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  • HENRI BERGSON

    O RISOensaio sobre a significao do cmico

    segunda edioZAHAR EDITORES

    RIO DE JANEIRO

  • Ttulo original: Le Rire

    Traduzido da 375 edio francesa, publicada em 1978por Presses Universitaires de France, de Paris, Frana

    Copyright 1940 by Presses Uniyersitaires de France

    Direitos reservados.

    Proibida a reproduo (Lei n 5.988)

    traduo: Nathanael C. CaixeiroPh.D. em Filosofia, Universidade do Texas

    capa: Eliane Stephan

    diagramao: Ana Cristina Zahar

    composio: Zahar Editores S.A.

    1983

    Direitos para a lngua portuguesa adquiridos por

    ZAHAR EDITORES

    Caixa Postal 207, ZC-00, Rio

    que se reservam a propriedade desta verso

    Impresso no Brasil

  • INDICE

  • Prefcio

    Este livro encerra trs artigos sobre o Riso (ou antes, o riso suscitado

    sobretudo pelo cmico) anteriormente publicados na Revue de Paris. (Revue deParis, 19 e 15 de fevereiro, 19 de maro de 1899.) Ao reuni-los em livro,indagamos se devamos examinar a fundo as idias dos nossos predecessores efazer uma crtica rigorosa das teorias do riso. Pareceu-nos que a nossa exposiose complicaria desmesuradamente, resultando num volume desproporcional emrelao ao tema enfocado. De resto, verificava-se que as principais definies docmico haviam sido j discutidas por ns explcita ou implicitamente, embora demaneira resumida a propsito deste ou daquele exemplo que nos evocavamalgumas delas. Limitamo-nos, pois, a reproduzir nossos artigos. Acrescentamosto-somente uma lista dos principais trabalhos publicados sobre o cmico nos 30anos antecedentes.

    Depois disso publicaram-se outras obras alongando-se, pois, abibliografia a seguir oferecida. Mas nenhuma modificao fizemos no livropropriamente dito, exceto, entretanto, certos retoques na redao. Sem dvida,os diversos estudos citados esclareceram em vrios pontos a questo do riso.Mas o nosso mtodo, que consiste em determinar os processos de produo docmico, contrasta vivamente com o mtodo em geral seguido, e que visa aencerrar os efeitos do cmico numa frmula muito ampla e muito simples. Essesdois mtodos no se excluam reciprocamente; mas tudo o que o segundo puderdar deixar intactos os resultados do primeiro; e este o nico, a nosso ver, quecomporta uma especificidade e rigor cientficos. Esse ademais, o ponto para oqual chamamos a ateno do leitor no apndice acrescentado a esta edio.

    Henri Bergson (Paris, janeiro de 1924)

  • CAPITULO I

    Sobre o Cmico em GeralComicidade das Formas e dos MovimentosFora de Expanso do Cmico

    Que significa o riso? Que haver no fundo do risvel? Que haver decomum entre uma careta de bufo, um trocadilho, um quadro de teatro burlescoe uma cena de fina comdia? Que destilao nos dar a essncia, sempre amesma, da qual tantos produtos variados retiram ou o odor indiscreto ou odelicado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristteles, aplicaram-se aesse pequeno problema, que sempre se furta ao empenho, se esquiva, escapa, ede novo se apresenta como impertinente desafio lanado especulaofilosfica.

    Nosso pretexto para enfocar o problema que no pretenderemosencerrar numa definio a fantasia cmica. Vemos nela, antes de tudo, algo devivo. Por mais trivial que seja, trat-la-emos com o respeito que se deve vida.No nos limitaremos a v-la crescer e se expandir. De forma em forma, porgradaes imperceptveis, ela realizar aos nossos olhos metamorfoses bemsingulares. Nada desdenharemos do que tenhamos visto. Com esse contatocontinuado talvez ganhemos algo de mais malevel que uma definio terica um conhecimento prtico e ntimo, como o que nasce de longa camaradagem. Etalvez descubramos tambm que fizemos sem querer um conhecimento til.Lgico, a seu modo, at nos seus maiores desvios, metdico em sua insensatez,fantasiando, bem o sei, mas evocando em sonho vises logo aceitas ecompreendidas por uma sociedade inteira, acaso a fantasia cmica no nosinformar sobre os processos de trabalho da imaginao humana, e maisparticularmente da imaginao social, coletiva, popular? Fruto da vida real,aparentada arte, acaso no dir nada sobre a arte e a vida?

  • Apresentaremos primeiro trs observaes, para ns fundamentais.Referem-se elas menos ao cmico propriamente que ao lugar onde devemosbusc-lo.

    I

    Chamamos ateno para isto: no h comicidade fora do que propriamente humano. Uma paisagem poder ser bela, graciosa, sublime,insignificante ou feia, porm jamais risvel. Riremos de um animal, mas porqueteremos surpreendido nele uma atitude de homem ou certa expresso humana.Riremos de um chapu, mas no caso o cmico no ser um pedao de feltro oupalha, seno a forma que algum lhe deu, o molde da fantasia humana que eleassumiu. Como possvel que fato to importante, em sua simplicidade, notenha merecido ateno mais acurada dos filsofos? J se definiu o homemcomo "um animal que ri". Poderia tambm ter sido definido como um animalque faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado, seriapor semelhana com o homem, pela caracterstica impressa pelo homem ou pelouso que o homem dele faz.

    Observemos agora, como sintoma no menos digno de nota, ainsensibilidade que naturalmente acompanha o riso. O cmico parece sproduzir o seu abalo sob condio de cair na superfcie de um esprito tranqiloe bem articulado. A indiferena o seu ambiente natural. O maior inimigo doriso a emoo. Isso no significa negar, por exemplo, que no se possa rir dealgum que nos inspire piedade, ou mesmo afeio: apenas, no caso, serpreciso esquecer por alguns instantes essa afeio, ou emudecer essa piedade.Talvez no mais se chorasse numa sociedade em que s houvesse purasinteligncias, mas provavelmente se risse; por outro lado, almas invariavelmentesensveis, afinadas em unssono com a vida, numa sociedade onde tudo seestendesse em ressonncia afetiva, nem conheceriam nem compreenderiam oriso. Tente o leitor, por um momento, interessar-se por tudo o que se diz e sefaz, agindo, imaginariamente, com os que agem, sentindo com os que sentem,

  • expandindo ao mximo a solidariedade: ver, como por um passe de mgica, osobjetos mais leves adquirirem peso, e tudo o mais assumir uma coloraoaustera. Agora, imagine-se afastado, assistindo vida como espectador neutro:muitos dramas se convertero em comdia. Basta taparmos os ouvidos ao somda msica num salo de dana para que os danarinos logo paream ridculos.Quantas aes humanas resistiriam a uma prova desse gnero? No veramosmuitas delas passarem imediatamente do grave ao divertido se as isolssemosda msica de sentimento que as acompanha? Portanto, o cmico exige algocomo certa anestesia momentnea do corao para produzir todo o seu efeito.Ele se destina inteligncia pura.

    Mas essa inteligncia deve permanecer em contato com outrasinteligncias. Esse o terceiro fato para o qual desejvamos chamar a ateno.No desfrutaramos o cmico se nos sentssemos isolados. O riso parece precisarde eco. Ouamo-lo bem: no se trata de um som articulado, ntido, acabado,mas alguma coisa que se prolongasse repercutindo aqui e ali, algo comeandopor um estalo para continuar ribombando, como o trovo nas montanhas. E, noentanto, essa repercusso no deve seguir ao infinito. Pode caminhar no interiorde um crculo to amplo quanto se queira, mas, ainda assim, sempre fechado. Onosso riso sempre o riso de um grupo. Ele talvez nos ocorra numa conduo oumesa de bar, ao ouvir pessoas contando casos que devem ser cmicos para elas,pois riem a valer. Teramos rido tambm se estivssemos naquele grupo. Noestando, no temos vontade alguma de rir. Algum a quem se perguntou porque no chorava ao ouvir uma prdica que a todos fazia derramar lgrimas:respondeu: "No sou da parquia". Com mais razo se aplica ao riso o que essehomem pensava das lgrimas. Por mais franco que se suponha o riso, ele ocultauma segunda inteno de acordo, diria eu quase de cumplicidade, com outrosgalhofeiros, reais ou imaginrios. J se observou inmeras vezes que o riso doespectador, no teatro, tanto maior quanto mais cheia esteja a sala. Por outrolado, j no se notou que muitos efeitos cmicos so intraduzveis de uma lnguapara outra, relativos, pois, aos costumes e s idias de certa sociedade?Contudo, por no se ter compreendido a importncia desse duplo fato, viu-se nocmico simples curiosidade na qual o esprito se diverte, e no riso em si umfenmeno extico, isolado, sem relao com o restante da atividade humana.Da essas definies tendentes a fazer do cmico uma relao abstrata,

  • percebida pelo esprito entre idias: "contraste intelectual", "absurdo sensvel"etc., as quais, mesmo que conviessem realmente a todas as formas decomicidade, no nos explicariam absolutamente por que o cmico nos faz rir. Defato, como acontece que essa relao terica especfica, to logo percebida, nosencolha, nos dilate, nos sacuda, ao passo que todas as demais deixam o nossocorpo indiferente? No enfocaremos o problema por esse aspecto. Paracompreender o riso, impe-se coloc-lo no seu ambiente natural, que asociedade; impe-se sobretudo determinar-lhe a funo til, que uma funosocial. Digamo-lo desde j: essa ser a idia diretriz de todas as nossas reflexes.O riso deve corresponder a certas exigncias da vida em comum. O riso deve teruma significao social.

    Assinalemos nitidamente o ponto a que convergem essas trsobservaes preliminares. Ao que parece, o cmico surgir quando homensreunidos em grupo dirijam sua ateno a um deles, calando a sensibilidade eexercendo to-s a inteligncia. Ora, que ponto em especial esse ao qualdever dirigir-se a ateno deles? A que se aplicar, no caso, a inteligncia?Responder a essas questes j ser circunscrever claramente o problema.Tornam-se, porm, indispensveis alguns exemplos.

    II

    Algum, a correr pela rua, tropea e cai: os transeuntes riem. No se ririadele, acho eu, caso se pudesse supor que de repente lhe veio a vontade desentar-se no cho. Ri-se porque a pessoa sentou-se sem querer. No , pois, amudana brusca de atitude o que causa riso, mas o que h de involuntrio namudana, o desajeitamento. Talvez houvesse uma pedra no caminho. Erapreciso mudar o passo ou contornar o obstculo. Mas por falta de agilidade, pordesvio ou obstinao do corpo, por certo efeito de rigidez ou de velocidadeadquiridas, os msculos continuaram realizando o mesmo movimento, quandoas circunstncias exigiam coisa diferente. Por isso a pessoa caiu, e disso que ospassantes riram.

  • Vejamos agora o caso de uma pessoa que se empenha em suaspequenas ocupaes com uma regularidade matemtica, e cujos objetospessoais tenham sido baralhados por um brincalho: mete a pena no tinteiro esai cola; acredita sentar-se numa cadeira slida e cai estatelada no cho; enfim,age sem propsito ou o que faz d em nada, sempre em conseqncia de umritmo adquirido. O hbito imprimiu certo impulso. Seria preciso deter omovimento ou dar-lhe outro rumo. Mas, em vez disso, a pessoa continua emlinha reta. A vtima dessa brincadeira est, pois, em situao anloga docorredor que cai. O caso cmico pela mesma razo. O risvel em ambas assituaes certa rigidez mecnica onde deveria haver maleabilidade atenta e aflexibilidade viva de uma pessoa. A nica diferena nos dois casos que oprimeiro deu-se espontaneamente, enquanto o segundo foi produzidoartificialmente. No primeiro caso, o transeunte apenas observava; no segundo, obrincalho experimenta.

