; pode querer

    simplesmente cumprir a adequao lcida da enunciao com a verdadeira violncia da

    linguagem, violncia nativa que resulta de que nenhum enunciado pode exprimir

    directamente a verdade e no tem outro regime sua disposio seno o acto de

    violncia da palavra; por isso um discurso aparentemente terrorista cessa de o ser se, ao

    l-lo, aceite a indicao que ele prprio vos apresenta: de ter de restabelecer nele o [p.

    52] branco ou a disperso, quer dizer o inconsciente; esta leitura no sempre fcil;

    certos terrorismos em miniatura, funcionando sobretudo por esteretipos, operam eles

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    prprios, como qualquer discurso de boa conscincia, a excluso da outra cena; numa

    palavra, esses terrorismos recusam escrever-se (detectam-se por qualquer coisa neles

    que no joga: esse odor de seriedade que sobe do lugar comum).

    O discurso repressivo no se liga violncia declarada, mas Lei. A Lei passaento na linguagem como equilbrio: um equilbrio postulado entre o que proibido e

    o que permitido, entre o sentido recomendvel e o sentido imprprio, entre a coaco

    do sentido comum e a liberdade vigiada das interpretaes; dai o gosto desse discurso

    pelas hesitaes, as equivalncias verbais, a posio e o esquivo das antteses: no ser

    nem a favor disto nem a favor daquilo (todavia, se fizerdes a conta dupla dos nem,

    constatais que esse locutor imparcial, objectivo, humano, est a favor disto, contra

    aquilo). Este discurso repressivo o discurso da boa conscincia, o discurso liberal.

    O CAMPO AXIOMTICO

    Bastar, diz Brecht, estabelecer quais as interpretaes dos factos, aparecidas

    no seio do proletariado empenhado na luta das classes (nacional ou internacional) que

    lhe permitem [p.53] utilizar os factos para o seu combate. preciso fazer uma sntese

    disso para criar um campo axiomtico. Assim qualquer facto possui vrios sentidos(uma pluralidade de interpretaes), e entre esses sentidos, h um que proletrio (ou

    que pelo menos serve o proletariado no seu combate); juntando esses vrios sentidos

    proletrios, constri-se uma, axiomtica (revolucionria). Mas quem estabelece o

    sentido? O prprio proletariado, pensa Brecht (aparecidas no seio do proletariado).

    Esta viso implica que diviso das classes corresponde fatalmente uma diviso dos

    sentidos, e que luta das classes corresponde no menos fatalmente uma guerra dos

    sentidos: enquanto houver luta de classes (nacional ou internacional), a diviso do

    campo axiomtico inexpivel.

    A dificuldade (apesar da desenvoltura verbal de Brecht: bastar) vem de que

    um certo nmero de objectos de discurso no interessam directamente ao proletariado

    (nenhuma interpretao aparece a seu respeito no seu seio) e de que todavia o

    proletariado no pode desinteressar-se deles porque constituem, pelo menos nos Estados

    avanados, que liquidaram ao mesmo tempo a misria e o folclore, a plenitude do outro

    discurso, no seio do qual o prprio proletariado obrigado a viver, a alimentar-se, adistrair-se, etc.: esse discurso o da cultura ( possvel que na poca de Marx a presso

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    [p.54] da cultura sobre o proletariado fosse menos forte que hoje: ainda no havia

    cultura de massa, porque no havia comunicaes de massa). Como atribuir um

    sentido de combate ao que no vos diz directamente respeito? Como que o

    proletariado poderia determinar, no seu seio, uma interpretao de Zola, de Poussin, de

    Pop, de Sport-Dimanche ou da ltima notcia? Para interpretar todas estas reservas

    culturais, so-lhe precisos representantes: aqueles a quem Brecht chama os artistas

    ou os trabalhadores do intelecto (a expresso muito maliciosa, pelo menos em

    francs: o intelecto est to perto do chapu), todos aqueles que tm sua disposio a

    linguagem do indirecto, o indirecto como linguagem; numa palavra, os oblatos, que se

    dedicam interpretao proletria dos factos culturais.

    Mas ento comea, para esses procuradores do sentido proletrio, um verdadeiroquebra-cabeas, porque a sua situao de classe no a do proletariado: no so

    produtores, situao negativa que partilham com a juventude (estudante), classe

    igualmente improdutiva com a qual formam geralmente uma aliana de linguagem.

