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Henri Bergson nasceu em Paris em 1859. Estudou na EcoleNormale Superieure de 1877a 1881e passou os dezesse is anos

seguintes como professor de f ilosofia. Em 1900 tornou-se pro-

fessor no College de France e, em 1927,ganhou 0Premio Nobel

de Literatura, Bergson morreu em 1941.Entre outros livros, escre-

veu 0p e ns am e nt o e o m o o en te , Mater ia e memoria , 0riso e A eva-

JUt;i io criadora (todos puhlicados por esta Editora).

- _J " ;, "

Henri Bergson

Memoria e Vida

T e xt os e sc ol hi do s p o r

GILLES DELEUZE

M e str e d e c on fe re nc ia s n a

Universidade de Paris VIII

Tradueao

CLAUDIA BERLINER

Revisao tecnica e cia traducao

BENTO PRADO NETO

Ma rtin s F on tesSoo Paulo 2006

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Es t a o br a fu i publica&! origiPUllmmte em {rt Inchl rom 0titulo

MB10IRE ET VIE

par Presses Unirlersilllires de Fnnrce, Paris.

Cnpyrighl © Presses Universilliires de Fnznce .

Copyright © 2006, Litmnill Martins Fem t es Ed i to r . . L t do . ,

sa o Paulo, para" present.! edi{iiD.

I" e~o 2006

Tradu~o

CLAUDIA BERliNER

Revisaotecnia eda tradu~o

Bento PnuIo Neto

Acompauhamento edilorial

~riIl Fernanda AIm,...

Revisiies grific:as

Marisa Rosa Teixeira

Sandro Garcia Cortes

Dinart« Zon/melli da Srlva

Produ~o gr.ifua

Gera ldo Alues

Pa~iolFotolitos

Studio 3 Des en v o lv i m en t o Ed i to r ia l

Dados Inle:rnacionais de Ca~ na Publka{io (OP)

(Omara Brasileira do Uvro, SP , Brasil)

Bergson , Henri, 1859-1941 .

MemOria e vida IHenri Ilerg50n ; textos escolhidos por

Gilles Delew:e; traduQio Claudia Berliner.; revisio tecnica e

cia traduo;io Bento Prado Neto. - sao Paulo: Martins Fontes,2006. - (T6pioos)

TItulo original: Memoire et vie

ISBN 85-336-2244-9

1. Filosofia francesa 2. Memoria 3. Vida LDeleuze, Gilles,

1925-1995. n. T it ul o. T I Lsene.

06-0440 CDD-l94

indices para aliUogo sistematico:

1. F'110s0fia francesa 19 4

ToeWso s d i re i to s destJl e di ¢o p ar a 0 Bra s il r e sen x u i c« a

. Lioraria Martins Fontes Editor« Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho,330 01325-000 Si io Paulo SP Bras il

Tel. (ll) 32413677 Fax (11) 3101.1042

e-mail : in ja@marl insfontes.cpm.br ht lp: / /www.marl insfontes.com.br

iNDICE

Bibliografia ~ .

1. A DURA<::A,O E 0 METODa ..

a) Natureza da duracao .b) Caracterfsticas da duracao .c) A intuicao como metodo _ .d) Ciencia e filosofia .

II. A M EM 6R IA OU O S G RADS COEXIST EN TE S

DA DDRA<;A..O .

a) Principios da memoria ..

b) Psicologia da memoria .c) a papel do corpo .

Ill. A VIDA au A DIFERENCIAc;A.O DA DU-

RA<;A.O .

a) a rnovimento da vida .b) Vida e materia .

vn

1

1

11

19

37

47

47

60

70

95

95

117

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IV. CONDI<;A.O HUMANA E FILOSOFIA.. 137

a) A filosofia _

b) A condicao hurnana e sua superacao ..c) Conclusao __ _.

t. di ..n lee rernlSSlVO .

137

153

169

181

: '1

"' '

BIBLIOGRAFIA

I :i de e d e l ie u c he z Aristote, 1889 (tese em latim, t raduzida por M.

Mosse-Bastide, Etude s be rg son ienne s , voL II, Albin Michel).

Essai su r l e s donnee s i m me di ai es d e la conscience, PUF, 1889; En -

s a io s s abr e os dado s imed ia t os d a ams ci e nc ia , Edi co es 7 0, 1988.

Mati er e e t memoir e, PUF, 1896; M a te ri a e me mo ri a, Martins Fontes,

1999.

Le r ir e, PUF, 1900; 0 riso, Martins Fontes, 2001.

I i eoo tu t ion c r ea i ri ce , PUF, 1907; A evolu~ao criadora, Martins

Fontes, 2005 .

I:energie spirituelle, PUF, 1919.

Duree e t s imul t ane it e , PUE 1922; Dura ,i io e s imuliane idade, Martins

Fontes, em preparacao,

L es d eu x so urce s d e l a m ora le et d e l a rel ig io n, PUF, 1932.

La p en se e e t l e m o uo an i, PUP, 1934; 0 pensarnento e o m o ve nte ,

Martins Fontes, em preparacao,

Os livros dos quais os textos citados foram extraidos serao

designados pelas seguintes abreviaturas:

D . 1 . (Donnees immediaies , 39~ ed.)M.M _ (Matiere et memoire, 54~ed.)

R. .. (L e rire, 97~ed.)

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VIII M EM OR IA E V ID A

a)Natureza da duracao

ec. (L ' evo l u tion creat r ice , 52~ed.) 1. A DURA<;AO E 0 METODO£.5 (L'bzergie spirituel le , 58~ed.)M.R. (Les d e ux s our c es , 76~ed.)

P.M , (La pensee ei I e mouvant, 31~ed.)

Queremos sal ientar que par ocasiao do centenario do nas-

cimento de Bergson a edi tora Presses Universi taires de France

publicou uma edicao completa de suas obras num volume cos-

turado, impresso em papel biblia (1~ ed. , 1959i 2~ed., 1963).

Apre~entado por Henri Gouhier, esse volume contem, alem do

texto mtegral das obras cuja reedicao Bergson autorizara, notas

de editor; uma bibliografia completa (com mencao de todas as

traducdes), urn aparato crftico , notas historicas e notas de lei-

tura, urn Indice das cita~6es e urn Indice das pessoas citadas. Asanotacoes sao de autoria de Andre Robinet.

1 . A d ur ac do como experiencia psico16gica

A existencia de que estamos mais certos e que me-

lhor conhecemos e incontestavelmente a nossa, pois de

todos os outros objetos temos nocoes que podem ser jul-

gadasexteriores e superficiais, ao passo que percebemos

a nos mesmos interiormente, profundamente. Que cons-

tatamos entao? Qual e , nesse caso privilegiado, 0sentido

preciso da palavra 1/existir"? ...

Constato em primeiro lugar que passo. de urn estado

para outro. Tenho calor ou tenho frio, estou alegre ou es-

tou triste, trabalho ou nao faco nada, olho 0que esta aminha volta ou penso em outra coisa. Sensacoes, senti-mentes, volicoes, representacoes, sao essas as modifica-

c;5esentre as quais minha existencia se divide e que a co-

lorem alternadamente. Portanto, mudo sem cessar. Mas

isso nao e tudo. A mudanca e bern mais radical do que sepoderia pensar nurn prirneiro momento.

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2MEMORIA EVIDA

Com efeito, falo de cada urn de meus estados como

se formasse urn bloeo. Embora diga que mudo, parece-

me que a mudanca reside na passagem de urn estado

ao estado seguinte: no que se refere a cada estado, torna-

do em separado, quem erer que continua 0mesmo du-

rante todo 0tempo em que se produz. Contudo, urn leveesforco de atencao revelar-me-ia que nao ha afeto, naoha representacao ou volicao que nao se modifique a todo

instante; se urn estado de alma cessasse de variar, sua du-

racao deixaria de fluir, Tomemos 0mais estavel dos es-

tados internes, a percepcao visual de urn objeto exterior

im6veL Por mais que 0objeto perrnaneca 0mesmo, por

mais que eu olhe para ele do mesmo Iado, pelo mesmo

angulo, sob a mesma luz, a visao que tenho dele nao di-

fere menos daquela que acabo de ter, quando mais nao

seja porque ela esta urn instante rnais velha, Minha me-

moria esta ai, empurrando algo desse passado para den-tro desse presente. Meu estado de alma, ao avancar pela

estrada do tempo, infla-se continuamente com a dura-

C;aoque vai reunindo: por assim dizer, faz bola de neve

consigo mesmo. Com rnais forte razao isso ocorre com

os estados mais profundamente interiores, sensacoes, afe-

tos, desejos etc., que nao correspondem, como uma sim-

ples percepcao visual, a urn objeto exterior invariavel,

Mas e comodo nao prestar atencao a essa mudanca inin-

terrupta e s6 nota -la quando se torna grande 0suficien-

te para imprimir uma nova atitude ao corpo, uma nova

direcao a atencao, Nesse momento preciso, descobrimosque mudamos de estado. A verdade e que mudamos sem

cessar e que 0pr6prio estado ja e mudanca,Quer dizer que nao ha diferenc;a essencial entre pas-

sar de urn estado a outro e persistir no mesmo estado. Se,

por urn lado, 0 estado que" continua 0mesmo" e mais

A DllRA<;Aa E0 METODa 3

variado do que aehamos que seja, a passagem de urn es-

tado a outro, pelo contrar io, parece-se mais do que ima-

ginamos com urn mesmo estado que se prolonga; a tran-

siC;ao e continua. Mas, precisamente por fecharmos os

olhos a incessante variacao de cada estado psico16gico,

somos ohrigados, quando a variacao se tomou tao con-sideravel que se imp6e a nossa atencao, a falar como se

urn novo estado tivesse se justaposto ao precedente. Su-

pornos que este, por sua vez, permanece invariavel , e as-

sim por diante, indefinidamente. A aparente desconti-

nuidade da vida psicol6gica decorre, pais, do fato de que

nossa atencao se fixa nela por uma serie de atos descon-

tinuos: ali onde ha apenas urna suave Iadeira, cremos

perceber, ao seguirmos a linha quebrada de nossos atos

de atencao, os degraus de uma escada. E verdade que

nossa vida psico16gica e cheia de imprevistos. Surgem

mil e urn incidentes que parecem contrastar com 0que

os precede e nao se vincular aquilo que os segue. Mas

a descontinuidade com que aparecem destaca-se sobre a

continuidade de urn fundo onde eles se desenham e ao

qual devem os pr6prios intervalos que os separam: sao

os toques de timbale ressoando de quando em quando

na sinfonia. Nossa atencao se fixaneles porque a interes-

. sam mais, mas cada urn deles vern inserido na massa

fluida de nossa existencia psico16gica inteira. Cada urn

deles nao e senao 0ponto mais bern iluminado de uma

zona rnovente que compreende tudo 0 que sentimos,

pensamos, queremos, tudo 0que somos, enfim, nurn de-

terminado momento. E essa zona inteira que, na verda-de, constitui nosso estado. Mas, de estados assim defini-

dos, pode-se dizer que nao sao elementos dist intos. Con-

tinuam-se uns aos outros num escoamento sem fim.

E.C,l-3.

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4 MEMORIA EVlDA

2.A duradio e 0ell.

o que prova que nossa concepcao corrente da dura-

c;ao depende de uma invasao gradual do espaco no ter-

reno da consciencia pura e que, para privar 0 eu da fa-

culdade de perceber urn tempo homogeneo, basta retiraraquela camada mais superficial de fatos psfquicos que

ele utiliza como reguladores', 0 sonho nos coloca preci-

samente nessas condicoes, pois 0sono, ao diminuir a ve-

locidade do funcionamento das funcoes organicas, mo-

difica sobretudo a superffcie de comunicacao entre 0 eue as coisas exteriores. Entao, nao medimos mais a dura-

C;ao,mas a sentimos; de quantidade ela retoma ao estado

de qualidade; a avaliacao matematica do tempo trans-

corrido deixa de ser feita, mas cede lugar a urn instinto

confuso, capaz, como todos as instintos, de cometer er-

ros grosseiros e as vezes tambem de proceder com urna

extraordinaria seguranca, Mesmo em estado de vigilia, a

experiencia diana deveria nos ensinar a diferenciar entre

a duracao-qualidade, aquela que a consciencia atinge

imediatamente, aquela que 0animal provavelrnente per-

cebe, e 0 tempo por assim dizer materializado, 0 tempo

que se tornou quantidade par urn desenvolvimento no

espac;o. No momenta em que escrevo estas linhas, urn re-

Iogio na vizinhanca da as horas; mas minha orelha dis-

traida s6 percebe isso depois de varias pancadas ja se

terem feito ouvir; portanto, nao as contei. E, no entanto,

basta-me urn esforco de atencao retrospectiva para fazer

a soma das quatro pancadas que ja soaram e adiciona-las

1. Essa Ilusao que nos faz confundir a duracao com urn tempo ho-

mogeneo, ou seja, com "uma representacao simb6lica tirada da exten-

sao", e constantemente denunciada por Bergson. Encontraremos uma

anal ise detalhada d isso nos tex tos 6 ,7 e 8.

A DURAc; :AO E0 METODO 5

as que ouco. Se, entrando em mim mesmo, interrogar-

me entao cuidadosamente sobre 0que acabou de aconte-

cer,percebo que os quatro prirneiros sons tinharn atingi-

do meu ouvido e ate impressionado minha consciencia,

mas que as sensacoes produzidas por cada urn deles, em

vez de se justaporem, tinham -se fundido urnas as outrasde maneira que dotassem 0todo de urn aspecto proprio, de

maneira que fizessem dele uma especie de £rase musical.

Para avaliar retrospectivamente 0mimero de pancadas ja

soadas, tentei reconstituir essa £rase par meio do pensa-

mento; minha imaginacao deu uma pancada, depois duas,

depois tres e, enquanto nao chegou ao mimero exato qua-

tro, a sensibilidade, consultada, respondeu que 0 efeito

total diferia qualitativamente. Portanto, tinha constatado

a sua maneira a sucessao daquelas quatro pancadas, mas

de urn modo tota1mente diferente de uma soma e sem fa-

zer intervir a imagem de uma justaposicao de termos dis-tintos. Em suma, 0mimero de pancadas dadas foi perce-

bido como qualidade e nao como quantidade; a duracao

apresenta-se assim a consciencia imediata e conserva essa

formaenquanto nao e substituida por uma representa-

c;ao simbolica, tirada da extensao, - Distingamos, entao,

para concluir , duas formas da multiplicidade, duas ava-

liacoes bern diferentes da duracao, dois aspectos da vida

consciente. Sob a duracao homogenea, simbolo extensi-

vo da duracao verdadeira, urna psicologia atenta disceme

urna duracao cujos momentos heterogeneos se penetram;

sob a multiplicidade numerica dos estados conscientes,uma multiplicidade qualitativa; sob urn eu com estados

bern definidos, urn eu onde sucessao implica fusao e or-

ganizacao. Em geral, porem, contentamo-nos com 0pri-

meiro, ou seja, com a sombra do eu projetada no espaco

homogeneo. A consciencia, atonnentada por urn insacia-

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6M EM OR IA E V ID A

vel desejo de distinguir, substitui a realidade pelo simbo-

10 , ou 56 percebe a realidade atraves do simbolo. Como 0

eu assim refratado e por isso mesmo subdividido presta-

se infinitamente melhor as exigencies da vida social em

geral e da linguagem em particular , ela 0prefere e perdepouco a pouco de vista 0 eu fundamental.

D.I., 94-6.

3 . P a ra a le m d a p si co lo gi a: a d u ra dio e 0 todo

. .. A sucessao e urn fato incontestavel, mesmo no

mundo material. Por mais que nossos raciocinios sobre os

sistemas isolados impliquem que a hist6ria passada, pre-

sente e futura de cada urn deles poderia ser aberta de gol-

pel em leque, nem por isso essa hist6ria deixa de se de-

senrolar pouco a pouco, como se ocupasse urna duracao

analoga a nossa. Se eu quiser preparar-ms urn copo de

agua com acucar, por mais que faca, terei de esperar que

o acucar derreta. Esse pequeno fato e rico em ensinamen-

tos. Pais 0tempo que tenho de esperar nfio e mais 0tem-

po matematico que continuaria podendo ser aplicado ao

longo da historia inteira do mundo material, mesmo que

esta se esparramasse de golpe no espaco. Ele coincide

com minha impadencte, ou seja, com uma certa porcao de

minha duracao propria, que nao po de ser prolongada ou

encurtada a vontade. Nao e mais algo pensado, mas algovivido. J a nao e uma relacao, e urn absolute'. 0 que sig-nifica isso, senao que 0copo de agua, 0aciicar e 0proces-

so de dissolucao do aciicar na agua sao sem diivida abs-

2. c r. texto 10.

A DURA~O EO METODa

tracoes e que 0Todo no qual foram recortados por meus

sentidos e meu entendirnento talvez progrida a maneirade uma consciencia?

E certo que a operacao por meio da qual a ciencia iso-

la e fecha urn sistema nao e uma operacao de todo artifi-

cial. Se nao tivesse urn fund amen to objetivo, nao se po-deria explicar por que ela e totalmente indicada em certos

casos e impossivel em outros.Veremos que a materia tern

urna tendencia a constituir sistemas isolaveis, que pos-

sam ser tratados geometricamente'. E ate mesmo por essa

tendencia que a definirernos. Mas e apenas uma tenden-

cia. A materia nao vai ate 0fim e 0 isolamento nunca e

completo. Se a ciencia vai ate 0fun e isola completamen-

tel e para facilitar 0estudo. Ela subentende que 0sistema,

dito isolado, continua submetido a certas influencias ex-

ternas. Deixa-as simplesmente de lado, seja porque as

considera suficientemente fracas para despreza -las, sejaporque se reserva a possibilidade de leva-las em conta

mais tarde. Nem por isso deixa de ser verdade que essas

influencias sao, todas, fios que l igam 0 sistema a Dutro

maisvasto, este a urn terceiro que engloba os dois e as-

sim por diante ate que se chega ao sistema mais objetiva-

mente isolado e mais independente de todos, 0sistema

solar em seu conjunto. Mas, me smo nesse caso, 0isola-

mento nao e absoluto. Nosso sol irradia calor e luz para

alem do planeta mais distante. E,por outro lado, move-se,

arrastando consigo as planetas e seus satelites, numa dire-

t;ao detenninada. 0 fio que 0prende ao resto do univer-

so e sem diivida bem tenue. Contudo, e por esse fio que

se trans mite, ate a mais infima parcela do rnundo onde vi-

vemos, a duracao imanente ao todo do universo.

3. Cf. textos 57, 60 e 67.

7

 

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8 MEM6R1A E VIDA

Q"universo dug. Quanto mais nos aprofundaonos.>

... .a ::a~ez~. do .tempo~ ma.I~ c<:mpree~a~!~~os __~e_<l!:t_racao slgnifica_}p~e.l}~ao, cnacao de formas, elaboracao

afn!filllilji~bso1utw-ent~ novo4• -Os slStemas-de1irnlta-...os pela ciencia 56 duram porque estao indissoluvelrnen-

te ligados ao resto do universo. E verdade que, no propriouniverso, e preciso distinguir, como diremos adiante, dois

movimentos opostos, urn de "queda", outro de "eleva-<;ao"5• 0 primeiro nada mais faz que desenrolar urn rolo

ja pronto. Poderia , em principio, realizar-se de maneira

quase instantanea, como ocorre corn uma mola que se

distende. Mas 0segundo, que corresponde a urn trabalho

interior de maturacao ou de criacao, dura essencialmente

e irnp6e seu ritmo ao primeiro, que e inseparavel dele.

E.C,9-11.

4.0 to do e a vida

Responderemos que nao contestamos a identidade

fundamental da materia bruta e da materia organizada",

A tinica questao e saber se os sistemas naturais que cha-

mamos seres "vivos devem ser assimilados aos sistemas

artificiais que a ciencia recorta na materia brutal ou se nao

deveriam, antes, ser comparados a esse sistema natural

que e 0todo do universo. Que a vida seja tuna especie de

mecanismo e algo com que devo concordar. Mas tratar-

se-ia do mecanismo das partes artificialmente isolaveis

4.Cf. texto 74.

5. Cf. texto 57.

6.Alguns bi6logos acusam a filosofia da vida de postular a distin-

~aode duas materias , Bergson vai mostrar que 0 problema de uma fi-

losof ia da v ida preocupada em salvaguardar a especificidade de seu

objeto nao trata de forma alguma dessa questao.

A DURAc;AO E0 METODO9

no todo do universo ou do mecanismo do todo real? 0

todo real poderia muito bern ser, diziamos, uma continui-

dade indivisfvel: os sistemas que nele recortamos nao se-

riam entao partes suas propriamente ditas ; seriam vistas

parciais do todo. E, com essas vistas parciais colocadas

lado a lado, voce nao obtera nem mesmo urn. comeco derecomposicao do conjunto, assirn como nao reproduzi-

reia materialidade de urn objeto multiplicando suas fo-

tografias sob mil aspectos diversos. 0 mesmo se aplica avida e aos fenomenos ffsico-quimicos nos quais se pre-

tenderia resolve-lao A analise certamente descobrira nos

processos de criacao organic a uma quantidade crescente

de fenomenos fisico-quimicos. E e a isso que se aterao os

quimicos e os ffsicos. Mas disso nao se conelui que a qui-

mica e a fisica devam nos dar a chave da vida.

Urn elemento muito pequeno de uma curva e quaseuma Iinha reta. Quanto menor ele for, rnais se parecera

com uma linha reta. No limite , pode-se dizer , conforme

o gosto, que faz parte de uma reta ou de uma curva. Em

cada urn de seus pontes, com efeito, a curva se confun-

de com sua tangente. Do mesmo modo, a Jlvitalidade/' e

tangente em qualquer ponte-as forcas fisicas e quimicas;

mas esses pontos nao sao, em suma, mais que vistas de

urn espirito que imagina paradas em tais ou quais mo-

mentos do movimento gerador da curva. Na verdade, a

vida e tao pouco feita de elementos ffsico-quirnicos quan-

to uma curva e composta de linhas retas.

E.C.,30-1.

5.0 t od o e a c oe xi ste nc ia d as d ura di ee

A rigor, poderia nao existir outra duracao alem da

nossa, tal como poderia nao haver no mundo Dutra cor

 

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10 MEM6RlA EVIDA

alem do Iaranja, por exemplo. Porem, assirn como umaconsciencia a base de cor que simpatizasse internamentecom 0laranja em vez de percebe-lo exteriormente senti-

ria estar,entre.0vennen:o e 0amarelo, pressentiria quemsabe ate, abaixo desta tiltima cor, todo urn espectro no

qual se prolonga naturahnente a continuidade que vai dovermelho ao arnarelo, tambem a intuicao de nossa dura-\ao, lange de nos deixar suspensos no vazio como faria apura analise, poe-nos em contato com toda uma conti-

n~dade ?e durac;?es que devemos tentar seguir, seja parabaixo, seja para cima: em ambos as casos, podemos nosdilatar indefinidamente por urn esforco cada vez maisviolento, em ambos as casos, transcendemos a nos mes-mos. No primeiro, carninhamos para uma duracao cada

vez mais disp~r~a, cujas palpitacoes mais rapidas que asnossas, ao dividirem nossa sensacao simples, diluem sua

qualidade em quantidade: no limite estaria0

puro ho-mogeneo, a pura repeticiio pela qual definiremos a rna-terialidade. Caminhando no outro sentido, vamos parauma duracao que se tensiona, se contrai, se intensificacada vez mais: no limite estaria a eternidade. Nao maisa etemidade conceitual, que e urna etemidade de morte,mas uma etemidade de vida. Eternidade viva e,por con-se~nte, ainda movente, onde a duracao que nos e pro-pna se encontraria como asvibracoes na Iuz,e que seriaa coalescencia de toda duracao assim como a materiali-dade e sua dispersao. Entre esses dois limites extremosa intuicao se move e esse movimento e a metaffsica'.

P.M., 210.

7. Cf. textos 17,22 e 26.

A DURAytO E 0 MEWDO 11

b) Caracteristicas da duracao

6.A durafiio e 0que muda denatureza

Imaginemos uma linha reta, indefinida, e sobre essa

linha urn ponto material A que se desloca. Se esse pontotomasse consciencia de simesmo, sentir-se-ia mudandoja que se move: perceberia uma sucessao. Mas essa su-cessao se revestiria para ele da forma de uma linha? Semdiivida sim, contanto que ele pudesse elevar-se de algummodo acima da linha que percorre e perceber nela simul-taneamente varies pontes justapostos: isso, porem, 0le-varia a formar a ideia de espaco, e e no espaco que veriadesenrolarem-se as mudancas que sofre e nao na puraduracao.Vemos aqui claramente 0erro daqueles que con-sideram a pura duracao como coisa analcga ao espa~o,mas de natureza mais simples. Satisfazem-se em justa-

por os estados psicologicos, em formar com eles umacadeia ou uma linha, e nem imaginam fazer intervir nes-sa operacao a ideia de espa\o propriamente dita, a ideiade espac;ona sua totalidade, porque 0espa~o e urn meiode tres dimensoes. Mas quem nao ve que, para perceberuma linha sob forma de linha, e preciso colocar-se foradela, dar-se conta do vazio que a cerca e pensar, por con-seguinte, urn espaco de tres dimensoes? Se0nosso pontoconsciente A ainda nao tern a ideia de espa~o - e e comessa hipotese que devemos trabaThar-, a sucessao dos es-tados pelos quais passa nao poderia revestir-se para ele da

forma de uma linha; mas suas sensacoes se juntarao di-namicarnente umas as outras e se organizarao entre sicomo fazem as notas sucessivas de uma melodia pela qualnos deixamos embalar. Em surna, a pura duracao bern po-deria nao ser senao uma sucessao de mudancas qualitati-vas,que sefundem, que sepenetram, sem contornos pre-

 

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1 2 A1EMDRIA E VIDA

cisos , sem nenhuma tendencia a se exteriorizarem umas

com relacao as outras , sem nenhum parentesco com 0rui-

mero: seria a heterogeneidade pura ..

V.I., 77.

7. A duraciio e a muliiplicidade qualitativa

Outra conclusao, contudo, pode ser extrafda dessa

analise: a de que a multiplicidade dos estados de cons-

ciencia, considerada em sua pureza original, nao apresen-

ta nenhuma sernelhanca com a multiplicidade distinta

que forma urn ruimero. Haveria ai, dizfamos, uma multi-

plicidade qualitativa. Em suma, seria preciso admitir duas

especies de multiplicidades, dois sentidos possfveis para

a palavra distinguir, duas concepcoes, uma qualitativa e

a Dutra quantitativa, da diferenca entre 0mesmo e 0outro.Umas vezes, essa multiplicidade, essa distincao, essa he-

. terogeneidade s6 content 0mimero em potencia, como

diria Arist6teles; isso porque a consciencia opera uma

discriminacao qualitativa sem nenhuma intencao velada

de contar as qualidades au mesmo de fazer delas minas;nesse caso, ha efetivamente multiplic idade sem quanti-

dade. Outras vezes, ao contrario, trata-se de uma multi-

plicidade de termos que sao contados ou que concebemos

como podendo ser contados; mas, entao, pensamos na

possibilidade de exterioriza-los uns com relacao aos ou-

tros; desenvolvemo-Ios no espaco. Infelizmente, estamostao acostumados a esclarecer esses dois sentidos da mes-

rna palavra urn pelo outro, a percebe-los ate urn dentro do

outre, que sentimos uma incrivel dificuldade para distin-

gui-los OU, ao menos, para exprimir essa distincao pela

linguagem. Assim, diziamos que varies estados de cons-

A DURA<;:AO EO METODO 13

ciencia se organizam entre si, penetram-se, enriquecem-

se cada vez mais e poderiam portanto dar, a um eu igno-

rante do espaco, a sensacao da duracao pura; porem, ja

para empregar a palavra "varies" tinhamos isolado esses

estados uns dos outros, tinhamos exteriorizado uns com

relacao aos outros, n6s as tinhamos justaposto, em umapalavra; e, assim, traiamos, pela propria expressao a qualeramos obrigados a recorrer, 0habito profundamente en-

raizado de desenvolver 0tempo no espaco. E da imagemdesse desenvolvimento, uma vez efetuado, que ernpres-

tamos necessariamente os termos destinados a expressar

o estado de uma alma que ainda nao 0tivesse efetuado:

esses termos estao portanto comprometidos por urn vfcio

original, e a representacao de uma multiplicidade sem re-

la~ao com 0mimero ou com 0espaco, embora clara para

urn pensamento que entra em si mesmo e se abstrai, nao

conseguiria se traduzir na lingua do senso comum. No

entanto, nao podemos formar a propria ideia de multipli-

cidade distinta sem considerar paralelamente 0que cha-

mamos uma multiplicidade qualitativa. Quando conta-

mos explicitamente unidades alinhando-as no espaco,

nao e verdade que ao lado dessa soma, cujos termos iden-

ticos se desenham sobre urn fundo homogeneo, prosse-

gue, nas profundezas da alma, uma organizacao dess~s

unidades umas com as outras, processo totalmente di-

namico, bastante analogo a representacao puramente

qualitativa que uma bigorna sensfvel teria do mimero

crescente de marteladas1 Nesse sentido, poder-se-ia qua-

se dizer que os mimeros de usa diario tern, cada urn, urnequivalente emocional. Os comerciantes sabem muito

bern disso e, em vez de indicar 0prec;o de um objeto par

urn mimero redondo de franc os, marcarao 0ruimero ime-

diatamente inferior, com a possibilidade de intercalar em

seguida urn ruimero suficiente de centavos. Em suma, 0

 

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14MEMORiA E VIDA

processo pelo qual contamos unidades e fonnamos com

elas uma rnultiplicidade distinta tern urn duplo aspecto:

por urn lado, supomo-las identicas, 0 que 56 pode ser

concebido com a condicao de que essas unidades se ali-

nhem num meio homogeneo; mas, por outro Iado, a ter-

ceira unidade, por exemplo, ao se juntar a s outras duas,modifica a natureza, 0aspecto e como que 0ritmo do

conjunto: sem essa penetracao mutua e esse progresso de

certo modo qualitativo, nao haveria soma possfvel, Por-

tanto, e gracas a qualidade da quantidade que formarnos

aideia de uma quantidade sem qualidade.

HI,90-2.

8 . A d ut tu ii o e 0movimento

Considere-se a flecha que voa. A cada instante, diz

Zenao", ela esta imovel, pais s6 teria 0tempo dese mover,

isto e, de ocupar ao menos duas posicoes sucessivas, se

lhe fossem concedidos ao menos dais instantes. Num da-

do memento, estaportanto ern repouso num ponto dado.

Im6vel em cada ponto de seu trajeto, esta, durante todo 0

tempo em que se move, imovel.

Sim, se supusermos que a flecha possa alguma vez es-

tar em urn ponto de seu trajeto. Sim, se a flecha, que e daordem do movente, coincidisse alguma vez com uma po-

sicao, que e da ordem da imobilidade. Mas a flecha niio

8. Zenao de Eleia, fil6sofo pre-socratico, autor de argumentos fa-

mosos cujo objetivo e mostrar, nao a impossibilidade do movimento,

mas a dificuldade de urn pensamento sobre 0movimento. Poucos sao

as fil6s0fos que nao refletiram sabre os paradoxes de Zenao, Mas Berg-son renovou essa reflexao, Cf. texto 62.

A DURAc;Aa E a METODa 15

esta nunea em nenhum ponto de seu trajeto. Deve-se no

maximo dizer que poderia estar num dado ponto, no sen-

tido de que passa par ele e que the seria autorizado de-

ter-se ali. E verdade que, easo ali se detivesse, ali ficaria

e, nesse ponto, nao seria mais com movimento que esta-

namos Iidando, 0 fato e que, se a flecha parte do pontoA para ir cair no ponto B, s eu movimento AB e tao sim-

ples, tao indecomponfvel, enquanto movirnento, quanta

a tensao do areo que a lanca. Como 0shrapnell", que ao

explodir antes de atingir 0solo eobre com urn perigo in-

divisfvel a zona de explosao, tambem a £lecha que vai de

A para B revela de uma 56vez, embora ao longo de uma

certa extensao de duracao, sua indivisfvel mobilidade. Su-

ponharn urn elastico que voces esticassem de A ate B:

poderiarn dividir sua extensao? 0 curso da fleeha e pre-cisamente essa extensao, tao simples quanta ela, indiviso

como ela. E urn s6 e unico salto. Podem fixar urn ponto C

no intervalo pereorr ido e dizer que nurn certo momento

a £lecha estava em C. Se nele tivesse estado e porque se

teria detido ali e voces nao teriam mais urn curso de A ate

B, mas dois cursos, urn de A para C, outro de C para B,

com urn intervalo de repouso. Urn movimento unico, por

hip6tese, epor inteiro movimento entre duas paradas:

caso haja paradas intermediarias, nao e mais um movi-

mento unico. No fundo, a ilusao decorre do fato de que,

u m a v ez e fe tu a do , 0movimento depositou ao longo de seu

trajeto uma trajet6ria im6vel sobre a qual podemos eon-

tar tantas imobilidades quantas quisermos. Dai conclui -se

que 0movimento, ao s e e fe tua r , depositou em cada instan-te embaixo de si uma posicao com a qual coincidia. Nao

se percebe que a trajetoria se cria de urn s6 golpe, ainda

que para isso precise de urn certo tempo, e que, embora se

, .TIpo de granada cheia de balins. [N. da T.1

 

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16MEMORIA E VIDA

possa dividir a vontade a trajetoria uma vez criada, nao

se conseguiria dividir sua criacao r que e urn ato em pro-

gresso e nao uma coisa. Supor que 0m6vel estti num pon-

to do trajeto e , com tun tesourada dada nesse ponto, COf-

tar 0trajeto em dois e substituir a trajetoria unica inicial-

mente considerada por duas trajetorias. 1 3 distinguir doisatos sucessivos ali onde, por hipotesc, ha apenas urn. En-

fim, e transportar para 0proprio curso da flecha tudo 0

que po de ser dito do intervalo que ela percorreu, ou seja,

admitir a priori 0 absurdo de que a movimento coincidacom 0Imovel.