    Entretanto, nos dois casos, uma circunstncia exterior determinou oefeito. O cmico , pois, casual; permanece, por assim dizer, na superfcie dapessoa. Como se interiorizar? Para se re-velar a rigidez mecnica, ser precisono mais haver um obstculo anteposto pessoa pelo acaso das circunstnciasou pela galhofa de algum. Ser preciso que venha do seu prprio fundo, poruma operao natural, o ensejo incessantemente renovado de se manifestarexteriormente. Imaginemos, pois, um esprito que seja como uma melodia ematraso quanto ao acompanhamento, sempre em relao ao que acaba de fazer,mas nunca em relao ao que est fazendo. Imaginemos certa fixidez natural dossentidos e da inteligncia, pela qual continuemos a ver o que no mais est vista, ouvir o que j no soa, dizer o que j no convm, enfim, adaptar-se acerta situao passada e imaginria quando nos deveramos ajustar realidadeatual. Nesse caso, o cmico se instalar em ns mesmos: teremos dado todos osingredientes do cmico: matria e forma, causa e ocasio. Surpreender que odesviado (pois esse o personagem que acabamos de descrever) tenha em geralnutrido o chiste dos autores cmicos? Ao deparar com esse tipo humano, LaBruyre compreendeu, ao analis-lo, que dispunha da frmula para a fabricaoem massa de efeitos cmicos. E abusou dela. Descreveu Mnalque extensa eminuciosamente, indo e vindo, insistindo, demorando-se exageradamente. Afacilidade do tema o retinha. Com o desvio, de fato, talvez no estejamos na

  • fonte propriamente do cmico, mas sem dvida em certa corrente de fatos eidias que provm diretamente dela. Estamos com certeza numa das grandestendncias naturais do riso.

    Por sua vez, o efeito do desvio pode reforar-se. Verifica-se uma lei geralda qual acabamos de descobrir uma primeira aplicao e que formularemos doseguinte modo: quando certo efeito cmico derivar de certa causa, quanto maisnatural a julgarmos tanto maior nos parecer o efeito cmico. Rimos j do desvioque se nos apresenta como simples fato. Mais risvel ser o desvio que virmossurgir e aumentar diante de ns, cuja origem conhecermos e cuja histriapudermos reconstituir. Tomando um exemplo preciso, suponhamos que algumtenha como leitura habitual os romances de amor ou de cavalaria. Atrado efascinado pelos seus personagens, aos poucos desliga para eles o seupensamento e a sua vontade. Essa pessoa passa a rondar entre ns como umsonmbulo. Suas aes so desvios. S que esses desvios ligam-se a uma causaconhecida e positiva. No se trata de ausncias pura e simplesmente; eles seexplicam pela presena da pessoa num ambiente bem definido, emboraimaginrio. Sem dvida, uma queda sempre uma queda, mas uma coisa cairnum poo porque se andava no mundo da lua e outra cair porque se olhavapara outro lugar. Perfeito exemplo do mundo da lua o caso de D. Quixote.Quanta profundidade de cmico no que ele tem de romanesco e de espritofantasioso! E, no entanto, se recorrermos noo de desvio que deve servir deintermedirio, veremos essa comicidade profundssima converter-se no cmicomais superficial. De fato, esses espritos quimricos, esses exaltados, essesloucos to estranhamente sensatos nos fazem rir tangendo em ns as mesmascordas e acionando o mesmo mecanismo interior como a vtima da brincadeirano escritrio ou o transeunte que escorrega e cai na rua. Homens como D.Quixote so tambm corredores que caem, e ingnuos a quem se engana,corredores do ideal que tropeam em realidades, sonhadores cndidos que avida maliciosamente espreita. Mas sobretudo grandes desviados, com umasuperioridade sobre os demais, dado que o seu desvio sistemtico, organizadoem torno de uma idia central porque as suas desventuras esto tambmligadas, bem ligadas pela lgica inexorvel que a realidade aplica para corrigir osonho e porque provocam em torno de si, por efeitos capazes de se somaremsempre uns aos outros, um riso cada vez maior.

  • Sigamos mais alm. Acaso o que a idia fixa representa para o espritono ser o que certos vcios representam para o carter? Seja por constituionatural ou contrao da vontade, o vcio assemelha-se muitas vezes a certacurvatura da alma. Sem dvida, existem vcios nos quais a alma se instalaprofundamente com tudo o que carrega em si de fora fecundante, os quais elaarrasta, vivificados, num crculo mvel de transfiguraes. Vcios como esses sotrgicos. Mas o vcio que nos tornar cmicos , pelo contrrio, aquele que senos traz de fora, como um esquema completo no qual nos inserimos. Ele impea sua rigidez, em vez de valer-se da nossa flexibilidade. No o complicamos: pelocontrrio, ele que nos simplifica. Nisso parece residir como procuraremosmostrar em pormenor na ltima parte deste estudo a diferena essencialentre a comdia e o drama. Um drama, mesmo quando nos comove com paixesou vcios que tm nome, encarna-os to bem no personagem a ponto deesquecermos os seus nomes, de se esfumarem as suas caractersticas gerais eno mais pensarmos neles, mas na pessoa que os absorve; por isso, s um nomeprprio adequado pea dramtica. J, pelo contrrio, muitas comdias tmcomo ttulo um substantivo comum: O Avarento, O Jogador etc. Se peo ao leitorpara imaginar uma pea que se possa chamar O Ciumento, por exemplo,acorrer ao esprito Sganarelle ou George Dandin, mas no Otelo; O Ciumento spode ser ttulo de comdia. Isso porque o vcio cmico, por mais que orelacionemos s pessoas, ainda assim conserva a sua existncia independente esimples; ele continua a ser o personagem central, invisvel e presente, do qualso dependentes os personagens de carne e osso no palco. Por vezes ele sediverte em arrastar com o seu peso e os fazer rolar com ele numa rampa. Porm,o mais das vezes, os tomar como instrumentos ou os manobrar comofantoches. Examinemos de perto: veremos que a arte do autor cmico consisteem nos dar a conhecer to bem esse vcio, e introduzir o espectador a tal pontona sua intimidade, que acabemos por obter dele alguns fios dos bonecos que elemaneja; passamos ento tambm a manej-los, e uma parte do nosso prazeradvm disso. Portanto, ainda nesse caso, precisamente uma espcie deautomatismo o que nos faz rir. E trata-se ainda de um automatismo muitoprximo do simples desvio. Para nos convencermos disso, bastar observar queum personagem cmico o , em geral, na exata medida em que se ignore comotal. O cmico inconsciente. Como se utilizasse ao inverso o anel de Giges, elese torna invisvel a si mesmo ao tornar-se visvel a todos. Um personagem de

  • tragdia em nada alterar a sua conduta por saber como a julgamos; ele poderperseverar, mesmo com a plena conscincia do que , mesmo com o sentimentobem ntido do horror que nos inspira. Mas um defeito ridculo, uma vez se sintaridculo, procura modificar-se, pelo menos exteriormente. Se Harpagon nos visserir de sua avareza, no digo que se corrigisse, mas no-la exibiria menos, ou entono-la mostraria de outro modo. Podemos concluir desde j que nesse sentidosobretudo que o riso "castiga os costumes". Obriga-nos a cuidarimediatamente de parecer o que deveramos ser, o que um dia acabaremos porser verdadeiramente.

    Por ora no vale a pena levar mais alm esta anlise. Do corredor que caiao ingnuo que se engana, da mistificao ao desvio, deste exaltao, e destas diversas deformaes da vontade e do carter, acabamos de acompanhar oprogresso pelo qual o cmico se instala cada vez mais profundamente na pessoa,sem no entanto deixar de nos lembrar, em suas manifestaes mais sutis, algodo que percebamos em suas formas mais toscas, isto , certo efeito deautomatismo e rigidez. Podemos agora obter uma primeira perspectiva, tomadabem de longe, sem dvida, vaga e confusa ainda, sobre o aspecto risvel danatureza humana e sobre a funo comum do riso.

    O que a vida e a sociedade exigem de cada um de ns certa atenoconstantemente desperta, que vislumbre os contornos da situao presente, etambm certa elasticidade de corpo e de esprito, que permitam adaptar-nos aela. Tenso e elasticidade, eis as duas foras reciprocamente complementaresque a vida pe em jogo. Acaso faltam gravemente ao corpo, e da os acidentesde todos os tipos, as debilidades, a doena. Faltaro ao esprito, e da todos osgraus da indigncia psicolgica e todas as variedades da loucura. Faltaro aocarter, e da termos os desajustes profundos vida social, fontes de misria, svezes ensejo do crime. Uma vez afastadas essas inferioridades que atingem oaspecto srio da existncia (e elas tendem a eliminar-se por si mesmas no queveio a se chamar a luta pela vida), a pessoa pode viver, e conviver com outraspessoas. Contudo, a sociedade exige algo mais ainda. No basta viver; importaviver bem. Agora o que ela tem a temer que cada um de ns, satisfeito ematentar para o que respeita ao essencial da vida, se deixe ir quanto ao mais peloautomatismo fcil dos hbitos adquiridos. O que tambm deve recear que osmembros de que ela se compe, em vez de terem por alvo um equilbrio cada

  • vez mais delicado de vontades a inserir-se cada vez com maior exatido umasnas outras, se contentem com o respeitar as condies fundamentais desseequilbrio: um acordo prvio entre as pessoas no lhe basta, mas a sociedade hde querer um esforo constante de adaptao recproca. Toda rigidez do carter,do esprito e mesmo do corpo, ser, pois, suspeita sociedade, por constituirindcio possvel de uma atividade que adormece, e tambm de uma atividadeque se isola, tendendo a se afastar do centro comum em torno do qual asociedade gravita; em suma, indcio de uma excentricidade. E, no entanto, asociedade no pode intervir no caso por uma represso material, dado que no atingida de modo material. Ela est diante de algo que a inquieta, mas a ttulo desintomas apenas simplesmente ameaa, no mximo um gesto. E, portanto,por um simples gesto ela reagir. O riso deve ser algo desse gnero: uma espciede gesto social. Pelo temor que o riso inspira, reprime as excentricidades,mantm constantemente despertas e em contato mtuo certas atividades deordem acessria que correriam o risco de isolar-se e adormecer; suaviza, enfim,tudo o que puder restar de rigidez mecnica na superfcie do corpo social.

    O riso no advm da esttica pura, dado que tem por fim (inconsciente emesmo imoralmente em muitos casos) um objetivo til de aprimoramento geral.Resta, no entanto, alguma coisa de esttico, pois o cmico surge no momentopreciso no qual a sociedade e a pessoa, isentas da preocupao com a suaconservao, comeam a tratar-se como obras de arte. Em resumo, se traarmosum crculo em torno das aes e intenes que comprometem a vida individualou social e que se castigam a si mesmas por suas conseqncias naturais, restarainda do lado de fora desse terreno de emoo e luta, numa zona neutra na qualo homem se apresenta simplesmente como espetculo ao homem, certa rigidezdo corpo, do esprito e do carter, que a sociedade quereria ainda eliminar paraobter dos seus membros a maior elasticidade e a mais alta sociabilidadepossveis. Essa rigidez o cmico, e a correo dela o riso.