    Segue-se que a cultura, donde devem libertar o sentido proletrio, reenvia-os a eles

    mesmos, no ao proletariado: como avaliar a cultura? Segundo a sua origem?

    burguesa. Segundo a sua finalidade? Ainda burguesa. Segundo a dialctica? Embora

    burguesa, conteria [p.55] elementos progressistas; mas o que que, ao nvel do

    discurso, distingue a dialctica do compromisso? E depois, com que instrumentos?

    Historicismo, sociologismo, positivismo, formalismo, psicanlise? Todos

    emburguesados. Alguns preferem finalmente quebrar o quebra-cabeas: despedir todas

    as culturas, o que obriga-a destruir todos os discursos.

    De facto, mesmo no interior dum campo axiomtico clarificado, pensa-se, pela

    luta das classes, as tarefas so diversas, por vezes contraditrias, e sobretudo:

    estabelecidas sobre tempos diferentes. O campo axiomtico feito de vrias

    axiomticas prprias: a crtica cultural move-se sucessivamente, diversamente e

    simultaneamente opondo o Novo ao Antigo, o sociologismo ao historicismo, o

    economismo ao formalismo, o logico-positivismo psicanlise, depois de novo, duma

    outra maneira, a histria monumental sociologia emprica, o estranho (o

    desconhecido) ao Novo, o formalismo ao historicismo, a psicanlise ao cientismo, etc.

    Aplicado cultura, o discurso crtico s pode ser um cambiante de tcticas, um tecido

    de elementos ora passados, ora circunstanciais (ligados s contingncias de moda) , ora

    enfim francamente utpicos: s necessidades tcticas da guerra dos sentidos junta-se o

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    plano estratgico das novas condies que sero feitas ao significante quando esta

    guerra cessar: pertence com efeito crtica cultural [p.56] ser impaciente, porque ela

    no se pode levar sem desejo. So pois todos os discursos do marxismo que esto

    presentes na sua escrita: o discurso apologtico (exaltar a cincia revolucionria), o

    discurso apocalptico (destruir a cultura burguesa) e o discurso escatolgico (desejar,

    chamar a indiviso do sentido, concomitante com a indiviso das classes).

    O NOSSO INCONSCIENTE

    O problema que nos pomos este: que fazer para que os dois grandes epistemes

    da modernidade, a saber a dialctica materialista e a dialctica freudiana, se unam, se juntem e produzam uma nova relao humana (no preciso excluir que um terceiro

    termo esteja escondido no inter-dito dos dois primeiros)? Quer dizer: como ajudar a

    inter-aco destes dois desejos: mudar a economia das relaes de produo e mudar a

    economia do sujeito? (A psicanlise parece-nos para o momento como a fora melhor

    adaptada segunda destas tarefas; mas h outros tpicos imaginveis, os do Oriente, por

    exemplo).

    Este trabalho de conjunto passa pela seguinte pergunta: que relao h entre adeterminao de classe e o inconsciente? Segundo que deslocao que esta

    determinao vem introduzir-se entre os sujeitos? - No por [p.57] por certo pela

    psicologia (como se houvesse contedos mentais: burgueses/proletrios/intelectuais,

    etc.), mas evidentemente pela linguagem, pelo discurso: o Outro, que fala, que todo

    fala, o Outro social. Por um lado, por mais que o proletariado esteja separado, a

    linguagem burguesa, na sua forma degradada, pequeno-burguesa, que fala

    inconscientemente no seu discurso cultural; e por outro, por mais que ele esteja mudo,

    fala no discurso do intelectual, no como voz cannica, fundadora, mas como

    inconsciente: basta ver como marca todos os nossos discursos (a referncia explcita do

    intelectual ao proletariado no impede de maneira nenhuma que este tenha nos nossos

    discursos o lugar do inconsciente: o inconsciente no a in-conscincia); s o discurso

    burgus da burguesia tautolgico: o inconsciente do discurso burgus na verdade o

    Outro, mas este Outro um outro discurso burgus.

    A ESCRITA COMO VALOR

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    A avaliao precede a crtica. No possvel pr em situao crtica sem avaliar.

