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7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf
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Miséria gera violência
ou os pobressão sempre suspeitos?
'J"Também nos meios ricos a violência é um a constante
atual. Mas aí ela deriva de outras causas, trata-se da vio-
lência determinada pela impunidade. No caso brasileiro, a
população carcerária é totalmente constituída de pobres,
como se no país ninguém acima da pequena classe média
cometesse crime algum. No caso da criminalidade nos midos
ricos são as facilidades da vida que o alimentam: o desa
preço pelos valores constituídos, o tóxico largamente difun
dido e também esta reação muito brasileira do 'sabe comquem estáfalando' ..
(Entrevista, ao JB, do ministro da Justiça, lbrahim Abi
Ackel, dezembro de 1979.)
"Nestas novecentas favelas de São Paulo, existem mais de Jum milhão de pessoas. Se fossem todos bandidos, margi
nais, como costumam dizer po r aí, já teríamos tomado opoder há muito tempo ....
(Manoel Francisco Espínola, "prefeito" da favela de Vila
Prudente, FSP, 3.2.1983.)
A distância entre as duas declarações acima supera
qualquer esforço de imaginação: a denúncia do ministro da
Justiça e a constatação, de um a lógica política irretorquível,
de um cidadão favelado, que tem a seu favor não apenas aexperiência viva como o fato de ter sido sempre eleito, po r
voto direto, "prefeito" de sua comunidade desde 1957.Mais de três anos separam as duas declarações. A denúncia
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do ministro não foi seguida, apesar de su a óbvia autori
dade, de qualquer medida concreta para enfrentar os males
denunciados: o problema dos presídios continua insolúvel eo da impunidade dos "ricos" e dos poderosos permanece
integrada à cultura nacional.
Independentemente dessas considerações, o fato é que
a imprensa deu muito destaque ao debate sobre as causas
da violência e a tese mais difundida - no pensamento
oficial, mas também n ~ d i v e r s ; ' s vertentes do pensamento
crítico - ~ E < : l ~ ~ i c ! ~ ! ! . l l i . i ç ª L Y J Q J ê n . c i a e. miséria. Em geral,os seguintes fatores da estrutura sócio-econômica são considerados "geradores" ou "incentivadores" da c r i m i n a l i ~dade: os desequilíbrios regionais, que forçam a migração
desordenada para os centros urbanos (problema da desin
tegração cultural e do menor abandonado); a má distri
buição de renda, responsável tanto pela pobreza absoluta
quanto pela "proletarização" das classes médias; o au
mento nas taxas de desemprego e subemprego; a ausência
ou precariedade de serviços públicos, escola, saúde, edu
cação, etc.
Oprimeiro grupo de opiniões configura, para quase
todos os casos, um discurso tradicional, "fechado", e basi
camente lógico em relação às premissas assumidas como
válidas. Ou seja, como a premissa estabelece que os agentes
da criminalidade violenta são, em sua maioria, oriundos das
classes mais desfavorecidas da sociedade, logo as causas
principais encontram-se nas distorções da estrutura sócioeconômica. Miséria gera revolta, que produz criminali
dade. Criminalidade sem "recursos" - materiais e intelec
tuais - será necessariamente violenta. E fecha-se o círculo
de destinos, de "fatalidades trágicas". A opinião do repór
ter policial Bartolomeu Brito é, nesse sentido, exemplar:
"Chega um cidadão do Ceará para uma favela brava. Da
qu i a pouco ele traz a mulher e depois vêm os filhos, e todos
vão ser criados naquele submundo. Se ele te m cinco filhos,um vai ser bandido. Pelo menos um!" (JT, 4.2.81).
No pensamento oficial a identificação de causas na
estrutura sócio-econômica é, muitas vezes, rotulada generi
camente como "fome" e "miséria". O discurso mais ela-
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borado chega a apontar a necessidade de reformas estrutu
rais, como o ministro Abi-Ackel, da Justiça. Este reconhece
que "o aumento da violência e o surto da criminalidade que
estamos vivendo tem raízes profundas e remotas, como osp r o b l e ~ a s de estrutura fundiária, a ausência de oportuni
dade de ascensão social e econômica de numerosos contin
gentes da população, a lentidão da Justiça e de todo umvasto elenco que exigiria, para sua eliminação, reformas
estruturais em nossa sociedade" (JB, 14.2.80).