E.C.,308-9.

9 . A d ur ad io e 0 i nd iv is iv e l e 0 substancialI

~

1 3 justamente essa continuidade indivisfvel de mu-i f . . danca que constitui a verdadeira duracao. Nao posso en-

trar aqui no exame profundo de urna questao de que tra-

. 1 . , ; tei em outra parte", Por isso, limitar-me-ei a dizer, pararesponder aqueles que veem nessa duracao "real" urn nfio

sei que de inefavel e de misterioso, que ela e a coisa maisclara do mundo: a d u ra dio r ea l e 0que sempre se chamou

tempo, mas a tempo percebido como indivisfvel. Nao dis-

cordo de que 0 tempo implica sucessao, Com 0que nao

posso concordar e com a ideia de que a sucessao se apre-

senta a nossa consciencia primeiro como distincao entre

urn "antes" e urn "depois" justapostos. Quando escuta-

mas uma melodia temos a mais pura impressao de suces-

sao que se possa ter - uma impressao tao distante quanto

possivel da da simultaneidade - e, no entanto, e a propria

9.EmOs dado s imed ia t os e depois emMiltmu e memo r ia .

A DURAcAo E0 METODO 1 7

continuidade da melodia e a impossibilidade de decom-

po-la que causarn em nos essa impressao. Se a recortar-

mos em notas distintas, em tantos IIantes" e "depois"

quantos quisermos, e porque mis~amo~ a ela im.agensespaciais e impregnamos a sucessao de simultaneidade:

no espaco e apenas ~o espac;o ha distincao n_f!idade :par-tes exteriores umas as outras. Reconheco, alias, que e no

tempo espacializado que nos pomos em.geral: ~ao temosnenhum interesse ern escutar 0 burburinho mmterrupto

da vida profunda. E, no entanto, a duracao real esta la o Egracas a ela que ocorrem num unico e m~sr:'0 tempo ~smudancas mais ou menos longas a que assistimos em nos

e no mundo exterior.

Portanto, quer se trate do dentro ou do fora, de nos ou

das coisas, a realidade e a pr6pria mobilidade. Era 0que

eu expressava ao dizer que ha mudanca, mas nao ha coi-sas que mudam.

Diante do espetaculo dessa mobilidade universal, al-

guns de nos serao tornados de vertigem. Estao acostuma-dos a terra firme; nao conseguem se acostumar com 0

caturro e a arfagem. Precisam de pontos "fixos" aos quais

amarrar as ideias e a existencia, Acreditam que, se tudo

passa, nada existe; e que, se a realidade e mobilidade, ela

ja nao e no momenta em qu~ a p~nsamos, ela. e scapa ao

pensamento. 0mundo material, dizem eles, vat se di~sol-

ver e ° espfr ito se afogar no fluxo torrentoso da~ coisas.- Podem ficar tranqililos [A mudanca, se consentirem em

olhar para ela diretamente, sem veu interposto, logo lhes

aparecera como 0 que pode haver de mais substancial eduradouro no mundo. Sua solidez e infinitamente supe-

rior a de uma fixidez que nao passa de urn arranjo efeme-

ro entre mobilidades.

PM., 166-7.

 

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18 MEM6RIA EVIDA

1 0. A d u ra di o e 0 absolu to

Enquanto voce apoiar 0rnovimento contra a linha

que ele percorre, a mesrno ponto lhe parecera sucessiva-

mente, conforme a origem a que voce 0 reporte, em re-

pouso ou em movimento. 0mesmo nao ocorre mais se

voce extrair do movimento a mobilidade que e sua essen-cia. Quando meus olhos me dao a sensacao de urn mo-

vimento, essa sensacao e uma realidade e algo efetiva-

mente acontece, seja porque urn objeto se desloca aos

rneus olhos, seja porque meus olhos se movem diante do

objeto. Com mais forte razao ainda fico certo da realidade

do movimento quando eu 0produzo depois de ter que-

rido produzi-lo e a sensacao muscular me fomece a cons-

ciencia dele. Significa dizer que apreendo a realidade do

movimento quando ele me aparece, intemamente, como

uma mudanca de estado ou de qualidade. Mas, entao, co-mo nao aconteceria a mesma coisa quando percebo mu-

dancas de qualidade nas coisas? 0 som difere absoluta-

mente do silencio, assim como tambem urn som de outro

som. Entre a luz e a escuridao, entre cores, entre nuances,

a diferenca e absoluta. A passagem de uma para a outra e~ela tambem, urn fenomeno absolutamente real. Detenho,

portanto, as duas extremidades da cadeia, as sensacoes

rnusculares em mim, as qualidades sensfveis da materia

fora de mim, e nem num caso nem no outro apreendo 0

movirnento, se movimento houver, como uma simples re-

lacao: e urn absoluto. - Entre essas duas extremidadesvern se colocar os movimentos dos corpos exteriores pro-

priamente ditos, Como distinguir aqui urn movimento

aparente de urn movirnento real? Acerca de que objeto,

exteriormente percebido, pode-se dizer que ele se move,

acerca de que outro, que pennanece im6vel? Fazer tal per-

A DURAc;Ao E0 METODa19

gunta e admitir que a descontinuidade estabelecida pelo

senso comum entre objetos independentes uns d?S ~u-

tros, cada qual com sua individualidade, comparaveis .a

especies de pessoas, e l lII1:adis~c;ao bern ~d~da. Nahl-

p6tese contraria, com efeito, nao se trat~a mais de sab;r

como se produzem, em tais partes dete~adas da mate-ria, mudanc;;as de posicao, mas como se da, no t .o~do,amudanca de aspecto, mudanca cuja natureza, alias, ainda

nos faltaria determinar.

M.M., 218-20.

c) A intuic;ao como metedo

11 . N ec essid ad e d e u r n me tod a para encontrar os

v er da de ir os p ro bl em as e a s d if er en fa s d e n atu re za

Por que a filosofia aceitaria uma ~visao.que t:m to-

das as chances de nao corresponder as articulac;oes do

real? No entanto, costuma aceita-la. Sujeita-se ao proble-

ma tal como ele e formulado pela linguagem. Cond.:n~:

se, portanto, por antecipac;~o, a recebe~ uma solucao 1a

pronta ou, na melhor das hipotese,:', a slffi~lesment: e~-colher entre as (micas duas ou tres solucoes possrveis,

coetemas a essa formulacao do problema. Seria 0mes.mo

que dizer que toda ~erda,d~ ja e virtualmente co~eCld~,

que seu modelo esta d~posltact,o nos mapas acimIIl1stra.ti-

vos da cidade e que a filosofia e urn p u z z l e em que 0obje-tivo e reconstituir, com pec;as que a sociedade ~os fomece,

o desenho que ela nao quer nos mos~ar. Sena 0mesmo

que atribuir ao filosofo 0papel e a a~tude do estudante,

que procura a solucao pensando C?nslgOmesmo que com

uma olhadela indiscreta ele a vena, anotada na frente do

 

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20 MEMORIA E VIDA

enunciado, no cademo do mestre. Mas a verdade e que,em filosofia e tambern alhures, trata-se bern mais de en-contrar 0problema e, por conseguinte, de formuld-lo, que

de resolve-lo. Pois urn problema especulativo esta resol-

vido a partir do momento em que esta bern formulado.

Quero dizer com isso que a solucao existe imediatamen-te, embora possa permanecer escondida e, por assim di-

zer, coberta: resta apenas descobri-la. Formular 0proble-

ma, porem, nao e simplesmente descobrir, e inventar, Adescoberta incide sobre 0que ja existe, atual ou virtual-

mente; portanto, era certo que aparecesse cedo ou tar-

de. A invencao dol0ser ao que nao era, poderia nao ter

ocorrido nunca. Em matematica, e com mais razao ainda

em metaffsica, 0esforco de invencao consiste em geral em

suscitar 0problema, em eriar os termos nos quais sera for-

mulado. Aqui, formulacao e solucao do problema estiio

muito perto de se equivalerem: os verdadeiros grandes

problemas 56 sao formulados quando sao resolvidos. Mas

muitos pequenos problemas entram no mesmo caso.

Abro urn tratado elementar de filosofia. Urn dos primeiros

capitulos trata do prazer e da dar. Fazem ao estudante

urna pergunta como esta: "0 prazer e ou nao e a felici-dade?" Contudo, seria preciso saber primeiro se prazer

e felicidade sao generos que correspondem a urn seccio-

namento natural das coisas. A rigor, a frase poderia sig-

nificar simplesmente: "Conslderado 0 sentido habitual

dos tennos prazer e felicidade, deve-se dizer que a felicida-

de seja uma sequencia de prazeres?" 0 que se coloca, en-

tao, e urna questao lexical; so sera resolvida verificando-secomo as palavras "prazer" e "felicidade" foram emprega-

das pelos escritores que melhor manejaram a lingua. Ter-

se-a alias feito urn trabalho utili ter-se-a definido melhor

dois termos usuais, ou seja, dais habitos sociais. Mas se

nosso intuito e fazer mais que isso, e captar realidades e

A DURAytO E0 METODO 21

nao aperfeicoar convencoes, por que querer que termos

talvez artificiais (nao sabemos se sao ou nao sao artificiais,

porque ainda nao estudamos 0objeto) formulem urn pro-

blema que conceme a propria natureza das coisas? Supo-nha que examinando os estados agrupados sob 0nome

de prazer nao se descubra nada comum entre eles, salvoo fato de serem estados que 0homem busca: a humani-

dade tera classificado essas coisas muito diferentes num

mesmo genera porque identificava nelas 0mesmo inte-

resse pratico e porque reagia a todas da mesma maneira.

Suponha, por outro lado, que se chegue a urn resultado

analogo ao analisar a ideia de felicidade. 0 problema de-

saparece imediatamente ou, antes, dissolve-se em proble-

mas totalmente novos, acerca dos quais nada poderemos

saber e dos quais nao possuiremos nem mesmo os ter-

mos antes de ter estudado em si mesma a atividade hu-

mana com relacao it qual a sociedade adotara vis6es tal-

vez artificiais, visoes obtidas de fora para formar as ideias

gerais de prazer e de felicidade. 'Iambem sera preciso estar

certo, para comecar, de que 0proprio conceito de "ativi-

dade humana" corresponde a urna divisao natural. Nessa

desarticulacao do real segundo suas tendencies proprias

jaz a principal dif iculdade tao logo se abandona 0 terre-

. no da materia para entrar no do espfrito.

PM., 51-3.

1 2. A critica d o s f a ls o s p rob lemas

Esse esforco exorcizara alguns fantasmas de proble- .

mas que obcecam 0metafisico, ou se]a, cada urn de nos.

Refiro-me aos problemas angustiantes e insohiveis que

nao versam sobre 0que existe, mas antes sobre 0que nao

 

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22M EM OR L4 . E V ID A

existe.E 0 caso do problema da origem do ser: "Como

pode ser que algo exista - materia, espfrito ou Deus? Deve

t~r ha~do urn_acausa, e urna causa da causa, e assim por

diante mdefinidamente./I Remontamos, pois, de causa em

~aus~; : s~ paramos em algum lugar, nao e porque nossa

inteligencia na~ pr~cura mais nada alem dali, mas por-que nossa unagma~ao acaba fechando os olhos como na

beira do ahismo, para evitar a vertigem. E tambem 0caso

do problema da ordem em geral: "Par que uma realidade

ordenada, onde nosso pensamento se reconhece como

num espelho? Por que 0mundo nao e incoerente?" Dis-

se que esses problemas tratam bern rnais do que nao exis-

te do qu: do que existe. Com efeito, ninguem nunca se

espantana com ~ fato de que algo exista - materia, espir i-

to, Deus -, se nao se admitisse implicitamente que po-

deria nao existir nada. Supomos, ou melhor, acreditamos

supo~ q~e 0 ~er veio preencher urn vazio e que 0 nadapreexisna logtcamente ao ser: a realidade primordial _

quer a chamemos materia, espfrito ou Deus - viria entao

acrescer-se a ele, e isso e incompreenslvel. Da mesma for-

~a, ninguem se perguntaria por que a ordem existe se

~ao se concebesse uma desordem que teria se dobrado

~ ordem e que, par conseguinte, a precederia, ao menos

idealmente. A ordem teria, portanto, necessidade de ser

explicada, ao passo que a desordern, exist indo de dire ito

nao exigiria explicacao, 1 3 esse 0ponto de vista em que se

corre a risco de ficar caso se procure apenas campreen-

der. Mas tentemos, alem disso, gerar (coisa que so pode-remos fazer, evidentemente, pelo pensamento). A medidaque dilatarnos nossa vontade, que tendemos a reabsorver

nela nosso pensamento e que sirnpatizamos rnais com 0

esforco 9 u: gera as coisas, esses enormes problemas re-

cuam, diminuem, desaparecem. Pois sentimos que urna

A D UR A c; :A O E 0MtTODO 23

vontade OU urn pensamento divinamente eriador esta ple-

no demais de si mesmo, na sua imensidade de realidade,

para que a ideia de urna falta de ordem ou de uma falta de

serpossa simplesmente toca-Io, mesmo que de leve. Con-

ceber a possihilidade da desordem absoluta e, com mais

forte razao ainda, do nada seria para ele dizer-se quepoderia nao ter existido em absoluto, e isso seria uma

fraqueza incompativel com sua natureza, que e forca.

Quanto mais nos voltamos para ele, mais as diividas que

atormentam 0homem normal e saudavel nos parecem

anormais e morbidas. Lembremos 0duvidador que fe-

cha uma janela, depois volta para verificar 0fechamento,

depois verif ica sua verificacao e assim por diante. Se Ihe

indagarrnos seus motivos, respondera que poderia ter

aberto a janela a cada vez que tentou fecha-la melhor. E,

se for filosofo, transpora intelectualmente a hesitacao de

sua conduta para este enunciado de problema: "Como tercerteza, ter uma certeza definit iva de que fizemos 0que

queriamos fazer?" Mas a verdade e que seu poder de agir

esta lesado e que e esse 0mal de que sofre: tinha apenas

uma meia vontade de realizar 0ate e e por isso que 0ate

real izado so lhe deixa uma meia certeza. Ainda assim, 0

problema que esse homem se coloca, nos 0resolvemos?

E evidente que nao, mas nao 0colocamos: nisso esta nos-

sa superioridade. A primeira vista, eu poderia erer que ha

nele mais que em mim, ja que nos dois fechamos a jane-

la e ele, alem disso, levanta uma questao filosofica, e eu

nao, Mas a questao que nele se acresce a tarefa feita re-presenta, na verdade, apenas algo negativo; nao e algo amais, e algo a menos; e urn deficit do querer. E esse, pre-cisamente, 0efeito que produzem em nos certos Ifgran-

des problemas", quando voltamos a nos orientar pelo

pensarnento gerador. Tendem a zero a medida que nos

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24 MEMORIA EVIDA

aproximamos desse pensamento, nao sendo mais que a

distancia entre ele enos. Descobrimos entao a ilusao da-

quele que acredita fazer mais ao formula-los do que ao

nao osfonnular. Pode-se tambem imaginar que ha rnais na

garrafa bebida pela metade do que na garrafa cheia, por-

que esta contem apenas vinho, ao passo que na outra ha vi-000 e, ademais, vazio,

Contudo, assim que percebemos intuitivamente 0

verdadeiro, nossa inteligencia se emenda, se corrige, for-

mula intelectualmente seu erro. Ela recebeu a sugestao:

ela fomece 0 contrale. Assim como 0mergulhador vai

apalpar no fun do da agua os destrocos que 0 aviador

apontou do alto do ceu, a inteligencia imersa no meio con-ceitual verificara ponto por ponto, por contato, analitica-

mente, 0que fora objeto de uma visao sintetica e supra-

intelectual. Sem uma advertencia vinda de fora, a ideia

de uma possfvel ilusao nem mesmo teria passado por sua

cabeca, pois sua ilusao fazia parte de sua natureza. Sacudi-

da de seu sono, analisara as ideias de desordem, de nada

e seus congeneres. Reconhecera=- quando mais nao seja

por urn instante, mesmo que a ilusao reapareca tao logo

seja expulsa - que nao se pode suprimir urn arranjo sem

que outro arranjo osubstitua, retirar materia sem que ou-

tra materia venha ocupar seu lugar."Desordem" e"nada"

designam, portanto, realmente uma presenca - a presen-

ca de uma coisa ou de uma ordem que nao nos interessa,

que desaponta nosso esforco ou nossa atencao: e nossa

decepcao que se exprime quando chamamos essa presen-

ca de ausencia. A partir dai, falar da ausencia de qualquerordem e quaisquer coisas, isto e , da desordem absoluta e

do nada absoluto, e pronunciar palavras vazias de sentido,

f la tu s voci s, posto que uma supressao e sirnplesmente uma

substituicao vista por apenas uma de suas duas faces, e

que a abolicao de toda ordem ou de todas as coisas seria

A DURA(.40 E aMETODa 25

uma substituicao de face iinica - ideia que tern tanta exis-

tencia quanto a do quadrado redondo. Portanto, quando

o filosofo fala de caos e de nada, apenas transporta para

a ordem da especulacao - elevadas ao absoluto e esvazia-

das por isso de qualquer sentido, de qualquer conteudo

efetivo - duas ideias feitas para a pratica e que estavamrelacionadas com uma especie determinada de materia ou

de ordem, mas nao com toda ordern, nao com toda ma-

teria. A partir daf, que acontece com os dois problemas da

origem da ordem, da origem do ser? Eles somem, uma vez

que so se colocam se imaginarmos 0ser e a ordem como

IIsobrevindos" e, por conseguinte, 0nada e a desordem

como possfveis ou, ao menos, concebfveis; mas tudo isso

sao s6 palavras, miragens de ideias.

PM., 65-8.

13 . Exemplo : 0 f al so p rob lema da i ni en si dad e

Constatamos que os fatos psiquicos eram em si mes-

mas qualidade pura ou multiplicidade qualitativa e que,

por outro lado, sua causa situada no espaco era quanti-

dade". Na medida em que essa qualidade se torna 0sig-

no dessa quantidade e que suspeitarnos que esta esteja por

tras daquela, nos a chamamos intensidade. A intensidade

de urn estado simples nao e, portanto, a quantidade, mas

seu signo qualitativo. Encontrarao a origem disso num

compromisso entre a qualidade pura, que e 0apanagio da

consciencia, e a pura quantidade, que e necessariamenteespaco, Ora, voces renunciam a esse compramisso sem 0

10.E essa a tese do primeiro capitulo de Dadoe ime di a to e .

 

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26 MEMOR IA E VIDA

menor escnipulo quando estudam as coisas exteriores, ja

que entao deixam de lado as pr6prias forcas, supondo-se

que elas existam, para considerar apenas seus efeitos

mensuraveis e extensos. Por que conservariam esse eon-

ceito bastardo quando for avez de analisar 0fato de eons-

ciencia? Se, fora de voces, a grandeza nunea e intensiva,a intensidade, dentro de voces, nunea e grandeza. Foi pornao te-lo compreendido que os fil6sofos tiveram de dis-

tinguir duas especies de quantidade, uma extensive, a ou-

tra intensiva, sem nunea eonseguir explicar 0que elas ti-

nham em comum entre si,.nem como se podiam empregar,

para coisas tao dissimeis, as mesmas palavras "crescer" e

/Idiminuir" .Por isso eles sao responsaveis pelos exageros

da psicofisica"; pols, quando coneedem a sensacao, quenao seja de modo metaf6rieo, a faculdade de crescer, con-

vidam-nos a tentar descobrir 0quanto ela cresce. E, do

fato de que a consciencia nao mede a quantidade inten-siva, nao se segue que a ciencia nao possa consegui- lo in-

diretamente, se for uma grandeza. Ou existe uma f6nnula

psicofisica possivel, ou a intensidade de urn estado psiqui-co simples e qualidade pura.

o.I.,169.

14.0 f also p ro bl em a d o n ad a

Como opor entao a ideia de Nada a de Tudo? Nao ve-mos que isso e opor 0pleno ao pleno e que a questao

de saber "por que existe algor ! e , por eonseguinte, uma

11.Tentativa de alguns fil6sofos e psic61ogos de determinar a re-

la~aoentre as variacoes quantitativas da excitacao e as da sensacao,

A DURAcAo E0METODa 27

questao desprovida de sentido, urn pseudoproblema le-

vantado em torno de uma pseudo-ideia? No entanto,

temos de dizer uma vez mais por que esse fantasma de

problema assombra 0 espirito com tamanha obstinacao,

Em VaGmostramos que, na representacao de uma IIabo-

licao do real", ha apenas a imagem de todas as realidadeseliminando-se entre si, indefinidamente, em drcu1o. Em

VaG agregamos que a ideia de inexistencia e apenas a da

expulsao de urna existencia imponderavel, ou existencia

"meramente possfvel", por uma existencia mais substan-

cial, que seria a verdadeira realidade. Em VaG encontramos

na forma s u i g ener is da negacao algo de extra-intelectual,a negacao sendo 0juizo de urn juizo, urna advertencia fei-

ta a outrem ou a si mesmo, de modo que seria absurdo

atribuir-lhe 0poder de criar representacoes de urn novo

tipo, ideias sem conteiido. Ainda assim persiste a convic-

<;aode que, antes das coisas, ou pelo menos sob as coisas,ha 0nada. Se buscamos a razao desse fato, encontramo-Ia

precisarnente no elemento afetivo, social e, para resumir,

pratico, que confere sua forma especffica a negacao, As

maiores dificuldades filos6ficas nascem, diziamos, do fato

de que as formas da ar;ao humana se aventurarn fora de

. seu dominio proprio. Somos feitos para agir tanto ou mais

que para pensar - ou antes, quando seguimos 0movi-

menta de nossa natureza, e para agir que pensamos. Por-

tanto, nao deve causar espanto que os habitos da a<;ao

impregnem as da representacao e que nosso espfr ito per-

eeba sernpre as coisas na mesma ordem em que estamosacostumados a pensa -las quando nos prop amos a agir

sobre elas. Contudo, como observavamos anteriormente, .

e incontestavel que toda acao humana tern como ponto

de partida uma insatisfacao e, por isso, urn sentimento de

ausencia. Nao agiriamos se nfio nos propusessemos urn

 

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28 MEMORIA E VIDA

objetivo, e 56 procuramos uma eoisa porque nos senti-

mos privados dela. Nossa a<;aoprecede assim de "nada"

para" alguma coisa' e e de sua essencia bordar "alguma

coisa" sobre 0canevas do "nada", A bern dizer, 0nada a

que nos referimos aqui nao e tanto a ausencia de uma

coisa quanta a de uma utilidade. Se conduzo urn visi-tante ate urn comodo que ainda nao guameci de m6veis,

aviso-o de que "nao tern nada". Sei no entanto que 0co-

modo esta cheio de ar; mas, como nao e sabre 0 ar que

nos sentamos, 0comodo realmente nao contem nada da-

quilo que, naquele momento, conta para 0visitante e para

mimmesmo. De urn modo geral, 0rabalho humane con-

siste em criar utilidade, e, enquanto 0trabalho nao estiver

feito, nao ha "nada" - nada do que se queria obter. Passa-

mos a vida assim, a preencher vazios que nossa inteligen-

cia eoncebe sob a influencia extra-intelectual do desejo e da

nostalgia, sob a pressao das necessidades vitais: e, se en-tendermos por vazio uma ausencia de utilidade e nao de

.coisas, podemos dizer, nesse sentido totalmente relativo,

que vamos constantemente do vazio para 0pleno. E nes-sa direcao que vai nossa acao, Nossa especulacao nfio

pode se impedir de fazer 0mesmo e, naturalrnente, pas-

sa do sentido relat ivo ao sent ido absoluto, ja que se exer-

ce sobre as coisas mesrnas e nao sobre a utilidade que elas

tern para nos. E assim que se implanta em nos a ideia de

que a realidade preenche urn vazio e que 0nada, conce-

bido como ausencia de tudo r preexiste a todas as coisas de

direito, senao de fato. E essa ilusao que tentarnos dissipar,mostrando que a ideia de Nada, caso se pretenda ver nela

a de uma abolicao de todas as coisas, e uma ideia que se

destr6i a si mesma e se reduz a uma mera palavra - que

se, ao contrario, for verdadeiramente uma ideia, encon-

traremos nela tanta materia quanta na ideia de Tudo.

A DURAc;Aa E a METODa 29

Essa longa analise era necessaria para mostrar que

u ma realidade q ue se basta a si m esm a nao e necessariamen-

te uma r ea li da de alheia a duradio. Se passamos (conscien-

te ou inconscientemente) pela ideia do nada para chegar

a do Ser,0Ser ao qual se ehega e uma essencia logica ou

matematica, portanto intemporal. A partir dai, uma con-cepcao estatica do real se imp6e: tudo parece dado de

uma s6 vez, na eternidade. Mas e preciso acostumar-se a

pensar 0Ser diretamente, sem fazer urn desvio, sem di-

rigir-se primeiro ao fantasma de nada que se interp6e

entre ele e n6s. E preciso procurarver para ver e nao mais

ver para agir, Entao, 0Absoluto se revela muito perto de

nos e, em certa medida, em nos. Ele e de essencia psico-16gica e nao matematica ou logica, Vive conosco. Como

nos, mas, sob certos aspectos, infinitamente mais coneen-

trado e mais voltado para si mesmo, ele dura.

E.C, 296-8.

15.0 falso p ro bl ema do p os sf ve l

As duas ilusoes que acabo de assinalar sao na ver-

dade urna so. Consistem em acreditar que ha menos na

ideia do vazio que na do cheio, menos no conceito de

desordem que no de ordem. Na verdade, ha mais con-

teiido intelectual nas ideias de desordem e de nada,

quando elas representam algo, do que nas de ordem e

de existencia, porque implicam varias ordens, varias exis-tencias e, alem disso, uma fantasia mental que se diverte

inconscientemente com elas.

Pois bern, encontro a mesma ilusao no caso que nos

interessa, No fundo das doutrinas que ignoram a novida-

de radical de cada momento da evolucao, ha muitos mal-

 

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30 MEMORIA EVIDA

entendidos, muitos erros. Mas ha sobretudo a ideia de

que 0possivel e menos que 0real e que, por esse motivo,

a possibilidade das coisas precede sua existencia. Seriam,

dessa rnaneira, representaveis de antemao: poderiam ser

pensadas antes de ser realizadas. Mas e 0 contrario que

e verdade. Se deixarmos de lade os sistemas fechados,submetidos a leis puramente materna ticas, isolaveis por-

que a duracao nao age sobre eles, se considerarmos 0

conjunto da realidade concreta ou simplesmente 0mun-

do da vida e, com mais ramo ainda, 0cia consciencia, ve-

rificaremos que ha mais, e nfio menos, na possibilidade de

cada urn dos estados sucessivos do que na sua realidade.Pois 0possfvel nada mais e que 0 real acrescido de urn

ato mental que rejeita sua imagem no passado uma vez

que ele se produziu. Mas e isso que nossos habitos inte-

lectuais nos irnpedem de perceber ...

...A proporcao que a realidade se cria, imprevisfvel e

nova, sua imagem se reflete atras dela no passado indefi-

nido, ve-se assim que ela foi, desde sempre, possfvel, mas

e nesse momenta preciso que ela comeca a sempre te-Io

sido, e e por isso que eu dizia que sua possibilidade, que

nao precede sua realidade, a tera precedido assim que a

realidade aparecer, 0 possivel e , portanto, a miragern do

presente no passado; e como sabemos que 0porvir aca-

bara por ser presente, como 0efeito de miragern continua

se produzindo sem descanso, dizemos para nos mesmos

que no nosso presente atual, que sera 0passado amanha,

a imagem de amanha ja esta contida, conquanto nao con-

sigaIl)os apreende-la, Nisso consiste precisamente a ilu-sao. E como se imaginassemos, ao ver nossa imagem no

espelho diante do qual nos colocamos, que teriamos po-

dido toea-I a se tivessemos ficado arras.Alias, ao julgar as-

sim que 0passive! nao pressup6e 0real, admitimos que a

realizacao acrescenta algo a simples possibilidade: 0pos-

A DURA<;AO E0 METODO 31

sivel teria estado ali'desde sempre, fantasma que espera

a sua hora chegar; teria, portanto, se tornado realidade

pela adicao de algo, por nao sei que transfusao de sangue

au de vida. Nao se ve que e justamente 0contrario, que

a possivel implica a realidade correspondente acrescida,

ademais, de algo que a ela se junta, ja que 0possivel eo efeito combinado da realidade depois que ela apareceu

e de urn dispositive que a rejeita para tras. A ideia, ima-

nente a maioria das filosofias e natural para 0espirito hu-rnano, de possiveis que se realizariarn por urna aquisicao

de existencia, e portanto pura ilusao, Seria 0mesmo que

afirrnar que 0hornern de carne e osso provem da materia-

lizacao de sua irnagem percebida no espelho, sob a ale-

ga<;aode que ha nesse homem real tudo 0que se encon-

tra nessa imagem virtual acrescida da solidez que faz comque possarnos toea-lao Mas a verdade e que, nesse caso, epreciso mais para obter 0virtual do que para obter 0real,

mais para a imagem do hornern do que para 0proprio ho-

mern, pois a imagem do homem nao se desenhara se nao

se comecar por ter 0homem, e, alem dele, urn espelho.

PM., 109-12.

16 . Formu la r os p ro ble ma s e m te rm os d e d ura ca o

Para nos, nunca ha instantaneo. Naquilo que chama-

mas por esse nome ja entra urn trabalho de nossa memo-

ria e,por conseguinte, de nossa consciencia, que prolongauns nos outros, de maneira que os apreenda nurna intui-

<;ao relativarnente simples, tantos momentos quanto se

queira de urn tempo indefinidamente divisivel. Mas onde

esta exatamente a diferenca entre a materia, tal como 0maisexigente realisrno poderia concebe-la, e a percepcao que

 

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32 MEM6RIA E VIDA

dela temos?" Nossa percepcao nos da do universo uma

sene de quadros pitorescos, mas descontinuos: de nossa

percepcao atual nao conseguir iamos deduzir as percep-

c;6es posteriores, porque nao ha nada, num conjunto de

qualidades sensiveis, que permita preyer as qualidades no-

vas em que elas se transformarao, J a a materia, tal como0

realismo costuma propo-la, evolui de modo que se pos-

sa passar de urn momento ao momenta seguinte par via

da deducao matematica, E verdade que entre essa mate-

ria e essa percepcao 0realismo cientffico nao conseguiria

encontrar urn ponto de contato, porque ele desenvolve

essa materia em mudancas homogeneas no espac;o, ao

passo que restringe essa percepcao a sensacoes inexten-

sivas numa consciencia, Porem, se nossa hip6tese estiver

bern fundada, e facil ver como percepcao e materia se dis-

tinguem e como coincidem. A heterogeneidade qualitati-

va de nossas sucessivas percepcoes do universo prende-se

ao fato de cada uma dessas percepcoes estender-se elapropria sobre uma certa espessura de duracao, ao fato

de a memoria condensar nela uma multiplicidade enor-

me de abalos que nos aparecem todos juntos, embora se-

jam sucessivos. Bastaria dividir idealmente essa espessura

indivisa de tempo, distinguir nela a multiplicidade dese-

jada de mementos, eliminar toda memoria, em uma pa-

lavra, para passar da percepcao a materia, do sujeito ao

objeto. Entao a materia, que se tomaria cada vez mais

homogenea a medida que nossas sensacoes extensivas

se distr ibuissem sobre urn ruimero maior de mementos,

tenderia indefinidamente para esse sistema de abalos ho-mogeneos de que fala 0realismo, sem contudo, e verda-

12.0 que Bergson critica no "realismo cientifico" e nao entendera natureza da relacao entre a materia e a percepcao, justamente por sa-

crificar a duracao ao instantaneo.

A DURAc;Ao E0 METODa 33

de, jamais coincidir totalmente com eles. Nao seria absolu-

tamente necessario propor, de urn lado, 0espac;o com mo-

vimentos despercebidos, do outro, a conscienda com sen-

sacoes inextensivas. Ao contrario, e numa percepcao ex-

tensiva que sujeito e objeto se uniriam inicialmente,_ 0

aspecto subjetivo da percepcao consisti~d? na contra~~oque a memoria opera e a realidade objetiva da matena

se confundindo com os mult iples e sucessivos abalos nos

quais nossa percepcao se decompoe intem~ente:E esta ao menos a conclusao que se extrarra, assim es-

peramos, da Ultima parte deste rr:a~~d3: a s q u e st .~ e s r e-l ativ as a o s uje ito e a o o bje to , a s ua d zs tm r; a_ oe a s ua uniao , de -

vern s er f o rmu l ada s em fum;i i.o antes do tem po q ue d o e spa90.

M.M., 72-4.