    Convm, no entanto, nos precavermos de exigir dessa simples frmulauma elucidao imediata de todos os efeitos cmicos. Ela se aplica sem dvida acasos elementares, tericos, perfeitos, nos quais o cmico est isento deimpurezas. Mas queremos tom-la sobretudo como Leitmotiv (fio condutor) detodas as nossas explicaes. Deveremos pensar nela sempre, sem porm nosdeter muito como um bom esgrimista deve pensar nos movimentos

  • descontnuos da lio ao mesmo tempo que o seu corpo se empenha nacontinuidade do ataque. Ora, a prpria continuidade das formas cmicas quecuidamos de restabelecer, reatando o fio que vai desde as graas do palhao aosartifcios mais requintados da comdia, seguindo esse fio nos desvios no raroimprevistos, parando aqui e ali para contemplar em torno de ns, e subindo,afinal, se possvel, ao ponto em que o fio est pendente e onde talvez nos surja arelao geral da arte com a vida pois o cmico hesita entre uma e outra.

    III

    Comecemos pelo mais simples. Que vem a ser uma fisionomia cmica?De onde vem uma expresso ridcula do rosto? E que distingue, no caso, ocmico do feio? Assim formulada, a questo s pode ser resolvidaarbitrariamente. Por mais simples que parea, j por demais sutil para sedeixar tratar de frente. Deveramos comear por definir a feira, e depoisprocurar o que o cmico lhe acrescenta: ora, a feira no mais fcil de analisarque a beleza. Mas tentaremos um artifcio que nos servir freqentemente.Adensaremos o problema, por assim dizer, aumentando o efeito at tornarvisvel a causa. Agravemos, pois, a feira, levando-a at a deformidade, evejamos como se passar do disforme ao ridculo.

    incontestvel que certas deformidades tm sobre as demais o tristeprivilgio de poder, em certos casos, provocar o riso. Desnecessrio entrar emmincias. S pedimos ao leitor que passe em revista as deformidades diversas, edepois as divida em dois grupos: por um lado, as que a natureza orientou para orisvel, e, por outro, as que dele se afastam definitivamente. Acreditamos quechegar a extrair a lei seguinte: Pode tornar-se cmica toda deformidade queuma pessoa bem conformada consiga imitar.

    Nesse caso, o corcunda no parece uma pessoa que se sustenta mal? Odorso dele teria adquirido um mau hbito. Por obstinao fsica, por rigidez,persistiria no mau hbito. Consideremos apenas com os olhos. No reflitamos esobretudo no raciocinemos. Apaguemos o adquirido; busquemos a impresso

  • pura, imediata, original. Ser precisamente uma viso desse gnero quehavemos de obter. Teremos diante de ns uma pessoa que quis se enrijecer emcerta atitude, e caricaturar o seu corpo, se pudssemos falar assim.

    Voltemos agora ao ponto que queramos esclarecer. Ao atenuar adeformidade risvel, deveremos obter a feira cmica. Portanto, uma expressorisvel do rosto ser a que nos faa pensar em algo de rgido, retesado, por assimdizer, na mobilidade normal da fisionomia. Veremos, pois, um cacoeteconsolidado, uma careta permanente. Dir-se- que toda expresso habitual dorosto, seja ela graciosa e bela, nos d essa mesma impresso de um hbitoadquirido para sempre? Mas cabe aqui uma distino importante. Quandofalamos de uma beleza, e mesmo de uma feira expressivas, quando dizemosque certo rosto tem expresso, trata-se de uma expresso talvez estvel, masque adivinhamos mvel. Ela conserva, em sua fixidez, uma indeciso em que seesboam confusamente todos os matizes possveis do estado de alma queexprime: como as clidas promessas do dia pressentidas em certas manhstransparentes de primavera. Mas uma expresso cmica da face nada prometealm do que realmente mostra. uma careta peculiar e definitiva. Dir-se-ia quetoda a vida moral da pessoa cristalizou-se nesse sistema. E essa a razo pelaqual um rosto tanto mais cmico quanto melhor nos sugere a idia de algumaao simples, mecnica, na qual a personalidade esteja encarnada para sempre.H rostos que parecem estar chorando sem parar, outros que parecem estarrindo ou assoviando e outros ainda que parecem soprar eternamente numtrompete imaginrio. So as faces mais cmicas de todas. Tambm nesse caso severifica a lei segundo a qual o efeito tanto mais cmico quanto lheexpliquemos a causa mais naturalmente. Automatismo, rigidez, hbito adquiridoe conservado, so os traos pelos quais uma fisionomia nos causa riso. Mas esseefeito ganha em intensidade quando podemos atribuir a esses caracteres umacausa profunda, e relacion-los a certo desvio fundamental da pessoa, como se aalma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma aosimples.

    Teremos ento compreendido a comicidade da caricatura. Por maisregular que seja uma fisionomia, por mais harmoniosas que suponhamos as suaslinhas, por mais flexveis os movimentos, jamais o equilbrio dela serabsolutamente perfeito. Discerniremos sempre a indicao de um cacoete que

  • se insinua, o esboo de uma possvel careta, enfim, certa deformao em que sedesenhe de preferncia a natureza. A arte do caricaturista consiste em captaresse movimento s vezes imperceptvel, e em torn-lo visvel a todos os olhosmediante ampliao dele. Ele faz com que os seus modelos careteiem como sefossem ao extremo de sua careta. Ele adivinha, sob as harmonias superficiais daforma, as revoltas profundas da matria. Efetua despropores e deformaesque poderiam existir na natureza se ela pudesse ter vontade, mas que nopuderam concretizar-se, reprimidas que foram por uma fora melhor. Acaricatura, que tem algo de diablico, ressalta o demnio que venceu o anjo.Trata-se sem dvida de uma arte que exagera, e, no entanto, definimo-la muitomal ao lhe atribuirmos por objetivo uma exagerao, porque existem caricaturasmais verossmeis que retratos, caricaturas que mal se percebem, e inversamentepodemos exagerar ao extremo sem obter um verdadeiro efeito de caricatura.Para parecer cmico, preciso que o exagero no parea ser o objetivo, massimples meio de que se vale o desenhista para tornar manifestas aos nossosolhos as contores que ele percebe se insinuarem na natureza. O que importa essa contoro; ela que interessa. E por isso iremos procur-la at noselementos da fisionomia menos suscetveis de movimento, como na curvaturade um nariz e mesmo na forma de uma orelha. Porque a forma para ns oesboo de um movimento. O caricaturista que altera a dimenso de um nariz,respeitando-lhe a frmula, alongando-o, por exemplo, no mesmo sentido emque o alongou a natureza, de fato faz esse nariz caretear: da por diante ooriginal nos parecer, por sua vez, ter querido se alongar e fazer a careta. Nessesentido, poderamos dizer que a prpria natureza no raro consegue o xito docaricaturista. No movimento pelo qual rasgou certa boca, encolheu certo queixo,avolumou uma bochecha, parece que conseguiu ir ao extremo da sua careta,iludindo a vigilncia moderadora de uma fora mais razovel. Rimos ento de umrosto que por si mesmo, por assim dizer, a sua prpria caricatura.

    Em resumo, seja qual for a doutrina que nossa razo adote, nossaimaginao tem sua filosofia bem decretada: em toda forma humana elapercebe o esforo de uma alma que modela a matria, alma infinitamentemalevel, eternamente mvel, isenta da gravidade por no ser a terra que aatrai. Essa alma comunica algo de sua leveza alada ao corpo que anima: aimaterialidade assim transferida matria o que se chama de graa. Mas a

  • matria resiste e se obstina. Furta-se a ela, e tudo faria para converter suaprpria inrcia e degenerar em automatismo a atividade sempre desperta desseprincpio superior. Por ela esses movimentos inteligentemente variados do corposeriam fixados em cacoetes insensatamente adquiridos, solidificadas em caretasdurveis as expresses cambiantes da fisionomia, imprimindo, enfim, a toda apessoa uma atitude que lhe d a impresso de estar afundada e absorta namaterialidade de alguma ocupao mecnica em vez de se renovar sem cessarao contato de um ideal vivo. Onde a matria consiga assim adensar exterior-mente a vida da alma, fixando-lhe o movimento, contrariando-lhe enfim a graa,ela obtm do corpo um efeito cmico. Se quisssemos, pois, definir aqui ocmico por comparao com o seu contrrio, o contraste deveria ser mais com agraa do que com a beleza. Trata-se mais de rigidez que de feira.

    IV

    Passemos agora do cmico das formas ao dos gestos e movimentos.Enunciemos de pronto a lei que nos parece governar os fatos desse gnero. Elase deduz sem dificuldade das consideraes que acabamos de fazer.

    Atitudes, gestos e movimentos do corpo humano so risveis na exatamedida em que esse corpo nos leva a pensar num simples mecanismo.

    No acompanharemos essa lei no pormenor de suas aplicaesimediatas. Para a comprovar diretamente, bastar estudar de perto a obra dosdesenhistas cmicos, desprezando o aspecto caricatural, do qual demos umaexplicao especial, e lhe descartando tambm a parte cmica que no inerente ao prprio desenho. Porque uma coisa certa, o cmico do desenho quase sempre uma comicidade de emprstimo, cujos nus principais cabem literatura. Queremos dizer que o desenhista pode tambm ser autor satrico, atmesmo de teatro burlesco, e nesse caso se ri muito menos dos prpriosdesenhos que da stira ou da cena de comdia representada no palco. Mas seatentarmos ao desenho com a firme vontade de s pensar nele, verificaremos,segundo penso, que o desenho em geral cmico na proporo da nitidez, e

  • tambm da discrio, mediante as quais nos faa ver no ser humano umfantoche articulado. preciso que essa sugesto seja ntida e que percebamosclaramente, como por transparncia, um mecanismo desmontvel no interior dapessoa. Mas preciso tambm que a sugesto seja discreta, e que conjunto dapessoa, na qual cada membro foi retesado como pea mecnica, continue a nosdar a impresso de um ser vivente. O efeito cmico tanto mais flagrante, etanto mais refinada a arte do desenhista quanto essas duas imagens a de umapessoa e a de um mecanismo estiverem o mais rigorosamente inseridas umana outra. E a originalidade de um desenhista cmico poderia definir-se pelognero particular de vida que comunique a um simples boneco.

    Mas deixaremos de lado as aplicaes imediatas do princpio e sinsistiremos aqui em conseqncias mais remotas. A vi-so de um mecanismoque funcione no interior da pessoa coisa que se manifesta atravs de um sem-nmero de efeitos divertidos; , porm, no mais das vezes, uma viso fugaz, quelogo se perde no riso que suscita. Para fix-la, impe-se um esforo de anlise ereflexo.

    o caso, por exemplo, num orador, do gesto que rivaliza com a fala.Ciumento da fala, o gesto corre atrs do pensamento e quer tambm servir deintrprete. Que seja; mas limitando-se ento a acompanhar o pensamento nopormenor das suas evolues. A idia coisa que se avoluma, brota, floresce,amadurece, do comeo ao fim do discurso. Jamais se detm e jamais se repete.Ela precisa mudar a cada instante, porque no mudar seria deixar de viver. Ogesto, pois, que se anime como a idia! Aceite a lei fundamental da vida que jamais se repetir! Mas eis que certo movimento do brao ou da cabea, sempreo mesmo, me parece voltar periodicamente. Se o observo, se basta para medesviar, se espero a sua passagem e se ele chega quando o espero,involuntariamente rirei. Por que isso? Porque tenho agora diante de mim ummecanismo que funciona automaticamente. J no mais a vida, masautomatismo instalado na vida e imitando a vida. a comicidade.

