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artista plástico Andy Warhol pro- fetizou no simbólico 1968 (ano em que o mundo anunciou algu- mas de suas novas regras): “No futuro, todos serão famosos por 15 minutos”. Warhol começou a concretizar sua própria profecia com sua Pop Art, seu estúdio Factory e suas reproduções de atores hollywoodi- anos. Mas o que o artista talvez não pudesse conce- ber na época é que a indústria em t o rno dos 15 minutos cresceria tanto – e que tanta gente correria atrás de exposição. Jaqueline Rose, pesquisadora da University of London, defendeu em artigo publicado no London Review of Books que “o prazer do público com as celebridades reside numa espécie de catarse coletiva, porque a vida de um artista pode vir a se tornar um ritual de humilhação pública”. Ou seja, o povo quer assistir aos cristãos sendo atirados aos leões. Mas a tese da professora não esclarece porque parte do povo quer ir para a arena, mesmo com os leões à espreita. Com o desenvolvimento tecnológico e, principal- mente, com a democratização dos aparelhos trans- missores de mídia (a televisão está presente em mais de 90% dos lares brasileiros), a platéia para os famosos ampliou-se. Esta maior penetração nas casas das pessoas também aumentou o desejo de tornar-se famoso. Produtores agregaram estes dois cenários e encontraram uma saída simples: a fama de graça. Primeiro as pessoas tornam-se estrelas, para depois adquirirem mérito para tal. Olho que tudo vê, mas para quem quer ser visto A busca pela fama alimentou debates na mídia e na academia brasileira nos últimos dois anos. O pivô foi o fenômeno “Big Brother Brasil”, programa da Rede Globo baseado em uma fórmula da produ- tora holandesa Endemol. Nele, 12 participantes ficam isolados do mundo, trancados em uma casa, onde seu dia a dia é gravado por câmeras posi- cionadas em todos os cômodos da casa. Em uma pesquisa da própria Rede Globo, somente 2% do público do programa disse ter o terceiro grau completo. No entanto, o “Big Brother Brasil” é o programa de maior audiência do canal por assi- natura Multishow (Net/Sky), bas- tante difundido entre as classes A e B do país, em que se concentram os portadores de diploma universitário. Mesmo quando não cria novas atrações, a evasão da privacidade altera os meios de informação que já tratavam de famosos. E isto é nítido nas revistas de celebridades: “Antes, as pu- blicações mostravam mais os bastidores de um show , a produção de um evento. Esta coisa de mostrar bastante a intimidade das pessoas, como banheiros e guarda-roupas, surgiu com a Caras”, informa Ana Claudia Souza, editora da sucursal carioca de outra revista de celebridades, a Quem. “Nossa revista já seguiu esta linha, mas agora tem apostado mais em ensaios posados”. Como o Big Brother Brasil, boa parte do público da Quem também se encontra nas camadas sociais mais altas da sociedade brasileira, tradicionalmente mais escolarizada. “Prova disto são os anúncios de LIANA BRAUER, MARCELO TAVELA E PATRÍCIA COTTON Bem mais do que 15 minutos Como o culto às celebridades incita a evasão de privacidade e o prazer em aparecer “Já que eu não sou famosa, eu posso ser quase famosa” Bruna Axt O Com muito prazer 33

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artista plástico Andy Warhol pro-fetizou no simbólico 1968 (anoem que o mundo anunciou algu-mas de suas novas regras): “Nofuturo, todos serão famosos por

15 minutos”. Warhol começou a concretizar suaprópria profecia com sua Pop Art, seu estúdioFactory e suas reproduções de atores hollywoodi-anos. Mas o que o artista talvez não pudesse conce-ber na época é que a indústria emt o rno dos 15 minutos cre s c e r i atanto – e que tanta gente correriaatrás de exposição.

Jaqueline Rose, pesquisadora daUniversity of London, defendeu ema rtigo publicado no London Reviewof Books que “o prazer do públicocom as celebridades reside numaespécie de catarse coletiva, porque avida de um artista pode vir a set o rnar um ritual de humilhação pública”. Ou seja, opovo quer assistir aos cristãos sendo atirados aosleões. Mas a tese da professora não esclarece porq u ep a rte do povo quer ir para a arena, mesmo com osleões à espre i t a .