No entanto, ao contrário do que caracteriza essencial
mente a posição alternativa, o discurso oficial nã o respon
sabiliza o modelo econômico/ atual ou o próprio sistema
capitalista. Nesse sentido o discurso tradicional mais coe- rrente corresponde, grosso modo, à justificação "realista"
das desigualdades ("sempre haverá ricos e pobres") e dos jdesequilíbrios, mesmo que vistos como injustos, pois seriam·
inerentes a um a determinada fase da evolução capitalista ido país. Trata-se, em outros termos, de compreender a tinevitabilidade de ritmos diferentes do desenvolvimento, do!
progresso, temas constantes na retórica oficial. "O que nós
vivemos é o progresso, e sempre do lado do crescimento está',a anormalidade, mas que, em nosso país, não chega a:
assustar ainda", afirma o general Túlio Chagas Nogueira, \comandant.@. da 2!l Região Militar, São Paulo (ESP, 8.4.81).
Este extremo cuidado em preservar o modelo econô
mico vigente da responsabilidade pelas desigualdades sociais explica, em certos casos, uma posição tão alienada da
realidade a ponto de buscar na Bíblia as causas da violên
cia urbana. O senador Murilo Badaró (PDS-MG), relator
da CPI sobre violência urbana (iniciada em 1980) recusa
toda e qualquer crítica ao modelo econômico atual, conde
nando o que chama de "reducionismo ideológico míope"
para lembrar que "não se pode apontar, unilateral e exclu
sivamente, essa ou aquela causa"; e, embora defenda "con
dições dignas de vida para todos", afirma: "Não há comonão recorrer às luzes da revelação bíblica, que situa na
rebeldia ao Deus Criador, por parte do casal-cabeça da
espécie humana, a origem primeira desses tremendos desequilíbrios" (JT, 3.12.82).
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"A identificação imediata entre violência e miséria im
plica, necessariamente, a associação entre criminalidade eclasses baixas, segundo a qual o pobre e marginalizado
tende, inexoravelmente, para o crime. "O que se pode
esperar de um favelado", indaga o delegado Madureira
Pará, de Garulhos (SP), "de uma criança subnutrida, que
não tem acesso à escola e outros meios de formação? Umtrabalhador que percebe no final do mês um salário mínimo?" (ESP, 15.3.81). Esta visão determinista, obviamente criticada pelo discurso alternativo, também é refutada por representantes do pensamento oficial, que enfati
zam; no vasto rol dos fatores sócio-econômicos, a migração
caótica para os centros urbanos. O ministro do Interior
Mário Andreazza aponta o mal causado pela migração
desordenada, mas refuta a insinuação de qu e o migrante
seria um criminoso em potencial: "Trata-se de um a tremenda injustiça para com os migrantes, cujos contingentes
são constituídos, em sua maioria, po r pessoas simples ehonestas, vítimas de um processo econômico social". Ma s
reconhece qu e a cidade grande desarticula os laços pri
mários que caracterizam as comunidades menores, fazendocom que "o migrante se defronte com um ambiente frio,despersonalizado, desumanizado" (ESP, 16.1.81). O ministro Abi-Ackel também afirma ser "u m insulto à pobreza
reduzir o crime a essa causa simplista: a de que o pobre écriminoso po r destino. A razão desta falsa conclusão está
no fato de que as prisões só têm pobres. Acontece que
o braço da Justiça dificilmente alcança o rico" (JB, 19.1.81).