    Essa a razo tambm pela qual gestos dos quais no imaginamos rir setornam risveis quando outra pessoa os imita. Buscaram-se explicaes muitocomplicadas para esse fato simplssimo. Veremos que nossos estados de espritomudam de instante a instante, por menos que reflitamos nisso, e que, se nossos

  • gestos acompanhassem fielmente nossos movimentos interiores, se vivessemcomo vivemos, jamais se repetiriam: por isso, seriam incapazes de qualquerimitao. Portanto, s comeamos a ser imitveis quando deixamos de ser nsmesmos. Isto , s se pode imitar dos nossos gestos o que eles tm demecanicamente uni-forme e, por isso mesmo, de estranho nossapersonalidade viva. Imitar algum destacar a parte do automatismo que eledeixou introduzir-se em sua pessoa. pois, por definio mesmo, torn-locmico. No surpreende, portanto, que a imitao cause riso.

    Mas se a imitao dos gestos j risvel por si mesma, mais ainda setornar quando se aplicar a desvi-los, sem os deformar, no sentido de algumaoperao mecnica, como a de serrar madeira, por exemplo, bater numabigorna, ou puxar incansavelmente a corda de um sino imaginrio. No que avulgaridade seja a essncia do cmico (embora de certo modo faa parte dele)., antes, que o gesto apreendido parece mais francamente maquinal quando opodemos ligar a certa operao simples, como se ele fosse mecnico depropsito. Sugerir essa interpretao mecnica deve ser um dos processosprediletos da pardia. Acabamos de deduzi-la a priori, mas sem dvida os bufesh muito tm intuio dela.

    Soluciona-se assim o pequeno enigma proposto por Pascal a certa alturados Pensamentos: "Dois rostos semelhantes, cada um dos quais por si no faz rir,juntos fazem rir por sua semelhana." Por nossa vez diramos: "Os gestos de umorador, cada um dos quais no risvel em particular, por sua repetio fazemrir." que a vida bem ativa no deveria repetir-se. Onde haja repetio ousemelhana completa, pressentimos o mecnico funcionando por trs do vivo.Que o leitor analise a impresso obtida diante de dois rostos muito parecidos:ver que pensa em dois exemplares obtidos de um mesmo molde, ou em duasimpresses de um mesmo carimbo, ou em duas reprodues de um mesmoclich, em suma, num processo de fabricao industrial. No caso, a verdadeiracausa do riso esse desvio da vida na direo da mecnica.

    E o riso ser ainda mais intenso caso no se apresentem cena apenasdois personagens, como no exemplo de Pascal, mas vrios, o maior nmeropossvel, todos semelhantes entre si, que vo e vem, danam, se agitam juntos,assumindo ao mesmo tempo as mesmas atitudes, gesticulando do mesmo

  • modo. Ocorre-nos ento distintamente a idia de marionetes. Cordis invisveisparecem ligar braos a braos, pernas a pernas, cada msculo de uma fisionomiaao msculo anlogo da outra: a inflexibilidade da correspondncia faz com que afragilidade das formas se solidifique diante de ns e que tudo se enrijea comomecanismo. Tal o artifcio desse divertimento um tanto tosco. Os seusexecutantes talvez no tenham lido Pascal, mas certamente levam aos extremosuma idia sugerida no texto de Pascal. E se a causa do riso a vista de um efeitomecnico no segundo caso, ela devia estar j mais sutilmente no primeiro.

    Prosseguindo agora nessa via, percebemos confusamente conseqnciascada vez mais remotas, cada vez mais importantes tambm, da lei que acabamosde enunciar. Pressentimos vises ainda mais fugazes de efeitos mecnicos,sugeridas pelas aes complexas do homem e no mais simplesmente por seusgestos. Adivinhamos que os artifcios usuais da comdia, a repetio peridicade uma expresso ou de uma cena, a interveno simtrica dos papis, odesenrolar geomtrico das situaes, e ainda muitos outros truques, poderoextrair a sua fora cmica da mesma fonte. Nesse caso, a arte do teatro burlescoconsistiria talvez em nos apresentar uma articulao visivelmente mecnica deacontecimentos humanos, ao mesmo tempo conservando deles o aspectoexterior da semelhana, isto , a maleabilidade aparente da vida. Noantecipemos, porm, resultados que o progresso da anlise dever produzir demodo metdico.

    V

    Antes de ir mais alm, detenhamo-nos um momento e olhemos emtorno de ns. J o havamos insinuado desde o incio deste trabalho: seriaquimrico pretender extrair todos os efeitos cmicos de uma s frmula singela.De fato, a frmula existe, em certo sentido; contudo, no se desenvolveregularmente. Isto , a deduo deve deter-se vez por outra em certos efeitosdominantes, cada um deles parecendo modelos em torno dos quais se arranjam,em crculo, novos efeitos semelhantes. Estes ltimos no se deduzem da

  • frmula, mas so cmicos pelo parentesco com os efeitos originrios de quedecorrem. Citando ainda uma vez Pascal, definiremos de bom grado aqui amarcha do esprito pela curva que esse gemetra estudou sob o nome de roleta,isto , a curva descrita por um ponto da circunferncia de uma roda quando aviatura avana em linha reta: esse ponto gira como a roda, mas avana tambmcomo a viatura. Ou ento se pense numa estrada florestal, com cruzes ouencruzilhadas que a balizam a certas distncias: em cada encruzilhada iremosgirar em torno da cruz, faremos um reconhecimento nas vias que se abrem, apso que voltaremos direo original. Estamos numa dessas encruzilhadas. Omecnico calcado no vivo, eis uma cruz onde preciso se deter, imagem centraldonde a imaginao irradia em direes divergentes. Que direes so essas?Entre elas, distinguimos trs principais. Seguiremos uma aps outra, e depoisretomaremos o nosso caminho em linha reta.

    I. Em primeiro lugar, essa vista do mecnico e do vivo inseridos um nooutro faz com que nos inclinemos imagem mais vaga de alguma rigidezqualquer aplicada mobilidade da vida, tentando desajeitadamenteacompanhar-lhe as linhas e lhe imitar a maleabilidade. Adivinha-se ento oquanto ser fcil um vesturio tornar-se ridculo. Quase se poderia dizer quetoda moda risvel por algum aspecto. S que, quando se trata da moda vigente,estamos de tal maneira habituados a ela que o vesturio parece adequado aquem o usa. Nossa imaginao no se desliga dele. No nos ocorre a idia decontrastar a rigidez inerte do envoltrio com a flexibilidade viva do objetoenvolvido. No caso, pois, o cmico fica em estado latente. No mximo,conseguir aparecer quando a incompatibilidade natural for to profunda entreo envoltrio e o envolvido que uma comparao mesmo secular no consigaconsolidar a unio de ambos: o caso da cartola, por exemplo. Mas suponhamosuma pessoa trajando-se hoje moda antiga: nossa ateno se dirige roupa, eno a distinguimos absolutamente da pessoa, e dizemos que a pessoa se disfara(como se todo traje no disfarasse), e o aspecto risvel da moda passa dasombra luz.

    A esta altura comeamos a entrever algumas das grandes dificuldades depormenor suscitadas pelo problema da comicidade. Uma das razes que maissuscitaram teorias errneas ou insuficientes do riso que muitas coisas socmicas de direito sem o serem de fato. A continuidade do uso abrandou-lhes a

  • virtude cmica. E preciso uma brusca interrupo, uma ruptura com a moda,para que essa virtude redesperte. Acredita-se ento que essa ruptura faz nascero cmico, quando de fato ela se limita a nos fazer observ-la. Haver quemexplique o riso pela surpresa, pelo contraste etc., definies que se aplicariam aum sem-nmero de casos nos quais no temos vontade alguma de rir. A verdadeno to simples.

    Chegamos, porm, noo de disfarce. Como acabamos de mostrar, elapossui uma propriedade regular: o poder de fazer rir. Valer a pena investigarcomo essa noo utiliza esse privilgio.

    Por que nos rimos de uma cabeleira que passou do castanho ao ruivo?Donde vem a comicidade de um nariz rubicundo? E por que se ri de um tiporacial diferente do nosso? Trata-se de questes embaraosas, ao que parece,pois psiclogos do porte de Hecker, Kraepelin e Lipps ocuparam-se delasalternadamente e lhes deram respostas diferentes. Entretanto, no sei se um diaforam solucionadas na minha presena, na rua, por um simples cocheiro, quechamava de "mal lavado" o passageiro negro sentado na sua viatura. Mal lavado!um rosto negro seria, pois, para a nossa imaginao uma face respingada detinta ou fuligem. E, por conseguinte, um nariz vermelho s pode ser um nariz noqual se passou uma camada de vermelho. Vemos ento que o disfarcetransferiu um pouco da sua virtude cmica a casos em que no se trata dedisfarce, mas onde poderia haver disfarce. Vimos, h pouco, que o vesturiohabitual, por mais distinto que seja da pessoa, nos parece identificado com ela,porque est-vamos acostumados a v-lo. Mas neste caso agora, por mais que acolorao negra ou vermelha seja inerente pele, tomamo-la por calcadaartificialmente, porque ela nos surpreende.

    Certamente, da decorre uma nova srie de dificuldades para a teoria docmico. Uma afirmao como esta: "minhas roupas habituais fazem parte domeu corpo" absurda ao ver da razo. No entanto, a imaginao a toma porverdadeira. "Um nariz vermelho um nariz pintado", "um negro um brancodisfarado", so tambm absurdos para a razo que raciocina, mas verdadescertssimas para a simples imaginao. Existe, pois, uma lgica da imaginaoque no a lgica da razo, que chega inclusive a contrastar com ela s vezes. E,no entanto, a filosofia ter de consider-la, no apenas para o estudo da

  • comicidade, mas tambm para reflexes da mesma ordem. algo como a lgicado sonho: no o sonho deixado ao capricho da fantasia individual, mas sonhadopor toda a sociedade. Para re-constituda, impe-se um esforo de gneropeculiar, pelo qual se remover a crosta exterior de juzos bem empilhados, e deidias solidamente assentadas, para ver fluir bem no fundo de si mesmo, comoum lenol d'gua subterrneo, certa continuidade fluida de imagens que seinterpenetram. Essa interpenetrao no se d ao acaso, mas obedece a leis, ouantes, a hbitos, que esto para a imaginao como a lgica est para opensamento.

    Acompanhemos, pois, essa lgica da imaginao no caso particular quenos ocupa. A pessoa que se disfara cmica. A pessoa que se acreditedisfarada tambm o . Por extenso, todo disfarce vai se tornar cmico, noapenas o da pessoa, mas o da sociedade tambm, e at mesmo o da natureza.

    Comecemos pela natureza. Ri-se de um co meio pelado, de um canteirode flores artificialmente coloridas, de um bosque cujas rvores esto carregadasde cartazes eleitorais etc. Procuremos a razo; veremos que pensamos numcarnaval. Mas o cmico, no caso, bem atenuado. Est muito longe da fonte. Sequisermos refor-lo, teremos de recorrer prpria fonte, ligar a imagemderivada a do carnaval imagem primitiva, que era, como devemoslembrar, a de uma aparncia mecnica da vida. Uma natureza mecanizadaartificialmente motivo francamente cmico, sobre o qual a fantasia poderexecutar inmeras variaes com a certeza de obter o xito de risada solta.Recordamos a passagem to divertida de Tartarin sur les Alpes (Tartarin nosAlpes), na qual Bompard impe a Tartarin (e, por conseguinte, tambm umpouco ao leitor) a idia de uma Sua forjada como os bastidores do teatro,explorada por uma companhia que mantm cascatas, geleiras e fendas falsas. Omesmo motivo ainda, mas transposto em outra tonalidade, nas Novel Notes dohumorista ingls Jerome K. Jerome. Uma velha castel, no querendo que suasboas obras lhe causem muito transtorno, manda instalar nas proximidades desua casa ateus a serem convertidos, fabricados para ela s pressas, e pessoassbrias a quem se fez passar por beberronas para que ela as curasse de seu vcioetc. H expresses cmicas nas quais esse motivo se encontra em estado deressonncia remota, misturado a certa ingenuidade, sincera ou fingida, que lheserve de acompanhamento. Por exemplo, a frase de uma senhora a quem o

  • astrnomo Cassini convidara para ver um eclipse da lua, e que chegou atrasada:"O Sr. Cassini poderia, por favor, comear de novo para mim?". Ou ainda estaexclamao de um personagem de Gondinet, chegando a certa cidade e sabendoque existe um vulco extinto nos arredores: "Tinham um vulco, e o deixaramextinguir-se!".