1 7. A in tu id io , p ara a le m da analise e da einiese

Mas, se a metaffsica deve proceder por intuicao, se

a intuicao tern por objeto a rnobilidade da duracao e se a

duracao e por essencia psicologica, nao encerraremos 0

f i16sofo na contemplacao exclusiva de si mesmo?" A fi-

losofia nao consistira em simplesmente se olhar viver ,

"como urn pastor sonolento olha a agua correr"? Falar

dessa rnaneira seria reincidir no erro que assinalamos sem

cessar desde 0comeco deste estudo. Seria ignorar a na-

13. Aqui, Bergson alude ao conjunto das conclusoes de Materia e

memoria.14. A intui~o tern todas as caracteristicas precedentes: critica OS

falsos problemas, descobre os verdadeiros problemas, formula os pro-

blemas em fun~1i.odo tempo. Mas se tern todas essas caracterfsticas eporque, em simesma, ela e coincidencia com a duracao.

 

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34 M EM O RI A E V ID A

tureza singular da duracao bern como 0carater essencial-

mente ativo da intuicao metaffsica. Seria nao ver que ape-

nas 0metodo de que falamos perrnite ultrapassar tanto

o idealismo como 0realismo, afirmar a existencia de ob-

jetos inferiores e superiores a nos, embora, em certo sen-

tido, interiores a nos, faze-los coexistir sem dificu1dade,dissipar progressivamente as obscuridades que a analise

acumula em torno dos grandes problemas. Sem abordar

aqui 0estudo desses varies pontes, limitemo-nos a mos-

trar como a intuicao de que falamos nao e urn ato iinico,mas uma serie indefinida de atos, todos do mesmo gene-

ro sem duvida, mas cada urn de urn tipo muito particular,

e como essa diversidade de atos corresponde a todos os

graus do ser.

Se quiser analisar a duracao, ou seja, resolve-la em

conceitos ja prontos, sou obrigado, pela propria natureza

do conceito e da analise, a adotar no tocante a d ura oio e m

geral dais pontos de vista opostos com os quais pretende-

rei em seguida recompo-la. Essa combinacao nao podera

apresentar nem uma diversidade de graus nem uma va-

riedade de fonnas: ela e au nao e . Direi, por e.xemplo, queha por urn lado uma multiplicidade de estados de cons-

ciencia sucessivos e.por outro, uma un idade que os reune,

A duracao sera a" sfntese" dessa unidade e dessa multipli-

cidade, operacao misteriosa em que nao se percebe, repi-

to, como ela poderia comportar nuancas ou graus. Nessa

hipotese, so hal so pode haver uma duracao unica, aquela

em que nossa consciencia opera hahitualmente. Para fixar

as ideias, se tomarmos a duracao sob 0aspecto simples deurn movimento que se realiza no espaco e tentarmos re-

duzir a conceitos 0movimento considerado como repre-

sentativo do Tempo, teremos por urn lado urn mimero tao

grande quanta se quiser depontos da trajet6ria e, par ou-

tro, uma unidade abstrata que os reune, como urn fio que

A D UR A< ;A o E 0 METODa 35

mantivesse juntas as perolas de urn eolar. Entre essa mul-

tiplicidade abstrata e essa unidade abstrata, a combina-

c;ao,uma vez formulada como possfvel, e coisa singularpara a qual nao encontraremos mais nuancas do que

aquelas que admite, em aritmetica, uma soma de mime-

ros dados. Mas set em vez de pretender analisar a duracao(au seja, no fundo, fazer sua sintese com conceitos), nos

instalarmos primeiro nela par urn esforco de intuicao. te-

remos a sensacao de uma certa tensiia bern determinada,

cuja propria determinacao aparece como uma escolha en-

tre uma infinidade de duracoes possfveis. A partir dai, per-

cebem-se quantas duracoes se quiser, todas muito dife-

rentes umas das outras, embora cada uma delas, reduzida

a conceitos, ou seja, considerada exteriormente dos dois

pontos de vista opostos, sempre se resume a mesma in-

definivel combinacao do multiple e do urn.

P.M., 206-8.

1 8. A d if er en ca , o b je to d a i nt uid io

Tomemos, par exemplo, todos as matizes do area-Iris,

os do violeta e do azul, os do verde, do amarelo e do ver-

melho. Creio que nao estaremos traindo a ideia mestra

do Sr. Ravaisson" ao dizer que have ria duas maneiras de

deterrninar 0que eles tern em comum e, par conseguinte,

de filosofar sabre eles.A primeira consistiria simplesmen-te em dizer que sao cores. A ideia abstrata e geral de cor

15. Bergson tinha grande admiracao por Ravaisson (1813-1900) e,

em La P e ns ee e t l e M o u v an t, dedica urn artigo a sua obra; descobre nelauma concepcao da filosofia proxima da sua em certas aspectos.

 

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36 MEMORIA EVlDA

torna-se assirn a unidade a qual a diversidade dos matizes

se resume. Mas so obtemos essa ideia geral de cor apa-

gando do vermelho 0que faz dele urn vermelho, do azul

o que faz dele urn azul, do verde 0que faz dele urn verde;

so podemos defini-la dizendo que ela nao representa nem

o vermelho, nem 0 azul, nem 0verde; e uma afirmacaofeita de negacoes, uma forma circunscrevendo 0vazio. A

isso se atem 0filosofo que fica no abstrato. Por via de uma

generalizacao crescente, acredita encaminhar-se para a

unificacao das coisas: e que procede por extincao gradual

da luz que salientava as diferencas entre os tons e acaba

confundindo-os todos numa escuridao comum, Tota1men-

te cliferente e 0metodo verdadeiro de unificacao. Consis-

tiria, nesse caso, em tomar os mil e urn matizes do azul, do

violeta, do verde, do amarelo, do vermelho, e,fazendo-os

atravessar uma lente convergente, conduzi-los a urn mes-

mo ponto. Entao apareceria em todo 0 seu esplendor apura luz branca, aquela que, percebida aqui embaixo nos

matizes que a dispersam, conteria la em cima, na sua uni-

dade indivisa, a diversidade indefinida dos raios multico-

lores. Entao se revelaria tambem, ate mesmo em cada ma-

tiz tornado isoladamente, 0 que 0 olho nao notava num

primeiro mom en to, a luz branca de que ele participa, a

claridade comum de onde ele tira sua coloracao propria. Eesse, sem duvida, segundo 0Sr. Ravaisson, 0tipo de visaoque devemos pedir a metafisica. Da contemplacao de urn

marmore antigo podera brotar, aos olhos do verdadeiro

filosofo, mais verdade concentrada do que a que existe,em estado difuso, em todo urn tratado de filosofia", 0 ob-

16. Ravaisson foi conservador do museu do Louvre. Conseguiu

restaurar a Venus de Milo e a VitJria de Samotrric ia, restituindo a essas es-

tatuas, segundo dizem, sua atitude original.

A DURAy10 E0 METODa 37

jetivo da metafisica e voltar a captar nas existencias indi-

viduais e seguir ate a fonte de onde ele emana 0raio par-

ticular que, conferindo a cada uma delas seu matiz proprio,

vincula-a desse modo a luz universal.

P.M. , 259-60.

d) Ciencia e filosofia

1 9. D i fe re nc a d e n at ur ez a e nt re a c ie nc ia e a m et af is ic a

Queremos uma diferenca de metodo, nao admitimos

uma diferenca de valor entre a metaffsica e a ciencia. Me-

nos modestos no tocante a ciencia do que 0 foi a maioria

dos cientistas, achamos que uma ciencia fundada na ex-

periencia, tal como os modernos a entendem, pode alcan-car a essencia do real. E certo que ela abarca tao-somenteuma parte da realidade; mas dessa parte podera urn dia

tocar 0fundo; em todo caso, ir a se aproximar dele indefi-nidamente. Portanto, ja satisfaz metade do programa da

antiga metafisica: metafisica ela poderia se chamar se nao

preferisse conservar 0nome de ciencia, Resta a outra me-

tade. Esta nos parece competir de direito a uma metafisi-

ca que tambem parte da experiencia e que tambem tern

condicoes de alcancar 0 absoluto: chama-la-Iamos de

ciencia se a ciencia nao preferisse limitar-se ao resto da

realidade. Portanto, a metafisica nao e superior a cienciapositiva; nao vern, depois da ciencia, considerar 0mesmo

objeto para obter dele urn conhecimento mais elevado.

Supor entre elas essa relacao, segundo 0costume mais ou

menos constante dos filosofos, e prejudicar a ambas: aciencia, que se ve condenada a relatividade; a metafisica,

 

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I

I\

l

38 MEMORIA EVIDA

que nao sera rnais que urn conhecimento hipotetico e va-

go, ja que a ciencia tera necessariamente tornado para si,

de antemao, tudo a que se pode saber de preciso e certo

sobre seu objeto. Bern diferente e a relacao que estabele-cernos entre a metaffsica e a ciencia. Achamos que sao, ou

que podern tornar-se, igualmente precisas e certas.Ambastratarn da realidade. Mas cada uma retem apenas metade

dela, de maneira tal que se poderia ver nelas, conforme 0

gosto, duas subdivisoes da ciencia ou dois departamentos

da metafisica, se nao indicassem direcoes divergentes da

atividade de pensarnento.

Justamente por estarem no mesmo nivel, elas tern

pontos em cornum e podem, sobre esses pontos, verificar-

se urna pela outra. Estabelecer entre a metafisica e a den-

cia uma diferenca de dignidade, atribuir-lhes 0mesrno

objeto, isto e,0conjunto das coisas, estipulando que uma

o olhara de banco e a outra, de cima, e excluir a ajuda mil-tua e 0controle reciproco: nesse caso, a metafisica e ne-

cessariamente - a menos que perea todo contato com 0

real - urn extrato condensado au uma extensao hipote-

tica da ciencia, Deem-lhes, ao contrario, objetos diferen-

tes, para a ciencia a materia e para a metaffsica 0espirito:

como 0espirito e a materia se tocam, metaffsica e ciencia

poderao, ao longo de toda a sua superficie comum, por-se

mutuarnente a prova com a esperan<;a de que 0contato

vire fecundacao, Os resultados obtidos de ambos os lados

deverao se encontrar, ja que a materia encontra 0espirito.

Se a insercao nao for perfeita e porque ha alga a corrigirem nossa ciencia, ou em nossa metaffsica, ou em ambas.

A metafisica exercera assim, por sua parte periferica, uma

influencia salutar sobre a ciencia. Inversamente, a ciencia

comunicara a metafisica habitos de precisao que se propa-garao, nesta, da periferia para 0centro. Quando mais nao

i

I

I!

I

1

A D U R A <; AO E 0 MtTODO 39

seja porque suas extremidades terao de corresponder exa-

tamente as da ciencia positiva, nossa metaffsica sera a do

mundo em que vivemos e nao a de todos os mundos pos-

s fve i s. E la abracara realidades.

PM., 43-4.

20 . Da f il o so fi a a ciencia

A verdade e que a fiIosofia nao e uma sfntese das

ciencias particulares e que se ela muitas vezes se coloca

no terreno da ciencia, se as vezes abarca numa visao mais

simples os objetos de que a ciencia se ocupa, nao 0faz in-

tensificando a ciencia, nao 0faz levando os resultados da

ciencia a um grau mais alto de generalidade. Nao haveria

lugar para dois modos de conhecer, f ilosofia e ciencia, sea experiencia nao se apresentasse a nos sob dois aspectos

diferentes: por urn lado, sob forma de fatos que se justa-poem a fates, que se repetem aproximadamente, que se

medem aproximadamente, que se desenrolam enfim no

sentido damultiplicidade distinta e cia espacialidade, e,

por outro, sob forma de uma penetracao reciproca que e

pura duracao, refrataria a lei e a mensuracao. Em ambos

os casos, experiencia significa consciencia, mas, no pri-

meiro, a consciencia desabrocha fora e se exterioriza com

relacao a si mesma na exata medida em que percebe coi-

sas exteriores umas as outras; no segundo, volta-se parasi,recupera-se e se aprofunda. Sondando, assim, sua pro-

pria profundidade, penetra ela mais intemamente na rna-

teria, na vida e na realidade em gera1?Seria algo contesta-

vel se a consciencia tivesse sido acrescida a materia como

urn acidente; mas acreditamos ter mostrado que tal hipo-

 

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40 MEMORIA EVIDA

tese, dependendo do .mgulo por que e tomada, e absurdaou falsa, contraditoria consigo mesma au contradita pelos

fatos. Seria contesravel tambem se a conscienda humana,

embora aparentada a uma consciencia mais vasta e mais

elevada, tivesse sido posta de lado, e se a homem tivesse

de se manter num canto da natureza como uma criancade castigo. Mas nao! A materia e a vida que enchem 0

mundo estao igualmente em nos; as forcas que trabalham

em todas as coisas, sentimo-las em nos; seja qual for a

essencia intima do que existe e do que se faz, participa-

mos dela. Descamos entao para a interior de nos mesmos:

quanta mais profundo for 0ponto que alcancarmos, mais

forte sera a forca que nos reenviara para a superficie. A

intuicao filosofica e esse cantata, a filosofia e esse ela, 'Ira-zidos de volta para fora par tuna impulsao vinda do fun-

do, iremos ao encontro da ciencia a proporcao que nosso

pensamento desabrochar dispersando-se. E precise, pois,que a filosofia possa se conformar ao molde da ciencia, e

uma ideia de origem pretensamente intuitiva que, divi-

dindo-se e subdividindo suas divisoes, nao conseguisse

abarcar os fatos observados fora e as leis par rneio das

quais a ciencia as liga entre si, que nao fosse nem capaz

de corrigir algumas generalizacoes e emendar certas ob-

servacoes, seria fantasia pura; nao teria nada em comum

com a intuicao. Por outro lado, contudo, a ideia que con-

segue aplicar exatamente aos fates e as leis essa disper-

sao de si mesma nao foi obtida por uma unificacao da

experiencia exterior; pois 0filosofo nao veio dar na uni-dade, partiu dela. Refire-me, entenda-se bern, a uma

unidade ao me srno tempo restrita e relativa, como aque-

la que recorta urn ser vivo no conjunto das coisas. 0 tra-

balho par meio do qual a filosofia parece assimilar os re-

sultados da ciencia positiva, assirn como a operacao no

"

A DURA<;AO E 0METODa 4 1

curso da qual uma filosofia da a impressao de reunir em

si as fragmentos das filosofias anteriores, nfio e uma sin-tese, e uma analise.

PM., 136-8.

2 1. D a c ie nc ia it filosofia:

a c iencia modema e xi ge u m a n ov a m e ta fis ic a

Concluamos que nossa ciencia nao se distingue da

ciencia antiga apenas porque procura leis, nem mesmo

porque suas leis enunciam relacoes entre grandezas. De-ve-se acrescentar que a grandeza a qual gostariamos de

poder comparar todas as outras e 0 tempo, e que a denc ia

m od ern a de oe s er d efin id a so bre tu do p or su a a sp ira ciio a to -

mar 0 t empo como u a ri do e l i nd ep ende nt e . ..

.._Para 05antigos, com efeito, 0 tempo e teoricamen-te negligenciavel, porque a duracao de uma coisa s6 ma-

nifesta a degradacao de sua essencia: e dessa essencia

imovel que a ciencia se acupa. Nao sendo a mudanca

mais que 0esforco de uma Forma em direcao a sua pro-

pria realizacao, a realizacao e tudo 0que importa conhe-

eer. E certo que essa realizacao nunca e completa: e 0quea filosofia antiga exprime dizendo que nao percebemos

forma sem materia. Mas se considerarmos 0objeto cam-

biante num certo momenta essencial, no seu apogeu, po-

demos dizer que ele rOfa'sua forma inteligivel. Dessa for-

ma inteligivel, ideal e,por assim dizer, limite, nossa cienciase apossa. E, a partir do momenta em que possui assim a

moeda de ouro, possui eminentemente essa moeda de

troeo que e a mudanca. Esta e menos que ser. 0 conheci-

mento que a tomasse par objeto, supondo que ele fosse

possivel, seria menos que ciencia.

 

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42 M EM O RI A E V ID A

Mas, para uma ciencia que poe todos as instantes do

tempo no mesmo plano, que nao admite momento essen-

cial, ponto culminante, apogeu, a mudanca nfio e maisuma diminuicao da essencia, nem a duracao uma diluicao

da eternidade. 0£Luxodo tempo toma-se agora a propria

realidade, e a que se estuda sao as coisas que escoam. Everdade que da realidade que flui limitamo- nos a tamar

instantaneos. Mas, justamente por isso, 0conhecimento

cientffico deveria chamar por urn outro, que 0completas-

se. Enquanto a concepcao antiga do conhecimento cien-

tifico culminava em fazer do tempo urna degradacao e da

mudanca a dirninuicao de uma Forma dada desde sem-

pre, se levassemos ate 0fim a nova concepcao, veriamos,

ao contrario, no tempo urn aumento progressivo do ab-

soluto e na evolucao das coisas uma invencao continua de

formas novas.

E.C. , 335 e 343.

2 2 . U n idad e u l t ima d a cie ncia e d a m eta fts ica n a in tu id io

...VI. Mas a verdade e que nosso espfrito pode seguir

o caminho inverso. Pode se instalar na realidade movel,

adotar sua direcao incessantemente mudadica e par fun

capta-la intuitivamente. Para isso, tern de violentar-se, in-

verter 0sentido da operacao por rneio da qual pensa ha-

bitualmente, revirar, ou melhor, reconstruir incessante-mente suas categorias. Mas desse modo chegara a con-

ceitos fluidos, capazes de acompanhar a realidade em

todas as suas sinuosidades e de adotar 0proprio movi-

mento da vida interior das coisas. Somente assim se cons-

tituira uma filosofia progressiva, livre das disputas que

A DURAc.Ao E 0 METODa 43

ocorrem entre as escolas, capaz de resolver naturalmente

os problemas porque tera se livrado dos termos artificiais

que escolheram para formula-los. F il os of ar c on si st e em i n-

v er te r a d ir e( iio h ab it ua l d o tr ab al ho d o p en sa m en to .

VII. Essa inversao nunca foi praticada de rnaneira

metodica: mas uma historia aprofundada do pensamentohumane mostraria que devemos a ela 0que foi feito de

mais importante nas ciencias, bern como 0que ha de via-

vel em metaffsica. 0 mais poderoso dos metodos de in-vestigacao de que 0espirito humane disp6e, a analise in-

finitesimal' nasceu dessa propria inversao, A matematica

modema e precisamente urn esforco para substituir 0afeito pelo fazendo-se, para seguir a gerac;ao das grandezas,

para captar 0movimento, nao mais de fora e no seu resul-

tado manifesto, mas de dentro e na sua tendencia a mu-

dar, enfim, para adotar a continuidade movel do desenho

das coisas. 1 3 verdade que ela se atem ao desenho, ja quee apenas a ciencia das grandezas. 1 3 verdade tambem

que s6 conseguiu chegar a s suas aplicacoes maravilhosaspela intervencao de certos simbolos, e que, embora a intui-

c;aode que acabamos de falar esteja na origem da invert-

c;ao, e s o 0sfmbolo que intervem na aplicacao. Mas a me-

taffsica, que nao visa a nenhuma aplicacao, podera e

geralmente devera se abster de converter a intuicao em

sfmbolo. Dispensada da obrigacao de chegar a resultados

utilizaveis na pratica, ampliara indefinidamente 0campo

de suas investigacoes, Aquilo que tiver perdido em ter-

mos de utili dade e rigor, em comparacao com a ciencia,recuperara em alcance e extensao. Embora a matemati-

ca seja apenas a ciencia das grandezas, embora os proce-

dimentos matematicos se apliquem somente a quanti-

dades, nao se deve esquecer que a quantidade e semprequalidade em estado nascente: poder-se-ia dizer que e seu

 

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44 MEMOR IA E VIDA

caso limite. Portanto r e natural que a metafisica adote,

para estende-la a todas as qualidades, isto e , a realida-de em geral, a ideia geradora de nossa matematica, IS50

nao a levara de forma alguma a matematica universal,

essa quimera da filosofia modema. Muito pelo contrario,

a medida que avancar no seu caminho, encontrara obje-tos mais intraduziveis em simbolos. Mas tera pelo menos

comecado por tomar contato com a continuidade e a mobi-

lidade do real ali onde esse contato eo mais maravilhosa-

mente utilizavel. Ter-se-a conternplado num espelho que

The devolve uma imagem muito reduzida, sem diivida,mas muito luminosa tambem dela mesma. Tera visto com

uma dareza superior 0que os procedimentos matemati-

cos tornam da realidade concreta, e continuara no senti-

do da realidade concreta, nao no dos procedimentos rna-

tematicos. Digamos, pois, tendo atenuado previamente

o que a f6rmula teria ao mesmo tempo de modesta e de

ambiciosa demais, que um do s o b je ti vo s da me ta fi si ca e ope-r ar d if er en ci ac oe s e t nt eg ra co e « q ua li ta ti va s.

VIll. 0 que fez perder de vista esse objetivo e 0que

pode enganar a propria ciencia sobre a origem de certos

procedimentos que ela usa foi que a intuicao, urna vez

capturada, tern de ertcontrar urn modo de expressao e de

aplicacao que seja conforme aos habitos de nosso pen-

samento e que nos fomeca, em conceitos bern firmes, os

pontos de apoio solidos de que tanto precis amos . 1 3 essaa condicao do que chamamos rigor, precisao, e tambem ex-

tensao indefinida de urn metodo geral a casas particulares.

Ora, essa extensao e esse trabalho de aperfeicoamentoIogico podem prosseguir durante seculos, ao passo que

o ate gerador do metoda dura apenas urn instante. 1 3 parisso que tantas vezes confundimos 0aparelho logico da

ciencia com a propria ciencia, esquecendo a intuicao de

onde 0resto saiu.

A DURA(:AO E0 METODO 45

Do esquecimento dessa intuicao procede tudo a que

foi dito pelos filosofos e pelos pr6prios cientistas sabre a

"relatividade" do conhecimento cientifico, E relativo 0co -

n he cim en to s im b6 lico p or c on ce ito s p re ex iste nte s q ue v ai d o

fixo ao m o ve nte , m a s n ii o 0 c on he cim e nto in tu iti vo q u e s e in s-

tala no m ov en te e a do ta a prop ria vid a d as co isa s. Essa in-tuicao alcanca urn absoluto.

A ciencia e a metaffsica encontrarn -se portanto na

intuicao. UIDa filosofia verdadeiramente intuitiva reali-

zaria a uniao tao desejada da metafisica com a ciencia. Ao

mesmo tempo que constituiria a metafisica ern ciencia

positiva - quero dizer, progressiva e indefinidamente per-

fectfvel -, levaria as ciencias positivas propriamente ditas

a tomar consciencia de seu verdadeiro alcance, em geral

muito superior ao que elas imaginam. Poria mais ciencia

na metaffsica e mais metafisica na ciencia. Teria par re-

sultado restabelecer a continuidade entre as intuicoes que

as divers as ciencias positivas obtiveram de tempos em

tempos no curso de sua historia, e que so obtiveram a gol-

pes de genie ...

P.M. , 213-7.

 

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II.A MEM6RIA OU OS GRAUS

C OEX IST EN fES D A D UR A< ;A O

a)Prindpios damemoria

2 3, E m q ue sen tido a du ra dio e mem6ria

Nossa duracao nao e urn instante que substitui outro

instante: nesse caso, haveria sempre apenas presente, nao

haveria prolongamento do passado no atual, nao haveria

evolucao, nao haveria duracao concreta. A duracao e 0

progresso continuo do pass ado que roi 0porvir e incha

a medida que avanca, Uma vez que 0passado cresce in-

cessantemente, tambern se conserva indefinidamente. A

memoria ... nao e urna facu1dade de classificar recordacoesnuma gaveta ou de inscreve-las nUIDregistro. Nao ha re-

gistro, nao ha gaveta, nao ha aqui, propriarnente falando,

sequer uma faculdade, pois uma faculdade se exerce de

forma intennitente, quando quer ou quando pode, ao passoque a acumulacao do passado sobre 0passado prossegue

sem tregua, Na verdade, 0passado se conserva por si ~

rno utomaticameirte:mreIro sem CITIvida,lenos se e a

odo instante: 0que sentimos, pensamos, quisemos des e

Mssa primeira infancia esta ai, debrucado sobre 0presen-

 

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48 MEM6RL4. EVIDA

te que a ele ira se juntar, forcando a porta da consciencia

que gostaria de deixa-Io de fora. a mecanisme cerebral

e feito precisamente para recalcar a quase totalidade do

passado no inconsciente e so introduzir na consciencia 0

que for de natureza que esclareca a situacao presente, que

ajude a ac;;aoem preparacao, que forneca, enfim, urn traba-lho utif.Quando muito, algumas recordac;;6esde luxo con-

seguem passar de contrabando pela porta entreaberta. Es-tas, mensageiras do inconsciente, advertem-nos do que

arrastamos atras de nos sem sabe-lo, Mas, ainda que nao

tivessemos uma ideia clara disso, sentiriamos vagarnente

que nosso passado continua presente. Com efeito, que so-mos, que e nosso cardier, senao a condensacao da histo-

ria que vivemos desde nosso nascimento, antes dele ate,

ja que trazemos conoseo disposicoes pre-natais? E eertoque pensamos apenas corn uma pequena parte de nossopassado; mas e com nosso passado inteiro, inclusive com

nossa curvatura de alma original, que desejamos, quere-mos, agirnos. Nosso passado, pois, manifesta-se-nos inte-

gralmente por seu Impeto e na forma de tendencia, em-

bora apenas uma tenue parte dele se tome representacao.

E.C.,4-5.

2 4. C olo ca mo -n os d e s aid a n o p ass ad o:a le mb ra ne a p ura , p ara a le nt da im ag em

Trata -se de reeuperar uma lembranca, de evocar urn

perfodo de nossa historia? Ternos consciencia de urn atosu i gener is pelo qual nos afastamos do presente para nosrecolocannos, primeiro no passado em geral e depois numa

certa regiao do passado, trabalho de tenteios, analogo ao

L Cf. tex tos 30 ,37,38 e 39.

A MEM6RIA au as GRAUS COEXISTENTES DA DURAcAO

ajuste de urn aparelho fotografico. Mas nossa lembranca

continua em estado virtual; dispomo-nos assim apenas a

recebe-la adotando a at itude apropriada. Pouco a pouco,

ela aparece como uma nevoa que se condensasse; de vir-

tual, passa ao estado atual; e, a medida que seus eontor-

nos VaG se desenhando e sua superffcie vai ganhando cor,tende a imitar a percepcao. Mas permaneee atada ao pas-

sado por suas raizes profundas, ese, depois de realizada,

nao se ressentisse de sua virtualidade original, se, ao mes-

mo tempo que urn estado presente, nao fosse algo quecontrasta com 0presente, nunca a reconhecerfamos comolembranca ...

.,.A verdade e que jamais atingiremos 0pass ado se

nao nos colocannos nele de saida. EssenciaJrnente virtual,

o passado nao pode ser apreendido por nos como passa-

do a menos que sigamos e adotemos 0movimento pelo

qual ele se manifesta em imagem presente, emergindo

das trevas para a luz do dia. Em vao se buscaria seu vesti-gio em algo de atual e ja realizado: seria 0mesrno que

buscar a obscuridade na luz. Nisso consiste precisamen-

te 0erro do associacionismo: instalado no atual, esgota -se

em vaos esforcos para descobrir, num estado realizado e

presente, a marca de sua origem pass ada, para distinguir

a lembranca da percepcao e para erigir em diferenca de

natureza 0 que ele condenou de antemao a ser apenas

uma diferenca de grandeza.

Imaginar nao e lembrar. Uma lembranca, a medidaque se atualiza, sem duvida tende a viver numa imagem;

mas a reciproca nao e verdadeira, e a imagem pura e sim-

ples nao me remetera ao passado a menos que tenha sidode fato no passado que eu a tenha ido busear, seguindo

assim 0progresso continuo que a levou da obscuridade

para a luz.

M.M.,148-50.

49

 

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50 MEMORIA E V ID A

25 . D if er en ca d e n atu re za e nt re p er ce pd io e l embranca

Quante mais refletirmos,menos entenderemos comoa Iembrancapoderia alguma vezsurgir que nao fossecrian-

do-se conjuntamente com a propria percepeao. Ou 0pre-

sente nao deixa nenhurn vestigio na memoria, ou entaoele se desdobra a cada instante, em seu proprio jorrarnen-to, em dois jatos.simetricos, urn dos quais caipara 0passa-do ao passo que 0outro se lanca para 0porvir,EsteUltimo,

que chamamos percepcao, e 0 tinico que nos interessa.Nao temos 0que fazer corn a lembranca das coisas en-quanto temos as proprias coisas. A consciencia descartaessa lembranca como imitil e a reflexao teorica a conside-ra inexistente. Assim nasce a ilusao de que a lembrancasucede a percepcao.

Mas essa ilusao tern outra fonte, ainda mais profunda.

Provem de que a lembranca reavivada, consciente,causa em nos a impressao de ser a propria pcrcepcao res-suscitando sob uma forma mais modesta, e nada mais queessa percepcao. Entre a percepcao e a Iembranca haveriauma diferenca de intensidade ou de grau, mas nao de na-tureza. A percepcao sendo definida como estado forte e aIembranca como estado fraco, a Iembranca de uma per-cepcao so podendo entao ser essa percepcao enfraquecida,parece- nos que amemoria, para registrar uma percepcaono inconsciente, tenha tide de esperar que a percepcao seabrandasse em lembranca, E por isso que achamos que a

Iembranca de uma percepcao nao poderia secriar

comessapercepcao nem se desenvolver ao mesmo tempo que ela.Mas a tese que faz da percepcao presente urn estado

forte e da lembranca reavivada urn estado fraco, que afir-rna que passamos dessa percepcao a essa lembranca porvia de dirninuicao, tern contra si a observacao mais ele-

A MEMORIA au as GRAUS COEXISTENTES DA DURAc;::A0 51

mentar, Mostramos isso num trabalho anterior.Tome umasensacao intensa e faca-a decrescer progressivamente atezero, Se entre a lembranca da sensacao e a propria sen-

sacao houver apenas uma diferenca de grau, ~ sensacaoira se tomar lembranca antes de se extinguir. E certo que

chega urn momenta em que voce nao consegue mais di-zer se a que ha e uma sensacao fraca que voce sente auurna sensacao fraca que imaginal mas 0estado fraco nun-case torna a lembranca, mandada para 0passado, do es-tado forte. Portanto, a lembranca e outra coisa,

A lembranca de uma sensasao e coisa caEaz de ~mr essa sensac;ao,ou se'a, de faze-Ia renascer, fraca pri-meiro, mais forte em segui a,cada vezmais forte a me,-=_:;, ruda que a atenc;aose fiXamrus nela. Mas a lembranca e, diferente do estado que sugere e e precisamente porquea sentimos por tras da sensacao sugerida, como 0hipno-

tizador por tras da alucinacao provocada, que localizamosno passado a causa do que sentimos, A sensacao, comefeito, e essencialrnente atuale presente; mas a lembran-ca,que a sugere dofundo do inconsciente de onde ela malemerge, apresenta-se com esse poder su i generis de suges-tao que e a marca do que nao existe mais, do que aindaqueria ser.Mal a sugestao tocou a irnaginacao e a coisasugerida se desenha em estado nascente, e e por isso quee tao diffcil distinguir entre uma sensacao fraca que sen-timos e uma sensacao fraca que rememoramos sem da-ta-la. Em nenhum grau, porem, a sugestao e 0que ela

sugere. a lernbranca pura de uma sensacao ou de umapercepcao nao e,em nenhurn grau, a sensacao ou a per-cepcao elasmesmas. Caso contrario, terernos de dizer quea palavra do hipnotizador, para sugerir aos sujeitos ador-mecidos que eles tem na boca aciicar ou sal,ja tern de serela mesma urn POliCO acucarada ou salgada ...

 

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52 MEMORIA EVIDA

...A lembranca aparece duplicando a cada instante a

percepcao, nascendo com ela, desenvolvendo-se ao mes-

rno tempo que ela e sobrevivendo a ela, precisamente

porque e de outra natureza.

E.S., 131-3, 135.

26. Os graus da duradio

Concentremo-nos, pois, no que temos de mais afas-

tado do exterior e, ao mesmo tempo, de menos penefra-

do de intelectualidade. Procuremos, no mais profunda de

nos mesmos, 0ponto em que nos sentimos mais interio-

res a nossa pr6pria vida. E na pura duracao que voltamos

a mergulhar entao, uma duracao em que 0passado, sern-

pre em andamento, se avoluma sem cessar de urn presen-te absolutamente novo. Ao mesmo tempo, porem, senti-mos esticar-se, ate seu limite extreme, a mola de nossa

vontade. Seria preciso que, por uma contracao violenta de

nossa personaIidade sobre si me sma, apanhassemos nos-

so passado que escapa, para empurra-lo, compacto e in-

diviso, nurn presente que ele criara ao nele se introduzir.