A declaração do ministro, aparentemente "progres
sista", permanece profundamente ambígua, como o de
nuncia o escritor Franklin de Oliveira: "O ministro considera insulto aos pobres dizer-se qu e a impossibilidade de
viver fabrica o crime. Mas não considera insultuoso à Jus
tiça dizer ele próprio qu e ela "dificilmente alcança os ricos". Dificilmente, po r quê? Po r qu e é sensível ao poder
econômico, portanto, corrupta? Po r que, sendo Justiça de
um a sociedade constituída por classes, é conseqüentemente
Justiça de classes? Não há outras conclusões a tirar da s
V I O L ~ N C I A . povo E POLICIA 47
assertivas do ministro, que as reforçou co m a sentença de
que as nossas "prisões só têm pobres" (FSP, 30.1.81).Paulo Sérgio Pinheiro também salienta, em várias oca
siões, a discriminação da Justiça, apontando a existência de
um a "justiça VIP", exclusiva dos cidadãos que têm "direito
a um tratamento excepcional. Os delegados e autoridades
policiais asseguram aos acusados VIP imediata comunicação com seus advogados. E com seus amigos, para esses
usarem livremente seus esquemas de influência. Não im
porta o crime cometido. A prisão preventiva é geralmente
evitada (as clínicas para esgotamento nervoso são um a op
çã o mais chique). Os homicídjos são tratados com generosa
bonomia. Como cristalinamente demonstrou a sentença
que absolveu o sr. Iberê Camargo, condenável seria o mor
to. As vítimas, para a justiça VIP, são sempre culpadas"
(FSP, 4.2.81).
Este aspecto crucial do papel da Justiça é apresentado
adiante. A inserção no discurso oficial de crítica ao papel
da Justiça e da Segurança é um dado novo, que marcou
todo um período de intensos debates divulgados pela im
prensa (principalmente em 1981) sobre mudanças na legislação penal e medidas de combate e prevenção à crimina
lidade.
O discurso não-oficial aponta as condições subumanas
de sobrevivência como fatores (e não causas) da criminali
dade violenta, identificando-as na perversidade do modelo
econômico e do chamado "capitalismo selvagem". As desigualdades sociais decorrem do regime de dominação e exploração. Os mais radicais chegam a adotar a linguagem da
luta de classes e identificam um a nova modalidade de
"guerrilha urbana" e de "lumpesinato" na s origens da cri
minalidade violenta. Um a frase do criminalista José Fer
nando Rocha resume a orientação mais geral: "É a violên-cia econômica que gera diversas outras formas de violên-
cia" (ESP, 10.2.80).Nesse sentido, segundo vários depoimentos, o menor
abandonado (o "trombadinha de hoje é o bandido de ama
nhã") é o principal problema a se r enfrentado pelos que
investigam as causas da criminalidade. Um delegado ca-
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rioca é explícito: "Uma criança de favelas desde cedo vai-setornando íntima da fome, aprende a resistir à violênciafísica, torna-se cínica diante de si e dos outros. Aprende
que só existe um a lei: a do mais forte. Ser bandido hoje éum a opção sodal. Não pode ser mais nada, a sociedade,
o sistema nã o deixa, então vai se r bandido" (ESP, 1.1.81).
A relação entre migração caótica e violência também édesenvolvida pelo antropólogo Gilberto Velho - qualifi
cando-se a dissolução dos vínculos sociais e dos valores
comunitários e a deficiência nas estruturas de apoio - ecostuma ser apontada em resposta à tese genérica de que
"miséria gera violência". Um a comunidade pobre não pro
duz necessariamente criminosos e marginais. É sua desintegração, a destruição das famílias, é a falta de perspectivas
de vida ordenada através do trabalho, "a falta de esperança
de muita gente" (como diz Dom Paulo Evaristo, cardeal de
São Paulo) que propicia condições de marginalidade e, daí,
eventualmente, de criminalidade.
Em linhas mais ou menos próximas, esta conCepçãO)predomina em várias declarações de representantes da
Igreja Católica (CNBB, Comissão de Justiça e Paz), da IOrdem dos Advogados do Brasil (OAB), assim como de Iarticulistas e cientistas sociais ostensivamente identificados \com a crítica ao modelo econômico vigente. Importa assi- ;nalar, sobretudo, que esta posição, embora enfatize a pre-!
dominância dos fatores essencialmente econômicos, não Inegligencia a dependência estrutural ao sistema político, idenunciando os aspectos da repressão e do arbítrio que'
agravam o conjunto de fatores econômicos apontados. Ou (seja, o discurso alternativo aponta o equívoco na premissa, "lembrando que a criminalidade nã o é reservada às classes'
baixas, be m como a insuficiência do argumento econômico, i
quando apresentado isoladamente. A explicação para aviolência criminosa requer um conjunto de fatores entre os
quais a miséria não será, necessariamente, determinante.