    Passemos sociedade. Vivendo nela, vivendo por ela, no podemosdeixar de trat-la como um ser vivo. Risvel ser, pois, a imagem que nos surgir idia de uma sociedade que se disfarce e, por assim dizer, de um carnaval. Ora,essa idia se forma a partir do momento em que percebamos o inerte, o j feito,o confeccionado, enfim, na superfcie da sociedade viva. da rigidez ainda quese trata, e que no se coaduna com a flexibilidade interior da vida. O aspectocerimonioso da vida social dever, portanto, encerrar certa comicidade latente,a qual s espera uma ocasio para exibir-se plenamente. Poderamos dizer queas cerimnias so para o corpo social o que a roupa para o corpo individual:devem a sua seriedade a se identificarem para ns com o objeto srio a que asliga o uso, e perdem essa austeridade no momento em que nossa imaginao asisola dele. Assim, para uma cerimnia tornar-se cmica, basta que nossa atenose concentre no que ela tem de cerimonioso, e esqueamos sua matria, comodizem os filsofos, para s pensar na forma. No vale a pena insistir nesse ponto.Todos sabem com que facilidade o chiste cmico se exerce sobre solenidadessociais de feio contrada, desde uma simples distribuio de prmios a umasesso de tribunal. A tais e quais formas e frmulas correspondem outros tantosesquemas j feitos onde a comicidade se inserir.

    Mas, tambm nesse caso, se h de acentuar o cmico aproximando-o dasua fonte. Da idia de disfarce, que derivada, ser preciso voltar idiaprimitiva, isto , de um mecanismo superposto vida. J a forma compassada detodo cerimonial nos sugere uma imagem desse gnero. Uma vez queesqueamos o objeto austero de uma solenidade ou cerimnia, os que tomamparte dela nos causam o efeito de se moverem no ambiente como marionetes. Amobilidade deles rege-se pela imobilidade de uma frmula. automatismo. Maso automatismo perfeito ser, por exemplo, o do burocrata agindo como simplesmquina, ou ainda a inconscincia de um regulamento administrativo aplicando-se com uma fatalidade inexorvel e tomado por lei da natureza. Anos atrs, umnavio naufragou nas proximidades de Diepe. Alguns passageiros escaparam com

  • grande dificuldade num escaler. Funcionrios da alfndega que partiramcorajosamente em socorro deles comearam por perguntar "se nada tinham adeclarar". Percebo algo de anlogo, embora a idia seja mais sutil, nessa frase decerto deputado ao interpelar um ministro dias depois de um crime cometido naestrada de ferro: "O assassino, aps dar cabo da vtima, teve de saltar do tremno leito da ferrovia, violando regulamentos administrativos."

    Mecanismo inserido na natureza, regulamentao automtica dasociedade, eis, em suma, os dois tipos de efeitos divertidos a que chegamos.Resta-nos, para concluir, combin-los juntos e ver o que resultar.

    O resultado da combinao ser, evidentemente, a idia de umaregulamentao humana impondo-se em lugar das prprias leis da natureza.Vem lembrana a resposta de Sganarelle a Gronte, quando este mandaobservar que o corao est do lado esquerdo e o fgado do lado direito: "Sim,antigamente era assim, mas ns mudamos tudo isso, e praticamos a medicinaagora com um mtodo inteiramente novo." E a conferncia dos dois mdicos doSr. Pourceaugnac: "O raciocnio que o senhor acaba de fazer to sbio e tobelo que impossvel o doente no ser melanclico hipocondraco; se no fosse,deveria tornar-se, pela beleza das coisas que o senhor disse e pela justeza do seuraciocnio." Poderamos multiplicar os exemplos, bastando para isso desfilardiante de ns, um aps outro, todos os mdicos de Molire. Por mais longe queparea ir aqui a fantasia cmica, a realidade encarrega-se s vezes de super-la.Certo filsofo contemporneo, emrito argumentador, a quem se observou queos seus raciocnios irrepreensivelmente deduzidos eram contrariados pelaexperincia, encerrou a discusso com esta singela observao: "A experinciaest errada." A idia de regulamentar administrativamente a vida maisdifundida do que se pensa; natural a seu modo, embora acabemos de obt-lamediante um processo de recomposio. Poderamos dizer que ela nos oferece a

    prpria quintessncia do pedantismo, o qual no passa, no fundo, da artepretendendo superpor-se natureza.

    Assim, em resumo, o mesmo efeito vai sempre se sutilizando, desde aidia de uma mecanizao artificial do corpo humano, se podemos assim dizer,at a de uma substituio qualquer do natural pelo artificial. Uma lgicagradativamente menos rigorosa, que se assemelha cada vez mais dos sonhos,

  • transporta a mesma relao a esferas cada vez mais elevadas, em termossempre mais imateriais; um regulamento administrativo acaba por ser para umalei natural ou moral, por exemplo, o que a roupa feita para o corpo que vive.Das trs direes que devamos seguir, empreendemos a primeira at o fim.Passemos segunda, e vejamos aonde nos conduzir.

    O nosso ponto de partida ainda o mecnico calcado no vivo. Dondeprovinha aqui a comicidade? De que o corpo vivo se endurecia como mquina. Ocorpo vivo nos parecia, pois, dever ser a flexibilidade perfeita, a atividadesempre desperta de um princpio sempre em atuao. Mas essa atividadepertencia realmente mais alma que ao corpo. Ela seria a prpria chama davida, acesa em ns por um princpio superior, e percebida atravs do corpo porum efeito de transparncia. Quando s vemos no corpo graa e flexibilidade, que descartamos o que nele h de pesado, de resistente, de material, enfim;esquecemos a sua materialidade para s pensar na vitalidade, vitalidade quenossa imaginao atribui ao prprio princpio da vida intelectual e moral.Suponhamos, porm, que se chame nossa ateno para essa materialidade docorpo. Suponhamos que, em vez de participar da leveza do princpio que oanima, o corpo no passe a nosso ver de um envoltrio pesado e embaraante,lastro incmodo que retm na terra uma alma ansiosa de elevar-se do cho.Nesse caso, o corpo se converter para a alma no que a roupa era h pouco parao prprio corpo, isto , certa matria inerte imposta a uma energia viva. E aimpresso de comicidade se produzir desde que tenhamos o sentimento ntidodessa superposio. Te-la-emos sobretudo se nos mostrar a alma incomodadapelas necessidades do corpo por um lado a personalidade moral com a suaenergia inteligentemente variada, e por outro o corpo obtusamente montono,intervindo e interrompendo com a sua obstinao maquinal. Quanto maismesquinhas e uniformemente repetidas essas exigncias do corpo, mais o efeitose far sentir. Trata-se, porm, de uma questo de grau, e a lei geral dessesfenmenos poderia formular-se assim: cmico todo incidente que chame nossaateno para o fsico de uma pessoa estando em causa o moral.

    Por que rimos de um orador que espirra no momento mais dramtico doseu discurso? Donde provm a comicidade da seguinte frase de uma orao

  • fnebre, citada por um filsofo alemo: "Ele era virtuoso e gordssimo"?** Agraa advm de que nossa ateno bruscamente transportada da alma para ocorpo. Exemplos como esse so inmeros na vida quotidiana. Mas quem noqueira dar-se ao trabalho de procur-los s ter de abrir ao acaso um volume deLabiche. Aqui e ali vai encontrar algum efeito desse gnero. Ora um oradorcujos mais belos perodos so cortados pelas pontadas de um dente que di, ora um personagem que jamais toma a palavra sem se interromper para queixar-se dos sapatos muito apertados ou do cinto por demais arrochado etc. Nessesexemplos, a imagem sugerida a de uma pessoa cujo corpo incomoda. Se umapessoa muito gorda risvel, isso se deve a que lembra uma imagem do mesmotipo. E isso mesmo que s vezes torna a timidez um tanto ridcula. O tmidopode dar a impresso de uma pessoa cujo corpo a incomoda, e que procura emvolta e em si um lugar onde o deixar.

    Por isso o poeta trgico tem o cuidado de evitar tudo o que possachamar nossa ateno para a materialidade dos seus heris. Desde que ocorrauma preocupao com o corpo, de temer uma infiltrao cmica. Da os herisde tragdia no beberem, no comerem, no se agasalharem. Inclusive, namedida do possvel, nunca se sentam. Sentar-se no meio de uma fala serialembrar que se tem corpo. Napoleo, que era psiclogo nas horas vagas,observou que se passa da tragdia comdia pelo simples fato de se sentar.Assim se exprime ele sobre o assunto no Journal Indit (Dirio Indito) do BaroGourgaud (trata-se de uma entrevista com a rainha da Prssia aps lena): "Elame recebeu com um tom trgico, como Chimne: Majestade, justia justia!Magdeburgo! E continuava nesse tom que muito me incomodava. Por fim, parafaz-la mudar, pedi-lhe que se sentas-se. Nada interrompe melhor uma cenatrgica; porque, quando se est sentado, a tragdia passa a comdia."

    Ampliemos agora essa imagem: o corpo adiantando-se alma.Obteremos algo de mais geral:a forma querendo impor-se ao fundo, a letraquerendo sobrepor-se ao esprito. No ser essa a idia que a comdia procuranos sugerir quando ridiculariza uma profisso? Na comdia falam o advogado, ojuiz, o mdico, como se sade e justia fossem coisas secundrias, mas sendo

    * D-se aqui um iogo de palavras com a expresso tout rond, que tambm significa, em

    sentido figurado, "franco e decidido". (N. do T.)

  • importante haver mdicos, advogados, juzes, e que as formas exteriores daprofisso sejam escrupulosamente respeitadas. Desse modo, o meio se impe aofim, a forma ao fundo, e no mais a profisso feita para o pblico, mas opblico para a profisso. A preocupao constante com a forma e a aplicaomaquinal das regras criam aqui uma espcie de automatismo profissional,comparvel ao que os hbitos do corpo impem alma, e risvel como ele. Soinmeros os exemplos no teatro. Sem entrar no pormenor das variaesexecutadas sobre esse tema, citemos dois ou trs trechos nos quais o tema porsua vez definido em toda a sua simplicidade: "S temos obrigao de tratar aspessoas dentro das normas", diz Diaforius (Le Malade Imaginaire (O DoenteImaginrio). E Bahis, em L'Amour Mdecin (O Amor Mdico):" prefervelmorrer segundo as nor-mas a escapar contra as normas." "Devemos sempreconservar as formalidades, acontea o que acontecer", dizia j Desfonandrs, namesma comdia. E o seu confrade Toms lhe dava razo: "Um homem mortono passa de um homem morto, mas uma formalidade desprezada causaenorme mal a todo o corpo mdico." A expresso de Brid'oison, para encerraruma idia um tanto diferente tambm significativa: "Ah-a forma, vede bem,ah-a forma. de rir-se de um juiz em casaca curta, que treme s de ver umprocurador de beca. Ah-a forma, ah-a forma."