    O nosso valor a escrita. Esta referncia obstinada, alm de que muitas vezes deve

    irritar, parece comportar aos olhos de alguns um risco: o de desenvolver uma certa

    mstica. A censura maliciosa, porque inverte ponto por ponto a [p.58] capacidade que

    atribumos escrita: a de ser, no pequeno canto intelectual do nosso mundo ocidental,

    o campo materialista por excelncia. Embora procedendo do marxismo e da

    psicanlise, a teoria da escrita tenta deslocar, sem romper, o seu lugar de origem; por

    um lado, repele a tentao do significado, quer dizer, a surdez linguagem, repetio

    e ao nmero excedente dos seus efeitos; por outro, ope-se fala na medida em que no

    transferencial e desmancha - na verdade parcialmente, em limites sociais muito

    estreitos, particularistas mesmo - as armadilhas do dilogo; h nela o esboo dum

    gesto de massa; contra todos os discursos (falas, escritos, rituais, protocolos, simblicas

    sociais), s ela, actualmente, embora ainda sob a forma dum luxo, faz da linguagem

    alguma coisa de atpico: sem lugar; esta disperso, esta insituao que materialista.

    A FALA TRANQUILA

    Uma das coisas que se pode esperar duma reunio regular de interlocutores

    simplesmente esta: a benevolncia: que esta reunio represente um espao de fala

    privado de agressividade.

    Esta privao no pode ser inseparvel de resistncias. A primeira de ordem

    cultural: a recusa da violncia passa por uma mentira [p.59] humanista, a cortesia (a

    maneira menor desta recusa) por um valor de classe e a aceitao duma mistificao

    aparentada com o dilogo liberal. A segunda resistncia de ordem imaginria: muitos

    desejam uma fala conflituosa para desoprimir, tendo a retirada do afrontamento, diz-se,

    qualquer coisa de frustrante. A terceira resistncia de ordem poltica: a polmica

    uma arma essencial da luta: todo o espao da fala deve estar fraccionado, para fazer

    aparecer a as contradies, deve ser submetido a uma vigilncia.

    Todavia, o que preservado, nestas trs resistncias, finalmente a unidade do

    sujeito nevrtico, que se reune nas formas do conflito. Sabe-se bem, contudo, que a

    violncia est sempre l (na linguagem), e por isso mesmo que se pode decidir pr os

    seus signos entre parnteses e fazer assim a economia duma retrica: no preciso quea violncia seja absorvida pelo cdigo da violncia.

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    A primeira vantagem seria suspender, ou pelo menos retardar as funes de fala:

    que ao ouvir, ao falar, ao responder, eu nunca seja o actor dum julgamento, duma

    sujeio, duma intimidao, o procurador duma Causa. Sem dvida que a fala tranquila

    acabar por segregar o seu prprio papel, pois que, seja o que for que eu diga, o outro

    l-me sempre como uma imagem; mas no tempo que eu empregaria a iludir este papel,

    no trabalho de linguagem [p.60] que a comunidade realizar, semana aps semana, para

    expulsar do seu discurso toda a esticomitia, uma certa desapropriao da fala (desde

    ento prxima da escrita) poder ser atingida, ou ainda: uma certa generalizao do

    sujeito.

    talvez o que se encontra em certas experincias de drogas (na experincia de

    certas drogas). Sem se fumar (nem que seja s pela incapacidade brnquica de engolir ofumo), como que se pode ser insensvel benevolncia geral que impregna certos

    lugares estrangeiros onde se fuma o kif? Os gestos, as palavras (raras), toda a relao

    dos corpos (relao contudo imvel e distante) retesada, desarmada (nada que ver,

    pois, com a embriaguez alcolica, forma legal da violncia no Ocidente) : o espao

    parece antes produzido por uma ascese subtil (pode ler-se por vezes ai uma certa

    ironia). A reunio de fala deveria, parece-me, procurar este suspenso (pouco importa de

    qu: uma forma que desejada), tentar encontrar uma arte de viver, a maior de todas

    as artes, dizia Brecht (esta viso seria mais dialctica do que se julga, porque obrigaria a

    distinguir e avaliar os usos da violncia). Em suma, nos prprios limites do espao

    docente, tal como ele dado, tratar-se-ia de trabalhar para traar pacientemente uma

    forma pura, a de flutuao (que a prpria forma do significante); esta flutuao no

    destruiria nada; contentar-se-ia [p.61] em desorientar a Lei: as necessidades da

    promoo, as obrigaes da profisso (que nada probe desde logo de honrar com

    escrpulo), os imperativos do saber, o prestgio do mtodo, a critica ideolgica, tudo

    est a, mas que flutue.

    Roland Barthes