Bern raros sao os momentos em que nos recuperamos a

nos mesmos a esse ponto: eles se confundem com nossas

acoes verdadeiramente livres. E nem mesmo entao so-

mos totaImente donos de nos mesmos. Nossa sensacao

da duracao, ou seja, a coincidencia de nosso eu consigomesmo, adrnite gradacoes. Mas, quanta mais profunda

a sensacao e. rnais completa a coincidencia, mais a vida

onde elas nos recolocam absorve a intelectualidade, su-

perando-a. Pois a inteligencia tern por funcao essencial

ligar 0mesmo ao mesmo, e inteiramente adaptaveis ao

A MEM6RlA au os GRAUS COEXISTENTES DA DURA(AO 53

campo da inteligencia sao 56 as fatos que se repetem. Ora,

sabre os mementos reais da duracao real a inteligencia

certamente age a posteriori, reconstituindo 0novo estado

com uma sene de vistas dele tomadas de fora e que se as-

semelham tanto quanto possfvel ao ja conhecido: nesse

sentido, 0estado contem intelectualidade "em potencia",por assim dizer, Extrapola-a, no entanto, pennanece inco-

mensuravel com ela, sendo indivisfvel e novo.

Distendamo-nos agora, interromparnos 0esforco que

empurra para 0presente a maior parte possfvel do passa-

do. Se a distensao fosse total, nao haveria mais memo-

ria nem vontade: ou seja, nunca cairnos nessa passivida-

de absoluta, assim como tampouco podemos nos tornar

totalmente livres. Mas, no limite, entrevemos uma exis-

tencia feita de urn presente que recornecaria sem cessar -

nao haveria mais duracao real, apenas 0instantaneo que

morre e renasce indefinidamente. Seria isso a existenciada materia? Nao exatamente, sem diivida, pois a aruilise a

resolve em abalos elementares, os mais curtos dos quais

sao de urna duracao muito infima, quase evanescente, mas

nao nula, Pode-se contudo presumir que a existencia ffsi-

ca tende para esse segundo sentido, assim como a exis-

tencia psiquica tende para 0primeiro.

No fundo da "espiritualidade", por urn lado, e da

1/materialidade" com a intelectualidade, por outro, haveria

portanto dois processos de direcao oposta, e se passaria

do primeiro para 0 segundo por via de inversao, quem

sabe ate de urna simples interrupcao, se for verdade que

inversao e interrupcao sao dois termos que devem ser ti-

dos aqui por sinonimos, como mostraremos em detalhes

urn pouco mais adiante. Essa suposicao se confirrnara se

considerannos as coisas do ponto de vista da extensao e

nao mais apenas cia duracao,

 

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54 MEM6RIA EVIDA

Quanto mais tomamos consciencia de nosso progres-

so na pura duracao, mais sentimos as diversas partes de

nosso ser entrarem umas nas outras e toda a nossa per-

sonalidade se concentrar num ponto, ou melhor, numa

ponta, que se insere no porvir, encetando-o sem cessar.

Nisso consistem a vida e a ac;ao livres. Abandonemo-nos,

ao contrario: em vez de agir, sonhemos. Imediatainente

nosso eu se dispersa; nosso passado, que ate entao se con-

traia sobre si mesmo na impulsao indivisfvel que nos co-

municava, decomp6e-se em mil e uma lembrancas que

se exteriorizam umas com relacao as outras. Estas desis-

tern de se interpenetrar a rnedida que vfio se enrijecendo

mais, Nossa personalidade torna a descer assim na di-

recao do espac;o. Na sensacao, alias, ela a ladeia sem ces-

sar. Nao nos demoraremos aqui sobre urn ponto que jaaprofundamos em outro lugar. Limitemo-nos a lernbrar

que a extensao admite graus, que toda sensacao e exten-

siva em certa medida e que a ideia de sensacoes inexten-sas, artificialmente localizadas no espaco, e uma simplesconstrucao mental, sugerida bern mais por uma metaffsi-

ca inconsciente do que pela observacao psicologica,

Nos, sem diivida, damos apenas os primeiros passos

na direcao da extensao, mesmo quando nos abandona-

mos 0maximo possivel, Mas suponhamos, por urn ins-

tante, que a materia consista nesse mesmo movimento le-

vado mais longe, e que 0ffsicoseja simplesmente 0psiqui-

co invertido. Seria compreensfvel, entao, que 0espirito se

sinta tao a vontade e circule tao naturalmente no espaco,

assim que a materia the sugere a representacao mais cla-ra dele. Tinha a representacao implicita desse espaco na

propria sensacaoque extraia de sua eventualdistensiio,isto e, de sua extensiio possivel, Reencontra-o nas coisas,

mas te-lo-ia obtido sem elas se tivesse tido a imaginacao

poderosa 0suficiente para levar ate 0fim a inversao de

A MEM6RIA au as GRAUSCOEXISTENTESDA DURAcAo 55

seu movimento natural. Por outro lado, assim se explica-

r ia que a materia acentue ainda mais sua materialidade

sob a olhar do espfr ito. Comecon ajudando este Ultimo a

descer novamente a ladeira de1a, deu -lhe 0impulso. Mas,

uma vez lancado, 0espirito continua. A representacao que

forma do espac;o puro nao e mais que 0schema do termo

a que esse movimento chegaria. Uma vez de posse da for-

ma de espac;o, serve-se dela como de uma rede de malhas

que podem ser feitas e desfeitas ao bel-prazer, e que, jo-

gada sobre a materia, divide-a tal como as necessidades

de nossa ac;ao exigirem. Por isso, 0espaco de nossa geo-

metria e a espacialidade das coisas geram -se mutuamen-

te pela ac;aoe reacao reciprocas de dois term os que sao de

mesma essencia, mas que caminham em sentido inverso

urn do outro. Nero 0 espaco e tao estranho it nossa na-

tureza quanta pensamos, nem a materia e tao completa-mente extensa no espac;o quanta nossa inteligencia e

nossos sentidos a imaginam.

E. c., 201-4.

27. A memor ia c omo co ex is te n ci a virtual d o s g ra u s

Portanto, tudo acontece como se nossas lembrancas

se repetissem urn ruimero indefinido de vezes nessas mil

e uma reducoes possfveis de nossa vida passada. Adqui-

rem uma forma mais banal quando a memoria se estrei-

ta rnais, mais pessoal quando se dilate, e dessa forma par-ticipam de urna quantidade ilirnitada de" sistematizacoes"

diferentes. Uma palavra de uma lingua estrangeira, pro-

nunciada ao meu ouvido, pode me fazer pensar nessa lin-

gua em geral ou em uma voz que a pronunciava outrora

de certa maneira. Essas duas associacoes por semelhan-

 

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56 MEMORIA EWDA

ca nao se devem a chegada acidental de duas represent a-

c;5es diferentes que 0acaso teria trazido sucessivarnente

para 0campo de atracao da percepcao atual. Correspon-

dem a duas disposicoes mentais diversas, a dois graus dis-

tintos de tensao da mem6ria, aqui mais pr6xima da ima-

gem pilla, alimais disposta a replica imediata, ou seja, aacao. Classificar esses sistemas, procurar a lei que os une

respectivamente aos diversos 1/tons" de nossa vida men-

tal, mostrar como cadaum desses tons esta determinado

pelas necessidades do momenta e tambem pelo grau va-

navel de nosso esforco pessoal, seria uma tarefa dificil:

toda essa psicologia ainda esta por fazer e, por ora, nao

queremos nem tentar. Mas cada urn de n6s sente per-

feitarnente que essas leis existern e que exist em relacoes

estaveis desse tipo. Ao ler urn romance psicol6gico, por

exemplo, sabemos que certas associacoes de ideias que

nos descrevem sao verdadeiras, que podem ter sido vivi-

das; outras nos chocam ou nao nos dao a impressao derealidade, porque sentimos nelas 0efeito de uma proxi-

midade mecanica entre estagios diferentes do espfrito,

como se 0 autor nao tivesse conseguido se manter no

plano da vida mental que escolheu. A memoria tern, por-

tanto, graus sucessrvos e distintos de tensao ou de vita-

lidade, certamente diffceis de definir, mas que 0pintor da

alma nao pode misturar impunemente. Alias, a patologia

vern confirmar - embora com exernplos grosseiros - uma

verdade que todos conhecemos por instinto. Nas "amne-

sias sistematizadas" dos histericos, por exemplo, as lem-

brancas que parecem abolidas estao na verdade presen-tes; mas estao todas decerto ligadas a urn determinado

tom de vitalidade intelectual no qual 0sujeito nao conse-

gue mais se situar,

M.M., 188-9.

A MEMORIA au as G R A U S C O E XI S TE NT E S D A D U R A c: AO 57

28. Os graus da m em o ria e a a te nd io

Concebemos sem dificuldade a percepcao atenta

como uma sene de processos que avancariam ao longo de

urn iinico fio, 0objeto excitando sensacoes, as sensacoes

fazendo surgir diante delas ideias, cada ideia abalandopontos cada vez mais recuados da massa intelectual. Ha-

veria portanto ai urn andar ern linha reta por meio do

qual 0espfrito se afastaria cada vez mais do objeto para

nao mais voltar a ele. Afirmarnos, ao contrario, que a per-

cepcao refletida e urn circuito onde todos os elementos,

inclusive 0pr6prio objeto percebido, mantem-se em es-

tado de tensao mutua como num circuito eletrico, de sor-

te que nenhum abalo oriundo do objeto pode deter-se,

no meio do caminho, nas profundezas do espfrito: deve

sempre retomar ao pr6prio objeto. Que nao se veja russo

urna mera questao de palavras. Sao duas concepcoes ra-dicalmente diferentes do trabalho intelectual, De acordo

com a primeira, as coisas se passam mecanicamente e por

uma serie totalmente acidental de adicoes sucessivas. A

cada momento de uma percepcao atenta, por exemplo,

elementos novos, que emanarn de uma regiao mais pro-

. funda do espirito, poderiam juntar-se aos elementos an-

tigos sem criar uma perturbacao geral, sem exigir uma

transformacao do sistema. Na segunda, ao contrario, urn

ato de atencao implica tal solidariedade entre 0 espirito

e seu objeto, e urn circuito tao bern fechado, que nao se

poderia passar a estados de concentracao superior semcriar um mesrno mimero de circuitos novas e completos

que envolvem 0primeiro e que so tern em comum entre

si 0objeto percebido. Desses diversos cfrculos da memo-

ria, que estudaremos detalhadarnente mais adiante, 0

mais estreito, A, e 0mais proximo da percepcao imediata.

 

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58 MEMORIA E VIDA

Contem apenas 0proprio ob-

jete 0com a imagem conse-

cutiva, que volta para cobri-lo.

Atras dele, os circulos B,C, D,

cada vez mais amplos, corres-

pondem a esforcos crescentesde expansao intelectual. E a

memoria toda, como veremos,

que entra em cada urn desses

circuitos, ja que a mem6ria es-

ta sempre presente; mas essa

memoria, que pode ser inde-

finidarnente dilatada devido

a sua elasticidade, reflete so-

bre 0objeto urn ruimero cres-

cente de coisas sugeridas -

ora detalhes do proprio ob-

jeto, ora detalhes concomi-

tantes que podem contribuir

para esclarece-lo. Assim, de-

pois de ter reconstitufdo 0objeto percebido, a maneira de

urn todo independente, reconstituimos com ele as con-

dicoes cada vez mais longfnquas com as quais ele forma

urn sistema. Chamernos B', C e D' essas causas de pro-

fundidade crescente, situadas arras do objeto e virtual-

mente dadas com 0proprio objeto. Nota-se que 0pro-

gresso da atencao tern por efeito criar de novo, nao so 0

objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais amplos

aos quais pode se vincular: de sorte que, a medida que oscirculos B, C e D representam uma expansao mais elevada

da memoria, 0reflexo deles atinge em B', C'e D' camadas

mais profundas da realidade.

A mesma vida psicologica se repetiria, pois, urn rui-

mero indefinido de vezes nos estagios sucessivos da me-

/ \

, / , , , 1 ,,I '.... B' ... I\\ ... .. ,\

I \ r I

I ,....C' ..,' I\ ...__ ... I

\ I\ /

.. .

"""',.....!?'_,,;

Figura 1

A MEMORIA ou as GRAUS COEXISTENTES DA DURAcAO 59

moria, e 0mesmo ate mental poderia se par em varias al-

turas diferentes. No esforco de atencao, 0espirito sempre

se da inteiro, mas se simplifica ou se complica conforme

o myel que escolhe para realizar suas evolucoes, Ceral-

mente, e a percepcao presente que determina a orientacao

de nosso espirito; mas, conforme 0grau de tensao quenosso espfrito adote, segundo a altura onde se coloque,

essa percepcao desenvolve em n6s urn ruimero maior ou

menor de lembrancas-imagens.

Em outras palavras, enfim, as lembrancas pessoais,

exatamente localizadas e cuja sene desenharia 0curso de

nossa existencia passada, constituem, reunidas, 0Ultimo e

mais amplo involucre de nossa memoria. Essencialmente

fugazes, so se materializam por acaso, seja porque uma de-

terminacao acidental precisa de nossa postura corporal as

atraia, seja porque a propria indeterminacao dessa postura

deixa 0campo livre para 0capricho de sua manifestacao,

Mas esse involucre extremo se restringe e se repete em cir-

culos interiores e concentricos, que, mais estreitos, supor-

tam as mesmas lembrancas diminufdas, cada vez mais

afastadas de sua forma pessoal e original, cada vez mais ca-

. pazes, em sua banalidade, de se aplicar a percepcao pre-

sente e de determina-Ia a mane ira de uma especie que

engloba 0individuo. Chega urn.momenta em que a lem-

branca assim reduzida se encaixa tao bern na percepcao

presente que nao se saberia dizer onde termina a percep-

< ; 8 . 0e on de corneca a lembranca. Nesse momenta preci-so, a memoria, em vez de fazer aparecer e desaparecer ca-

prichosamente suas representaeoes, regula-se pelos deta-

lhes dos movimentos corporais.

M.M., 113-6.

 

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60 MEMORIA E VIDA

b) Psicologia damemoria

29. Movimento na direcdo da imagern

Mas interroguemos nossa consciencia, Perguntemos

a ela0

que acontece quando escutamos as palavras de al-guem com a intencao de compreende-las. Esperamos pas-

sivos que as impressoes saiam em busca de suas imagens?

Nao sentimos, antes, que nos pomos numa certa dispo-

si<;ao,variavel dependendo do interlocutor, variavel de-

pendendo da lingua que ele fala, do tipo de ideias que ex-

prime e sobretudo do movimento geral de sua frase, como

se comecassernos por regular 0tom de nosso trabalho

intelectual? 0 esquema motor, ao sublinhar as entonacoes

de nosso interlocutor, ao acompanhar, de desvio em des-

via, a curva de seu pensamento, indica a caminho para 0

nosso pensamento. Ele

ea recipiente vazio que determina,

par sua forma, a forma para a qual tende a massa fluida

que nele se precipita.

Mas hesitarao em compreender assim 0mecanismo

da interpretacao par causa da invencivel tendencia que

nos leva a pensar, ern qualquer ocasiao, antes ern coisas do

que em progressos. Dissemos que partfamos da ideia e que

a desenvolviamos em lembrancas-imagens auditivas ca-

pazes de se inserir no esquema motor para recobrir os sons

ouvidos. Ha nisso urn progresso continuo par meio do qual

a nebulosidade da ideia se condensa em imagens audi-

tivas distintas, que, ainda fluidas, terminarao par se so-

lidificar em sua coalescencia com os sons materialmente

percebidos. Em nenhum momento se pode dizer com pre-

cisao onde a ideia ou a imagem-lembranca termina e onde

comeca a imagem -lernbranca au a sensacao. Com efeito,

onde esta a linha de demarcacao entre a confusao dos sons

A MEMORL4. au os GRAUS COEXISTENTES DA DURA~O

percebidos em massa e a clareza que as imagens audi-

tivas rememoradas a eles acrescentam, entre a descon-

tinuidade dessas pr6prias imagens rememoradas e a conti-

nuidade da ideia original que elas dissociam e refratam em

palavras clistintas? Mas 0pensarnento cientffico, ao ana-

lisar essa serie ininterrupta de mudancas e cedendo a umairresistfvel necessidade de figuracao simbolica, detern e so-

lidifica em coisas acabadas as principais fases dessa evolu-

<;ao.Erige os sons brutos ouvidos em palavras separadas e

completas, e depois as imagens auditivas rememoradas

ern entidades independentes da ideia que elas desenvol-

vern: esses tres termos, percepcao bruta, imagem auditiva

e ideia, vao, assim, fonnar totalidades distintas que sebas-

tarao cada qual a si pr6pria. E, embora, para se ater a ex-periencia pura, era da ideia que se devia necessariamente

ter partido, ja que as lembrancas auditivas devern a ela

sua soldadura e ja que os sons brutes, por sua vez, 56 secompletam com as lembrancas, nao se ve nenhum incon-

veniente, depois de ter arbitrariamente completado 0som

brute e tambem arbitrariarnente soldado as lembrancas

todas juntas r em inverter a ordern natural das coisas, em

afirmar que vamos da percepcao a s lembrancas e das lern-brancas a ideia.

M.M., 134-6.

3 0. P ar q ue a le mb ra nc a se ioma imagem

De modo geral, de direi io , 0passado 56retoma a cons-ciencia na medida em que possa ajudar a compreender

o presente e a prever 0porvir: e urn batedor da a~ao. To-

mamos 0caminho errado quando estudamos as funcoes

61

 

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62 MEN: l6RIA E VIDA

de representacao em estado isolado, como se elas fossem

em si mesmas seu proprio fun, como se fOssemos puros

espfritos, ocupados em ver passar ideias e imagens.A per-

cepcao presente atrairia entao para si uma lembranca si-

milar, sem nenhuma segunda intencao utilitaria, par

nada, par prazer - pelo prazer de introduzir no mundomental uma lei de atracao analoga a que govema 0mun-

do dos corpos. Certamente nao contestamos a "lei da si-

rnilaridade", mas, como observamos em outro lugar, duas

ideias quaisquer e duas imagens tomadas ao acaso, por

mais distantes que as suponhamos, sempre se parecerao

por algum aspecto, porque sempre se encontrara urn ge-

nero comum no qual encaixa-las: de modo tal que qual-

quer percepcao lembraria qualquer lembranca se houves-

se apenas uma atracao mecanica do semelhante pelo se-

melhante. A verdade e que, se urna percepcao evoca uma

lembranca, e para que as circunstancias que precederame acompanharam a situacao passada e seguiram -se a ela

lancem alguma luz sobre a situacao atual e mostrem como

sair dela. Sao possiveis milhares de evocacoes de lem-

brancas por semelhanca, mas a lembranca que tend~ a

reaparecer e aquela que se parece com a percepcao por

urn certo aspecto particular, aquele que pode esclarecer e

dirigir 0ato em preparacac. E, a rigor, essa lembranca po-

deria ate nao se manifestar: bastaria que evocasse, sem ela

pr6pria se mostrar, as circunstancias que se deram em

contigilidade com ela, 0que precedeu e 0que se seguiu,

em suma, 0que importa saber para compreender 0pre-sente e antecipar 0porvir. Poder-se-ia ate pensar que na-

da de tudo isso se manifestasse na consciencia e que s6

a conclusao aparecesse, ou seja, a sugestao precisa de urn

certo procedimento a adotar. E provavelmente assim que

as coisas acontecem com a maioria dos animais. Porem,

.. :., ':

A MEN: l6RIA OU OS GRAUS COEXlSTENTES DA DURAcAo 63

quanta mais a consciencia se desenvolve, mais ela escla-

reee a operacao da memoria e mais, tambem, deixa trans-

parecer a associacao por semelhanca, que e 0meio, por

tras da associacao por contigilidade, que e 0fun. Aquela,

uma vez instalada na consciencia, permite que urn mon-

te de lembrancas que nao passam de luxe se introduza emvirtude de alguma semelhanca, mesmo que desprovida de

interesse atual: e 0que explica que possamos sonhar um

pouco enquanto agimos. Mas foram as necessidades da

ac;ao que determinaram as leis da evocacao: s6 elas de-

tern as chaves da consciencia, e as lembrancas oniricas so

se introduzem aproveitando-se do que ha de vagor de mal

definido, na relacao de semelhanca que da a autorizacao

para entrar. Resumindo, embora a totalidade de nossas

lembrancas exerca a todo instante uma pressao do fundo

do inconsciente, a consciencia atenta a vida s6 deixa pas-

sar, legalmente, aquelas que podem concorrer para a acaopresente, embora muitas outras se insinuem por interme-

dio dessa condicao geral de semelhanca que foi inevita-

vel formular.

E.5.,144-6.

31.0 sonho

Mas, embora nosso passado permaneca quase intei-

ramente oculto para n6s porque e inibido pelas necessi-dades da a<;aopresente, ira recuperar a capacidade de

transpor 0limiar da consciencia sempre que nos desinte- .

ressarmos da a<;aoeficaz para nos instalarmos novamen-

te, de alguma forma, na vida do sonho. 0 sono, natural ou

artificial, provoca justamente uma despreocupacao desse

 

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64 MEM6RIA EVIDA

tipo. Recenternente, mostraram-nos, no sono, uma in-terrupcao de contato entre as elementos nervosos sen-soriais e motores. Mesmo que nao nos detivessemos nes-sa engenhosa hipotese, e impossivel nao ver no sono umrelaxamento, ao menos funcional, da tensao do sistema

nervoso, sempre pronto durante a vigilia a prolongar aexcitacao recebida em reacao apropriada. A /Iexaltacao"da mem6ria em certos sonhos e em certos estados so-

nambtilicos e urn fato de observacao banal. Lernbrancasque acreditavamos enterradas reaparecem entao comumaexatidao impressionante; revivemos em todos os seus de-talhes cenas de infancia totalmente esquecidas; falamoslfnguas que nem lernbravarnos mais de ter aprendido.Com relacao a isso, porem, nao ha nada mais instrutivo

do que 0que ocorre em certos casas de brusca asfixia,nosafogados e enforcados. 0 sujeito, voltando a vida, decla-

ra ter visto desfilar diante de si, ern pouco tempo, todosos acontecimentos esquecidos de sua historia, com suas. mais Infimas circunstancias e na pr6pria ordem em que

se produziram.Urn ser humano que sonhasse sua existencia em vez

de vive-la certamente manteria 0 tempo todo diante dosolhos a multidao infinita dos detalhes de sua hist6ria pas-sada. E aquele que, ao contrario, repudiasse essa memo-ria com tudo 0que ela gera aiuaria 0tempo todo sua exis-

tencia em vez de se a representar verdadeiramente: au-tomato consciente, seguiria a propensao dos habitos iiteis

que prolongam aexcitacao em reacao apropriada. 0 pri-meiro jamais sairia do particular ou mesmo do individual.Dando a cada imagem sua data no tempo e seu lugar noespac;o,verla em que ela difere das outras e nao em queseparece com elas. 0 outro, ao contrario, sempre condu-zido pelo habito, s6 distinguiria numa situacao 0aspecto

A MEMORIA au os GRAUS COEXISTENTES DA DURAt;AO 65

em que ela s e a s sem e lh a praticamente a situacoes ante-riores. Incapaz, sem diivida, de pensar 0universal, ja quea ideia geral sup5e a representacao ao menos virtual de

uma multidao de imagens rememoradas, seria contudono universal que ele se moveria, 0habito sendo para a

acao 0 que a generalidade e para 0 pensamento. Masesses dois estados extremos, urn de urna memoria total-mente contemplativa que so apreende 0 singular na suamsiio, 0outro, de uma memoria totalmente motora que

imprime a marca da generalidade a sua a~Qo,56se isolame semanifestam plenamente em casas excepcionais. Navida normal, penetram -se intimamente, abandonandoassim, cada qual, alga de sua pureza original. 0 primeiro

se traduz pela lembranca das diferencas, 0 segundo pela

percepcao das semelhancas: na confluencia das duas cor-rentes aparece a ideia geral.

M.M.,171-3 .

3 2. A id eia g era l

A essencia da ideia geral e, com efeito, mover-se 0

tempo todo entre a esfera da acao e a da memoria pu-ra. Reportemo-nos, com efeito, ao schema que ja traca-

mos. Em S esta a percepcao atual que tenho de meu cor-po, au seja, de urn certo equilibrio sensorio-motor. Sa-

bre a superficie da base ABestarao dispostas, se quiserem,rninhas lembrancas em sua totalidade. No cone assim de-terrninado, a ideia geral oscilara continuamente entre avertice Sea base AB.Em S,ela adotaria a forma bern ni-tida de uma atitude corporal ou de uma palavra pronun-ciada; em AB,iria se revestir do aspecto, nfiomenos niti-

 

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66 MEM6RlA E V IDA

do, das mil e uma imagens individuais nas quais viria seromper sua unidade fnigil. E e por isso que uma psicolo-gia que se limita ao jt i pronto, que so conhece coisas e ig-nora as progressos, so percebera desse movimento as ex-tremidades entre as quais ele oscila; fara coincidir a ideia

geral, ora com a a~aoque a desempenha au a palavra quea exprime, ora com as rruiltiplas imagens, em mimero in-definido, que sao seu equivalente na mem6ria. Mas a ver-dade e que a ideia geral nos escapa sempre que tenta-mos congela-la em uma dessas duas extremidades. Elaconsiste na dupla corrente que vai de uma para a outra -sempre prestes, quer a cristalizar-se em palavras pronun-ciadas, quer a evaporar em lernbrancas.

Figura 2

Is50 significaque entre os mecanismos sens6rio-mo-tores figurados pelo ponto Sea totalidade das lembran-cas dispostas emAB ha lugar, como pressentfamos no ca-pitulo anterior, para mil e uma repeticoes de nossa vida

A MEM6RlA OU as GRAUS COEXlSTENfES DA DURA<;:AO 67

psicologica, figuradas por imimeras secoesA'B',X'B" etc.do mesmo cone. Tendemos a nos dispersar emAB a me-dida que nos desligamos mais de nosso estado sensoriale motor para viver avida do sonho; tendemos a nos con-

centrar em S a medida que nos apegamos mais finne-

mente a realidade presente, respondendo com reacoesmotoras a excitacoes sensoriais. Com efeito, 0eu normalnunca se fixa em uma dessas posicoes extrernas;move-seentre elas, adota sucessivamente as posicoes representa-das pelas secoes intermediarias, ou, em outras palavras,da a suas representacoes a estritamente necessario emtermos de imagern e 0 estritamente necessaria em termosde ideia para que elas possam concorrer utilmente para

a a<;aopresente.

M.M., 180-1.

33. 0 esquema

."0schema de que falamos nao tern nada de mis-terioso ou de hipotetico: nao tern nada tarnpouco que

possa chocar as tendencias de uma psicologia acostu-mada, senao a resolver todas as nossas representacoesem imagens, ao menos a definir toda representacao com

relacao a imagens, reais ou possiveis. E de fato em fun-~aode imagens reais ou possfveis que se define 0esque-

ma mental, tal como 0concebemos em todo este estudo.Consiste numa expectativa de imagens, nurna atitude inte-lectual destinada ora a preparar a chegada de uma certaimagem precisa, como no caso da memoria, ora a organi-zar urn jogo mais ou rnenos prolongado entre as imagenscapazes de vir a nele se inserir,como no caso da imagina-

 

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68 MEM6RIA EVIDA

-;ao criadora. Ele e , ern estado aberto, 0que a irnagem eem estado fechado. Apresenta em termos de deoir, dina-micamente, 0que as imagens nos dao como jlifeito,emestado estatico. Presente e atuante no trabalho de evoca-

-;aodas imagens, ele se dissipa e desaparece por tras das

imagens depois que estas foram evocadas, tendo cum-prido seu papel. A imagem de contomos fixos desenha 0

que foi.Uma inteligencia que operasse apenas com ima-

gens desse tipo so poderia recomecarseu passado talqual, ou tomar dele os elementos rigidos para recomp8-los em outra ordem, por urn trabalho de mosaico. Mas,para uma inteligencia flexivel, capaz de utilizar sua expe-riencia passada encurvando-a conforme as linhas do pre-sente, e preciso, alem da imagem, uma representacao deoutra ordem sempre capaz de se realizar em irnagens, massernpre distinta delas. 0 esquema nada mais e que isso.

A existencia desse esquema e,portanto, urn fato e, aocontrario, e a reducao de toda representacao a imagenssolidas, calcadas no modelo dos objetos exteriores, queseria uma hipotese. Agreguemos que em nenhum lugaressa hipotese manifesta tao claramente sua insuficienciacomo na questao atuaL Se as imagens constituem 0todo

de nossa vida mental, como 0 estado de concentracaomental podera se diferenciar do estado de dispersao in-telectual? Sera preciso supor que em certos easos elas sesucedem sem intencao comum e que, em outros, por uma

sorte inexplicavel,todas as imagens simultaneas e sucessi-

vas se agrupam de maneira que deem a solucao cada vezmais aproximada de urn iinico e mesmo problema. Diracque nao e sorte, que e a semelhanca das imagens que fazcom que elas se chamem umas a s outras, mecanicamente,segundo a lei geral de associacao? Mas, no caso do esfor-co intelectual, as imagens que se sucedem podem justa-

A MEMORIA OU OS GRAUSCOEX l STENTES DA DllRAcAo 69

mente nao ter nenhurna similitude exterior entre si: suasemelhanca e totalmente intema; e uma identidade de sig-nificacao, uma mesma capacidade de resolver urn certoproblema com relacao ao qual elas ocupam posicoes ami-

logas ou complementares, a despeito de suas diferencas

de forma conereta. Portanto, e preciso que 0problema es-teja representado no espfrito e de uma forma totalmente

outra que a de imagem. Imagem ele mesmo, evocariaima-

gens parecidas com ele e que se pareeem entre si. Mas,como, ao contrario, seu papel eo de chamar e agruparimagens segundo sua capacidade de resolver a dificulda-de, tern de levar em conta essa capacidade das imagens enao sua forma exterior e aparente. H , portanto, urn modode representacao diferente cia representacao por imagens,embora so possa se definir por referenda a esta.

Em VaG objetariam a dificuldade de conceber a a-;ao

do esquema sobre as imagens. Ada imagem sobre a ima-gem e mais clara?Quando sediz que as imagens se atraemem razao de sua semelhanca, vai-se alem da constatacaopura e simples do fato? 0 que pedimos e que nao se des-eonsidere nenhuma parte da experiencia. Alem da in-fluencia da imagem sobre a imagem, ha a atracao ou aimpulsao exercida sobre as imagens pelo esquema. Alemdo desenvolvimento do espfrito num tinico plano, super-ficialmente, ha 0 rnovimento do espfrito que vai de urn

plano a outro, ern profundidade. Alem do mecanismo deassociacao, ha 0do esforco mental. As forcas que traba-

lham em ambos os casos nao diferem apenas pela inten-sidade; diferem pela direcao. Quanto a saber como elastrabalham, e uma questao que nao e da alcada apenas dapsicologia: vincula -se ao problema geral e metafisico dacausalidade. Entre a impulsao e a atracao, entre a causa"eficiente" e a /Icausa final", ha, acreditamos, algo de inter-

 

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70 MEM6RIA E VIDA

mediario, uma forma de atividade de on de os fil6sofos ti-

raram por meio de empobrectrnento e de dissociacao, pas-

sando aos dais limites opostos e extremos, a ideia de cau-

sa eficiente, por urn Iado, e a de causa final par outro. Essa

operacao, que e a operacao da vida, consiste numa pas-

sagem gradual do menos realizado ao mais realizado, dointensivo ao extensivo, de uma implicacao redproca das

partes a sua justaposicao, 0esforco intelectual e alga des-se genero. Ao analisa-lo, cercarnos tanto quanto pude-

mos, a partir do exemplo mais abstrato e, par conseguin-

te, tarnbem 0mais simples, essa materializacao crescente

do irnaterial que e caracterfstica da atividade vital.

£.5., 187-90.

c) 0 papel do corpo

34.0 p en sa me nto e 0 cerebro

o pensamento esta orientado para a acao, e, quan-

do nao desemboca nurna a~ao real, esboca uma ou va-

rias acoes virtuais, simplesmente possfveis, Essas acoes

reais ou vir tuais, que sao a projecao reduzida e simplifi-

cada do pensamento no espaco e que marc am suas arti-

culacoes motoras, sao 0que esta desenhado na substan-

cia cerebral. A relacao do cerebra com 0 pensamento e,

portanto, complexa e sutil. Se me pedissem para expri-mi-la nurna formula simples, necessariamente grosseira,

eu diria que 0cerebra e urn orgao de pantomime, e ape-

nas de pantomima. Seu papel e mimicar a vida do espi-

rito, mimicar tambem as situacoes extemas as quais 0

espirito tern de se adaptar. A atividade cerebral e para a

A MEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURA< ;AO 71

atividade mental 0que os movimentos da batuta do re-

gente de orquestra sao para a sinfonia.A sinfonia extra-

pola por todos os lados os movimentos que a escandem;

a vida do espirito tambem excede a vida cerebral. Mas 0

cerebra, justamente porque extrai da vida do espfrito tudo

o que nela pode ser representado atraves de movimen-tos e materializado, justamente porque constitui 0 ponto

de insercao do espfrito na materia, garante a todo instan-

te a adaptacao do espirito as circunstancias, mantem 0

tempo todo 0espfrito em contato com realidades. Portan-

to, rigorosamente falando, ele nao e orgao de pensamen-to ou de sentimento ou de consciencia: mas faz com que

consciencia, sentimento e pensamento permanecam apli-

cados a vida real e, conseqiientemente, capazes de a.;ao

eficaz, Digamos, se quiserem, que 0cerebro e 0orgao da

a ie nd io p ara a v id a.

E por isso que basta uma ligeira modificacao da subs-tancia cerebral para que todo 0 espirito paret;a afetado.