    Mas aqui se apresenta a primeira aplicao de uma lei que aparecercada vez mais claramente medida que avancemos em nosso trabalho. Quandoo musicista fere certa nota no instrumento, outras surgem por si mesmas,menos sonoras que a primeira, ligadas a ela por certas relaes definidas, e quelhe imprimem o seu timbre ao vibrarem junto com ela: so, como se diz emfsica, os harmnicos do som fundamental. No ser o caso de que a fantasiacmica, at em suas invenes mais extravagantes, obedea a uma lei do mesmognero? Consideremos, por exemplo, esta nota cmica: a forma querendosobrepor-se ao fundo. Se nossas anlises forem exatas, ela deve ter porharmnico o seguinte: o corpo incomodando o esprito, o corpo adiantando-seao esprito. Portanto, dada a primeira nota pelo autor cmico, instintiva einvoluntariamente estar acrescentando a ela a segunda. Em outras palavras, elerevestir de certo ridculo fsico o ridculo profissional.

    Quando o juiz Brid'oison entra em cena gaguejando, no certo que nospredispe, pelo prprio gaguejar, a compreender o fenmeno de cristalizao

  • intelectual do qual nos dar o espetculo? Que parentesco secreto poderealmente ligar tal defeito fsico a tal estreitamento moral? Talvez seja que essamquina de julgar nos tenha aparecido ao mesmo tempo como mquina defalar. Seja como for, nenhum outro harmnico poderia complementar melhor osom fundamental.

    Quando Molire nos apresenta os dois mdicos ridculos de O AmorMdico, Bahis e Macroton, faz com que um fale muito lentamente, escandindoas palavras slaba por slaba, ao passo que o outro fala precipitadamente. Omesmo contraste verifica-se entre os dois advogados de Pourceaugnac. Via deregra, no ritmo da fala que reside a singularidade fsica destinada a completaro ridculo profissional. E nas peas em que o autor no indica defeito dessegnero, raro que o ator no procure instintivamente introduzido.

    H, pois, de fato um parentesco natural, naturalmente reconhecido,entre essas duas imagens que aproximamos uma da outra: o esprito seimobilizando em certas formas e o corpo se retesando segundo certos defeitos.Quer a nossa ateno se volte do fundo para a forma, ou do moral para o fsico,a mesma impresso se transmite nossa imaginao nos dois casos; , emambos os casos, o mesmo gnero de comicidade. Tambm aqui quisemos seguirfielmente uma direo natural do movimento da imaginao. Essa direo, comoj vimos, era a segunda das que se nos ofereciam a partir de uma imagemcentral. Resta-nos uma terceira e ltima via, qual passamos agora.

    III. Voltemos, pois, uma ltima vez nossa imagem central: o mecnicocalcado no vivo. O ser vivo de que se tratava aqui era um ser humano, umapessoa. O dispositivo mecnico , pelo contrrio, uma coisa. Portanto, o quefazia rir era a transfigurao momentnea de um personagem em coisa, sequisermos considerar a imagem desse prisma. Passemos ento da idia precisade uma mecnica idia mais vaga de coisa em geral. Teremos uma nova sriede imagens risveis, que se obtero, por assim dizer, esfumando os contornosdas primeiras, e que levaro a esta nova lei: Rimo-nos sempre que uma pessoanos d a impresso de ser uma coisa.

    Rimo-nos do gordo Sancho Pana derrubado numa cobertura e jogadono ar como simples balo. Rimo-nos do Baro de Mnchhausen transformadoem bala de canho e voando pelo espao. Mas talvez certas prticas dos

  • palhaos circenses nos dem uma comprovao mais rigorosa da mesma lei.Devemos certamente eliminar as improvisaes que o palhao faz sobre o temaprincipal, e nos fixarmos apenas ao prprio tema, isto , as atitudes,cambalhotas e movimentos que so propriamente "faccias" na arte do palhao.S em duas ocasies pude observar esse gnero de comicidade em estado puro,e nos dois casos tive a mesma impresso. Da primeira vez, os palhaos iam,vinham, esbarravam uns nos outros, caam e pulavam num ritmouniformemente acelerado, com a visvel inteno de produzir um crescendo. Ecada vez mais a ateno do pblico era atrada para os saltos. Aos poucos,perdia-se de vista tratar-se ali de homens de carne e osso. Era como se fossemembrulhos quaisquer que se deixassem cair e entrechocar-se. Depois a vista seesclarecia. As formas pareciam arredondar-se, os corpos se enrolarem ejuntarem como bola. Por fim aparecia a imagem para a qual toda a cena evolua,sem dvida inconscientemente: bales de borracha, jogados em todos ossentidos uns contra os outros. A segunda cena, mais rude ainda, foi tambminstrutiva. Surgiram dois personagens, de cabea enorme, com o crniototalmente calvo. Traziam compridas varas, e cada um por sua vez deixava osbastes carem na cabea do outro. Tambm nesse caso observava-se umagradao. A cada golpe recebido, os corpos pareciam ficar mais pesados,endurecer-se, invadidos por uma rigidez crescente. A reao vinha cada vez maisretardada, mas cada vez mais lenta e retumbante. Os crnios ressoavamformidavelmente na sala silenciosa. Por fim, rgidos e lentos, retos como letras I,os dois corpos se inclinaram um para o outro, e os bastes caram uma ltimavez sobre as cabeas com um rudo de marretas enormes desabando sobre vigasde carvalho e tudo se despedaou no cho. Nesse momento surgiu com todanitidez a sugesto de que os dois artistas haviam aos poucos insinuado naimaginao dos espectadores: "Vamos nos transformar, acabamos de virarmanequins de madeira macia."

    Aqui, um obscuro instinto pode fazer com que espritos incultospressintam alguns dos resultados mais sutis da cincia psicolgica. Sabe-se serpossvel suscitar vises alucinatrias numa pessoa hipnotizada, por simplessugesto. Dir-se-lhe- que um pssaro est pousado na sua mo, e ela o vervoar. Mas a sugesto h de ser sempre aceita com semelhante docilidade. Noraro o hipnotizador s a consegue aos poucos, mediante insinuao gradual. Ele

  • partir, pois, de objetos realmente percebidos pelo indivduo, e cuidar de lhetornar a percepo cada vez mais confusa: depois, paulatinamente, far sairdessa confuso a forma precisa do objeto cuja alucinao ele quer criar. Isso oque acontece a muitas pessoas quando adormecem: vem massas coloridas,fluidas e informes, que ocupam o campo da viso, solidificando-seinsensivelmente em objetos distintos. A passagem gradual do confuso aodistinto , pois, o processo de sugesto por excelncia. Creio que oencontraramos no fundo de muitas sugestes cmicas, sobretudo nacomicidade grosseira, quando parece realizar-se diante dos nossos olhos atransformao de uma pessoa em coisa. Mas existem outros processos maisdiscretos, utilizados pelos poetas, por exemplo, que, talvez inconscientemente,tendem para o mesmo fim. Podemos, mediante certos artifcios de ritmo, rima eassonncia, acalentar nossa imaginao, conduzi-la do igual ao igual numequilbrio regular, e predisp-la a receber docilmente a viso sugerida.Escutemos esses versos de Rgnard, e vejamos se a imagem fugidia de uma

    boneca no atravessa o campo da nossa imaginao:

    Plus, iI doit maints particuliersla somme de dix mil une livre une obole,Pour l'avoir sans relche un an sur sa parole

    Habill, voitur, chauff, chauss, gant,Aliment, ras, dsaltr, port. *

    Encontraremos alguma coisa do mesmo gnero nessa fala de Fgaro(embora se pretende sugerir aqui a imagem mais de um animal que de umacoisa): " Que homem esse? um belo, gordo e baixo, jovem velho,grisalho bochechudo, astuto, incmodo, insensvel, que espreita e bisbilhota,resmunga e geme ao mesmo tempo".

    Entre essas cenas muito toscas e essas sugestes sutilssimas h ensejopara um sem-nmero de efeitos divertidos todos os que obtemos, referindo-nos a pessoas como o faramos com simples coisas. Respiguemos este ou aqueleexemplo no teatro de Labiche, onde so abundantes. Perrichon, ao subir no

    * Traduo livre: "E mais, deve a muitas pessoas/a soma de dez mil e uma libras debolo/pois diz que por um ano sem cessar/a vestiu, conduziu, aqueceu, calou,enluvou/alimentou, lavou, acalentou, e transportou. (N. do T.)

  • trem, certifica-se de que no esqueceu qualquer dos seus pertences. "Quatro,cinco, seis, minha mulher sete, minha filha oito e eu nove." Noutra pea, certopai gaba a instruo de sua filha nesses termos: "Ela vos dir sem tropeo todosos reis de Frana que aconteceram." Esse aconteceram, sem a rigor converter osreis em simples coisas, os identifica com acontecimentos impessoais.

    Observemos a propsito deste ltimo exemplo: no preciso ir aoextremo da identificao entre a pessoa e a coisa para se produzir o efeitocmico. Basta que se insinue confundir a pessoa com a funo que ela exerce.Citarei apenas a expresso de um prefeito de aldeia numa novela de About: "OSr. Prefeito, que tem mantido sempre a mesma benevolncia para conosco,embora o tenhamos mudado vrias vezes desde 1847...".

    Todas essas expresses calcam-se no mesmo modelo. Pode-ramos fazermuitas outras semelhantes a essas, j que temos a frmula. Mas a arte donarrador e do teatrlogo bufo no consiste apenas em fazer frases. O difcil dar frase a sua fora de sugesto, isto , torn-la aceitvel. E s a aceitaremos senos parecer surgir de um estado de esprito ou se enquadrar nas circunstncias.Sabemos assim que Perrichon est muito emocionado na hora de fazer a suaprimeira viagem. A expresso "acontecer" das que devem ter aparecido muitasvezes nas lies re-citadas pela filha diante do pai; ela nos d a pensar numarecitao. E, por fim, a admirao da mquina administrativa poderia, na piordas hipteses, ir ao ponto de nos fazer crer que nada mudou no prefeito aomudar de nome, e que a funo se realiza independentemente do funcionrio.

    Estamos com isso muito longe da causa original do riso. Certa formacmica, inexplicvel por si mesma, s se compreende por sua semelhana comoutra, a qual s nos faz rir pelo seu parentesco com uma terceira, e assim pordiante, por muito tempo: por isso, por mais esclarecida e penetrante quesuponhamos a anlise psicolgica, ela inevitavelmente se extraviar se nomantiver o fio ao longo do qual a impresso cmica andou de uma extremidade outra da srie. Donde vem essa continuidade de progresso? Qual , pois, apresso, qual o estranho impulso que faz o cmico deslizar assim de imagemem imagem, cada vez mais longe do ponto de origem, at que se fracione e seperca em analogias infinitamente remotas? Que fora divide e subdivide osgalhos da rvore em ramos e a raiz em radculas? Uma lei inelutvel condena

  • assim toda energia viva, por pouco tempo que se lhe conceda, a abranger omximo possvel de espao. Ora, a fantasia cmica muito parecida com umaenergia viva, planta peculiar que germinou vigorosamente nas partes pedregosasdo solo social, at que a cultura lhe permitiu rivalizar com os produtos maisrequintados da arte. Estamos longe da grande arte, sem dvida, com osexemplos de comicidade que acabamos de examinar. Chegaremos, porm, maisperto dela, no prximo captulo, sem contudo atingi-la inteiramente. Subjacente arte est o artifcio. nessa regio dos artifcios, intermediria entre a naturezae a arte, que agora penetraremos. Trataremos do teatro bufo e do homem deesprito.