Com o desenvolvimento tecnológico e, principal-mente, com a democratização dos aparelhos trans-missores de mídia (a televisão está presente emmais de 90% dos lares brasileiros), a platéia para osfamosos ampliou-se. Esta maior penetração nascasas das pessoas também aumentou o desejo detornar-se famoso. Produtores agregaram estes doiscenários e encontraram uma saída simples: a famade graça. Primeiro as pessoas tornam-se estrelas,para depois adquirirem mérito para tal.

Olho que tudo vê, mas para quem quer ser visto A busca pela fama alimentou debates na mídia e

na academia brasileira nos últimos dois anos. Opivô foi o fenômeno “Big Brother Brasil”, programada Rede Globo baseado em uma fórmula da produ-tora holandesa Endemol. Nele, 12 participantesficam isolados do mundo, trancados em uma casa,onde seu dia a dia é gravado por câmeras posi-cionadas em todos os cômodos da casa.

Em uma pesquisa da própria RedeGlobo, somente 2% do público dop rograma disse ter o terc e i ro graucompleto. No entanto, o “ B i gBrother Brasil” é o programa demaior audiência do canal por assi-natura Multishow (Net/Sky), bas-tante difundido entre as classes A e Bdo país, em que se concentram osp o rt a d o res de diploma universitário.

Mesmo quando não cria novasatrações, a evasão da privacidade altera os meiosde informação que já tratavam de famosos. E isto énítido nas revistas de celebridades: “Antes, as pu-blicações mostravam mais os bastidores de umshow, a produção de um evento. Esta coisa demostrar bastante a intimidade das pessoas, comobanheiros e guarda-roupas, surgiu com a Caras”,informa Ana Claudia Souza, editora da sucursalcarioca de outra revista de celebridades, a Quem.“Nossa revista já seguiu esta linha, mas agora temapostado mais em ensaios posados”.

Como o Big Brother Brasil, boa parte do públicoda Quem também se encontra nas camadas sociaismais altas da sociedade brasileira, tradicionalmentemais escolarizada. “Prova disto são os anúncios de

LIANA BRAUER, MARCELO TAVELA E PATRÍCIA COTTON

Bem mais do que15 minutos

Como o culto às celebridades incita a evasão de privacidade e o prazer em aparecer

“Já que eu não soufamosa, eu posso ser

quase famosa”Bruna Axt

O

Com muito prazer 33

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jóias e automóveis na revista, direcionados para aclasse média alta. Para mim, a revista não tem umpúblico segmentado”, analisa Ana Claudia, que jáconcluiu um mestrado na ECO-UFRJ abord a n d orevistas de celebridades. “As publicações como aQuem criaram um grande mercado de assessoria dei m p rensa. Nós somos muito procurados por eles (osantigos participantes do BBB), e nem sempre chegacoisa legal. Por exemplo, ninguém agüenta maisreceber informação sobre os ex-BBBs. Chegamre l e a s e s indicando até quando eles cortam o cabeloou comem uma pizza.”

Mas a editora não sabe precisar se a revista, cria-da em 2000, existe para preencher o crescimento dademanda pelas celebridades, ou se ela criou nopúblico este desejo. “Olha, é uma questão como ado ovo e a galinha. Eu acho que sempre houveinteresse sobre o mundo da fama. Mas antes eramais vinculado ao trabalho. Agora é que passou aenfocar a vida particular”, afirma. “As publicaçõestrabalham em uma via de mão tripla: os interessesdo público, dos artistas e dos editores. E todos sen-tem prazer em aparecer, ainda mais de uma formabacana”.

Para Regina Jardim, psicóloga e professora da

PUC-Rio, este prazer não está pura e simplesmenterelacionado ao aparecer. No caso de programascomo o “Big Brother”, por exemplo, ele pode estarna chance de se obter retorno financeiro. “Vivemosna sociedade da imagem, o aparecer supre a neces-sidade de reconhecimento, que é do ser humanoestar sempre buscando e, além disso, de retornofinanceiro”.

No caso da exploração da imagem por revistas etelevisão, é possível concluir que esse re t o rno finan-c e i ro se torna possível por meio de trabalhos comoensaios fotográficos e participação em programas deauditório. “Dessa forma se realiza a fantasia do ata-lho, de um re t o rno imediato, que é o mesmo que levaalgumas pessoas a usarem drogas, por exemplo, porc h e g a rem a um estado de êxtase imediatamente.Que nesse caso é substituído pelo ficar famoso ee n r i q u e c e rem rapidamente”, explica a psicóloga.