Falamos do efeito de certos toxicos sobre a consciencia e,

de forma mais geral, da influencia da doenca cerebral so-

bre a vida mental. Nesses casos, e 0pr6prio espfrito que

fica perturbado au nao seria, antes, 0mecanismo da in-

sercao do espfrito nas coisas? Quando urn louco delira,

seu raciocinio pode estar de acordo com a l6gica mais es-

trita: ao ouvir urn paran6ico falar, voce poderia dizer que

ele peca por excesso de 16gica. Seu erro nao esta em ra-

ciocinar mal, mas em raeiocinar longe da realidade, fora

da realidade, como urn hom em que sonha. Suponhamos,como e bern possivel, que a doenca seja causada por uma

intoxicacao da substancia cerebral. Nao se cleve pensar

que 0veneno tenha ido buscar 0 raciocinio nessa ou na-

quela celula do cerebro, nem, por conseguinte, que haja,

nesse ou naquele ponto do cerebra, movimentos de ato-

 

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72 MEMORIA EVIDA

mos que correspondem ao raciocinio. Nao, e provavel queseja 0cerebro todo que e afetado, assim como e a cordaesticada toda que se distende e nao essa ou aquela de

suas partes, quando 0no foi malfeito. Mas, assim como

basta urn Ievissimo relaxamento da amarra para que 0

barco se ponha a dancar sobre a onda, tambem uma mo-dificacao, ainda que minima, da substancia cerebral in-

teira podera fazer com que 0espfrito, ao perder contato

com 0 conjunto das coisas materiais ern que geralrnen-

te se apoia, sinta a realidade fugir debaixo dele, titubeie

e seja tornado de vertigem. Com efeito, e par urn senti-menta comparavel a sensacao de vertigem que a loucu-

ra comeca ern muitos casos. 0oente fica desorientado.

Dira que os objetos materiais deixaram de ter para ele a

solidez, 0relevo ou a realidade que tinham antes. Urn re-

laxamento da ten sao, ou melhor, da atencao, corn a qual

o espirito se fixava na parte do mundo material com quelidava, eis, na verdade, 0 iinico resultado direto do dis-

. tiirbio cerebral- sendo 0cerebro 0conjunto dos dispo-

sitivos que perrnitem ao espfrito responder a a~ao dascoisas por reacdes motoras, efetuadas ou simplesmente

nascentes, cuja exatidao garante a perfeita insercao do es-

pirito na realidade.

E.S., 47-9.

3 5. L es oe s c er eb ra i s

Os disnirbios da memoria imaginativa que corres-

pondem a lesoes localizadas do cortex sao sempre doen-

cas do reconhecimento, seja do reconhecimento visual

ou auditivo em geral (cegueira ou surdez psfquicas) , seja

A MEMORIA au as GRAUS COEXISTENTES DA DURA0\O 73

do reconhecimento das palavras (cegueira verbal, sur-

dez verbal etc.). Tais sao, pais, os disturbios que deve-

mos examinar.

Mas, se nossa hip6tese for correta, essas les6es do re-

conhecimento de modo algum decorrerao do fato de que

as lembrancas ocupavam a regiao lesada. Deverao pren-der-se a duas causas: au nosso carpo nao consegue mais

adotar automaticamente, em presenca da excitacao vinda

de fora, a atitude precisa por intermedio da qual se ope-

raria uma selecao entre nossas lembrancas, ou as lem-

brancas nao encontram mais no corpo urn ponto de apli-

cacao, urn meio de se prolongar ern acao, No primeiro

caso, a lesao incidira sobre os mecanismos que dao con-

tinuidade ao abalo registrado na forma de movimento

automaticamente executa do: a atencao nao conseguira

mais ser fixada pelo objeto. No segundo, a lesao afetara os

centros particulares do cortex que preparam os movirnen-tos voluntaries fomecendo-lhes 0 antecedente sensorial

necessario e que sao chamados, com ou sem razao, de

centros da imaginacao: a atencao nao podera mais ser

fixada pelo sujeito. Mas, em ambos os casos, sao movi-

mentos atuais que serao lesados ou movimentos por vir

que cessarao de ser preparados: nao tera havido destrui-

c;ao de lembrancas.

Ora, a patologia confirma essa previsao. Ela nos re-

vela a existencia de dois tipos absolutamente diversos de

cegueira e surdez psfquicas, de cegueira e surdez verbais.

No primeiro, as lembrancas visuais ou auditivas ainda saoevocadas, mas nao podem mais ser aplicadas a s percep-c;6es correspondentes. No segundo, a propria evocacao

das lembrancas fica impedida.

M.M., 118-9.

 

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74 MEMORIA EVIDA

36 . As d oe nc as d a m e mo ria

Ha urn ponto sabre a qual todo a mundo concorda,

a de que as doencas da memoria das palavras sao causa-

das por les6es do cerebra mais au menos claramente 10 -

calizaveis. Vejamos, pois, como esse resultado e interpre-tado pela doutrina que faz do pensamento uma funcao

do cerebra, e, de forma mais geral, por aqueles que acre-

ditam num paralelismo ou numa equivalencia entre 0

trabalho do cerebro e 0do pensamento.

Nao ha nada mais simples que a explicacao deles.

As lembrancas estao ai, acumuladas no cerebra na forma

de modificacoes imprimidas a urn grupo de elementos

anatomicos: se elas desaparecem da memoria e porque oselementos anatomicos em que repousavam foram altera-

dos au destruidos. Falavamos ha pouco de negativos fo-

tograficos, de fonogramas: sao essas as comparacoes queencontramos em todas as explicacoes cerebrais da me-

. moria; as impress6es feitas por objetos exteriores sub-

sistiriam no cerebra, tal como no filme sensibilizado ou

no disco fonografico, Urn exarne mais atento rnostraria 0

quanto essas comparacoes sao decepcionantes. Se minha

lembranca visual de urn objeto, par exemplo, fosse real-

mente uma impressao deixada por esse objeto no meu

cerebra, eu jamais teria a Iembranca de urn objeto, teria

milhares, milh6es, pois 0mais simples e 0mais estavel

dos objetos muda de forma, de dimensao, de nuanca, se-

gundo a ponto de onde 0percebo. Portanto, a menos queeu me condene a uma fixidez absoluta ao olhar para ele,

a menos que meu olho se imobilize na sua orbita, incon-

taveis imagens, nao superponiveis, irao se desenhar su-

cessivamente sobre minha retina e serao transmitidas a

meucerebro. Quanto mais caso se trate da imagem visual

A MEMORIA au os GRAUSCOEXlSTENTES DA DURAc;Ao 75

de uma pessoa, cuja fisionomia muda, cujo corpo e mo-vet cujas raupas e 0meio em que se encontra sao dife-

rentes a cada vez que a revejo. No entanto, e incontesta-

vel que minha consciencia me apresenta uma imagem

unica, ou quase unica, uma lembranca praticamente in-

variavel do objeto ou da pessoa: prova evidente de queaqui ocorreu algo totaImente diferente de uma gravacao

mecanica. Poderia, alias, dizer 0mesmo da lernbranca au-

ditiva. A lTIesma palavra articulada par pessoas diferentes

au pela mesma pessoa em momentos diferentes, em £ra-

ses diferentes, da fonogramas que nao coincidem entre si:

como poderia a lembranca, relativamente invariavel e tini-

ca, do som da palavra ser comparada corn urn fonograma?

56 essa consideracao ja bastaria para tamar suspeita a

teoria que atribui as doencas da memoria das palavras a

uma alteracao ou a urna destruicao das proprias lembran-

cas gravadas automaticarnente pelo cortex cerebral.Vejamos 0que ocorre nessas doencas, Quando a le-

sao cerebral e grave e a memoria das palavras e prafun-

darnente afetada, uma excitacao mais ou menos forte,

uma ernocao, por exemplo, pode subitamente trazer de

volta a lembranca que parecia perdida para sempre. Se-

ria isso possfvel se a Iembranca tivesse sido depositada na

materia cerebral alterada ou destruida? Pareceria, antes,

que as coisas se passam como se 0cerebro servisse para

recordar a lembranca e nfio para conserva-la, 0 afasico

toma-se incapaz de encontrar a palavra quando precisa

dela; parece ficar dando voltas, nao ter a capacidade es-perada para se aproximar do ponto preciso; no campo

psicologico, com efeito, 0sinal exterior da capacidade e

sempre a precisao. Mas a lembranca parece estar la: a svezes, tendo substituido par perifrases a palavra que con-

siderava desaparecida, 0afasico fara entrar em uma delas

 

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76 MEMORIA EVIDA

a propria palavra. 0 que fraqueja nesse caso e 0ajusta-menta a situadio que 0mecanismo cerebral deve garantir.Mais precisamente, 0que e afetado e a facu1dade de tor-nar a lembranca consciente esbocando de antemao osmovimentos pelos quais a lembranca, se fosse conscien-

te, se prolongaria em ato. Quando esquecemos urn nomeproprio, como fazemos para nos lembrar dele? Experimen-

tamos todas as letras do alfabeto, urna depois da outra; pri-meiro as pronunciamos internamente; depois, se isso naobastar, as articulamos em voz alta; colocamo- nos, pois,sucessivamente, em todas as disposicoes motoras entreas quais sera preciso escolher; uma vez encontrada a ati-tude desejada,0som da palavra buscada nela se introduzsuavemente como se fosse num quadro preparado para

recebe-lo, E essa mfmica real ou virtual, efetuada ou esbo-cada, que 0mecanismo cerebral cleve garantir. E e sem

duvida ela que a doenca afeta.Reflitam agora no que se observa na afasia progres-

siva,isto e , nos casas em que 0esquecimento das palavrasse agrava cada vez mais. Em geral, as palavras desapare-cern numa ordem determinada, como se a doenca conhe-cesse a gramatica: os nomes proprios sao os primeiros ase eclipsar, depois os nomes comuns, seguidos dos adje-

tivos e, por fun, dos verbos. Num primeiro instante, issopareceria confirmar a hipotese de uma acumulacao delembrancas na substancia cerebral. Os nomes proprios,os nomes comuns, os adjetivos e osverbos constituiriam

camadas superpostas, por assim dizer, e a Iesao afetariaessas camadas uma depois da outra. Sim, mas a doencapode decorrer das mais diversas causas, adotar as maisvariadas formas, comecar num ponto qualquer da regiaocerebral envolvida e progredir em qualquer direcao: a or-

dem de desaparecimento das lembrancas continua a mes-

A MEMORIA au as GRAUS COEXISTENfES DA DURAc;:A.O 77

rna. Seria isso possivel caso fossem as proprias lernbran-cas que a doenca atacasse? Portanto, esse fato deve ter

outra explicacao. Eis a explicacao bern simples que lhesproponho, Em primeiro lugar, se os nomes proprios desa-

parecem antes dos nomes comuns, estes antes dos adje-

tivos e os adjetivos antes dos verbas, e porque e mais di-ffcillembrar-se de urn nome proprio do que de urn nomecomum, de urn nome comum do que de urn adjetivo, de

urn adjetivo do que de urn verbo: a funcao de recordar,com a qual a cerebra evidentemente colabora, tera par-

tanto de se limitar a casos cada vez mais faceis a medidaque a lesao do cerebro se agrava. Mas de que depende amaier au menor dificuldade da lembranca? E par que

os verbos sao, dentre todas as palavras, aquelas que te-

mos menos dificuldade de evocar? Sirnplesmente porque

os verbos exprimem acoes e uma ac;aopode ser expres-

sa por mfmica. 0 verbo pode ser mimicado diretamente,o adjetivo s6 por intermedio do verbo que ele envolve, 0

substantivo pela dupla mediacao do adjetivo que exprimeurn de seus atributos e do verbo implicado no adjetivo, 0nome proprio pela tripla mediacao do nome comum, doadjetivo e tambem do verbo. Portanto, a medida que va-mos do verbo ao nome proprio, afastamo-nos cada vezmais da a~aoirnediatamente imitavel, encenavel pelo car-po; urn artiffcio cada vez mais complicado vai se ternan-do necessario para simbolizar em movimentos a ideia

expressa pela palavra que se busca; e como e ao cerebro

que compete a tarefa de preparar esses movimentos, comoseu funcionamento diminui, se reduz, se simplificaquan-to mais profundamente lesada estiver a regiao envolvida,nao e de espantar que uma alteracao ou uma destruicaodos tecidos, que tome impossfvel a evocacao dos nomes

proprios ou dos nomes comuns, deixe subsistir a do ver-

 

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78 MEM6RIA EVIDA

booNesse caso bern como em outros, os fatos nos convi-

dam aver na atividade cerebral a mimica de urn extrato da

atividade mental e nao urn equivalente dessa atividade.

E.S. , 51-5.

37. 0 qu e e 0 cerebro?

Basta cornparar a estrutura do cerebra a da medulapara se convencer de que ha apenas uma diferenca de

complicacao, e nao uma diferenca de natureza entre as fun-

~oes do cerebra e a atividade reflexa do sistema medu-

lar. 0 que ocorre, de fato, na ac;ao reflexa? 0 movimento

centripeto cornunicado pela excitacao reflete-se imedia-

tamente, por intermedio das celulas nervosas da medula,

num movimento centrifugo que determina uma contra-

<;aomuscular. Em que consiste, ademais, a funcao do sis-

tema cerebral? 0 abalo perifer ico, em vez de se propagar

diretamente para a celula motora da medula e imprimir

ao rmisculo uma contracao necessaria, sobe primeiro para

o encefalo, depois volta a descerpara as mesmas celulas

motoras da medula que intervinham no movimento re-

flexo. 0 que foi que ele ganhou com esse desvio e 0que

foi buscar nas charnadas celulas sensitivas do cortex ce-

rebral? Nfio compreendo e nunca compreenderei que ele

va buscar ali0miracu1oso poder de se transformar em re-

presentacao de coisa e, alias, considera essa hipotese imi-

til, como veremos daqui a pouco. Mas 0que entendo per-feitarnente bern e que essas celulas das diversas regi6es

ditas sensoriais do cortex, celulas interpostas entre as ar-

borizacoes terminais das fibras centripetas e as celulas

motoras da zona rolandica, permitam que 0abalo recebi-

do ganhe a vontade esse ou aquele mecanismo motor da

A MElvf6RlA au os GRAUS COEXISTENTES DA DURA(Ao 79

medula espinhal e escolha assim seu efeito, Quanto mais

se multiplicarern essas celulas interpostas, mais elas emi-

tirao prolongamentos ameboides capazes, par certo, de

se aproximarem uns dos outros de diversos modes, mais

numerosas e mais variadas serao tambern as vias passf-

veis de se abrir diante de urn mesmo abalo vindo da pe-riferia e, conseqiientemente, havera mais sistemas de mo-

vimento entre os quais uma mesma excitacao deixara a

escolha. Portanto, a nosso ver 0cerebra nao deve ser ou-

tra coisa senao uma especie de central telefonica: seu pa-

pel e "dar linha" ou fazer com que seja aguardada. Nao

acrescenta nada ao que recebe; mas, como todos os or-

gaos de percepcao enviam para ele seus iiltimos prolon-

gamentos e todos os mecanismos motores da medula e

do bulbo tern ali seus representantes titulares, ele cons-

titui realmente urn centro, onde a excitacao periferica

p6e-se em contato com esse ou aquele mecanismo mo-

tor, escolhido e nao mais imposto. Por outro lado, comouma enorme quantidade de vias motoras pode se abrir

nessa substancia, todas jun tas, para urn mesmo abalo vin-

do da periferia, esse abalo tern a faculdade de ali se dividir

ao infinito e, por conseguinte, de se perder em inconta-

veis reacoes motoras, simplesmente nascentes. Por isso,

.0papel do cerebra e ora °de conduzir 0movimento regis-

trado a urn orgao de reacao escolhido, ora 0de abrir para

esse movimento a totalidade das vias motoras para que

desenhe nelas todas as reacoes possfveis de que esta pre-

nhe e para que se analise a si mesmo ao se dispersar . Em

outras palavras, 0cerebro e a nosso ver urn instrumentode analise no tocante ao movimento registrado e urn ins-

trumento de selecao no tocante ao movimento executado.

Em ambos os casos, porem, seu papel se limita a transmi-

tir e a dividir movimento. E nem nos centros superiores

do cortex nem na medula os elementos nervosos traba-

 

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80 MEMORIA EVIDA

lham tendo em vista a conhecimento: apenas esbocam de

repente uma pluralidade de aC;6espossiveis ou organizam

uma delas.

Isso significa que 0sistema nervoso nada tern de urn

aparelho que serviria para fabricar ou mesmo para pre-

parar representacoes, Tern por funcao receber excitacoes,montar aparelhos motores e apresentar 0maior mime-

ro possfvel desses aparelhos para uma excitacao dada.

Quanto mais se desenvolve, mais numerosos e mais afas-

tados se tornam os pontos do espaC;o que ele poe em

contato com mecanismos motores cada vez mais comple-

xos: assim cresce a latitude que da a nossa acao e nisso

consiste, justamente, sua perfeicao crescente. No entan-

to, se 0sistema nervoso esta construfdo, de uma ponta aoutra da serie animal, tendo em vista uma aC;aocada vez

menos necessaria, nao se deveria pensar que a percep-

C;ao,cujo progress a se regula de acordo com 0dele, esta,

tambem, toda ela orientada para a acao e nao para 0co-nhecimento puro? E, nesse caso, a riqueza crescente des-

sa propria percepcao nao deveria simbolizar simplesmen-

te a parcela crescente de indeterminacao que caracteriza

as escolhas do.ser vivo na sua conduta com relacao as coi-

sas? Partamos, portanto, dessa indeterminacao como sen-

do 0verdadeiro principio.

M.M., 25-7.

38 . S ign if ic at ;i io da perc epd io

Eis as imagens exteriores, em seguida meu corpo, e,

finalmente, as modificacoes produzidas por rneu corpo

nas imagens circundantes. E facil ver como as imagens

exteriores influem sobre a imagem que chama meu cor-

A MEMORIA a u os GRAUS COEXISTENTES DA DURAc;:Ao 81

po: elas lhe transmitem movimento. Tambem e facil ver

como esse corpo influi sobre as imagens exteriores: ele

lhes restitui movimento. Portanto, no conjunto do mun-

do material, meu corpo e uma imagem que atua como as

outras imagens, recebendo e devolvendo movimento,

com a unica diferenca, talvez, de que meu corpo pareceescolher, em certa medida, a maneira de devolver a que

recebe. Mas como meu corpo em geral e meu sistema

nervoso em particular poderiam gerar toda au parte de

minha representacao do universo? Quer digam que meu

corpo e materia, quer digam que e imagem, pouco impor-

ta a palavra, Se for materia, faz parte do mundo material,

e0mundo material, por conseguinte, existe em tome dele

e fora dele. Se for imagem, essa imagem s6 podera mos-

trar 0que foi posto nela e, como, por hipotese, ela e a ima-

gem apenas de meu corpo, seria absurdo querer tirar dela

a de todo a universo. M eu corp o, o bje to d estin ad o a m ov er

objetos, e p or ta ni o um c en tr o d e a r; ao ;n ii o p od er ia J a ze r n as ce ruma rep res en tacdo .

Mas, se meu corpo e urn objeto capaz de exercer umaacao real e nova sabre as objetos que a rodeiam, deve

ocupar relativamente a eles uma situacao privilegiada.

Em geral, uma imagem qualquer influencia as outras ima-

gens de urna maneira determinada, calculavel ate, em

conformidade corn as chamadas leis da natureza. Ja que

nao tera de escolher , tampouco precis a explorar a regiao

circunvizinha nem se exercitar previamente em varias a~6es

simplesmente possiveis. A a<;aonecessaria ira se realizar

par si so, na hora certa. Mas supus que 0papel da imagemque chamo meu corpo era 0de exercer sabre outras ima-

gens uma influencia real e,par conseguinte, decidir-se en-

tre varies procedimentos materialmente possfveis, E,uma

vez que esses procedimentos certamente the sao sugeri-

dos pela maior ou menor vantagem que possa tirar das

 

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82 MEMORIA EVIDA

irnagens circundantes, e preciso que essas irnagens dese-

nhem de alguma maneira, sobre a face que voltam na di-recao de meu corpo, 0partido que meu corpo podera ti-

far delas. Com efeito, observo que a dimensao, a forma,

ate a cor dos objetos exteriores se modificam conforme

meu corp a se aproxima ou se afasta deles, que a forca doscheiros, a intensidade dos sons aurnentam e diminuem

com a distancia, em suma, que essa propria distancia re-

presenta sobretudo a medida em que os corpos circun-

dantes estao, de certa forma, garantidos contra a a<;ao

irnediata de rneu corpo. A rnedida que meu horizonte se

amplia, as imagens que me rodeiarn parecern se desenhar

sabre urn £undo mais uniforme e tomarem-se indiferen-

tes para rnirn. Quanta mais estreito esse horizonte, mais

as objetos que ele circunscreve se escalonam diversamen-

te conforme a maior au menor facilidade que rneu corpo

tern de toea-los e move-los. Portanto, devolvem ao meucorpo, tal como a faria urn espelho, sua eventual Influen-

cia; ordenam-se segundo as capacidades crescentes au

decrescentes de meu corpo. Os obj et os qu e c er cam meu cor -p o re fle te m a a ¢o poseioel d e m eu c orp o s ob re e le s.

M.M., 14-6.

39 . A p erce pd io e 0 corpo

Quando uma lesao dos nervos ou dos centros inter-rempe 0trajeto do abalo nos nerves, a percepcao diminui

proporcionalmente. Isso deveria surpreender? 0 papel

do sistema nervoso e utilizar esse abalo, converte-Io em

atitudes praticas, real ou virtualmente realizadas. Se, por

urn motivo ou outre, a excitacao deixa de passar , seria es-

A MEMORIA ou OS G R A U S C O E X IS T EN T E S DA DURACA.O 83

tranho que a percepcao correspondente ainda tivesse lu-

gar, ja que nesse caso essa percepcao poria nosso corpo

ern contato com pontos do espaco que nfio a convidariam

mais diretamente a fazer uma escolha. Seccionem 0ner-

vo 6ptico de urn animal; 0abalo que parte do ponto lu-

minoso nao e mais transmitido ao cerebro e, dai, aos ner-vos motores; a fio que ligava 0objeto exterior aos meca-

nismos motores do animal, englobando 0nervo optico,

rompeu-se: a percepcao visual tornou-se, pois, impotente

e e precisamente nessa impotencia que consiste a incons-

ciencia. Que a materia possa ser percebida sem a colabo-

racao de urn sistema nelVOSO,sem orgaos dos sentidos, e

algo que nao e teoricamente inconcebivel, mas e impos-

sfvel na pratica, porque uma percepcao desse tipo nao ser-

viria para nada. Convir ia para urn fantasma, nao para urn

ser vivo, isto e , ativo. Concebe-se 0corpo vivo como urn

imperio dentro de urn imperio, 0sistema nervoso como

urn ser a parte, cuja principal funcao seria elaborar per-

cepcoes e em seguida criar movimentos. A verdade e quemeu sistema nelVOSO,interposto entre os objetos que aha-

lam meu corpo e aqueles que eu poderia influenciar, de-

sempenha 0 papel de urn simples condutor, que trans-

mite, distribui ou inibe movimento. Esse condutor esta

composto de urna enonne quantidade de fios estendidos

da periferia para 0centro e do centro para a periferia. Exis-

te a mesma quantidade de fios que van da periferia para

o centro e de pontos do espaco capazes de solicitar mi-

nha vontade e de fazer, por assim dizer, uma pergunta

elementar a minha atividade motora: cada pergunta fei-

ta e justamente 0que se chama percepcao. Por isso, a

percepcao perde urn de seus elementos cada vez que urn

dos chamados fios sensitivos e cortado, porque entao

alguma parte do objeto exterior torna-se impotente para

 

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84 MEMORIA E V IDA

solicitar a atividade, e tambem cada vez que se contrai urnhabito estavel, porque dessa vez a replica ja pronta tornaa pergunta imitil, 0 que desaparece ern ambos os casose a aparente reflexao do abalo sabre ele mesmo, 0retor-no da luz a imagem de onde elaparte, au antes, essa dis-

sociacao, esse discernimento que faz corn que a percepcaose separe da imagem. Pode-se portanto dizer que 0deta-lhe da percepcao molda-se exatamente de acordo corn0

dos chamados nervos sensitives, mas que a percepcao, emseu conjunto, tern sua verdadeira razao de ser na tenden-cia do corpo a se mover.

M.M.,42-4.

40.A percepdio e a afei¢o

E preciso olhar as coisas mais de perto e entendercorretamente que a necessidade da afeicao decorre dapropria existencia da percepcao, A percepcao, tal como aentendemos, mede nossa ac;aopossfvel sabre as coisas e,por isso, inversamente, a ac;aopossivel das coisas sobrenos. Quanto maior a capacidade de agir do carpo (sim-

bolizada por uma complicacao superior do sistema ner-voso), mais vasto 0 campo que a percepcao abarca. Por-

tanto, a distancia que separa nosso corpo de urn objetopercebido mede realmente a maior ou menor iminencia

de urn perigo, 0cumprimento mais au menos proximo deuma promessa. E, conseqiientemente, nossa percepcaode urn objeto distinto de nosso corpo, separado de nos-so corpo por urn intervalo, nunca exprime outra coisa se-nao uma ac;aa virtual. Contudo, quanta mais diminui adistancia entre esse objeto e nosso corpo, quanto mais,

A MEMOR IA au os GRAU S COEXISTENTES DA DURAc ;: Aa 85

em outras palavras,0perigo se toma urgente e a promes-sa imediata, mais a ac;aovirtual tende a se transformarem ac;aoreal.Va agora ao limite, suponha que a distancia

setome nula, ou seja, que 0objeto a perceber coincidacom

nosso corp0 au seja, em suma, que nosso proprio corpo

seja 0objeto a ser percebido. Entao, nao e mais uma acaovirtual, mas uma ac;aoreal que essa percepcao muito es-pecial exprimira: a afeto consiste exatarnente nisso.Nos-

sas sensacoes sao, portanto, para nossas percepcoes 0quea ac;aoreal de nosso corpo e para sua ac;aopossfvel ouvirtual. Sua ac;aovirtual concerne aos outros objetos ese desenha nesses objetos; sua aciio real conceme a elemesmo e, por conseguinte, se desenha nele. Em suma,tudo se passara como se, por urn verdadeiro retorno das

acoes reais e virtuais a seus pontos de aplicacao ou deorigem, as imagens exteriores fossem refletidas por nos-

so corpo no espac;o que0

cerca, e as ac;6esreais detidaspor ele no interior de sua substancia, E e por isso que suasuperficie,limite comum ao exterior e ao interior, e a iini-caporcao da extensao que e ao mesmo tempo percebidae sentida.

Isso sempre significa que minha percepcao esta forade meu corpo e meu afeto, ao contrario, dentro do meu

corpo. Assim como as objetos exteriores sao percebidospor mim ali onde estao, neles e nao emmim, meus esta-dos afetivos sao sentidos ali onde se produzem, isto e ,num ponto determinado -d e meu corpo. Considerem asistema de imagens que se chama mundo material. Meucorpo e uma delas. Em torno dessa imagem dispoe-se arepresentacao, isto e , sua eventual influencia sabre as ou-tras. Nela seproduz 0afeto, ou seja, seu esforco atual sa-bre si propria. Essencialmente, e essa a diferenca que cadaurn de nos estabelece naturalmente, espontaneamente,

 

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86 M EM OR IA E V ID A

entre urna imagem e uma sensacao, Quando dizemos que

a imagem existe fora de nos, queremos dizer que e exte-rior ao nosso corpo. Quando falamos da sensacao como

sendo urn estado interior, queremos dizer que surge no

nosso corpo. E e por isso que afirrnamos que a totalidade

das imagens percebidas subsiste, rnesrno que nosso corpo

desapareca, ao passo que nao podemos suprimir nosso

corpo sem fazer desaparecer nossas sensacoes.

M.M., 57-9.

4 1. C om o a m em or ia se in se re n a p er ce pd io

De fato, nao ha percepcao que nao esteja impregna-

da de lembrancas. Aos dados imediatos e presentes de

nossos sentidos misturarnos milhares de detalhes de nos-

sa experiencia passada. Em geral, essas Iembrancas deslo-

cam nossas percepcoes reais, das quais nao conservarnos

entao mais que algumas indicacoes, simples "sinais" des-

tinados a nos lernbrar antigas imagens. E esse 0preco da

comodidade e da rapidez da percepcao, mas e tambemdaf que naseem as ilus6es de todo tipo. Nada impede

substituir essa percepcao, toda penetrada de nosso pas-

sado, pela percepcao que teria uma consciencia adulta

e formada, mas encerrada no presente, e absorta, corn

exclusao de qualquer outro trabalho, na tarefa de se mol-

dar ao objeto exterior. Dirac que levantarnos uma hip6-

. tese arbitrar ia e que essa percepcaoideal, obtida pela eli-

minacao dos acidentes individuals, ja nao corresponde arealidade? Mas esperamos mostrar precisamente que os

acidentes individuais estao enxertados nessa percepcao

impessoal, que essa percepcao esta na propria base de nos-

A M EMO R IA OU OS GRAU S COEXISTENTES DA DURAQtO 87

so conhecimento das coisas e que e por te-la ignorado,por nao ter distinguido entre 0que a memoria acrescen-

ta a ela ou dela reti ra, que se fez da percepcao inteira uma

especie de visao interior e subjetiva, que diferiria da Iem-

branca apenas por sua maior intensidade. Portanto, esta

sera nossa primeira hip6tese. Mas ela acarreta natural-

mente outra. Com efeito, por mais curta que se suponha

ser uma percepcao, ela sempre oeupa uma certa duracao

e exige, por conseguinte, urn esforco da memoria, que pro-

longa uns nos outros uma pluralidade de momentos.

Como tentaremos mostrar, mesmo a "subjetividade" das

qualidades sensiveis consiste sobretudo nurna especie de

contracao do real, operada por nossa mem6ria. Em SUIDa,

a mem6ria nessas duas formas, quando recobre com urna

camada de lembrancas urn fundo de percepcao imediata

e tambem quando contrai uma multiplicidade de momen-

tos, constitui a principal contribuicao da consciencia in-

dividual para a percepcao, 0 lado subjetivo de nosso co-

nhecimento das coisas . ..

M.M., 30-1.

4 2. A p erc ep cd o ta l c om o e pene trada de mem6r ia

Na realidade, nao M urn ritmo unico da duracao: po-

dem -se imaginar muitos ritmos diferentes, que, mais lentos

ou mais rapid os, mediriarn 0grau de tensao ou de relaxa-

mento da s consciencias e, assim, fixariam seus respectivos

lugares na serie dos seres. Essa representacao de duracoes

com elasticidade desigual talvez seja penosa para nosso

espirito, que contiaiu 0habito iitil de substituir a duracao

verdadeira, vivida pela consciencia, por urn tempo homo-

 

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88 MEMORIA E VIDA

geneo e independente; mas, em primeiro lugar, e facil,como mostramos, desmascarar a ilusao que torna tal re-

presentacao penosa e, em segundo, essa ideia conta, no

fundo, com 0consentimento tacite de nossa consciencia,

Nao nos acontece perceber em nos mesmos, durante 0

sono, duas pessoas contemporaneas e distintas, uma dasquais donne alguns minutos ao passo que 0 sonho da

outra ocupa dias e semanas? E a historia inteira nao ca-

beria num tempo muito curto para uma consciencia mais

tensa que a nossa, que assistiria ao desenvolvimento da

humanidade contraindo-o, por assim dizer, em grandes

fases de sua evolucao? Em suma, perceber consiste em

condensar periodos enormes de uma existencia infinita-

mente diluida em alguns momentos mais diferenciados

de urna vida mais intensa, e em resumir assim uma histo-

ria muito Ionga. Perceber significa imobilizar.

Equivale a dizer que, no ate da percepcao, apreende-mos algo que vai alem da propria percepcao, sem que no

entanto ° universo material se diferencie ou se distinga

essencialmente cia representacao que temos dele. Em cer-

to sentido, minha percepcao me e efetivarnente interior ,

ja que contrai ·num memento iinico de minha duracao 0

que, em si, se distribuir ia par urn ruimero incalculavel de

momentos. Contudo, se voce suprimir minha consciencia,

o universo material subsistira tal quaI era: com a ressalva

de que, como foi feita abstracao desse ritmo particular de

duracao que era a condicao de minha acao sobre as coi-

sas, essas coisas retornam a si mesmas para se escandirem quantos momentos a ciencia distinguir nelas, e as qua-

lidades sensfveis, sem desaparecer, estendem -se e diluem-

se numa duracao incomparavelmente mais dividida. A

materia resolve-se assim em inumeraveis abalos, todos

ligados numa continuidade ininterrupta, todos solidarios

A MEMORIA au as GRAUS COEXISTENTES DA DURAc;Ao 89

entre si e que se espalham em todos as sentidos como es-

tremecimentos. - Volte a ligar uns aos outros, em uma pa-

lavra, os objetos descontinuos de sua experiencia diana;

resolva em seguida a continuidade imovel de suas quali-

dades em abalos locais: ligue-se a esses movimentos des-

vencilhando-se do espaco divisivel que os subtende paraconsiderar apenas sua mobilidade, esse ate indiviso que

a sua consciencia apreende nos movimentos que voce

mesmo executa: voce obtera da materia uma visao talvez

cansativa para a sua imaginacao, mas pura e livre do que

as exigencies da vida fazem voce acrescentar a ela na per-

cepcao exterior. - Restabeleca agora minha consciencia e,

com ela, as exigencies da vida: a grandes intervalos e trans-

pondo a cada vez enormes periodos da historia interior

das coisas, vistas quase instantaneas serao tomadas, vistas

dessa vez pitorescas, cujas cores mais nitidas condensam

urna infinidade de repeticoes e de mudancas elernenta-

res. E assim que as mil e uma posicoes sucessivas de Urncorredor se contraem numa iinica atitude simbolica, que

nosso olho percebe, que a arte reproduz e que se torna,

para todo 0mundo, a imagern de urn homem correndo. 0

olhar que lancamos a nossa volta, momento apos mo-

mente, so apreende portanto as efeitos de urna multidao

de repeticoes e de evolucoes interiores, efeitos por isso

mesmo descontinuos e cuja continuidade restabelecemos

pelos movimentos relativos que atribuirnos a" objetos" no

espa~o. A mudanca esta por toda parte, mas em profun-

didade; nos a localizamos aqui e acola, mas na superfi-

cie; e constituimos assim corpos ao mesmo tempo estaveisquanta a suas qualidades e moveis quanto a suas posi-

coes, urna simples mudanca de lugar contraindo em si, a

nossos olhos, a transformacao universal.