  • CAPTULO II

    Comicidade de Situaes e Comicidade de Palavras

    I

    Acabamos de estudar a comicidade das formas, atitudes e dosmovimentos em geral. Devemos procur-la agora nas aes e situaes. Semdvida, esse gnero de comicidade encontra-se com muita facilidade na vidaquotidiana. Contudo, no nela talvez que ele melhor se presta anlise. Se certo que o teatro uma ampliao e simplificao da vida, a comdia podernos dar, sobre essa questo particular do nosso tema, mais instruo que a vidareal. Talvez at mesmo devssemos levar mais longe a simplificao, voltando snossas lembranas mais antigas, e procurando, nos folguedos que divertiram acriana, o primeiro esboo das combinaes que fazem o adulto rir. Falamoscom muita freqncia dos nossos sentimentos de prazer e dor como senascessem velhos, como se cada um deles no tivesse histria. Sobretudo, quasesempre ignoramos o que h de infantil ainda, por assim dizer, na maioria dosnossos sentimentos alegres. No entanto, quantos prazeres atuais no passariamde lembranas de prazeres passados, se os examinssemos de perto! Querestaria de muitos de nossos sentimentos se os relacionssemos ao que tm deestritamente vvido, se lhes retirssemos tudo o que simplesmenterememorado? Quem sabe mesmo se no nos tornamos impermeveis, a partirde certa idade, alegria viosa e nova, e se as mais doces satisfaes do homemmaduro podem ser coisa diferente de sentimentos de infncia revivificados,brisa perfumada que um passado cada vez mais distante nos envia por bafejoscada vez mais raros? Seja qual for a resposta a essa questo muito geral, umponto fica fora de dvida: no pode haver ruptura entre o prazer de brincar, nacriana, e o mesmo prazer, no adulto. Ora, a comdia um brinquedo,brinquedo que imita a vida. E se, nos brinquedos infantis, quando a criana lida

  • com bonecos e polichinelos, tudo se faz por cordes, no sero esses mesmoscordes, gastos pelo uso, o que iremos encontrar nos cordis que articulam assituaes da comdia? Comecemos, pois, pelos brinquedos infantis.Acompanhemos o progresso imperceptvel pelo qual a criana faz seus bonecoscrescerem, lhes d alma, e os leva a esse estado de indeciso final em que, semdeixarem de ser bonecos, apesar disso se tornaram homens. Teremos assimpersonagens de comdia. E poderemos comprovar com base neles a leientrevista pelas nossas anlises precedentes, segundo a qual definiremos assituaes do teatro bufo em geral: cmico todo arranjo de atos eacontecimentos que nos d, inseridas uma na outra, a iluso da vida e asensao ntida de uma montagem mecnica.

    I. Boneco de mola. Todos ns j brincamos com o boneco que sai da suacaixa. Comprimimos o boneco, e ele salta de novo. Quanto mais o apertamos,mais alto ele pula. Esmagamo-lo sob a tampa, e ele faz tudo saltar. No sei seesse brinquedo muito antigo, mas o gnero de diverso que ele encerra certamente de todos os tempos. o conflito de duas obstinaes, uma dasquais, puramente mecnica, no entanto acaba sempre por ceder outra, que sediverte com ela. O gato a brincar com o rato, deixando-o ir-se como por umamola para logo a seguir o deter com a pata, tambm se diverte do mesmo modo.

    Passemos ento ao teatro. Devemos comear pelo de Guignol. Quando ocomissrio se arrisca em cena, de pronto recebe uma cacetada, como natural.Recompe-se, um segundo golpe o derruba. Nova reincidncia, novo castigo. Noritmo uniforme da mola que se contrai e distende, o comissrio cai e levanta,enquanto o riso do auditrio vai sempre aumentando.

    Imaginemos agora uma espcie de mola moral: certa idia que seexprima, se reprima, uma vez mais se exprima, certo fluxo de falas que searremesse, que se detenha e recomece sempre. Teremos de novo a viso deuma fora que se obstina e de outra resistncia que a combate. Mas, nesse caso,a viso no ter materialidade. J no ser Guignol, mas assistiremos a umaverdadeira comdia.

    Muitas cenas cmicas reduzem-se de fato a esse tipo simples. o casodo Mariage forc (Matrimnio Forado) de Sganarelle e Pancrace, onde toda acomicidade advm de um conflito entre a idia de Sganarelle, que quer forar o

  • filsofo a ouvi-lo, e a obstinao do filsofo, verdadeira mquina de falar quefunciona automaticamente. medida que a cena progride, a imagem do bonecode mola se desenha melhor, a tal ponto que, por fim, os prprios personagenslhe adotam o movimento, Sganarelle comprimindo repetidamente Pancrace emseu bastidor. E cada vez Pancrace volta cena para continuar falando. E quandoSganarelle consegue obrigar Pancrace a entrar e logra prend-lo no interior dacasa (por comparao, no fundo da caixa), de repente surge de novo a cabea dePancrace atravs da janela que se abre, como se fizesse saltar uma tampa.

    Cena semelhante ocorre em O Doente Imaginrio. Pela boca de Purgon,a medicina ofendida derrama sobre Argan a ameaa de todas as doenas. E cadavez que Argan se levanta de sua poltrona, como para fechar a boca de Purgon,vemos este eclipsar-se por um momento, como se algum o enfiasse nosbastidores, e depois, como se acionado por uma mola, voltar cena com novamaldio. Uma mesma exclamao incessantemente repetida: "Senhor Purgon!"assinala os momentos dessa pequena comdia.

    Examinemos mais de perto ainda a imagem da mola que se distende, seestende e se retm. Extraiamos o essencial dela. Obteremos um dos processosusuais da comdia clssica, a repetio. Donde vem a comicidade da repetiode certa expresso no teatro? Em vo se h de procurar uma teoria dacomicidade que responda de maneira satisfatria a essa questo simplssima. E aquesto fica de fato insolvel, desde que se queira achar a explicao de umtrao divertido nesse mesmo trao quando isolado daquilo que ele nos sugere.Em lugar nenhum se revela melhor a insuficincia do mtodo corrente. Mas averdade que, se deixarmos de lado alguns casos especialssimos sobre os quaisfalaremos mais adiante, a repetio de uma expresso no risvel por simesma. Ela s nos causa riso porque simboliza certo jogo especial de elementosmorais, por sua vez smbolo de um jogo inteiramente material. o caso do gatoque se diverte com o rato, o da criana que enfia e comprime o boneco no fundoda caixa porm, requintado, espiritualizado, transportado esfera dossentimentos e das idias. Enunciemos a lei que define, a nosso ver, os principaisefeitos cmicos da repetio de expresses no teatro: Numa repetio cmica deexpresses, h em geral dois termos em confronto: um sentimento comprimidoque se distende como uma mola, e uma idia que se diverte em comprimir denovo o sentimento.

  • Quando Dorine narra a Orgon a doena de sua mulher, e esteinterrompe-a sem parar para indagar da sade de Tartuffe, a questo "eTartuffe?" que ocorre sempre, nos d a ntida sensao de uma mola quedispara. E Dorine se diverte a comprimir essa mola, ao reiniciar sempre o relatoda doena de El-mira. E quando Scapin vem anunciar ao velho Gronte que seufilho foi levado prisioneiro na famosa galera, e que preciso resgat-lo depressa,joga com a avareza de Gronte do mesmo modo como Dorine com a cegueira deOrgon. Mal comprimida a avareza, volta a soltar-se automaticamente, e foi esseautomatismo que Molire quis assinalar pela repetio maquinal de umaexpresso em que se exprime o pesar do dinheiro que ser preciso gastar: "Quediabo foi ele fazer nessa galera?". A mesma observao vale para a cena em queValre mostra a Harpagon que ele estaria errado em casar sua filha com um

    homem a quem ela ao ama. "Sem dote!", interrompe sempre a avareza deHarpagon. E entrevemos, por trs dessa expresso que se repeteautomaticamente, um mecanismo de repetio montado pela idia fixa.

    Sem dvida, por vezes esse mecanismo mais difcil de se perceber. Aessa altura topamos com uma nova dificuldade da teoria da comicidade. Casosh em que todo o interesse de certa cena est num personagem nico que sedesdobra, quando o seu interlocutor desempenha o papel de simples prisma,por assim dizer, atravs do qual se d o desdobramento. Corremos o risco de nosperder se procurarmos o segredo do efeito produzido no que vemos e ouvimos,na cena exterior que se desempenha entre os personagens, e no na comdiainterior que essa cena apenas refrata. Por exemplo, quando Alceste respondeobstinadamente: "Eu no digo isso!" a Oronte, que lhe pergunta se acha maus osseus versos. A repetio cmica e, no entanto, claro que Oronte no sediverte com Alceste no brinquedo que h pouco descrevemos. Mas tenhamoscuidado! H, em realidade, no caso dois homens em Alceste: por um lado o"misantropo", sempre a criticar tudo o que as pessoas fazem, e por outro ocavalheiro, que no pode desaprender de um momento para outro as formas dapolidez, ou mesmo talvez apenas o homem excelente, que recua no momentodecisivo em que seja preciso passar da teoria prtica, ferir um amor-prprio,causar sofrimento. A verdadeira cena j no entre Alceste e Oronte, mas entreAlceste e o prprio Alceste. Desses dois Alcestes, um gostaria de dizer e o outrolhe fecha a boca no momento de dizer tudo. Cada um desses "Eu no digo isso!"

  • representa um esforo crescente para reprimir alguma coisa que impele epressiona para sair. O tom desses "Eu no digo isso!" torna-se, pois, cada vezmais brusco, e Alceste fica sempre mais aborrecido no contra Oronte, comoo cr, mas contra si mesmo. E desse modo que a tenso da mola vai serenovando sempre, sempre se reforando, at a distenso final. O mecanismo darepetio ainda , pois, o mesmo.

    No necessariamente cmico que uma pessoa se decida a jamais dizero que pensa, e deva "voltar as costas a todo o gnero humano"; da vida, e damelhor. tambm da vida que outra pessoa, por bondade de carter, egosmoou desdm, prefira dizer s pessoas o que as lisonjeie. Nada h nisso que nosfaa rir. Reunamos essas duas pessoas numa nica, fazendo com que o nossopersonagem hesite entre uma franqueza que fere e uma polidez que ilude. Aindaassim essa luta dos dois sentimentos contrrios no ser cmica, mas parecersria, se os dois sentimentos chegarem a se organizar por seu prprio contraste,a progredir conjuntamente, a criar um estado misto de esprito, enfim, adotandoum modus vivendi que nos d pura e simples-mente a impresso complexa davida. Mas suponhamos agora, numa pessoa bem viva, esses dois sentimentosirredutveis e rgidos; faamos com que a pessoa oscile de um a outro; e faamossobretudo com que essa oscilao se torne claramente mecnica, adotando aforma conhecida de um dispositivo usual, simples, infantil: teremos ento aimagem que achamos at agora nos objetos risveis. Teremos o mecnico novivo. Teremos a comicidade.

    Detivemo-nos bastante nessa primeira imagem, a do boneco de mola,para dar a compreender como a fantasia cmica converteu aos poucos ummecanismo material em mecanismo moral. Passamos a examinar mais um oudois brinquedos, porm nos limitando agora a indicaes sumrias.