Dependendo do caso, promover a própria ima-gem pode trazer benefícios, como futuras propostasde trabalho. O que seria preocupante é o exacerba-do culto à imagem que tem sido praticado. “Vi-vemos na cultura da imagem, ela dá o tom, eladetermina as pessoas e acaba nos fazendo depen-dente delas. Como a nossa sociedade nos medehoje? Muitas vezes somente pelos atributos físicos”,diz a psicóloga.

Um outro lado, que é bom para os dois Em função disso, vemos milhares de jovens numa

busca frenética pela aparência perfeita, aceitável, amesma que vemos estampada em cartazes e revis-tas. No entanto, há pessoas que não estão em buscado espaço na mídia para preencher colunas sociaisou ensaios fotográficos. É o caso de Marcus Menna,vocalista da banda LS Jack, que estourou em 2002e teve uma de suas músicas como a mais tocadanas rádios naquele ano. Com isso, de lá para cá, asituação de ver-se flagrado em publicações nasmais diversas situações passou a fazer parte de seucotidiano, bem como o de toda a banda.

Marcus conhece bem as vantagens e malefíciosde toda essa exposição. Sobre o prazer de aparecerna mídia, ele destaca a grande utilidade que amesma tem para a difusão do seu trabalho. “Emum país com dimensões continentais como o Brasil,a mídia se faz necessária para que a minha música

Janeiro/Junho 200434

Ana Claudia Souza, editora da sucursal carioca da revistaQuem : “Sempre haverá interesse das pessoas em aparecer”

Patrícia Cotton

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e poesia possam chegar a todos oslugares. Ela passa a ser uma ferra-menta crucial a meu favor. Através daimagem, surge o interesse pela músi-ca, e vice-versa, e ver seu trabalhoaparecer é um grande prazer”, conta.

Mesmo assim, segundo ele, todocuidado é pouco para que essa ima-gem reflita a realidade e não acabemostrando o que a banda não é.“Com o mercado fonográfico em deca-dência, e como ele, algumas emisso-ras, é preciso ter cuidado na hora deescolher os programas de que vamosp a rt i c i p a r. Temos que pensar se abanda se encaixa no perfil do pro g r a-ma, verificar qual é o público para oqual vamos falar e o que vamos falar,p o rque o foco é na música e não no artista”, expli-c a .

Nesse caso, e essa é uma grande preocupação dequem está em evidência na mídia, o prazer não ésomente apare c e r, mas aparecer da maneira corre-ta. “Não há problema em que haja curiosidade.Essa é uma conseqüência da exposição à qual eume presto pelo meu trabalho. Mas incomodaquando vemos que o espaço que estamos ganhan-do na mídia é negativo, no sentidode que, muitas vezes, temos a sen-sação de que qualquer pro b l e m aque temos, mesmo que sejamospessoas normais, passíveis de erro ,seja sugado pela mídia para exporo mais negativo de nós, que é o quechama a atenção, enquanto o quea gente mais deseja é poder ser umexemplo positivo para quem nosvê”, conta Marc u s .

O deleite na exposição encontrauma significativa ferramenta na internet. O fácilsuporte fornecido pela rede mundial de computa-dores permitiu que vários mecanismos fossem cria-dos para que as pessoas pudessem mostrar seus tex-tos, desenhos, ou simplesmente suas faces.

A última mania nesta seara desenvolvida pelainternet é o Orkut, uma página em que usuários domundo inteiro se cadastram para conversar sobre

os mais variados temas. Os assuntos variam desdegrupos profissionais até capítulos específicos denovelas. No momento, há um grupo discutindoexatamente porque ingressaram no site.

“As pessoas gostam de aparecer no Orkut justa-mente para se sentirem queridas”, teoriza o estudanteRafael Lessa, no s i t e há um mês.

Este mesmo sentimento moveu a assistente demídia Bruna Axt a criar um f o t o l o g: “Já que eu não

sou famosa, eu posso ser quase fa-mosa”, diz.

Se os b l o g s – diários pessoaisdisponibilizados na internet –muitas vezes se tornam mero sespaços de exibição, os f o t o l o g sc o n s e rvam o mesmo potencial:são um mural virtual de fotos,com um pequeno espaço paracomentários embaixo.

O f o t o l o g de Bruna foi criadocomo cura para um momento de

baixa auto-estima. Após a superação dos pro b l e-mas, ela descobriu que tinha conquistado muitosfãs com o s i t e, que atualmente recebe mais de milvisitas diárias.

“Eu fiz muitos amigos pelo f o t o l o g, inclusive passeia reconhecer pessoas de outros f o t o l o g s em lugare sque visitava”, conta a moça, que pode ser vista emwww.fotolog.net/bruna_axt.