M.M., 232-4.

 

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90 MEMORIA E VIDA

4 3. A percepcao c om o g ra u e xtre mo d a m em o ria

Mas como 0passado, que, por hipotese, cessau de

serf poderia conservar-se por si mesmo? Nao ha ai uma

verdadeira contradicao? - Respondemos que a questao

consiste precisamente em saber se 0passado deixou de

existir ou se ele simplesmente deixou de ser util,Voce de-

fine arbitrariamente 0presente como 0 qu e e xi .s te , quando

o presente e simplesmente 0 q u e s e j az . Nada existe menos

que 0momenta presente, se entender por iss a esse limi-

te indivisivel que separa 0passado do porvir. Quando

pens amos esse presente como devendo existir, ele ainda

nao existe; e, quando 0pensamos como existente, ele ja

passou. Se, ao contrario, voce considerar a presente con-

creto e realmente vivido pela consciencia, pode-se dizer

que esse presente consiste em grande parte no passado

imediato. Na fracao de segundo que dura a mais curta

percepcao possivel de Iuz, ocorreram trilhoes de vibra-

c;6es,a primeira das quais esta separada da Ultima por urn

intervalo enonnemente dividido. Sua percepcao, por mais

instantanea que seja, consiste portanto numa incalculavel

quantidade de elementos rememorados e, na verdade,

tad a percepcao ja e memoria. N a p ra tic a. p erc eb em os a pe-

nas a passado , sendo 0presente puro a inapreensfvel avan-

co do passado roendo 0poIVir.

Portanto, a consciencia ilumina com seu briIho, a todo

momenta, essa parte imediata do pass ado que, debrucada

sobre 0porvir, trabalha para realiza-lo e agrega-Io a si.

Preocupada unicamente em detenninar assim urn porvir

indeterrninado, podera espalhar urn poueo de sua luz sa-

bre aqueles de nossos estados mais recuados no passado

que poderiam se organizar de modo titil com nosso esta-

do presente, ou seja, com nosso passado imediato; 0resto

A MEM6RIA au os GRAUS COf.XISTENTES DA DURAcA.O 9 1

permanece obscuro. E nessa parte iluminada de nossa

hist6ria que ficamos instalados, em virtude da lei funda-

mental da vida que e urna lei de acao: daf a nossa dif icul-

dade de conceber lernbrancas que se conservariam na

sombra. Nossa aversao a admitir a sobrevivencia integral

do passado decorre portanto da propria orientacao de nos-

sa vida psicologica, verdadeiro desenrolar de estados em

que nos interessa olhar 0 que se desenrola e nao 0 que

esta totalmente desenrolado.

Desse modo, depois de urn longo desvio, voltamos

ao nosso ponto de partida. Ha, diziamos, duas mem6rias

profundamente distintas: uma, fixada no organismo, nfio

e outra coisa senao a conjunto dos mecanismos inteli-

gentemente montados que garantem uma replica ade-

quada as diversas interpelacoes possfveis. Ela faz com que

nos adaptemos a situacao presente e que as acoes sofri-

das par n6s se prolonguem por si mesmas em reacoes,

ora realizadas, ora simplesmente nascentes, mas sempre

mais ou menos apropriadas. Habito mais que memoria,

ela atua em nossa experiencia passada, mas nao evoca sua

imagem. A outra e a mem6ria verdadeira. Coextensiva a

consciencia, retem e alinha uns apos outros todos as nos-

sos estados a medida que se produzem, reservando para

cada fato seu lugar e, por conseguinte, marcando-lhe sua

data, movendo-se realmente no passado definitivo e nao,

como a primeira, num presente que recomeca incessan-

temente. Porem, ao distinguir profundamente essas duas

formas de memoria, nao haviamos mostrado 0que as liga.

Acima do corpo, com seus mecanismos que simbolizarn

o esforr;o acumulado das acoes passadas, a memoria que

imagina e que repete pairava, suspensa no vazio. No en-

tanto, se nunca percebemos outra coisa senao nosso pas-

sado imediato, se nossa consciencia do presente ja e me-

 

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92 MEM6RIA EVIDA

moria, as dois termos que tinhamos separado num pri-meiro momenta irao soldar-se intimamente. Consideradodesse novo ponto de vista, com efeito, nosso corpa nao eoutra coisa senao a parte invariavelmente renascente de

nossa representacao, a parte sempre presente, au melhor,

aquela que a todo momenta acaba de passar, Imagem elemesmo, esse corpo nao pode armazenar as imagens umavez que faz parte das imagens; e e por isso que e quime-

rico 0intuito de querer localizar as percepcoes passadas,au mesmo presentes, no cerebra: elas nao estao nele; eele que esta nelas. Mas essa imagem tao particular, quepersiste no meio das outras e que chama rneu corpo,constitui a cada instante, como diziamos, urn corte trans-versal do universal dew. E portanto 0Lugar de passagem

dos movimentos recebidos e enviados, 0traco-de-uniao

entre as coisas que agem sabre mim e as coisas sobre asquais ajo, a sede, numa palavra, dos fenomenos sen 50-rio-motores ...

.,.A memoria do corpo, constituida pelo canjunto dos

sistemas sensorio-motores que0habito organizou, e por-tanto uma memoria quase instantanea para a qual a ver-dadeira memoria do passado serve de base. Como elasnao constituem duas coisas separadas, como a primeira

e, dizfamos, apenas a ponta rnovel inserida pela segun-da no plano rnovente da experiencia, e natural que essasduas funcoes se apoiem mutuamente. Por urn lado, comefeito, a memoria do passado apresenta para os mecanis-

mos sensorio-motores todas as lembrancas capazes de

guia - los em sua tarefa e de dirigir a reacao motora nosentido sugerido pelas licoes da experiencia: nisso con-sistem precisamente as associacoes por contigilidade epor similitude. Mas, por outro lado, os aparelhos sense-rio-motores fornecem a s lembrancas impotentes, au seja,

A MEM6R1A au os GRAUS COEXISTENTES DA DURAt;:AO 93

inconscientes, 0meio de ganhar urn corpo,de semateria-lizar, de se tomarem presentes, em surna. Para que umalembranca reapareca na consciencia e efetivamente pre-ciso que ela desca das alturas da mem6ria pura ate 0ponto precise em que se realiza a a(:ao. Em outras pala-vras, e do presente que parte 0apelo a que a lembrancaresponde e e dos elementos sensorio-motores da a<;aopresente que a lembranca empresta 0calor que da vida.

M.M., 166-70.

....... ,------_ .._.- _ .._----, .., - _ . _ ... _-

 

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ill. A V IDA OU A D IFE RENC IA <;A O DA DVRA<;AO

a) 0 movimento davida

44. a el i i v i ta l

M ov im en to d a d ura dio q ue se diferencia

omovimento evolutivo seria coisa simples, determi-

nariamos rapidarnente sua direcao se a vida descrevesse

uma trajetoria iinica, comparavel a de tuna bala macica 1an-cada por umcanhao. Mas lidarnos aqui com urn obus que

imediatamente explodiu em fragmentos, os quais, sendo

eles rnesmos uma especie de obus, explodiram por sua vez

em fragmentos destinados a explodir tambem e assim por

diante, durante muitissimo tempo. Percebemos somente 0

que esta mais perto de nos, os movimentos dispersos dos

fragmentos pulverizados. E partindo deles que devemos re-montar, graduaImente, ate 0movimento original,

Quando 0obus explode, sua fragmentacao particular .

explica-se ao mesmo tempo pela forca explosiva da p6lvo-

ra que ele contem e pela resistencia que 0metal lhe opoe.

o mesmo se aplica a fragmentacao da vida em individuos

 

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9 6 MEMORIA E VIDA

e especies. Esta, cremes, prende-se a duas series de cau-

sas: a resistencia que a vida sofre por parte da materia

brnta e a forca explosiva - devida a urn equilfbrio instavel

de tendencies - que a vida traz em si.

A resistencia da materia bruta eo obstaculo que foi

precise contomar prirneiro. A vida parece te-Io consegui-

do it forca de hurnildade, fazendo-se muito pequena e

muito insinuante, tergiversando corn as forcas ffsicas e

quirnicas, consentindo ate ern percorrer com elas parte do

caminho, como a agulha da via ferrea quando adota por

alguns instantes a direcao do tr ilho de que quer se soltar.

Dos fenomenos observados nas formas mais elementares

da vida nao se sabe dizer se sao ainda fisicos e quimicos

ou se ja sao vitais. Foi preciso que a vida entrasse assim

nos habitos da materia bruta para arrastar pouco a pouco

para uma outra via essa materia magnetizada. As formas

animadas que apareceram primeiro foram portanto de

uma extrema sirnplicidade. Eram sem diivida pequenasmassas de protoplasma quase indiferenciado, compara-

veis, por fora, a s amebas que observarnos hoje, mas acres-cidas do fantastico fmpeto interior que iria guinda-las

ate a s formas .supertores da vida. Que em virtu de desse

impeto os primeiros -organismos tenharn procurado cres-

cer 0maximo possfvel e algo que nos parece provavel:

mas a materia organizada tern urn limite de expansao que

e rapidamente atingido. Prefere duplicar-se a crescer alem

de urn certo ponto. Foram decerto precisos seculos de es-

force e prodigios de sutileza para que a vida contomasse

esse novo obstaculo. Conseguiu que run mimero crescen-

te de elementos, prontos para se duplicar, permanecessem

unidos. Pela divisao do trabalho, estabeleceu entre eles

urn vinculo indissohivel, 0 organismo complexo e quase

descontinuo funciona tal como 0 faria uma massa viva

continua que tivesse simples mente crescido.

A VIDA OU A DlFERENCIAQ4.0 DA DURACt \O 9 7

Mas as verdadeiras e profundas causas de divisao

eram aquelas que a vida trazia em si. Pois a vida e tenden-

cia e a essencia de uma tendencia e desenvolver-se em

forma de feixe, cr iando, pelo simples fato de seu cresci-

mento, direcoes divergentes entre as quais seu ela ira di-

vidir-se, E 0que observamos em nos mesmos na evolucao

des sa tendencia especial que chamamos nosso carater ,

Cada urn de nos, ao passar uma vista d'olhos retrospecti-

va por sua historia, constatara que sua personalidade de

crianca, embora indivisivel, reunia nela pessoas diversas

que podiam permanecer fundidas entre si porque esta-

yam em estado nascente: essa indecisao cheia de pro-

messas e inclusive urn dos maiores encantos da infancia,

Mas as personalidades que se interpenetram tornam-se

incompativeis ao crescer e, como cada urn de nos vive uma

vida s6, e forcoso fazer uma escolha. Na verdade, escolhe-mos sem cessar e tambem sem cessar abandonamos mui-

tas coisas. A estrada que percorremos no tempo esta jun-cada dos restos de tudo 0que comecamos a ser, de tudo

o que poderiamos ter nos tornado. Mas a natureza, que

disp6e de urn. mimero incalculavel de vidas, nao esta ads-

trita a semelhantes sacriffcios. Conserva as divers as ten-

dencias que bifurcaram ao crescer. Cria, corn elas, series

.divergentes de especies que evoluirao separadamente.

E.C, 99-101.

4 5. E xem plo : a p la nta e0

animal

Agora, que a celula animal e a celula vegetal derivam

de urn. tronco comum, que os primeiros organismos vivos

tenham oscilado entre a forma vegetal e a forma animal,

participando de ambas ao mesmo tempo, nao e algo que

 

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98 MEMORIA EVIDA

nos pare~a duvidoso. Acabamos, com efeito, de ver que

as tendencias caracterfsticas da evolucao dos dois reinos,

embora divergentes,~ coexistem ainda hoje, tanto na plan-

ta como no animal. E s6 a proporcao que difere. Em geral,

uma das duas tendencias encobre ou esmaga a outra,

mas, em circunstancias excepcionais, esta Ultima se liber-

ta e recupera 0 espac;o perdido. A mobilidade e a cons-

ciencia da celula vegetal nao estao tao adormecidas a

ponto de nao poderem despertar quando as circunstan-

cias permitem ou exigem, E, por outro lado, a evolucao do

reino animal foi incessantemente retardada, detida ou re-

trogradada pela tendencia a vida vegetativa que conser-

you. Por mais plena, por mais transbordante que possa,

com efeito, parecer a atividade de uma especie animal,

o torpor e a inconsciencia espreitam -na. S6 mantem seu

papel mediante urn esforco, ao preco de uma fadiga. Ao

longo da estrada pela qual 0 animal evoluiu, desfaleci-

mentos sem conta se produziram, decaimentos vincula-

- dos em sua maioria a habitos parasitarios, sao todos en-

carrilharnentos na via da vida vegetativa. Portanto, tudo

nos leva a supor que 0vegetal e 0animal descendem de

urn ancestral comurn que reunia, em estado nascente, astendencias de ambos.

Mas as duas tendencias que se implicavam recipro-

carnente sob essa forma rudimentar dissociaram -se ao

crescer. Dai provem 0mundo das plantas com sua fixidez

e sua insensibilidade, dai provem os animais com sua mo-

bilidade e sua consciencia, Alias, para explicar esse des-

dobramento, nao e preciso fazer intervir uma forca mis-

teriosa. Basta notar que 0ser vivo vai naturalmente para

o que the e mais comodo e que vegetais e animais opta-

ram, cada urn par seu lado, por dais tipos diferentes de

comodidade na rnaneira de obter 0carbo no e 0azoto de

A VIDA au A DIFERENCIA r: ;.Aa DA D llRACt\O 99

que necessitavam. Os primeiros tiram, continua e maqui-

nalmente, esses elementos de urn meio que as fomece

sem cessar. Os segundos, mediante uma acao descon-

tinua, cone entrada em alguns instantes, consciente, van

buscar esses corpos em organismos que ja os fixaram.

Sao duas maneiras ctiferentes de entender 0trabalho ou,

se preferirem, a preguica, Por isso, parece-nos duvidoso

que se venha algum dia a descobrir na planta elementos

nervosos, por mais rudimentares que se os suponha. 0

que nela corresponde a vontade diretriz do animal e, ere-

mos, a direcao em que inflete a energia da radiacao solar

quando dela se serve para romper as ligacoes do carbona

com 0oxigenio no acido carbonico. 0 que nela corres-

ponde a sensibilidade do animal e a impressionabilidadetoda especial de sua clorofila a luz. Ora, como urn sistemanervoso e , antes de mais nada, urn mecanismo que ser-

ve de intcrmcdiario entre sensacoes e volicoes, 0verda-

deiro /I sistema nervoso" da planta nos parece ser 0me-

canismo, au melhor, 0quimismo sui gener is que serve deintermediario entre a impressionabilidade de sua cloro-

fila a luz e a producao do amido. 0 que significa que a

planta nao deve ter elementos nervosos e que a m es mo e lii

q u e l ev ou 0 a nim al a se d ar n erv os e centros nerooeos deve ter

de sembo ca do, n a p la n ta , n a f u n~ ii o c lo ro ft 1i ca .

E.C, 113-5.

4 6. E xe mp lo : a in te lig in cia e 0 instinto

Se a forca imanente a vida fosse uma forca ilimitada,talvez tivesse desenvolvido indefinidamente nos mesmos

organismos 0instinto e a inteligencia, Mas tudo parece

 

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100 MEMORIA E VIDA

indicar que essa forca e finita e que se esgota muito ra-

pido ao se manifestar . E-lhe diffcil irlonge em varias di-

recoes ao mesmo tempo. Ela tern de escolher. E pode es-

collier entre duas maneiras de agir sobre a materia bru-

taoPode fornecer essa ac;ao imediatamente criando para si

urn instrumento organizado com 0qual trabalhara: ou en-

hio mediatamente , num organismo que, em vez de possuir

naturalmente 0 instrumento necessario, 0 fabricara ele

mesmo moldando a materia inorganica, Dai a inteligen-

cia e 0nstinto, que divergem cada vez mais ao se desen-

volverem, mas que jamais se separam totalmente urn do

outro. De urn lado, corn efeito, 0 mais perfeito instinto

do inseto vern acompanhado de alguns lampejos de in-

teligencia, quando mais nao seja na escolha do lugar, do

momento e dos materiais da construcao: quando, extraor-

dinariamente, abelhas nidificam ao ar livre, elas inventam

dispositivos novos e verdadeiramente inteligentes para

se adaptar a essas novas condicoes, Mas, por outro lado,

a inteligencia precisa ainda mais do instinto do que 0ins-

tinto da inteligencia, pois moldar a materia bruta ja pres-

supoe no animal urn grau superior de organizacao, ao qual

so se pode elevar pelas asas do instinto. Por isso, enquan-

to a natureza evoluiu francamente em direcao ao instinto

nos artropodes, em quase todos os vertebrados assistimos

antes a procura do que ao pleno desenvolvimento da in-

teligencia. Continua sendo 0 instinto que forma 0 subs-

trato de sua at ividade psfquica, mas a inteligencia esta la

e aspira a suplanta-lo. Ela nao chega a inventar instru-

mentos: ao menos tenta, executando 0maximo de varia-

c;6espossfveis sobre 0instinto, do qual gostaria de prescin-

dir. S6 se apossa totalmente de si no hornern, e esse triun-

fo se afinna pela pr6pria insuficiencia dos meios naturais

de que 0homem disp6e para se defender contra seus ini-

A VIDA auA DIFERENCIA<;Ao DA DURACA,O 101

rnigos, contra 0frio e contra a fome. Essa insuficiencia,

quando lhe procuramos decifrar 0sentido, adquire 0va-

lor de urn documento pre-historico: e a dispensa defini-

tiva que 0 instinto recebe por parte da inteligencia, Nao

e menos verdade que a natureza deve ter hesitado en-

tre dais modos de atividade psiquica, urn assegurado do

sucesso imediato, mas limitado em seus efeitos, 0outro,

aleatoric, mas cujas conquistas, se alcancasse a indepen-

dencia, poderiam se estender indefinidamente.Alias, tam-

bern aqui 0maior sucesso foi obtido do lade onde estava

o maior risco. In stin to e inieligencia r epre sen tam por tan to

duas so lu r ;i J esd i ve r gen te s , i gua lmen t e e l egan t es , para um tau-co e m e sm o p ro bl em a .

E.e.,142-4.

4 7. D if er en cia dio e c om pe ns ac ao : a religiiio

Imaginemos entao uma humanidade primitiva e so-

ciedades rudimentares. Para garantir a esses agrupamen-

tos a coesao desejada, a natureza disporia de urn meio

bern simples: s6 teria de dotar 0homem de instintos apro-

priados. Foi 0que fez com a colmeia e 0formigueiro, alias,

com pleno sucesso: neles, os individuos vivem exclusiva-

mente para a ccmunidade. E foi urn trabalho facil, pois s6

teve de seguir seu metodo habitual 0instinto e , de fato,coextensive a vida, eo instinto social, tal como 0encon-

tramos no inseto, e apenas 0espirito de subordinacao e de

coordenacao que anima as celulas, tecidos e orgaos dos

corpos vivos. Mas e para 0desabrochar da intel igencia e

nao mais para 0desenvolvimento do instinto que tende 0

impulso vital na serie dos vertebrados. Quando 0 termo

 

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102 M EM OR IA E V ID A

do movimento e atingido no homem, 0nstinto nao e su-prirnido, mas eclipsado; resta dele apenas urn vago lam-

pejo em torno do ruicleo, totalmente iluminado, ou antes,luminoso, que e a inteligencia, Doravante, a reflexao per-mitira ao individuo inventar, a sociedade progredir. Mas,

para que a sociedade progrida, ainda e preciso que sub-sista. Invencao significa iniciativa, e urn apelo a iniciati-

va individual ja ameaca por em risco a disciplina social.Quanto mais se 0individuo desviar sua reflexao do obje-tivo para 0qual ela e feita, ou seja, da tarefa a cumprir,a aperfeicoar, a renovar, e dirigi-la para simesmo, para 0incomodo que a vida socialIhe imp6e, para 0sacrificioquefaz a cornunidade? Entregue ao instinto, como a formi-ga ou a abelha, teria ficado voltado para 0fim exterior aatingir; teria trabalhado para a especie, automaticamente,sonambulicamente. Dotado de inteligencia, desperto paraa reflexao, ira se voltar para simesrno e 56 pensara em vi-

ver agradavelmente. Urn raciocfnio bern formulado certa-mente the demonstraria que e de seu interesse promovera felicidade alheia; mas sao precisos seculos de culturapara produzir urn utilitarista como Stuart Milt e StuartMill nao convenceutodos os filosofos e menos ainda oshomens comuns. A verdade e que a inteligencia aconse-lhara primeiro 0egoismo. E para esse lade que 0ser inte-ligente se precipitara se nada 0 detiver. Mas a naturezaesta vigilante. Faz pouco, diante da barreira aberta, surgi-ra urn guardiao, proibindo a entrada e empurrando 0con-

traventor. Aqui, sera urn deus protetor da cidade que de-fendera, ameacara, reprimira. A inteligencia, com efeito,regula-se por percepcoes presentes ou por esses residuesde percepcoes mais ou rnenos recheados de imagens quechamamos lembrancas. Como 0instinto nao existemaisa nfio ser em estado de vestigio ou de virtualidade, como

A VIDA ouA D IF E R EN C IA c; :A o D A D U R Ac ;:A O 103

nao e forte 0suficiente para provocar atos ou impedi-Ios,devera suscitar uma percepcao ilusoria ou pelo menosuma contrafacao de lembranca bastante precisa, bastanteimpressionante para que a inteligencia se determine parela. C o ns id er ad a d es se p ri me iro p on to de v is ta , a r el ig ii io ep ort an to u m a r ea dio d efe ns io a d a n atu re za c on tr a 0 poder dis-solvente da inteligencia.

M.R,125-7.

4 8. D if er en cia ea o e te oria d a e oo lu dio

Ao submeter assim as diversas fonnas atuais do evo-lucionismo a urn teste comum, ao mostrar que todas elasvern se chocar contra uma mesma e intransponivel difi-culdade', nao tfnhamos demodo algum a intencao de re-

jeita-las em bloco. Cada uma delas, ao contrario, apoiadanum mimero consideravel de fatos, deve ser verdadeiraa sua maneira. Cada uma delas deve corresponder a urncerto ponto de vista sobre 0processo de evolucao.Alias,talvez seja preciso que uma teoria se atenha exclusiva-mente a urn ponto de vista particular para que perma-neca cientffica, isto e , para que de uma direcao preci-sa as pesquisas minuciosas. Mas a realidade, da qual cadauma dessas teorias adota uma visao parcial, deve exce-der a todas. E essa realidade e 0 objeto proprio da filo-sofia, que nao esta adstrita a precisao da ciencia, ja que

nao visa nenhuma aplicacao. Indiquemos, pais, em pou-cas palavras, 0que, a nosso ver, cada uma das tres gran-

1. "0 teste" consiste no seguinte: dar conta da existencia de apa-

relhos identicos (0 olho, por exemplo), obtidos mediante meios desse-

melhantes, por linhas de evolucao divergentes. Cf. texto 49.

 

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104 MEMORIA E VIDA

des formas atuais do evolucionismo traz de positive para

a solucao do problema, 0que cada uma delas deixa de

lado e para que ponto, no nosso entender, seria preciso

fazer convergir esse triplo esforco para obter uma ideia

mais abrangente, embora por isso mesmo mais vaga, do

processo evolutivo.

Acreditamos que os neodarwinistas provavelmente

tern razao quando ensinam que as causas essenciais de

variacao sao as diferencas inerentes ao germe de que 0

individuo e portador e nao asatitudes desse individuo ao

longo de sua carreira. 0 ponto onde nos custa acompa-

nhar esses biologos e quando tomam as diferencas ine-

rentes ao germe por puramente acidentais e individuais.

Nao podernos nos irnpedir de pensar que elas sao 0de-

senvolvimento de uma impulsao que passa de germe para

germe par meio dos individuos, que, par conseguinte, nao

sao puros acidentes e que poderiam muito bern apare-

cer ao mesmo tempo, sob a mesma forma, em todos as

. representantes de uma mesma especie au, pelo menos,

num certo mimero deles. Alias, a teoria das muta~oes ja

modifica profundamente 0darwinismo no que a isso se

refere. Ela diz que num determinado momenta, transcor-

rido tun longo periodo, a especie inteira e tomada de uma

tendencia a modificar-se. Isso significa, portanto, que a

t endenc ia a modif ic a r- se nao e acidental. Acidental, e verda-de, seria a mudanca em si, se a mutacao operasse, como

quer De Vries', em direcoes diferentes nos diferentes re-

presentantes da especie, Primeiro, contudo, sera preciso

ver se a teoria se confinna em varias outras especies vege-

tais (DeVries so a verificou na Oeno thera Lamarck iana i e,

2.Botanico holandes que, por volta de 1900,introduziu embiolo-

gia a idem de variacoes bruscas ou "mutacao",

A VIDA au A DIFERENCIACAO DA DURAc;Ao 105

depois, nao e impossivel, como explicaremos mais adian-tel que a parte que cabe ao acaso seja bern maior na varia-

<;aodas plantas do que na dos anirnais, porque, no mun-

do vegetal, a funcao nao depende tao estreitarnente da

forma. Como quer que seja, os neodarwinistas estao em

via de admitir que as periodos de mutacao sao determi-

nados. Portanto, a direcao da mutacao tambem poderia

se-lo, ao menos nos animais e ao menos em certa medi-

da, que ainda teremos de indicar.

Desembocarfamos assim numa hip6tese como a de

Eimer, segundo a qual as variacoes das diferentes carac-

teristicas prosseguiriam, de geracao em geracao, em dire-

<;6esdefinidas. Essa hipotese nos parece plausivel, den-

tro dos limites em que 0proprio Eimer a encerra, E certoque a evolucao do mundo organico nao deve ser prede-

tenninada em seu conjunto. Afinnamos, ao contrario, que

a espontaneidade da vida nela se manifesta par uma con-

tinua criacao de formas que se sucedem umas a s outras .Mas essa indeterminacao nao pode ser completa: deve

deixar uma certa parte para a deterrninacao. Urn orgao

como 0olho, par exemplo, ter-se-ia constituido precisa-

mente por uma variacao continua numa direcao definida,

Nao vemos como se explicaria de outro modo a similitude

de estrutura do olho em especies que nao tern de modo

algum a rnesma historia. 0 ponto em que nos separarnos

de Eimer e quando ele afirma que combinacoes de causas

ffsicas e quirnicas bastarn para garantir 0resultado. Nos,

pelo contrario, tentamos estabelecer acima, com relacao

ao exemplo precis0do olho, que, se ha aqui "ortcgenese",

e porque uma causa psicologica intervem",

3.Eimer propusera a palavra "ortogenese" para designar a evolu-

c;aoque se realiza numa detenninada direcao (1888).

 

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106 M EM OR IA E V ID A

E precisamente a uma causa de ordem psicologica

que alguns neolamarckianos recorrem, Ai reside, a nos-

so vert urn dos pontos mais solidos do neolamarckismo.

Contudo, se essa causa nao for mais que 0esforco cons-

ciente do individuo, podera operar somente num mimero

bastante restrito de casos; intervira no maximo no animal

e nao no mundo vegetal. No proprio animal, agira apenas

nos pontos direta ou indiretamente submetidos a influen-cia da vontade. E mesmo onde age nao se ve como obte-

ria uma rnudanca tao profunda como e urn aurnento de

complexidade: no maximo, isso seria concebfvel se as carac-

teristicas adquiridas se transmitissem regularrnente, de mo-

do que se somassem umas a s outras; mas essa transmissaoparece ser antes a excecao que a regra. Uma mudanca

hereditaria e de direcao definida, que vai se acumulando e

se compondo consigo mesma de modo que construa uma

maquina cada vez mais complicada, deve certamente es-

tar relacionada com algum tipo de esforco, mas com urn

esforco muito mais profundo do que 0esforco individual,

muito mais independente das circunstancias, comum amaioria dos representantes de uma mesma especie, ine-

rente antes aos germes que estes carregam que a sua subs-tancia apenas, garantindo-se assim que seja transmitido

a seus descendentes.

Voltamos assim, depois de urn longo desvio, a ideiade onde partimos, a de urn el ii origina l da vida, passando

de uma geracao de germes a geracao seguinte de germes

por intermedio dos organism os desenvolvidos que fun-

cion am como traco-de-uniao entre os germes. Esse ela,conservando-se nas linhas de evolucao entre as quais se

divide, e a causa profunda das variacoes, peIo menos da-

quelas que se transmitem regulannente, que se somam,

que criam especies novas. Em geral, quando as especies

A V ID A au A D IF ER E NC IA c,1 D D A D U RA < ;: .4 .0 107

comecam a divergir a partir de urn tronco comum, elas

acentuam sua divergencia a medida que avancam em sua

evolucao, No entanto, em determinados pontos, poderao

e ate deverao evoluir de modo identico se aeeitarmos a

hip6tese de urn ela comum. E 0que nos resta mostrar deuma maneira mais precisa no pr6prio exemplo que esco-

lhemos, a formacao do olho nos moluscos enos vertebra-

dos'. Ademais, desse modo a ideia de urn "ela original"

podera tomar-se mais clara.

E.C, 85-8.

4 9 . D i fe re n ci ac do e r es u lt ado s s im il ar es

Diziamos que a vida, desde suas origens, e a conti-nuacao de urn unico e me smo ela que se dividiu entre li-

nhas de evolucao divergentes. Algo cresceu, algo se de-senvolveu por uma serie de adicoes que foram, todas elas,

criac;6es. Foi esse pr6prio desenvolvimento que levou a

se dissociarem tendencies que nao podiam crescer alem

de urn certo ponto sem se tomarem incompatfveis entre

si. A rigor, nada impediria imaginar urn indivfduo iinico

no qual, em decorrencia de transformacoes espalhadas

por milhares de seculos, se houvesse efetuado a evolucao

da vida. Ou ainda, na falta de um individuo UniCOI po-

der-se-ia supor uma pluralidade de individuos suceden-

do-se numa serie unilinear, Em ambos os casas, a evolu-

c;ao teria tido, se assim nos podemos exprimir, apenasuma dimensao. Mas a evolucao na realidade se fez por

intermedio de milhoes de indivfduos par linhas divergen-

4.0. textos 50 e 52.

 

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108 MEM6RIA E VIDA

tes, cada uma das quais desembocava, par sua vez, numa

encruzilhada de onde irradiavam novas vias, e assim por

diante, indefinidamente. Se nossa hip6tese e bern funda-

da, se as causas essenciais que trabalham ao longo desses

divers os caminhos sao de natureza psicologica, devem

conservar algo de comum a despeito da divergencia de

seus efeitos, tal como amigos separados ha muito tempo

guardam as mesmas lembrancas de infancia, Por mais que

se tenham produzido bifurcacoes, que se tenham aberto

vias laterais onde as elementos dissociados se desenro-

lavam de modo independents, nem por isso deixa de ser

pelo ela primitive do todo que 0movimento das partes se

prolonga. Portanto, alga do todo deve subsistir nas suas

partes. E esse elemento comum podera tomar-se visfvel

de certa maneira, talvez pela presen<;a de orgaos identicos

em organismos muito diferentes. Suponhamos, por urn

instante, que 0mecanicismo seja a verdade: a evolucao

tera se dado por uma serie de acidentes que foram se

acrescentando uns aos outros, send a que cada acidente

novo se conserva por selecao se for vantajoso para essa

soma de acidentes vantajosos anteriores representada

pela forma atual do ser vivo. Qual a chance de duas evo-

lucoes completamente diferentes desembocarem, atra-

ves de duas series completamente diferentes de acidentes

que se adicionam, em resultados similares? Quanto mais

duas linhas de evolucac divergirem, menos probabilida-

des havera de que influencias acidentais exteriores ou va-

riacoes acidentais internas tenham determinado nelas a

.construcao de aparelhos identicos, sobretudo se nao ha-via qualquer vestigia desses aparelhos no momento em

que a bifurcacao ocorreu. Essa similitude seria natural, ao

contrario, numa hipotese como a nossa: deverfamos reen-

contrar, ate nos tiltimos riachinhos, algo da impulsao re-

109

cebida na fonte. 0 p u ro m e ca ni ci sm o s er ia p or ta nto refuta-

vel, e a f inalidade, n o s en ti do e sp ec ia l em q u e a e nt en dem os ,

s er ia d em on str do ei p ar u rn c erta l ad o, c as o p ud ee se mo s e sia -

b el ec er q u e a v id a f ab ri ca c er to s a pa re lh os id in ti co s, p or m e io s

d ess em elh an te s, e m l in ha s d e e oo lu ca o d iv er g e nte s. A f or 9Q d a

p ro ua se ria , a lia s, p ro po rc io na l a o g r au d e a fa sta me nto d as l i-

n ha s d e e vo lu r; ao e sc ol hid as e a o g ra u d e c om pl ex id ad e d as es -

i ru iu ra s s im il ar es q u e n el as e nc on tr ds sem os .