Segundo Francisco Weffort, "falar de violência como
resultado da miséria nos remete para o plano de conside
rações sobre o modele e para as condições de formação da
sociedade brasileira. Isto tem suas vantagens, especial-
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mente no plano político, mas não nos prepara, pelo menos ra curto prazo, para enfrentar o problema. Considera-se
pelo menos como duvidoso que a miséria, em si mesma,
apartada de outros fatores, tenha uma correlação tão alta
com a violência como se imagina. A grande maioria das
populações periféricasé
constituída de trabalhadorese
só :
um a pequena parcela se deixa atrair por condutas crimi-I
nosas" (JB, 25.4.80).Um dos jornalistas entrevistados confirma o precon-'
ceito e esclarece um dado novo: "Hoje o lugar onde o pobre
mais fica é na favela, e a porântagem de favelados delin
qüentes é ínfima, embora n6s tenhamos em Sã o Paulo
900 favelas. Agora um a outra coisa: o bandido, que é mais
inteligente do que a maioria das pessoas imagina, adquiriu
um a certa sabedoria, ele percebeu como nós somos, per
cebeu como a sociedade é preconceituosa, quem é o sus-
peito clássico. Então o que ele faz? Se ele entra numa casa
ele também rouba roupas. Então ele já vai roubar mais ou
menos bem vestido, com um a maleta 007, que ele fica
'acima de qualquer suspeita'. Tudo bem, passa a Tático
Móvel, ROTA, GARRA, tudo; tudo bem. Eles vão todos
encima dos 'loque', como eles falam. O ' loque', na linguagem deles, é o trouxa, é o burro que fica 'dando sopa'
na esquina, está olhando aquele movimento, esse 'dança' ".1 .
A ênfase nesta relação entre miséria, criminalidade eviolência responde portanto a preconceitos arraigados sobre
as "classes perigosas", assim como cristaliza a maior im
portância conferida aos crimes contra o patrimônio. É claro
que se trata dos assaltos, roubos, "trombadas" e furtos -pois os "grandes" crimes contra o patrimônio (peculato,
estelionato, ou mesmo os crimes contra a economia popu
lar) são considerados em outra faixa, a da "não-violência".
O colarinho-branco não se iguala ao marginal de favela. Ojornalista Percival de Souza é enfático: "Hoje toda a socie-
........--,'_-. .......
_-.,....--._
(1) As entrevistas foram realizadas no CEDEC, em 1981, po r Fran-
cisco Weffort, Maria Victoria Benevides e Rosa Maria F. Ferreira. A identi-
dade dos entrevistados é omitida por solicitação deles. As respostas são
apresentadas agrupadas por tema, mas as entrevistas foram feitas separa-
damente.
• t
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dade é del.!_º,-güente, toda eJª: c l ª s ~ ~ A , c ! é l s s ~ B , . s l ª s s ~ _ Ç . - :Agora, com um a diferença, _ ó _ classe pobre é punida.
A c í ~ s s ~ A- c ~ m e t e c r i m e s de tõ-dos os ' tipos: ela frai.J:"da opatrimônio, ela comete o crime do peculato que muita
gente se esquece que também é crime contra o patrimônio,
ela mata, ela trafica, ela pratica estelionato, tudo o que
você pensar, mas não acontece nada. Agora, já o pobrenão. Então você vê que embora o Lombroso 2 tenha morrido
em 1909, na verdade a suposta teoria dele vigora em toda asua forma" .
A ambigüidade dessa associação criminalidade/po
breza tem sido discutida por vários autores e permanece um
tema altamente polêmico. Ma s é necessário salientar um
dos aspectos cruciais da questão - e cujas conseqüências
são dramáticas para a população sócio-economicamente
marginalizada: um a vez que os pobres são, automatica
mente, "o s principais suspeitos", justificam-se os procedi
mentos violentos e arbitrários da polícia. A estigmatização
do pobre corno "marginal" - no sentido pejorativo da
palavra, comum à polícia e à imprensa - é incorporada
po r vastos setores da população, que chegam a apoiarostensivamente a ação brutal das "batidas" nas favelas, nos
bairros miseráveis, bem como os "rondões" urbanos e, evidentemente, as prisões ilegais "para averiguações".