Com muito prazer 35

Marcus Menna: “O que a gente mais deseja é poder ser um exemplo posi-tivo para quem nos vê”

“As pessoas gostamde aparecer no Orkut

justamente para sesentirem queridas”

Rafael Lessa

Divulgação

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Exemplo ainda mais significativoé a designer carioca Helena Barros,mais conhecida como Helenbar. N oe n d e reço www. f o t o l o g . n e t / h e l e n b a rela se exibe desde julho de 2003,sempre com uma temática ligadaàs obras Alice no país das maravilhase Alice através do espelho, do escritorbritânico Lewis Carrol (1832-1898).Os milhares de acessos aos s i t e d eHelenbar lhe renderam um ensaiopara a revista Vizoo de maio de 2004,e o endereço www.f o t o l o g.net/anti-helenbar, em que um “fã magri-cela” satirizava suas fotos, usandouma peruca e fantasias. O site não está maisdisponível.

Este é outro ponto da exposição, quando estamosem evidência geramos uma série de sentimentosem quem nos assiste. Eles podem ser negativos,como ocorreu com Helena, ou positivos, comoocorre com vários famosos que, ao deixarem oanonimato, passam a colecionar fãs-clubes e admi-radores. Segundo Marcus Menna, esse é um pontopositivo também. “Eles chegam até nós porque amúsica os tocou e estar rodeados de fãs faz parte dojogo, mesmo nos momentos que não estamospreparados para isso, eles são o motivo pelo qualfazemos o que fazemos”.

E essa admiração é explícita. Fazendo uma buscarápida pela internet é possível encontrar inúmerossites de fãs-clubes relacionados às celebridades. So-bre o vocalista do LS Jack, por exemplo, podemosencontrar inclusive um portal ( http://www.portal-marcusmenna.kit.net ) com mais de 30 links rela-cionados à banda.

Mas não é tão fácil assim Aparecer, no entanto, não é simplesmente estar

no lugar certo na hora certa. Existe toda umapreparação. Carla B., funcionária de uma assesso-ria de imprensa que promove marcas de roupas eartistas, garante que estar na mídia envolve umtrabalho de pré-produção.

“Em véspera de eventos importantes como festasou prêmios, eventos que atraem a impre n s a ,recebemos muitas visitas e ligações de produtores

de artistas que querem vestir asroupas de nossas marcas. O quefazemos é emprestar para eles aroupa para ir ao evento. Logodepois ela é devolvida e, dessaforma, a marca aparece quandoas fotos são publicadas. Assim, oa rtista sai bem na foto, poisparece estar na moda, com roupasde boa qualidade. É um jogo quemexe com a vaidade, com umasensação de status momentânea.”

Esta é uma situação comumpara quem aparece muito. Vestir-se bem, se maquiar e se produzir é

imprescindível. Mas, mesmo assim, é possível que aconstrução de uma imagem cause problemas.

“Como recebemos muitos pedidos temos que sele-cionar quem vai vestir determinadas marcas. Nãogostamos de associar determinadas pessoas a algu-mas marcas. Já aconteceu de uma menina bemfamosa querer vestir um vestido nosso e termos quenegar, porque ela tinha acabado de fazer umensaio sem roupa para uma revista sem prestígio.O dono da loja achou que não tinha o perfil damarca”, revela Carla.

Da mesma forma, algumas pessoas são alvo domarketing das lojas. “Quando achamos que alguémé legal para aparecer vestindo a marca, mandamosas roupas de presente, convidamos para o show-room e, caso venha, oferecemos um bônus emroupas. Já chegamos a pagar dois mil reais emroupas para que uma atriz passasse trinta minutosna loja durante um coquetel. Foi o tempo dela serfotografada e ir embora”, conta.

Sabemos que a fama e fortuna dependem muitoda aceitação do público. Por isso há tanta expecta-tiva e preparação. O carisma do artista só pode sermedido depois que ele aparece e não há garantiade que a figura vá durar na mídia. O anonimatocriado pelos grandes centros urbanos fez com que amídia assumisse um papel central na identidadecoletiva. Desta forma, tornar-se célebre é um meiode se distinguir da massa nas sociedades industri-ais. Num tempo em que desejos se tornam necessi-dades, o público pode ter sido levado a querer umarevista de celebridades.

Janeiro/Junho 200436

“Já chegamos apagar dois mil reaisem roupas para queuma atriz passassetrinta minutos naloja durante um

coquetel”Carla B.