E.C. , 53-5.

5 0. E xe mp lo : a v isiio

Quanto mais consideravel for 0esforco da mao, mais

longe i r a para dentro da limalha. Mas, seja qual for 0pon-

to em que se detenha, instantanea e automaticamente

os graos se equilibram, coordenam -se entre si. 0 mesmo

acontece com a visao e com seu orgao. Conforme a ato

indiviso que constitui a visao vai mais ou menos longe,

a materialidade do orgao e feita de urn mimero mais ou

menos consideravel de elementos coordenados entre si,

mas a ordem e necessariamente completa e perfeita. Nao

poderia ser parcial porque, mais uma vez, 0processo real

que the da origem nao tern partes. E isso que nem 0me-

canicismo nern 0 finalismo levam em conta e tambem enisso que nao prestamos: atencao quando nos espanta-

mas com a maravilhosa estrutura de urn instrumento

como 0 olho. No fundo de nosso espanto ha sempre aideia de que a pe na s u m a p ar te dessa ordem poderia ter sido

realizada, de que sua realizacao completa e uma especiede gra<;a.Para os finalistas, essa gra<;ae dada de uma so vezpela causa final; os mecanicistas pretendem obte-la pou-

 

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110 MEMORIA E VIDA

co a pouco pelo efeito da selecao natural; mas ambos veern

nessa ordem algo positive e na sua causa, consequen-

temente, algo fracionavel, algo que comporta todos os

graus possiveis de acabamento. Na realidade, a causa e

mais ou menos intensa, mas 56 pode produzir seu efeito

em bloco e de maneira acabada. Confonne for mais oumenos longe no sentido da visao, resultara nos amon-

toados pigmentarios de urn organismo inferior, ou no

olho rudimentar de uma Serpula, au no olho ja diferen-

ciado doA1ciope , ou no o1ho rnaravilhosamente aperfeicoa-

do de urn passaro, mas todos esses orgaos, de complica-

<;aomuito desigual, apresentarao necessariamente uma

coordenacao igual. E par isso que, por mais que duas es-pedes animais estejam afastadas urna da outra, se, em arn-bas, a marcha para a visao tiver ido igualmente longe, ha-

vera de ambos os lados 0mesmo orgao visual, pois a for-ma do argao apenas exprime em que medida se obteve

o exercicio da funcao.

Contudo, ao falar de uma marcha para a visao, nao

voltamos a antiga concepcao da finalidade? Seria assim,

sem diivida nenhurna, se essa marcha exigisse a represen-

tacao, consciente ou inconsciente, de urn objetivo a atin-

giro Mas a verdade e que ela se efetua em virtude do ela

original da vida, que ela esta irnplicada nesse pr6prio mo-

vimento e que e precisamente par isso que a reencontra-

mos ern linhas de evolucao independentes. Mas, agora,

se nos perguntassem por que e como essa marcha esta

implicada nele, responderiamos que a vida e, antes de

mais nada, uma tendencia a agir sobre a materia bruta.

A direcao dessa ac;ao certamente nao e predeterminada:dai a imprevisivel variedade das formas que a vida, ao

evoluir, semeia em seu caminho, Mas essa a<;ao sempre

apresenta, num grau mais ou menos elevado, 0caniter de

A VIDA auA DIFERENCIAc;Ao DA DURAC.4.0 11 1

contingencia, implica ao menos urn rudimento de esco-

lha. Ora, urna escolha sup6e a representacao antecipada

de varias acoes possiveis. Portanto, possibilidades de ac;ao

tern de se desenhar para 0ser vivo antes da pr6pria ac;ao.

A percepcao visual nao e outra coisa: as contomos visiveis

dos corpos sao0

desenho de nossa eventual acao sobreeles. A visao sera encontrada, entao, em diferentes graus,

nos mais divers as animais, e se manifestara pela mesma

complexidade de estrutura em toda parte onde tiver atin-

gido 0mesmo grau de intensidade.

E.C., 96-8.

51. A d if er en c ia c do em h is t6 ri a

NaG eremos na fatalidade em historia. Nao exi.steobs- _

taculo que vontades suficientemente tenazes nao possam

veneer, se russo se empenharem a tempo. Nao ha>por-

tanto, lei hist6rica inelutavel, Mas existem leis bio16gicas;

e as sociedades humanas, na medida em que a natureza

as quer de certo ponto de vista, dependem da biologia

nesse aspecto particular. Se a evolucao do mundo orga-

nizado se da segundo certas leis, ou seja, em virtude de

certas forcas, e impossfvel que a evolucao psicologica do

hornem individual e social renuncie totalrnente a esses

habitos da vida. No entanto, mostramos faz muito tempo

que a essencia de urna tendencia vital e a de se desenvol-ver em forma de feixe, criando, pelo simples fato de seu

crescimento, direcoes divergentes entre as quais seu ela

ira dividir-se ...

No entanto, na evolucao geral da vida, as tendencias

assim criadas por via de dicotomia desenvolvem -se usual-

 

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112 MEMORIA EVIDA

mente em especies distintas; cada tuna por seu lado, saem

em busca de fortuna no mundo; a materialidade que ad-

quiriram as impede de voltar a se fundir para restaurar demaneira mais forte, mais complexa, mais evoluida, a ten-

dencia original. 0 mesmo nao acontece na evolucao da

vida psicologica e social. E no mesmo individuo, ou na

mesma sociedade, que, nesse caso, evoluem as tendencias

que se constituiram par dissociacao, E, em geral, elas so

podem se desenvolver sucessivamente. Se forem duas,

como costuma ocorrer com mais frequencia, e sobretudo

a uma delas que nos ligaremos primeiro; com ela irernos

mais ou menos longe, geralmente 0mais longe possivel;

depots, com 0que tivermos ganhado durante essa evolu-

~ao, voltaremos para buscar aquela que deixarnos para

tras, Iremos desenvolve-la, por sua vez, negligenciando

agora a primeira,_ e esse novo esforco se prolongara ate

que, reforcados por novas aquisicoes, possamos retomar

aquela e leva-la ainda mais longe. Como durante a ope-

racao estarnos inteiros em uma das duas tendencias, como

e 56 ela que conta, cliriarnos de born grade que s6 ela e

positiva e que a outra nao e mais que a sua negacao: casose queira por as coisas nesses tennos, a outra e efetiva-mente 0contrario. Constatar-se-a - 0que sera mais ou

menos verdade confonne os casos - que 0progresso ocor-

reu por urna oscilacao entre os dois contraries e que, alias,

a situacao nao e a mesma e houve urn ganho quando 0

balancim retomou a seu ponto de partida. Contudo, a svezes e exatamente isso 0que acontece e foi efetivamen-

- te entre contraries que houve oscilacao, E quando umatendencia, vantajosa em si mesma, e incapaz de ser mo-

derada exceto pela acao de uma tendencia antagonista,

que desse modo revela-se igualmente vantajosa. A sensa-

tez pareceria aconselhar, entao, uma cooperacao das duas

A VIDA auA DIFERENC1A(:1.0 DA DURAc;Ao 113

tendencias, a primeira intervindo quando as circunstan-

cias 0exigirem e a outra contendo-a no momento em que

vai passar da medida. Infelizmente, e dificil dizer onde co-

meca 0exagero e 0perigo. As vezes, 0simples fato de le-var mais lange do que parecia razoavel conduz a urn novo

meio, cria uma situacao nova, que sup rime 0 perigo ao

mesmo tempo que acentua a vantagem. Isso ocorre so-

bretudo com as tendencias muito gerais que determinam

a orientacao de uma sociedade e cujo desenvolvimento se

distribui necessariamente por urn mimero mais ou menos

consideravel de geracoes. Uma inteligencia, mesmo so-

bre-humana, nao saberia dizer para onde seremos condu-

zidos, uma vez que a acao em andamento cria sua pro-

pria estrada, cria ern grande parte as condicoes em que se

realizara, e desafia assim 0calculo, Portanto, iremos cada

vez mais lange; muito frequentemente, s6 nos deteremos

diante da iminencia de uma catastrofe.A tendencia anta-

gonista ocupa entao 0lugar que ficou vazio; sozinha, por

sua vez, ira tao longe quanta lhe for possivel ir.Sera rea-

C;ao,se a outra foi chamada acao. Como as duas tenden-

cias ter-se- iam moderado mutuamente se tivessem cami-

nhado juntas, como sua interpenetracao nurna tendencia

primitiva indivisa e precisamente 0que define a modera-

r ;. 30, 0 mero fato de ocupar todo 0 espaco comunica a cada

uma delas urn ela que pode chegar ao arrebatarnento amedida que vao caindo os obstaculos; essa tendencia tern

algo de frenetico. Nao abusemos da palavra "lei" num

terreno que e 0da liberdade, mas usemos esse termo co-

modo quando estamos diante de grandes fatos que apre-sentarn urna regularidade suficiente: chamaremos le i da

dicotomia aquela que parece provo car a realizacao, par sua

simples dissociacao, de tendencias que inicialmente eram

apenas visoes diferentes de uma tendencia simples. E pro-

 

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114 MEM6RIA E VIDA

paremos entao chamar lei do duplo frenesi a exigencia,

imanente a cada uma das duas tendencias depois de rea-

lizada par sua separacao, de ser seguida ate 0i.m - como

se houvesse urn fun! Uma vez mais: e dificil nao se per-

guntar se a tendencia simples nao teria feito melhor em

crescer sem se duplicar, mantendo-se na justa medida

pela propria coincidencia da forca de impulsao com umacapacidade de frear, que entao seria apenas virtuaImen-

te uma forca de impulsao diferente. Nao se teria corrido

o risco de cair no absurdo e se estaria garantido contra a

catastrofe, De fato, mas nao se teria obtido 0maximo de

criacao em quantidade e em qualidade. E preciso embre-

nhar-se a fundo numa das direcoes para saber no que ela

vai dar: quando nao se puder mais avancar, voltar-se-a,com todo 0conhecimento adquirido, para se lancar na di-

recao negligenciada au abandon ada. Olhando de fora es-

sas idas e vindas, e certo que 56 se ve a antagonismo das

duas tendencias, as tentativas v a s de urna para contrariar. 0progresso da outra, 0fracasso final desta e a revanche da

primeira: a humanidade gosta de drama; colhe de born

grado no conjunto de urna historia mais ou menos lon-

ga os aspectos que the imprimem a forma de uma luta en-

tre dois partidos, ou duas sociedades, ou dois principios;

cada urn deles, alternadamente, teria saido vitorioso. Mas,

aqui, a luta e apenas 0aspecto superficial de urn progres-

so. A verdade e que uma tendencia sobre a qual sao pos-

sfveis duas vis6es so pode fomecer seu maximo, quantita-

tiva e qualitativamente, caso materialize essas duas pos-

sibilidades em realidades moventes, cada uma das quaisse atira para a frente e torna conta do lugar, ao passo que

a outra espreita sem cessar para saber se chegou a sua vez.

Assim se desenvolvera 0conteiido da tendencia original,

caso ainda se possa falar de conteudo quando ninguem,

A VIDA a u A D l F E R E N C I A c ; A a DA D U R A c ; : A a 115

nem mesmo a propria tendencia que se tomou conscien-

tel saberia dizer 0que saira dela. Ela da 0esforco e a re-

sultado e urna surpresa. Assim e a operacao da natureza:as lutas cujo espetaculo ela nos oferece resolvem-se nao

tanto em hostilidades como em curiosidades. E e preci-samente quando imita a natureza, quando se entrega aimpulsao primitivamente recebida, que a marcha da hu-manidade assume uma certa regularidade e se submete,

muito imperfeitamente deve-se dizer, a leis como as que

enunciamos. Chegou ahara, porem, de fechar nosso pa-

rentese longo demais. Mostremos apenas como se apli-

cariam nossas duas leis no caso que nos fez abri -10.

Tratava -se do interesse pelo conforto e pelo luxo que

parece ter-se tornado a principal preocupacao da huma-

nidade.Aover como 0homern desenvolveu 0espirito de

invencao, como muitas invencoes sao aplicacoes de nos-

sa ciencia, como a ciencia esta destinada a crescer infin-

davelmente, ficar-se-ia tentado a erer que havera progres-so indefinido na mesma direcao, Com efeito, as satisfacoes

que invencoes novas trazem para antigas necessidades

nunca determinam a humanidade a parar par ali; sur-

gem novas .necessidades, igualmente imperiosas, cada

vez mais numerosas. Vimos a corrida pelo bem-estar ir

se acelerando por uma pista para a qual multid6es cada

vez mais compactas se predpitavam. Hoje e urn tumulto.Mas esse proprio frenesi nao deveria nos abrir as olhos?

Nao haveria algum outrofrenesi, a que aquele teria se se-

guido e que teria desenvolvido, na direcao contraria, uma

atividade de que ele eo complemento? De fato, e a partirdo seculo )0J ou XVI que os homens parecem aspirar a

uma ampliacao da vida material. Durante toda a Idade

Media predominara urn ideal de ascetismo. E iruitil lem-brar os exageros a que ele conduzira; ja tinha havido fre-

 

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116 MEMORIA EWDA

nesi. Didio que esse ascetismo foi coisa de uma mino-

rial e terao razao, Mas, assim como 0misticismo, privile-

gio de uns poucos, foi vulgarizado pela religiao, tambem

o ascetismo concentrado, que foi sem diivida excepcio-

nal, diluiu-se para os homens comuns numa indiferenca

geraI as condicoes da vida cotidiana. Todo 0mundo vivia

numa falta de conforto que nos surpreende. Ricos e po-

bres dispensavarn superfluos que consideramos necessi-

dades. Houve quem notasse que, se 0senhor vivia me-

lhor que 0camp ones, isso deve ser entendido sobretudo

no sentido de que ele estava mais abundantemente nu-

trido. Quanto ao resto, a diferenca era tenue. Estamos,

pois, efetivamente diante de duas tendencies divergen-

tes que se sucederam e que se comportaram, ambas, fre-

neticamente. Pode-se presurnir que elas correspondem a

duas vis6es opostas de uma tendencia primordial, que

teria encontrado dessa forma 0meio de tirar de si mes-

rna, quantitativa e qualitativamente, tudo 0que podia e

. ate mais do que tinha, ernbrenhando-se pelas duas vias

sucessivamente, voltando a se por numa das direcoes

com tudo 0que fora juntado ao longo da outra. Haveria

portanto oscilacao e progresso, progresso por oscilacao,

E haveria que prever, depois da complicacao incessante-

mente crescente da vida, urn retorno a simplicidade. Esse

retorno evidentemente nao e certo; 0porvir da huma-nidade continua indetenninado, porque depende dela.

Mas se, do lado do porvir, ha apenas possibilidades ou

probabilidades, que examinaremos em breve, 0mesmo

nao pode ser dito do passado: os dois desenvolvimentosopostos que acabamos de assinalar sao realmente aque-

les de uma iinica tendencia original.

M.R,313-9.

A VIDA au A DIFERENCIAc;Aa DA DURAc;Ao 117

b) Vida emateria

5 2. P ar a a l€ m d o m e ca nic ie m o

Mas poderia uma estrutura organic a ser com parada

a uma estampa? J a assinalarnos a ambigilidade do terrno

IIadaptacao". Uma coisa e a complicacao gradual de uma

forma que se insere cada vez melhor no molde das condi-

c;6esexteriores, outra e a estrutura cada vez mais comple-

xa de urn instrumento que tira dessas condicoes urn pro-

veito crescente. No primeiro caso, a materia limita-se a re-

ceber uma estampa, mas, no segundo, reage ativamente,

resolve urn problema. Desses dois sentidos da palavra, eevidentemente 0segundo que se utiliza quando se <liz que

o olho se adaptou cada vez melhor a influencia da luz.

Contudo, passa-se de modo mais ou menos inconscien-

te do segundo para 0primeiro, e uma biologia puramen-

te mecanicista i r a se ernpenhar para fazer coincidir a adap-tacao passiva de uma materia inerte, que sofre a influen-

cia do meio, e a adaptacao ativa de urn organismo, que tira

dessa influencia 0proveito apropriado. Reconhecernos,

alias, que a propria natureza parece convidar nosso espi-

rito a confundir os dois tipos de adaptacao, pois ela ge-

ralmente comeca com uma adaptacao passiva ali onde

mais tarde devera construir urn mecanisme que reagira

ativamente. Assim, no caso que nos interessa, e incontes-tavel que 0primeiro rudimento de olho encontra -se na

mancha pigmentaria dos organismos inferiores: essa man-

cha pode muito bern ter sido produzida fisicamente pelapropria ac;ao da luz, e e possivel observar uma enorme

quantidade de intermediaries entre a simples mancha de

pigmento e urn olho complicado como 0dos vertebrados.

- Mas do fato de que se passe gradualmente de uma coi-

 

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118MEM6RIA EVIDA

sa para outra nao se segue que as duas coisas sejam de

mesma natureza. Do fato de que urn orador primeiro ado-

te as paix5es de seu publico para em seguida domina-lo

nao se coneIui que seguir seja a mesma coisa que dirigir.

Ora, a materia viva parece nao ter outro meio de tirar pro-

veito das circunstancias a nao ser adaptar-se passivamen-

te a elas num primeiro momento: ali onde precisa assu-mir a direcao de urn movimento, comeca por adota-lo. A

vida procede por insinuacao. Podem nos mostrar todos

os intermediarios entre uma mancha pigmentana e urn

olho; nem por isso deixara de haver, entre os dois, 0mes-

mo intervalo que ha entre uma fotografia e urn aparelho

fotografico. A fotografia, com certeza, infletiu -se pouco a

pouco no sentido de urn aparelho fotografico, mas seria

possfvel que a luz apenas; forca ffsica, tivesse provocado

essa inflexao e transformado uma impressao deixada por

ela em uma maquina capaz de utiliza-la?

Havera quem alegue que fazemos intervir indevida-mente consideracoes de utilidade, que 0olho nao e feito

para vert mas que vemos porque ternos olhos, que 0or-

gao e a que e e que a "utilidade" e uma palavra por meio

da qual designamos as efeitos funcionais da estrutura.

Mas, quando digo que 0olho "tira proveito" da luz, nao

entendo apenas que 0olho e capaz de ver; aludo a s rela-<;5esmuito precisas que existem entre esse orgaa e 0apa-

relho de locomocao. A retina dos vertebrados se prolonga

nurn nervo optico que se prolonga por sua vez em centros

cerebrais ligados a rnecanismos motores. Nosso olho tira

proveito da luz no sentido de que nos permite utilizar,mediante movirnentos de reacao, os objetos que vemos

como vantajosos e evitar aqueles que vemos como pre-

judiciais. Ora, nao terao dificuldade em me mostrar que,

se a luz produziu fisicarnente uma mancha de pigmento,

A V ID A OU A D IF E R EN CIA (. A. O D A D U R A< ;. 40 119

tambem pode determinar fisicamente as movimentos de

certos organismos: infusorios ci1iados, par exemplo, rea-

gem a 1uz.No entanto, ninguem afirmara que a influencia

da luz tenha causado fisicamente a formacao de urn siste-

ma nervoso, de urn sistema muscular ou de urn sistema

osseo, todas estas coisas que estao em continuidade com

o aparelho da visao nos vertebrados. A bern dizer, quando

se fala da formacao gradual do olho, e, com mais razao

ainda, quando se vincula 0olho ao que the e inseparavel,ja se faz inteIVir algo completamente diferente da a~ao di-

reta da luz. Atribui -se implicitamente a materia organiza-

da uma certa capacidade su i generis, 0misterioso poder de

montar maquinas muito complicadas para tirar proveito

da excitacao simples da qual sofre a influencia,

E.C., 70-2.

5 3. P ar a a l€ m d o f i na lis mo

Tale a filosofia da vida para a qual nos encarninha-

mos. Ela pretende superar tanto 0mecanicismo quanta

o finalismo; mas, como anunciavamos de inicio, esta mais

proxima da segunda doutrina do que da prirneira. Nao

sera imitil insistir nesse ponto e mostrar em termos mais

precisos em que ela se parece com 0finalismo e em que

difere dele.

Como 0 finalismo radical, embora sob uma forma

mais vaga, ela i r a nos representar 0mundo organizadocomo urn conjunto harmonioso. Mas essa harmonia esta

longe de ser tao perfeita quanta disserarn. Admite muitas

discordancias, porque cada espede, ate mesmo cada indi-

viduo, so retem da impulsao global da vida urn certo ela e

 

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120 MEMORIA E V I DA

tende a utilizar essa energia em seu proprio interesse; nis-

so consiste a adapiadio. A especie e 0 indivfduo 56 pen-

sam assim em si rnesmos - do que decorre a possibil idade

de conflito com as outras fonnas da vida. Portanto, a har-

monia nao existe de fato; existe antes de direito: quero

dizer com isso que a eli original e um ela comum e que,

quanto mais para tras se vol ta, tanto mais as diversas ten-dencias aparecem como complementares entre si,Talqual

o vento, que emboea numa encruzilhada e se divide em

eorrentes de ar divergentes, mas que sao todas um s6 e

mesmo sopro. A harmonia, ou melhor, a /Ieomplementa-

ridade", 56 se revela em termos genericos, mais nas ten-

dencias que nos estados. Sobretudo (e e nesse ponto queo finalismo se equivocou mais gravemente), a harmonia

se encontraria antes atras do que na £rente. Prende-se

a uma identidade de impulsao e nao a uma aspiracao co-

mum. Em VaGse gostaria de atribuir a vida urn objetivo, no

sentido humane da palavra. Falar de um objetivo e pen-sar num modele preexistente ao qual s6 falta reallzar-se.

E sup~r, portanto, no fundo, que t~do esta dado, que 0

porvir poderia ler-se no presente. E erer que a vida, em

seu movimento e em sua integralidade, procede como

nossa inteligencia, que e apenas uma visao im6vel e frag-mentaria que temos da vida e que se situa sernpre natu-

ralmente fora do tempo. Ia a vida, ela avanca e dura. Sem

duvida, sempre sera possfvel, depois de lancar uma vista

d'olhos sobre 0caminho ja percorrido, marcar-lhe a dire-

C;ao,anota-la em termos psicol6gicos e falar como se ti-

vesse havido perseguicao de urn objetivo. E assim que nosrnesmos falaremos. Porem, sobre 0eaminho que iria ser

percorrido,o espfrito humano nada tern a dizer, pois 0ca-

minho foi criado a medida que se desenrolava 0ate que

o percorria, nao sendo mais que a direcao desse mesmo

A VIDA au A D IF ERENC lA c ;AO DA DURACJ \O 121

ato. A evolucao deve, pois, comportar a cada momento

uma interpretacao psicologica que, de nosso ponto de vis-

ta, e sua melhor explicacao, mas essa explicacao s6 tern

valor e ate significacao retroativamente. A interpretacao

finalista, tal como a proporemos, nolodevera jamais ser to-

rnada por uma antecipacao sobre 0porvir. E uma certa vi-sao do passado a luz do presente. Em suma, a concepcao

classic a da finalidade postula ao mesmo tempo demasia-

do e muito pouco. E ampla demais e estreita demais. Ao

expliear a vida pela inteligencia, reduz em excesso a signi-

ficacao da vida; a inteligencia, ao menos da mane ira como

a encontramos em nos, foi moldada pela evolucao ao lon-

go do trajeto: recorta-se em alga mais vasto, ou melhor,

nao e mais que a projecao necessariamente plana de uma

realidade que tern relevo e profundidade. E essa realida-de mais abrangente que 0verdadeiro finalismo deveria

reconstituir ou antes abarcar, se possfvel, numa visao sim-ples. Por outro lado, contudo, justamente por extrapolar

a inteligencia, faculdade de ligar 0mesmo ao mesrno, de

perceber e tambem de produzir repeticoes, essa realidade

e sem duvida criadora, ou seja, produtora de efeitos nos

. quais se dilata e supera a si mesma: esses efeitos nao es-

tavam portanto dados nela de ante mao e ela, par conse-

guinte, nao podia toma-les como fins, ernbora, uma vez

produzidos, comportem uma interpretacao racional, como

a do objeto fabricado que realizou urn modelo. Em suma,

a teoria das causas finais nao vai longe 0suficiente quan-

do se limita a por inteligencia na natureza, e vai longe de-mais quando supoe uma preexistencia do porvir no pre-

sente sob forma de ideia,

E.e,50-2.

 

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122 MEM6RlA EVIDA

54 . L im iia cd o d o e la vital

Nao se deve esquecer que a forca que evolui atraves

do mundo organizado e uma forca limitada, que procurasempre superar a si mesma e sempre pennanece inade-

quada a obra que tende a produzir . Do desconhecimento

desse fato nasceram os erros e as puerilidades do finalismoradical. Imaginou 0conjunto do mundo vivo como uma

construcao, e como uma construcao analoga a s nossas. To-das as suas pe~as estariam dispostas de modo que favo-

recessem 0melhor funcionamento possivel da maquina,

Cada especie teria sua razao de ser, sua funcao, sua des-

tinacao. Juntas, dariam urn grande concerto, onde as apa-

rentes dissonancias serviriam tao-so para fazer sobressair

a harmonia fundamental. Em suma, na natureza tudo se

passaria como nas obras do genic humano, onde 0resul-

tado obtido pode ser minimo, mas onde ha pelo menos

adequacao perfeita entre 0objeto fabric ado e a trabalhode fabricacao,

Nao ha nada de semelhante na evolucao da vida.

Nela, e irnpressionante a desproporcao entre 0 trabalho

e 0resultado. De cima a baixo no mundo organizado, 0

que ha e sempre urn iinico grande esforco, mas, em geral,

esse esforco da em nada, ora paralisado por forcas contra-

rias, ora distraido do que deve fazer pelo que esta fazen-

do, absorvido peia forma que se empenha em assumir,

hipnotizado por eia como por urn espelho. Ate mesmo

em suas obras rnais perfeitas, quando parece ter triunfado

das resistencias exteriores e tambem da sua propria, estaamerce da materialidade que teve de dar a si mesmo. Eo que cada urn de nos pode experimentar em si mesmo.

Nossa liberdade, nos proprios movimentos pelos quais se

afirma, cria os habitos nascentes que a sufocarao caso nao

A VIDA au A DlFERENClA<;.AaDA DURACAa123

se renove mediante urn esforco constante: 0automatismo

espreita -a. 0 mais vivo dos pensamentos congelara na

formula que 0exprime.A palavra volta-se contra a ideia.

A letra mata 0espfrito. E nosso mais ardente entusiasmo,

quando se exterioriza ern ac;ao, enrijece-se as vezes tao

naturalmente em frio calculo de interesse ou de vaidade,

urn adota tao facilmente a forma do outro, que poderia-mos confundi-los, duvidar de nossa propria sinceridade,

negar a bondade e 0arnot; se nao soubessemos que 0mor-

to conserva ainda par algum tempo os traces do vivo.

A causa profunda dessas dissonancias jaz numa ir-

remediavel diferenca de ritmo. A vida em geral e a propria

mobilidade; as manifestac;6es particulares da vida so acei-

tam essa rnobilidade a contragosto e estao constantemen-

te atrasadas com relacao a ela. Aquela vai sempre em fren-

te; estas gostariam de patinhar sem sair do lugar. A evo-

lucao em geral se daria, na medida do possfvel, em linha

reta; cada evolucao especial e urn processo circular. Comoturbilhoes de poeira levantados pelo vento que passa, os

vivos giram em tome de si mesmos, suspensos pelo gran_

de sopro da vida. Sao portanto relativamente estaveis, e

contrafazern mesmo tao bern a irnobil idade que os trata-

mos antes como coisas que como progressos, esquecendo

que a propria permanencia de sua forma nao e mais queo desenho de urn movimento. As vezes, contudo, materia-liza-se diante de nossos olhos, numa fugidia aparicao, 0so-

pro invisfvel que os carrega. Ternos essa subita iluminacao

diante de certas formas do arnor materno, tao impressio-

nante, tao tocante tambem na maioria dos animais obser-. ,vavel ate na solicitude da planta por sua semente. Esse

arnor, no qual houve quem visse0grande misterio da vida,

talvez nos revelasse seu segredo. Ele nos mostra cada ge-

racao debrucada sabre aquela que vira depois dela. Dei-

 

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124 MEMORIA E V IDA

xa-nos entrever que 0 ser vivo e sobretudo um lugar de

passagem, e que 0 essencial da vida esta no movimento

que a transmite.

Esse contraste entre a vida em geral e as formas nas

quais se manifesta e sempre de mesmo carater, Poder-

se-ia clizer que a vida tende a agir 0maximo possfve~ mas

que cada especie prefere. fomecer a II_lenor q~antidade

possfvel de esforco. Considerada naq~o que e ~ ~ua es-

sencia mesma, isto e , como uma transicao de especie para

especie, a vida e uma acao sempre crescente. M~s c~da

uma das especies, atraves das quais a vida passa, VISatao-

somente sua comodidade. Procura aquilo que exige menos

esforco. Absorvendo-se na forma que ira assumir , entra

num meio-sono, onde ignora praticamente todo 0resto

da vida' amolda-se a si mesma tendo em vista a rnais fa-.

cil exploracao possivel de seu enton:o imediato. ~s~, 0

ato mediante 0qual a vida se encaminha para a cnacao de

uma forma nova e 0ato mediante 0qual essa forma se

.desenha sao dois rnovimentos diferentes e muitas vezes

antagonicos, 0 primeiro se prolonga. no ~egundol ~as

nfio pode prolongar-se nele sem se distrair de sua dire-

C;ao,como acortteceria a urn saltador que, para tr~p?r 0

obstaculo, fosse obrigado a desviar os olhos deste Ultimo

e olhar para si proprio.

As formas vivas sao, por definicao mesma, formas

viaveis. Seja qual for a maneira como se explica a adapta-

~ao do organismo a suas condicoes de existencia, essa

adaptacao e necessariamente suficiente a p~ do mo-

mento em que a especie subsiste. Nesse sentido, ca~auma das especies sucessivas descritas pel a paleontologia

e pela zoologia foi urn sucesso conquistado pela vida. Mas

as coisas adquirem urn aspecto totalmente outro quand.o

se compara cada especie com 0movimento que a deposi-

A VIDA au A D J F ER E NC IA c ;A O D A D l lR A c; AO

tou pelo seu caminho e nao mais com as condicoes nas

quais se inseriu. Freqiienternente esse movimento se des-

viou, com muita frequencia tambem foi abruptamente

interrampido; 0que deveria ser apenas urn lugar de pas-

sagem tornou-se 0 termo. Dessenovo ponto de vista, 0

insucesso aparece como a regra, 0sucesso como excep-cional e sempre imperfeito.

E.e,127-30.

55. V id a e automat ismo: 0 comico

Para que 0 exagero seja comico, e preciso que nao

apareca como 0objetivo, mas como urn simples meio de

que 0desenhista se serve para tornar evidentes a nossos

olhos as contorcoss que ele ve prepararem-se na nature-

za. E essa contorcao que importa, e ela que interessa. E epor isso que se ira busca-la ate nos elementos da fisio-

nomia que sao incapazes de movimento, na curvatura de

urn nariz e mesmo na forma de uma orelha. E porque aforma e para nos 0 desenho de urn movimento. 0 carl-

caturista que altera a dimensao de urn nariz, mas que res-

peita sua formula, que 0alonga, por exemplo, no mesmo

sentidoem que a natureza ja 0 alongava, faz realmente

esse nariz caretear: doravante, tambem 0original nos pa-

recera querer se alongar e fazer a careta. Nesse sentido,

poder-se-ia dizer que a natureza muitas vezes obtem ela

mesrna sucessos de caricaturista. No movimento median-te 0qual fendeu essaboca, encolheu esse queixo, inchou

essa bochecha, parece ter conseguido consumar sua care-

tal burlando a vigilancia moderadora de urna forca mais

racional. Rimos entao de urn rosto que e , por assim dizer,a caricatura dele mesmo.

125

 

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126 MEMORIA EVIDA

Em suma, seja qual for a doutrina a que nossa razao

adira, nossa imaginacao tern sua filosofia bern estabele-

cida: em toda forma humana percebe 0 esforco de uma

alma que amolda a materia, alma infini tamente flexivel,

etemamente movel, subtraida a gravidade porque nao ea terra que a atrai. De sua leveza alada essa alma cornu-

niea alga ao corpo que anima: a imaterialidade que pas-

sa assim para a materia e 0que se chama a gra~a. Mas a

materia resiste e se obstina. Puxa para si, gostaria de con-

verter para sua propria mercia e fazer degenerar em auto-

matismo a atividade sempre desperta desse principio su-

perior. Gostaria de fixar os movimentos inteligentemente

variados do eorpo em dobras estupidamente eontraidas,

solidifiear em caretas duradouras as expressoes moventes

da fisionomia, imprimir, enfim, a toda a pessoa uma ati-

tude tal que ela pare~a enfiada e absorvida na materiali-

dade de alguma ocupacao mecanica em vez de se renovar

sem eessar em contato com urn ideal vivo. Ali onde a ma-

ter ia consegue, assim, espessar exteriormente a vida da

alma, enrijecer seu movimento, contrariar, enfun, sua gra-

ca, ela obtem do corpo urn efeito comico. Portanto, caso

quisessemos definir aqui 0comico aproximando-o de seu

contrario, seria preciso opo-lo a gra~a bern mais que a be-leza. Ele e antes rijeza que feitira,

K,21-2.