Na época da intensificação de "batidas" no interior
dos ônibus no Rio de Janeiro - quando os PM revistavam
invariavelmente os negros e os jovens mal-vestidos - aclasse média reclamava: "Mas por que não vão proc'!!ªt: QS
bandidos no s morros, nas f a v e i a s ? I T T j B ~ 2 j : T . 8 i ) ~ - - - -. -- N ~ m a batida- dOa Cidade de Deus (Rio), a polícia pren
deu como suspeitas 140 pessoas que não conseguiram pro
var que trabalham. Não encontrou bandidos e todos foram
liberados. Ma s o delegado da 32!l, José dos Santos Guedes,
ficou satisfeito: "Pelo menos a gente fotografa e ficha
(2) Cesare Lombroso (1835-1909), professor de Medicina Legal eAntropologia Cultural na Universidade de Turim. Autor de "O Homem Delinqüente". divulgou uma teoria "científica" relacionando características
genéricas com predisposição para a criminalidade.
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'eles'" (Jornal da República, 1.12.79). É claro que "eles"
ficam marcados definitivamente, e na próxima batida jáserão considerados "com antecedentes". E enquanto nã o
descobre, a polícia fabrica suspeitos; impunemente fornece
aos jornais os nomes de acusados: porteiros de prédios,
bombeiros hidráulicos, pedreiros, empregadas domésticas.
No dia seguinte a polícia se desdiz, admite estar errada.!Quando suas vítimas, em geral humildes trabalhadores'li
estão estigmatizadas (idem, 26.11. 79).O depoimento de um delegado da Grande São Paulo
revela não apenas o preconceito contra os "pobres" mas,
sobretudo, a terrível ameaça ~ o n t r a o desempregado. Este
passa a ser sinônimo de "vadio" e vadio é bandido em
potencial. Outro dado revelado pelo delegado é a extrema
precariedade do critério para distinguir bandido do traba
lhador: "o aspecto do cidadão", as mãos calosas ..
Pergunta: Delegado, como é possível numa batida de
rua, a polícia saber "quem é quem" e nã o pegar gente
inocente?
Delegado 1: A primeira coisa que se faz é pedir osdocumentos; via de regra quem trabalha anda com os docu
mentos. A segunda coisa é o aspecto do cidadão: o cidadão
está todo cheio de graxa, com a mão desta grossura, vocêpassa até no rosto, é trabalhador! Mas quando pega ovagabundo, ele está ocioso, mãozinha fina, né? Ê um a das
características. Então, aquele que a gente te m dúvida, agente traz para a delegacia, para fazer um a análise mais
demorada, tira as impressões digitais, vai descobrir o nome
certo e tal. Se a polícia _ osse cumprir estritamente a lei nã opodia fazer Isto... -- -- -- ---.",- J ~ r n a l i s t a 3: O que é negativo, do me u ponto de vista,
é a operação pente-fino, por exemplo, porque prendem
operário, prendem trabalhador, o sujeito que está sem do
cumento, não é crime estar sem documento. O "Rondão"sabe quem é quem, porque é tudo tira manjado, tudo cobra
criado e sabe quem é o traficante, o batedor de carteiras,
então cobre sempre o cara certo. Hoje não existe mais, m as
antigamente tinha a delegacia de vadiagem, os negos co-
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S2 MARIA VICTORIA BENEVIDES
nheciam OS caras, er a mais fácil para um sargento de ru a
saber quem é quem. Você entra num ônibus - antiga
mente tinha o Penha-Lapa, então no Penha-Lapa, preci
sava descobrir quem é o bolinador, quem é o batedor de
carteiras. Muitas vezes está encostado na mulher, mas não
é pra bater a carteira dela, nem é "pipoqueiro" (pipoqueiro
é apelido, nã o tem nenhuma bolsa de mulher aqui, mas pr aabrir o fechinho fazploc, como se estivesse estourando um a
pipoca, então ficou pipoqueiro). O tira sacava de longe
quando er a bolinador. Hoje em dia não tem mais nada
disso, porque a delegacia aos poucos foi se despersonali
zando, se diluindo, com a descentralização esta equipe
foi-se, quem é que sobrou? Percival Kojak, o crioulo,
grande tira, Daniel, Pacheco que se aposentou, o Camargo
Calamidade que também se aposentou. Er a um a gente
que sabia, só de olhar eles sabiam, eles ia m pra rua esabiam quem é quem. Eles sabiam distinguir o vagabundo
do trabalhador, do desempregado.