    II. O fantoche a cordes. Inmeras so as cenas de comdia nas quais umpersonagem cr falar e agir livremente, conservando, pois, o essencial da vida,ao passo que, encarado de certo aspecto, surge como simples brinquedo nasmos de outro que com ele se diverte. Do fantoche que a criana maneja comum cordo a Gronte e Argante manipulados por Scapin, o intervalo fcil detranspor. Ouamos o prprio Scapin: "J descobrimos toda a mquina" e ainda:"E o cu que os conduz aos meus cordes" etc. Por um instinto natural, e porque

  • se prefere, pelo menos em imaginao, enganar-se a ser enganado, do ladodos trapaceiros que se pe o espectador. Alia-se a eles e, da por diante, como acriana que tomou emprestada a boneca da companheira, faz por sua vez ofantoche ir e vir cena manejando com as prprias mos os cordes. Esta ltimacondio, todavia, no indispensvel. Podemos tambm permanecer por forado que se passa, desde que conservemos a sensao bem ntida de um arranjomecnico. o que acontece quando um personagem oscila entre dois partidosopostos a tomar, cada um desses partidos puxando para o seu ladoalternadamente: como Panurge perguntando a Pierre e a Paul se deve casar-se.Observemos que o autor cmico tem o cuidado ento de personificar as duaspartes contrrias. A falta de espectador, preciso pelo menos haver atores paramanejar os cordes.

    Tudo o que h de srio na vida advm de nossa liberdade. Ossentimentos por ns nutridos, as paixes incubadas, as aes deliberadas,contidas, executadas, enfim, o que vem de ns e que bem nosso, o que d vida o seu aspecto s vezes dramtico e em geral grave. Como transformar tudoisso em comdia? Para isso seria preciso imaginar a liberdade aparente como umbrinquedo a cordes e que sejamos neste mundo, como o diz o poeta,

    ...pobres marionetescujos cordes esto nas mos da Necessidade.

    No h portanto cena real, sria, e at mesmo dramtica, que a fantasiano possa levar comicidade pela evocao dessa simples imagem. No hbrinquedo a que um campo mais vasto esteja aberto.

    III. A bola de neve. medida que progredimos neste estudo dosprocessos de comdia, compreendemos melhor o papel desempenhado pelasreminiscncias da infncia. Essas lembranas referem-se talvez menos a tal ouqual brinquedo em especial do que ao dispositivo mecnico do qual essebrinquedo uma aplicao. O mesmo dispositivo geral pode, de resto,encontrar-se em brinquedos muito diferentes, como a mesma ria de pera emmuitas fantasias musicais. O que importa aqui, o que o esprito retm, o quepassa, por matizes imperceptveis, dos brinquedos da criana at os do adulto, o esquema da combinao, ou, se preferirmos, a frmula abstrata da qual essesbrinquedos so aplicaes particulares. o caso, por exemplo, da bola de neve

  • que rola, e que aumenta de volume ao rolar. Poderamos tambm pensar emsoldadinhos de chumbo enfileirados uns atrs dos outros: se empurramos oprimeiro, ele cai sobre o segundo, o qual derruba o terceiro, e a situao se vaiagravando at que todos caiam. Ou ento um castelo de cartas cuidadosamentearmado: a primeira que se toca hesita em cair; abalada, a segunda se decidemais depressa, e o trabalho de destruio, acelerando-se de uma a outra, correvertiginosamente catstrofe final. Todos esses objetos so muito diferentes,mas lcito dizer que nos sugerem a mesma viso abstrata, a de um efeito quese propaga acrescentando-se a si mesmo, de modo que a causa, insignificante naorigem, chega por um progresso inevitvel a certo resultado to importantequanto inesperado. Abramos agora um livro de figuras para crianas: veremosesse dispositivo encaminhar-se j para a forma de uma cena cmica: Tomo aoacaso uma edio ilustrada de contos infantis: um visitante entraapressadamente numa sala, esbarra numa senhora que derruba uma xcara dech num senhor idoso, o qual escorrega contra uma janela e cai na rua em cimade um guarda que chama a polcia etc. Encontramos o mesmo dispositivo emmuitas imagens para pessoas adultas. Nas "histrias sem palavras" desenhadaspor cartunistas, h quase sempre um objeto que se desloca e pessoas que sosolidrias com ele: ento, de cena em cena, a mudana de posio do objetoleva mecanicamente a mudanas de situao cada vez mais graves entre aspessoas. Passemos agora comdia. Quantas e quantas cenas burlescas, e atmesmo comdias se reduzem a esse tipo simples! Releia-se a fala de Chicaneauem Les Plaideurs (Os Pleiteantes): so processos que se engrenam em processos,e o mecanismo funciona cada vez mais rpido (Racine nos d esse sentimento deacelerao crescente jogando cada vez mais os termos de processo uns contra osoutros) at que a demanda levada aos tribunais por uma insignificncia custe aoqueixoso uma considervel fortuna. Encontramos o mesmo dispositivo em certascenas do D. Quixote, por exemplo, naquela da estalagem, na qual um singularencadeamento de circunstncias leva o muleteiro a agredir Sancho, que agrideMaritorne, sobre a qual cai o estalajadeiro etc. Chegamos afinal ao teatro bufocontemporneo. Ser preciso lembrar todas as formas sob as quais essa mesmacombinao se apresenta? Uma delas usada com bastante freqncia: consisteem fazer com que certo objeto material (uma carta, por exemplo) seja deimportncia capital para certos personagens e que seja necessrio encontr-la aqualquer preo. Esse objeto, que escapa sempre quando se acredita t-lo em

  • mo, rola atravs da pea reunindo de passagem incidentes cada vez maisgraves, cada vez mais inesperados. Tudo isso parece, mais do que se acredita primeira vista, um brinquedo de criana. sempre o efeito da bola de neve.

    A caracterstica peculiar de uma combinao mecnica de ser em geralreversvel. A criana diverte-se ao ver uma bola jogada contra quilhas derrubartudo o que encontra, aumentando a devastao; ri ainda mais quando a bola,depois de muitas voltas e desvios e aparentes paradas, volta ao ponto departida. Em outras palavras, o mecanismo que h pouco descrevemos jcmico quando retilneo; fica mais engraado quando se torna circular e osesforos do personagem conseguem reconduzi-lo pura e simplesmente aomesmo lugar, por um encadeamento fatal de causas e efeitos. Ora, grande partedo teatro bufo gravita em torno dessa noo. Como um chapu de palha italianofoi comido por um cavalo, preciso a todo custo encontrado, pois nico nacidade. Esse chapu, que recua sempre no momento em que se vai peg-lo, faz opersonagem principal correr, o qual por sua vez fora os figurantes a correremcom ele, como o m atraindo limalhas de ferro induzidas umas pelas outras, poruma atrao que se transmite uma aps outra. E quando, afinal, de incidente emincidente, se cr chegar ao fim, verifica-se que o chapu to procurado precisamente o que foi comido. A mesma odissia encontra-se em outracomdia bem conhecida de Labiche. A primeira cena mostra um casal desolteires velhos conhecidos jogando o seu carteado dirio. Ambos, cadaum por sua vez, dirigiram-se a uma mesma agncia matrimonial. Passando pormil e uma dificuldades, e de vicissitude em vicissitude, acabam indo, cada qualdesconhecendo o problema do outro, entrevista que pura e simplesmente ospe um diante do outro. Em pea mais recente, v-se o mesmo efeito circular eo mesmo retorno ao ponto de partida. Um marido atormentado acredita escaparde sua mulher e da sogra pelo divrcio. Casa-se de novo; e as tramascombinadas do divrcio e do casamento acabam levando-o antiga mulher, masem situao mais grave, pois agora ela sua sogra.

    Quando se pensa na intensidade e freqncia desse gnero decomicidade, compreende-se que tenha ocupado a imaginao de certosfilsofos. Dar mil e uma voltas para voltar, sem saber, ao ponto de partida, fazer grande esforo por nada. H certa tentao a definir a comicidade destaltima forma. a impresso que nos d Herbert Spencer. Para ele, o riso seria

  • indcio de um esforo que depara de sbito com o vazio. J dizia Kant: "O risoadvm de uma espera que d subitamente em nada." Re-conhecemos que essasdefinies se aplicariam aos nossos ltimos exemplos, mas devemos fazer certasrestries frmula, pois h muitos esforos inteis que no causam riso. Mas,se os casos examinados por ns apresentam uma grande causa levando apequeno efeito, os outros antes apresentados deveriam definir-se de maneirainversa: um grande efeito originado de pequena causa. A verdade que essasegunda definio no seria prefervel primeira. A desproporo entre a causae o efeito, quer se apresente num caso como no outro, no a fonte direta doriso. Rimos de certa coisa que essa desproporo pode em certos casosmanifestar, isto , do dispositivo mecnico especial que ela nos deixa perceberpor transparncia por trs da srie de efeitos e causas. Basta esquecer essedispositivo e abandonar o nico fio condutor que orienta no labirinto dacomicidade para que a regra, aplicvel talvez a certos casos apropriadamenteescolhidos, se choque e se desfaa de encontro ao primeiro exemplo aparecido.

    Mas por que nos rimos desse dispositivo mecnico? sem dvidaestranho que a histria de certo indivduo ou de um grupo nos parea em dadomomento como um jogo de engrenagens, molas, cordes etc. Mas donde vem ocarter especial dessa estranheza? Por que cmica? Daremos sempre a mesmaresposta a essa questo j formulada de muitas formas. O mecanismo rgido quedeparamos vez por outra, como um intruso, na continuidade viva das coisashumanas tem para ns um interesse particularssimo, porque como um desvioda vida. Se os acontecimentos pudessem estar incessantemente atentos suaprpria evoluo, no haveria coincidncias, confrontos, nem sries circulares;tudo progrediria para a frente e sempre. E se os homens fossem sempre atentos vida, se entrssemos constante-mente em contato com outros e tambm comns mesmos, nada jamais pareceria produzir-se em ns mediante molas ecordes. A comicidade aquele aspecto da pessoa pelo qual ela parece umacoisa, esse aspecto dos acontecimentos humanos que imita, por sua rigidez deum tipo particularssimo, o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim, omovimento sem a vida. Ex-prime, pois, uma imperfeio individual ou coletivaque exige imediata correo. O riso essa prpria correo. O riso certo gestosocial, que ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e dosacontecimentos.

  • Mas isso mesmo nos convida a buscar mais alm e mais alto. Divertimo-nos at aqui em verificar nos brinquedos do adulto certas combinaesmecnicas que divertem a criana. Tratava-se de um procedimento emprico.Chegou o momento de tentar uma deduo metdica e completa e buscar, naprpria fonte, os processos mltiplos e variveis do teatro cmico em seuprincpio permanente e simples. Dizamos que esse teatro combina os fatos demodo a insinuar um mecanismo nas formas externas da vida. Determinemos,pois, os caracteres essenciais pelos quais a vida, encarada de fora, parececontrastar com um simples mecanismo. Bastar ento passar aos caracteresopostos para obter a frmula abstrata, geral e completa, dos processos reais epossveis da comdia.

    A vida se nos apresenta como certa evoluo no tempo, e como certacomplicao no espao. Considerada no tempo, ela o progresso contnuo deum ser que envelhece sem cessar: isto , ela jamais volta atrs, e jamais serepete. Da perspectiva do espao, ela exibe a nossos olhos elementoscoexistentes to intimamente solidrios entre si, to exclusivamente feitos unspara os outros, que nenhum deles poderia pertencer simultaneamente a doisorganismos diferentes: cada ser vivo um sistema fechado de fenmenos,incapazes de interferir em outros sistemas. Os caracteres exteriores (reais ouaparentes) que distinguem o vivo do simples mecnico so a mudana contnuade aspecto, a irreversibilidade dos fenmenos e a individualidade perfeita deuma srie encerrada em si mesma. Tomemos o avesso disso: teremos trsprocessos que chamaremos de repetio, inverso e interferncia de sries.Facilmente se percebe que se trata dos processos do teatro bufo, e que nopoderia haver outros.

    Encontramo-los primeiro, misturados em doses variveis, nas cenas queh pouco examinamos, e com mais forte razo nos brinquedos infantis cujosprocessos o teatro bufo imita ao reproduzir-lhes o mecanismo. Logo a seguirf