Jornalista 2: Qualquer delegado experiente vai prefe
rir ter aqui nas mãos dele vinte investigadores do que du
zentos PM . Isso para quem não está no meio pode parecerum absurdo, mas na prática é isso: é melhor os vinte porque
eles são mais eficientes. Eles sabem quem vão apanhar, ou
quem devem apanhar; quem devem deter ou não deter;
quem é trouxa, quem não é trouxa, na linguagem deles.E a PM não, vai jogando a tarrafa lá e caiu na rede é peixe,
vai levando tudo.
O jornalista sugere que a polícia civil estaria mais pre
parada para distinguir o bandido do trabalhador - reivindicação, aliás, explicitada em todas as reuniões e debates
sobre violência que incluem representantes dos movimentos
populares. Ê possível qu e este maior "prepar-o" da polícia
civil em relação aos policiais militares seja real, e as esta
tísticas comprovam que a PM mata muito mais do qu e apolícia civil, embora esta seja também responsável po r
mortes e, sobretudo, torturas nos interrogatórios. Mas oque importa é salientar que ambos, civis e militares, cul
tivam e multiplicam, entre seus subordinados, a crença na
VIOLfNCIA, povo E POLICIA S3
relação obrigatória entre "vadiagem" e "criminalidade". Oentão secretário de Segurança Pública de São Paulo, Eras
mo Dias, declarava ser suficiente o "bom senso" para distinguir o bandido do trabalhador: "o bandido tupiniquim,
o nosso bandido, tem tipologia definida: está sempre abaixo
da média. Ê subnutrido, mal-vestido, subempregado, en
fim, tem psicossomática definida. A aparência dos bandidos é idêntica" (Última Hora, 22.S.76). A "descrição" cor
responde, como é sabido, à grande parte da populaçãobrasileira. 3
A posição do delegado da êidade de Assis, no interior
de São Paulo, João Queiroz Néto, é um exemplo concreto
da persistência de um a verdadeira "ideologia da vadiagem"
- que se refere apenas aos pobres - dos tempos do Brasil
Colônia aos dias atuais.4
Su a proposta para combater acriminalidade em sua jurisdição é decorrência natural de
sua convicção de que "n a maioria das vezes o indivíduo sem
ocupação definida acaba praticando crimes e contraven
ções". E propõe que, em Assis, os "vadios" ficariam com
três opções: encontrar ocupação sadia e lícita; mudar-se da
cidade; ser preso e ficar à disposição da justiça. Tê m 30
dias para encontrar ocupação: devem assinar um "termo de
ocupação" e aquele que insistir em não trabalhar será au-tuado em flagrante e recolhido à cadeia pública" (FSP,17.1.81). A brilhante proposta do delegado João Queiroz
Neto, feita dois anos atrás, talvez não fosse renovada hoje.
Com as altíssimas taxas de desemprego, teriam os cofres
públicos condições de sustentar na cadeia tantos "vadios"
'que "insistissem" em não trabalhar? Em 1983 o juiz da
(3) Lúcio Kowarick e Clara An t discutem esse tema da "tipificação"
do bandido em Violência e Cidade, vários autores, Rio de Janeiro, Zahar,
1982, Ver, também, a pesquisa de Alba Zaluar sobre violência no condo-
mínio "Cidade de Deus" (Rio), parcialmente publicada em Violência, Crime
e Poder, vários autores, São Paulo, Brasiliense, 1983.(4) Ver o excelente livro de Laura de Mello e Souza, Desclassifica- t
dos do Ouro, Rio de Janeiro, Graal, 1983, onde são discutidas, no Brasil J"
Colônia, a "ideologia da vadiagem" e as várias formas da "util idade dosvadios" no processo econômico. .
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S4 MARIA VICTORIA BENEVIDES
5:'- Vara Criminal de São Paulo, Fábio Poças Leitão, absolveu Eduardo Jorge de Souza, 19 anos, preso po r vadiagem eencaminhado à Casa de Detenção. "Fosse a polícia prendertodos aqueles que estão desempregados e não haveria lugarnas cadeias públicas, ne m mesmo nos distritos policiais"(FSP, 30.4.83).
A afirmação do delegado paulista de que "via de regraquem trabalha anda com documentos" não corresponde àrealidade, e menos ainda a identificação por "mãos calosas echeias de graxa". Os que trabalham em comércio, bancos eserviços em geral nã o andam necessariamente sujos degraxa ou tê m mãos calosas .. A carteira de trabalho é igualmente inexistente para muitos que trabalham como autônomos, ou menores e at é mesmo donas-de-casa. O presidente da OAB mineira, Aristóteles Atheniense, defendeu arevogação do a.rtigo 59 da Lei de Contravenções Penais qu eestabelece penas de prisão de 15 dias a três meses ao sconsiderados vadios: "É evidente que a lei só pune ospobres, já que define como vadios os que se entregam habitualmente à ociosidade se m renda que lhes assegure a subsistência, ou os que provem a própria subsistência medianteocupação ilícita" (JB, 14.4.81).
Para o jornalista Percival de Souza a estigmatizaçãodo pobre como "bandido típico" está perfeitamente entrosada com os métodos da polícia mas também reforçada pela
própria Justiça. Afinal, afirma, "não só a prisão para averiguações como a inominável prisão po r vadiagem vitimiza m o pobre, o operário, o migrante recém-chegado àsgrandes cidades. E fazem da polícia, queira ou não, ummecanismo de pressão ou repressão social" (JT, 29.2.80).Para concluir este tópico da discriminação social quanto à"suspeição" e a "punição" dos possíveis delinqüentes, um adeclaração do delegado Ruy Lisboa Dourado, da 12:'- DP doRio de Janeiro: "E u já disse qu e um tapa em Copacabana
ressoa como um tiro de canhão, e um tiro de canhão, nosubúrbio, como um a bombinha de São João" (JB, 23.1.81).
Em 1982 um a chocante ocorrência no Rio de Janeiroseria documentada n;1S primeiras páginas dos jornais, revelando "u m sinal trágico da transformação das PM em SS",
VIOLfNCIA. POVO E POLÍCIA SS
em brutal atentado aos mais elementares direitos do homem. "Atados pelo pescoço, 7 homens são levados pelamã o de um policial que segura a corda. É o retrato darealidade diária. Todos os sete são pretos, todos moradoresnos morros da Coroa e Cachoeira Grande. Todos, portanto,
previamente culpados porque o costume policial é prenderpela aparência, e só na delegacia sã o pedidos os documentos. A apresentação de documentos é um a formalidadesem sentido porque uma carteira de trabalho nã o defendeum cidadão: basta estar desempregado para ser culpado( ... )" "Que restou, no dia segUinte, da operação de exibicionismo policial no morro? A [verificação de que, entre 18detidos po r serem pretos e favelados, só um registravaantecedentes criminais." (JB, 1.10.82).
Coms> denuncia o deputado federal e líder da comunidade negra, Abdias Nascimento, "O negro é o primeiro aser preso, escolhido a dedo em 'batidas' e buscas em geralviolentas. Tal arbitrariedade confirma o dito popular:'branco correndo é atleta; preto correndo é ladrão' " (FSP,13.5.83).
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Em 1983 o delegado Rafael Orlandi, do Serviço deProteção e Previdência do DEGRAN (SP), afirma que "a
mendicância é um a questão de polícia. Mesmo que sejaprovada sua situação de de.;emprego e falta de dinheiropara condução, qualquer pessoa que perambule pelas ruasou durma debaixo de viadutos poderá ser enquadrada po rociosidade ou cupidez. Caso o mendigo esteja fazendo suasnecessidades fisiológicas na rua, por falta de banheiro pú blico, ele também poderá se r autuado po r atentado aopudor" (FSP, 9.5.83).
O texto a seguir trata da associação entre criminalidade e "disposições inatas" para a violência e o crime. Ouseja, do "bandido de nascença" e das soluções que apontam a necessidade da maior repressão - incluindo a penade morte - contra os "irrecuperáveis".