56 . Vida e m ate ria lid ad e -

Para nos, 0 todo de uma maquina organizada real-

mente representa, a rigor, 0todo do trabalho organizador

(ainda que isso so seja aproximativamente veridico), mas

AVIDAOUAD~~~O~DWM~O 127

as partes da maquina nao correspondem a partes do tra-

balho, pais a m ate ria lid ade d essa m dq uin a n iio re pre se nta

m ais u m c on ju nto d e meios em pregados e sim u m conju nto de

obs tt iculos comornados: e mais uma negacao que uma rea-

lidade posi tiva. Assim, como mostramos num estudo an-

terior, a visao e urn poder que alcancaria, de direito, uma

infinidade de coisas inacessfveis ao nos so olhar . Mas tal

visao nao se prolongaria em aC;ao;conviria a urn fantas-

rna e nao a urn ser vivo. A visao de urn ser vivo e uma vi-sao eficaz, limitada aos objetos sobre os quais 0ser pode

agir: e uma visao canalizada, e 0aparelho visual simboliza

simplesmente 0 trabalho de canalizacao. A partir dID,a

criacao do aparelho visual se explica tao pouco pela reu-

niao de seus elementos anatomicos quanta a abertura de

urn canal se explicaria por urn deposito de terra que lhe

teria feito as margens. A tese mecanicista consistiria em

dizer que a terra foi trazida por carrocadas, 0finalismo

agregaria que a terra nao foi depositada ao acaso, que oscarroceiros seguiram urn plano. Mas tanto mecanicismo

quanta finalismo estariam enganados, pois 0 canal foifeito de outra forma.

Mais precisamente, comparavarnos 0procedimento

mediante 0qual a natureza constroi urn olho com 0ato

simples mediante 0quallevantamos a mao. Mas supuse-

mos que a mao nao encontrava nenhuma resistencia. Ima-

ginemos que, em vez de se mover no art minha mao te-

nha que atravessar a limalha de ferro que se eomprime e re-

siste a medida que avanco, Num certo momento, minha

mao tera esgotado seus esforcos e, nesse momento pre-ciso, os graos de limalha terao se justaposto e coordenado

numa forma determinada, qual seja, a da minha mao que

para e de uma parte do brace. Agora, suponhamos que a

mao e 0brace tenham permanecido invisfveis, as espec-

 

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128MEMORIA E VIDA

tadores procurarao nos proprios graos de limalha e nasforcas interiores ao amontoado a razao do arranjo.Uns re-meterao a posicao de cada grao a ac;aoque os graos vizi-nhos exercem sobre ele: serao as mecanicistas. Outrosafirmarao que urn plano de conjunto presidiu 0detalha-

mento dessas acoes elementares: serao os finalistas. Masa verdade e que houve sirnplesmente urn ato indivisfvel,o da mao atravessando a lirnalha: 0inesgotavel detalha-

mento do movimento dos graos, bern como a ordem deseu arranjo final, exprime negativamente, de certo modo,esse movimento indiviso, sendo a forma global de urnaresistencia e nao uma sfntese de acoes positivas elemen-tares. E por isso que, caso dermos 0nome de IIefeito" aoarranjo dos graos e 0de 1/causa" ao movimento da mao,

poderemos, a rigor, dizer que 0todo do efeito se explicapelo todo da causa, mas a partes da causa nao correspon-derao de modo algum partes do efeito. Em outras pala-

vras, nem 0mecanicismo nem 0finalismo cabem aqui e.e a urn modo s u i g en e ri s de explicacao que sera precisorecorrer. Ora, na hip6tese que propornos, a relacao davi-sao com 0aparelho visual seria aproxirnadamente a damao com a lirnalha de ferro que desenha, canaliza e limi-

ta seu movimento.

E.C,94-6.

57. A materia, inversiio da dunuiio

Consideramos in abstracto a extensao em geral? Aexiensao s6 aparece, dizfamos,como uma tensao que sein-terrompe.Vinculamo-nos arealidade conereta que preen-

che essa extensao? A ordem que nela reina e que se ma-

A VIDA OU A DIFERENCIAcAo DA DURAt;4.0 129

nifesta por meio das leis da natureza e uma ordem quedeve naseer por si mesma quando a ordem inversa e su-

primida: uma distensao do querer produziria precisamen-te essa supressao, Por fim,eis que 0sentido em que essa

realidade eaminha nos sugere agora a ideia de uma coi-sa q u e s e d es Ja z; nisso consiste, sem diivida nenhuma, urn

dos traces essenciais da materialidade. Que conduir dai,senao que 0processo pelo qual essa coisa s e J a z e dirigi-do em sentido contrario ao dos processos fisicos e que,portanto, ele e, por definicao mesrno, irnaterial? Nossavisao do mundo material e a de urn peso que cai;nenhu-rna imagem tirada da materia propriamente dita nos darauma ideia do peso que se eleva.Mas essa conclusao ira seimpor a nos com mais forca ainda se cercarmos mais deperto a realidade concreta,se nao considerarmos mais ape-

nas a materia ern geral,mas, no interior dessa materia, os

corpos vivos.

Com efeito, todas as nossas analises nos mostram, navida, urn esforco para subir a ladeira que a materia desce.Desse modo, deixam entrever a possibilidade, a necessi-dade ate de urn processo inverso ao da materialidade,eriador da materia par sua simples interrupcao. E certo.que a vida que evolui na superffcie de nosso planeta estaligada a materia. Se fosse pura consciencia e, com maisrazao ainda, supraconsciencia, seria pura atividade cria-dora. Na verdade, esta atada a urn organismo que a sub-mete as leis gerais da materia inerte. Mas tudo aconteee

como se fizesse todo 0possfvelpara libertar-se dessas leis.

Nao tern 0poder de inverter a direcao das mudancas £ 1 -

sicas, tal como 0princfpio de Carnot a detennina. Pelomenos se comporta totalmente como 0 faria uma forcaque, abandonada a simesma, trabalhasse na direcao in-versa. Incapaz de deter a marcha das mudancas materiais,

 

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130 .MEMORIA E VIDA

consegue no entanto retardd-la. Com efeito, COmo0mos-

tramos, a evolucao da vida da continuidade a uma im-pulsao inicial; essa impulsao, que determinou 0 desen-

volvimento da funcao clorofilica na planta e do sistemasensoria-motor no animal, conduz a vida a atos cada vez

mais eficazes pela fabricacao e pelo emprego de explosi-

vos cada vez mais potentes. Ora, que representam essesexplosivos senao urn armazenamento da energia solar,energia cuja degradacao fica,assim, provisoriamente sus-pensa em alguns dos pontos por onde se espalhava? Aenergia utilizavel que 0explosive contem sera gasta, semduvida, no momenta da explosao, mas teria sido gasta an-tes se nao houvesse urn organismo para deter sua dissi-pacao, para rete-la e adiciona-la a simesma. Talcomo seapresenta hoje aos nossos olhos, no ponto ao qual foi le-

vada por uma cisao das tendencies, complementares entresi, que ela continha em si, a vida esta totalmente penden-te da funcao c1orofilicada planta. 1550 significa que, con-siderada na sua impulsao inicial, antes de toda cisao, elaera uma tendencia a acumular num reservatorio, como fa-zem sobretudo as partes verdes dos vegetais, com vistasa urn gasto instantaneoeficaz, como aquele que a animalefetua, algo que, sem ela, teria se escoado. E como urn es-force para reerguer 0peso que cai, E verdade que apenasconsegue retardar a queda. Pelomenos pode nos dar uma

ideia do que foi a elevacao do peso.Imaginemos, portanto, urn recipiente cheio de vapor

ern alta pressao e,aqui e ali, nas paredes dovaso,uma fis-

sura por onde0vapor escapa em jato. 0 vapor lancado noar se condensa quase todo em gotfculas que voltam a cair,e essa condensacao e essa queda representam simples-mente a perda de alga, uma interrupcao, urn deficit.Masuma pequena parte do jato de vapor subsiste, nao con-

A V 7D A O U A D IF ER E NC IA c;A o D A D UR A c::A O 131

densada, durante alguns instantes; elase esforcapara reer-

guer as gotas que caem; consegue, no maximo, tamar aqueda mais lenta. Assim, de urn imenso reservatorio de

vida devem Iancar-se incessantemente jatos, cada urn dosquais, tornando a cair, e urn mundo. A evolucao das es-

pecies vivas no interior desse mundo representa 0 que

subsiste da direcao primitiva do jato original e de uma im-pulsao que se prolonga no sentido contrario ao damate-rialidade. Nao nos prendamos demais a essa comparacao.Ela so nos darla uma imagem enfraquecida e ate engano-sa da realidade, pois a fissura, a jato de vapor, 0soergui-mento das goticulas sao necessariamente detenninados,ao passo que a criacao de urn mundo e urn ato livre e avida, no interior do mundo material, participa dessa li-berdade. Pensemos antes num gesto como 0brace que

levantamos; depois suponhamos que 0 braco, abando-nado a si mesmo, tome a cair e que, no entanto, subsista

nele, esforcando-se para reergue-lo, algo do querer que aanimava: com essa imagem de urn g es to c ria do r q u e s e d es -

fa z ja teremos uma representacao mais exata da materia.E veremos, entao, na atividade vital, 0 que subsiste domovimento direto no movimento invertido, uma r ea li da de

qu e se [a z atraoe: d aq ue la q ue s e d esja z.

E.C,246-8.

5 8. A m a te ri a, 0 g ra u m ais b aix o da dur tu i io

o erro do dualismo vulgar esta em se situar do pon-to de vista do espa.;o, pondo, de um lad0, a materia comsuas modificacoes no espaco e, do outro, sensacoes inex-tensivas na consciencia.Donde a impossibilidade de corn-

 

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132 .MEMORIA EVIDA

preender como 0 espfrito age sobre 0 corpo ou 0 corpo

sobre 0espirito. Donde as hipoteses que apenas sao e po-

dem apenas ser constatacoes disfarcadas do fato - a ideia

de urn paralelismo au a de uma harmonia preestabeleci-

da. Mas dai tambem a impossibilidade de constituir, seja

uma psicologia da memoria, seja urna metaffsica da mate-

r ia. Tentamos estabelecer que essa psicologia e essa me-

taffsica sao solidarias e que as dificuldades se atenuam

num dualismo que, partindo da percepcao pura em.que

sujeito e objeto coincidam, promova 0desenvolvimento

desses dois termos em suas respectivas duracoes - a ma-

teria, a medida que avancamos na sua anal ise, tendendo

cada vez mais a nao passar de uma sucessao de momen-

tos infinitamente rapidos que se deduzem uns dos outros

e, por isso, se equ iv a lem; 0espirito sen do ja memoria na

percepcao e se afirmando cada vez mais como urn pro-

longamento do passado no presente, urn progresso, uma

verdadeira evolucao,Mas a relacao entre corpo e espfr ito toma-se com isso

mais clara? Substituimos uma distincao espacial por urna

distincao temporal: as dois termos serao mais capazes de

se unir? Deve-se notarque a primeira distincao nao com-

porta graus: a materia esta no espac;o, a espfrito, fora do

espaco: nao ha transicao possfvel entre eles. Ao contrario,

se a funcao mais humilde do espfrito e ligar os momentos

sucessivos da duracao das coisas, se e nessa operacao que

ele tom a contato com a materia e tambem se distingue

.dela inicialmente, e possivel conceber uma infinidade de

graus entre a materia eo espfr ito plenamente desenvol-vido, 0espfrito capaz de ac;aonao so indeterminada, mas

racional e refletida. Cada urn desses sucessivos graus, que

mede uma intensidade crescente de vida, corresponde a

uma tensao mais elevada de duracao e se traduz exterior-fIj

I1

A VIDA OU A DIFERENCIAcAo DA DURACAO 133

mente por urn maior desenvolvimento do sistema sen-

sorio-motor, Devemos entao considerar esse sistema ner-

voso? Sua complexidade crescente parecera deixar uma

lati tude cada vez maior para a atividade do ser vivo, a fa-

culdade de esperar antes de reagir e de por a excitacao

recebida em relacao com uma variedade cada vez mais

rica de mecanismos motores. Mas isso e so 0 exterior, e

a organizacao mais complexa do sistema nervoso, que

parece garantir uma maior independencia do ser vivo re-

lativamente a materia, nao faz mais que simbolizar rna-

terialmente essa propria independencia, isto e, a forca

interior que permite ao ser libertar-se do ritrno de escoa-

mento das coisas, reter cada vez melhor 0passado para

influenciar cada vez mais profundamente 0 porvir, ou

seja, enfim, sua memoria, no sentido especial que damos

a essa palavra, Assim, entre a materia bruta e ° espfritomais capaz de reflexao ha todas as intensidades possi-

veis da memoria, ou, 0que vem a ser 0mesmo, todos osgraus da liberdade.

M.M., 248-50.

59 . V id a , c o ns c ie n c ia , h uman i da de

Radical tambem, por conseguinte, e a diferenca en-

tre a consciencia do animal, mesmo 0mais inteligente,

e a consciencia humana. Pois a consciencia corresponde

exatamente ao poder de escolha de que 0ser vivo disp6e;e coextensiva ao perimetro de ac;ao possfvel que envol-

ve a acao real: consciencia e sinonimo de invencao e de

liberdade. Ora, no animal, a invencao nunca e mais que

uma variacao sobre 0 tema da retina. Encerrado nos ha-

 

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134 M EM OR IA E V IDA

bitos da especie, chega sem diivida a amplia-los por sua

iniciativa individual; mas 56 escapa ao automatismo por

urn instante, apenas 0tempo de criar urn novo automa-

tismo: as portas de sua prisao voltam a se fechar tao logo

se abrem; ao forcar sua corrente, so consegue estica -la.

Com 0hom em, a consciencia rompe a corrente. No ho-

mem, e somente no homem, ela se liberta. Toda a hist6ria

da vida, ate entao, fora a de urn esforco da consciencia

para erguer a materia e de urn esmagamento rnais ou me-

nos completo da consciencia pela materia que tomava a

cair sobre ela. Era uma empresa paradoxal- se e que sepode falar aqui, salvo como metafora, de empresa e de

esforco. Tratava-se de criar com a materia, que e a proprianecessidade, urn instrumento de liberdade, de fabricar

uma mecanica que triunfasse do mecanismo e de ernpre-

gar 0determinismo da natureza para passar atraves das

rnalhas da rede que este havia estendido. Mas, por toda

parte, exeeto no homern, a consciencia se deixou pegarna rede cujas malhas queria atravessar. Ficou cativa dos

mecanismos que tinha montado. 0 automatismo, que

pretendia infletir no sentido da liberdade, enrola-se em

tome dela e a arrasta, Nao tern forca para subtrair-se a ele,

porque a energia com que se aprovisionara para atos equase toda empregada para manter 0equilibrio infinita-

mente sutil, essencialmente instavel, a que conduziu a

materia. Mas 0hornern nao se limita a manter sua maqui-

na; consegue servir-se dela como lhe agrade. Deve-o sem

diivida a superioridade de seu cerebro, que the permite

construir urn mimero ilimitado de mecanismos motores,opor incessanternente novos habitos aos antigos e, divi-

dindo 0automatismo contra ele mesmo, domina-lo. De-

ve-o a sua linguagem, que fomeee a consciencia urn cor-

po imaterial em que pode se encarnar, dispensando-a as-

A V ID A a u A D IF ER E NC lA r; :A .. a D A D U RA r; :A .. a 135

sim de se apoiar exclusivarnente nos corpos materiais cujo

£luxo primeiro a arrastaria e logo depois a engoliria. De-

ve-o a vida social, que armazena e eonserva os esforcoscomo a linguagem annazena 0pensamento, que fixa as-

sirn urn myel medio para 0qual os individuos deveriio se

alcar de saida e, mediante essa excitacao inicial, impede

os mediocres de adormecer, instiga os melhores a subirmais alto. Mas nosso cerebro, nossa sociedade e nossa

linguagem sao apenas os sinais exteriores e diversos de

uma unica e mesrna superioridade intema. Cada urn a suamaneira, expressam 0sucesso iinico, exeepcional, que a

vida obteve num determinado momento de sua evolu-

~ao.Traduzem a diferenca de natureza, e nao so de grau,

que separa 0homem do resto da animalidade. Deixam

adivinhar que se, na ponta do longo trampolim sobre 0

qual a vida tomara impulso, todos os outros desceram, por

considerar a corda estendida alta demais, 56 0 hornem

saltou 0 obstaculo.

E.C., 264-5.

 

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N. CONDIc::AO HUMANA E FILOSOFIA

"A filosofia deveria

ser urn esforco para superar

a condicao humana."

(P .M., 218 .)

a)A filosofia

6 0 . C r it ic a da i nt el ig e nc ia

Partamas entao da a<;aae formulemos como prind-pia que a inteligencia visa em primeiro lugar fabricar, A

fabricacao se exerce exdusivamente sabre a materia bru-

ta, no sentido de que, mesmo quando emprega materiaisorganizados, trata-os como objetos inertes, sem se prea-

cupar com a vida que as informou. Da propria materia

bruta, 56 retem 0solido: a resto se esquiva justamente porsua fluidez. Portanto, se a inteligencia tende a fabricar,pode-se preyer que aquila que ha de fluidono reallhe es-

capara em parte e que aquilo que ha de propriamente vi-

tal no vivo lhe escapara por completo. Nos sa int e li g enc ia ,

ta l co mo sa i d as m ao e d a n atu re za , te m p or o bje to p rin cip al 0

s 6 li do inorgani zado .

Caso passassemos em revista as facu1dades intelec-tuais, veriamos que a inteligencia 56 se sente a vontade,56 esta totahnente em casalquando opera sabre a materia

 

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138 MEMORIA EVIDA

bruta, em particular sobre os solidos. QuaI e a proprieda-de mais geral da materia bruta? E extensa, apresenta-nosobjetos exteriores a outros objetos e, nesses objetos, par-tes exteriores a partes. Tendo em vista nossas manipula-~6es posteriores, e-nos sem diivida uti!considerar cadaobjeto como divisfvel em partes arhitrariamente recorta-

das, cada parte sendo novamente divisfvel segundo nos-so capricho, e assim por diante, indefinidamente. Mas,para a manipulacao presente, e-nos sobretudo necessariotomar 0objeto real com que lidamos ou os elementos reaisnos quais 0resolvemos por prov isoriamen t e de fin it iv os etrata -los todos como unidades. A possibilidade de decom-por a materia tanto quanta quisermos e como quisermosaludimos quando falamos da continuidade da extensao rna-teria1;mas essa continuidade, como se ve, reduz-se para

nos a faculdade que a materia nos da de escolher 0modode descontinuidade que encontraremos nela: em surna,

e sempre 0modo de descontinuidade, uma vez escolhido,que nos parece efetivamente real e que prende a nossaatencao, porque e por ele que se regula nossa ac;aopre-sente. Por isso, a descontinuidade e pensada por simes-rna, e pensavel em si mesma, nos a concebemos por urnate positivo de nosso espfrito, ao passo que a representa-c;aointelectual da continuidade e antes negative, nao sen-do, no fundo, mais que a recusa de nosso espfrito, diante

de qualquer sistema de decomposicao atualmente dado,de toma-lo como 0iinico possfvel.A inteligbtcia 56 conce-

b e c la ramen te 0 descontfnuo.

Por outro lado, os objetos sobre os quais nossa acaose exerce sao, sem duvida nenhuma, objetos moveis. 0que nos importa, contudo, e saber p ar a o nd e 0movel vai,

onde ele esta nUJ.i:1omenta qualquer de seu trajeto. Emoutras palavras, interessamo-nos sobretudo por suas po-

CONDlc;AO HUMANA E FILOSOFIA 139

sicoes atuais ou futuras e nao pelo progresso mediante 0quaI ele passa de uma posicao para a outra, progresso que

e 0proprio movimento. Nas acoes que realizamos, e quesao movimentos sistematizados, e no objetivo ou na sig-nificacao do movimento, no seu desenho de conjunto, emsuma, no plano de execucao imovel que fixamos nosso

espirito. 0 que ha de movente na ar;ao 56 nos interessana medida em que a sua totalidade possa ser avancada,retardada ou impedida por tal ou qual incidente de per-curso. Da propria mobilidade nossa inteligencla desvia aatencao, porque nao tern nenhum interesse em se ocupardela. Se estivesse destinada a teoria pura, seria no movi-mento que se instalaria, pois 0movimento e sem diividaa propria realidade e a imobilidade nunca e mais que apa-rente ou relativa. Mas a inteligencia esta destinada a algototalmente diferente. A menos que violente a simesma,segue 0caminho inverso: e da imobilidade que sempre

parte, como se fosse a realidade Ultima ou 0 elemento;quando quer representar 0movimento, reconstroi-o comimobilidades que justap6e umas as outras. Essa operacao,cuja ilegitimidade e cujo perigo na ordem especulativamostraremos (conduz a impasses e cria artificialmenteproblemas filos6ficos insohiveis)', justifica-se sem dificul-

dade quando nos reportamos a sua destinacao. A inteli-gencia em estado natural visa urn objetivo praticamen-te iitil, Quando substitui 0movimento por imobilidadesjustapostas, nao pretende, reconstituir 0movimento talcomo e ; simplesmente 0troca por urn equivalente pra-

tico. Sao os filosofos que se enganam quando transpor-tam para 0terreno da especulacao urn metoda de pensarfeito para a acao. Mas pretendemos voltar a esse ponto.

1. Cf. textos 14 e 15.

 

~

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140 MEMORIA E VIDA

Limitemo-nos a dizer que 0estavel eo imutavel s a o aqui-10 a que nossa inteligencia se prende em virtude de sua

disposicao naturaL Nossa in ie l ig incia 56 concebe claramente

a imobilidade.

ec,154-6.

61. C rf ti ca d a me ta fi si ca

Diziarnos que ha mais num movimento que nas po-

sicoes sucessivas atribufdas ao movel, mais num devir que

nas form as atravessadas sucessivamente, mais na evolu-

r;ao da forma que as formas realizadas uma depois da

outra. A filosofia podera, portanto, extrair dos termos do

primeiro tipo os do segundo, mas nao do segundo os do

primeiro: e do primeiro que a especulacao deveria partir .

Mas a inteligencia inverte a ordem dos dois termos e, notoeante a esse ponto, a filosofia antiga procede da mes-

rna maneira que a inteligencia, Instala -se, pois, no imu-

tavel, ofere cera a si mesma somente Ideias, No entanto,

ha devir, e urn fato. Como, tendo proposto apenas a imu-

tabilidade, faremos sair dela a mudanca? Nao pode ser

por adicao de alga, pois, por hip6tese, nfio existe nada po-

sitivo fora as Ideias. Sera portanto por uma diminuicao.

No fun do da filosofia antiga jaz necessariamente este

postulado: ha mais no im6vel que no movente, e, por via

de diminuicao e de atenuacao, passa-se da imutabilidade

ao devir.E portanto algo negativo, ou no maximo urn zero,

que sera preciso acrescentar as Ideias para obter a mu-

danca. Nisso consiste 0"nao-ser" platonico, a "materia"

aristotelica - urn zero metafisico que, apensado a Ideia,

CONDlc;AO HUMANA EFIWSOFIA 141

como 0zero aritrnetico a unidade, multiplica-a no espa-

<;0 e no tempo. Por meio dele, a Ideia imovel e simples se

refrata num movimento indefinidamente propagado. De

direito, s6 deveria haver Ideias imutaveis, imutavelmente

encaixadas umas nas outras. De fato, a materia vern acres-

centar-Ihes seu vazio e, no mesmo ato, libera 0devir uni-

versal. Ela eo inapreensivel nada que, infiltrando-se entre

as Ideias, cria a agitacao sem fim e a etema inquietude,

como uma desconfianca que se insinua entre dois cora-

c;5es que se amam. Degradern as ideias imutaveis: obte-

rao, assim fazendo, 0fluxo perpetuo das coisas. As Ideias

ou Fonnas sao sern diivida a totalidade da realidade inte-

Iigfvel, isto e , da verdade, uma vez que representam, reu-

nidas, 0equilibrio te6rico do Ser. Quanto a realidade sen-

sfvel, ela e uma oscilacao indefinida de urn lade para 0

outro desse ponto de equilibrio.

Dai temos, atraves de toda a filosofia das Ideias, uma

certa concepcao da duracao, bern como da relacao entre

o tempo e a eternidade. Para quem se instal a no devir, a

duracao aparece como a propria vida das coisas, como a

realidade fundamental. As Formas, que 0espirito isola e

armazena em conceitos, nfio sao, entao, mais que vistas

tomadas da realidade mutavel. Sao momentos colhidos

ao longo da duracao, e, precisamente porque cortaram 0

fio que as ligava ao tempo, elas nao duram mais. Tendem

a se confundir com sua pr6pria definicao, ou seja, com a

reconstrucao artificial e a expressao sirnb6lica que e seu

equivalente intelectuaI. Podem ate entrar na etemidade,

mas 0que tern de etemo ja se confunde com 0que tern

de irreal. - Ao contrario, caso se trate 0devir pelo metodo

cinematografico, as Formas nao sao mais vistas tomadas

da mudanca, sao seus elementos constitutivos, represen-

tam tudo 0que ha de positive no devir .A etemidade nfio

 

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142 M EM O RI A E V I DA

paira mais por cima do tempo como uma abstracao, fun-

da-o como urna realidade. Tal e precisamente a atitude

da filosofia das Fonnas ou das Ideias a esse respeito. Ela

estabelece entre a eternidade e 0tempo a mesma relacao

que ha entre amoeda de ouro e amoeda de troco - moe-

da tao mitida que 0 pagamento prossegue indefinida-mente sem que algum dia a dfvida seja paga: com a moeda

de ouro nos libertariamos de uma so vez. E 0que Platao ex-prime na sua magnifica linguagem ao dizer que Deus,

nao podendo fazer 0mundo eterno, lhe deu 0Tempo,

"irnagern movel da eternidade".

E.e,315-7.

62 . Cr ii ica da crit ica

Uma das ideias mais importantes e mais profundas

da Crftica da raziio pura e a seguinte: se a metafisica e pos-sfvel e por uma visao e nao por uma dialetica, A dialetica

nos conduz a filosofias opostas; demonstra igualmente a

tese e a antftese das antinomias. Somente uma intuicao

superior (que Kant chama de urna intuicao "intelectual"),

ou seja, uma percepdio da realidade metaffsica, permitiria

a metaffsica constituir-se. 0resultado mais claro da Cri-

tica kantiana e , portanto, mostrar que s6 se poderia pe-

netrar no mais alem por uma visao, e que, nesse terreno,

.uma doutrina so vale pelo que contem de percepcao: to-

me essa percepcao, analise-a, recomponha-a, vire e revi-

re-a em todos os sentidos, submeta-a as mais sutis ope-

racoes da mais alta quimica intelectual e voce jamais re-

tirara de seu crisol mais do que pos ali; reencontrara ali0

mesmo tanto de visao que tiver introduzido: e 0raciocinio

CONDlr ;AO HUMANA E F I L OS O F IA

nao 0tera feito avancar urn passo para a lem do que ja ti-

nha percebido antes. E isso 0que Kant mostrou a s claras:e e esse,. no rneu entender, 0maior service que prestou afilosofia especulativa. Estabelece de modo definitivo que,

se a metaffsica e possfvel, so0e por urn esforco de intui-

~ao. - No entanto, tendo provado que so a intuicao seria

capaz de nos dar uma metafisica, acrescentou: essa intui-

~ao e impossivel.Por que a julgou impossfvel? Precisamente porque

concebeu uma visao desse tipo - ou seja, uma visao da

realidade IIem si" - tal como a tinha concebido Plotino,

tal como a conceberam em g e ra l a q ue le s que fizeram ape-

10 a intuicao metaffsica. Todos entenderam esta Ultima

como uma facu1dade de conhecer que se distinguiria ra-

dicalmente tanto da consciencia como dos sentidos, que

estaria ate mesmo orientada no sentido inverso. Todos

acreditaram que se desligar da vida pratica era virar-lhe as

costas.Por que acreditaram nisso? Por que Kant, 0adversa-

rio deles, incorreu no me smo erro? Par que fizeram esse

juizo, embora dele tirassem conclus6es opostas, uns cons-

truindo imediatarnente uma metafisica, outros declaran-

.do a metafisica impossfvel?

Acreditaram porque irnaginaram que nossos senti-

dos e nossa consciencia, tal como funcionarn na vida de

todos os mas, nos faziam apreender diretamente 0mo-

vimento. Acreditaram que por meio de nossos sentidos e

de nossa consciencia, trabalhando como trabalham comu-

mente, percebiamos realmente a mudanca nas coisas ea mudanca em nos. EntaoI como e incontestavel que se-

guindo 05 dados habituais de nossos sentidos e de nos-

sa consciencia desembocamos, na ordem cia especulacao,

em contradicoes insohiveis, conclufram daf que a contra-

dicao era inerente a propria mudanca e que, para se sub-

143

I

·1

 

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144 MEMORIA EVIDA

trair a essa contradicao, era precise sair da esfera da mu-

danca e elevar-se acima do Tempo. E essa a essencia do

pensamento dos metaffsicos, como tambem do pensa-

mento daqueles que, com Kant , negam a possibilidade da

metaffsica.

A metaffsica nasceu, com efeito, dos argumentos de

Zenao de Eleia relativos a mudanca e ao movimento.Foi Zenao que, chamando a atencao para 0absurdo do

que chamava movimento e mudanca, Ievou os filosofos

- Platao em primeirissimo lugar - a buscar a realidade

coerente e verdadeira no que nao muda. E foi porque

Kant acreditou que nossos sent idos e nossa consciencia

se exercem efetivamente num Tempo verdadeiro, ou seja,

num Tempo que muda incessantemente, numa duracao

que dura, foi porque, por outro Iado, ele se dava conta da

relatividade dos dados usuais de nossos sentidos e de

nossa consciencia (alias, detida por ele bern antes do ter-

mo transcendente de seu esforco) que julgou a metafi-sica impossivel sem uma visao totalmente diferente da-

quela dos sentidos e da consciencia - visao da qual, por

outra parte, nao encontrava vest igio algum no hornem.

Mas se pudessemos estabelecer que 0que foi consi-

derado como movimento e mudanca por Zenao em pri-

meiro lugar e depois pelos rnetaffsicos em geral nao enern rruidanca nem movimento, que eles retiveram da

mudanca 0que nao muda e do rnovimento o que nao se

move, que tomaram por uma percepcao imediata e com-

pleta do movimento e da mudanca uma cristalizacao des-

.sa percepcao, uma solidificacao destinada a pratica - e sepudessemos mostrar, por outro lado, que 0que foi torna-

do por Kant como 0proprio tempo e urn tempo que nern

escoa nem muda nem dura =, entao, para se subtrair a

contradicoes como as que Zenao assinalou e para livrar

nosso conhecimento diane da relatividade de que Kant 0

CONDI(:AO Hl lMANA E FILOSOFIA

acreditava afetado, nao haveria que sair do tempo G a sai-mos dele!), nao haveria que se Iibertar da mudanca G a nosIibertamos ate demais dela!), haveria, ao contrar io, que

voltar a apreender a mudanca e 0 tempo ern sua mobi-

lidade original. Entao, nao veriamos somente cair uma a

uma muitas dificuldades e desaparecer mais de urn pro-

blema: pela extensao e revivificacao de nossa faculdadede perceber, talvez tambem (mas por enquanto nao se

trata de elevar-se a tais alturas) por urn proiongamento

que almas privilegiadas darao a intuicao, restabeleceria-mos a continuidade no conjunto de nossos conhecimen-

tos - continuidade que nao seria mais hipotetica e cons-

truida, mas experimentada e vivida.

P.M" 154-7.

63 . A f il oso f ia como esfor~o

A consciencia que nos e propria e a consciencia de

urn certo ser vivo, localizado num certo ponto do espac;oj

e, embora va realmente na mesma direcao que seu prin-

cipio, e incessantemente puxada no sentido inverso, obri-

gada, ainda que ande para a £rente, a olhar para tras, Essa

visao retrospectiva e , como mostramos, a funcao natural

da inteligencia e, par conseguinte, da consciencia dis-

tinta. Para que nossa consciencia coincidisse com algo de

seu princfpio, seria precise que se desligasse do ji i feitoe se ligasse ao fazendo-se. Seria preciso que a faculdade

de oer, voltando-se e torcendo-se sobre si mesma, nao se

distinguisse mais do ato de querer. Esforco doloroso, quepodemos despender bruscamente violentando a nature-

za, mas nao sustentar para alem de alguns instantes. Na

aC;aolivre, quando contraimos todo 0nosso ser para lan-

145

 

146 MEMORIA E V ID A CONDlc;AO HUMANA E FILOSOFIA 147

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ca-lo para a frente, temos a consciencia mais ou menosclara dos motivos e dos m6beis, e ate, a rigor, do devirpelo qual eles se organizam em ato, mas 0puro querer, acorrente que atravessa essa materia comunicando-lhe avida, e algo que mal sentimos, que no maximo rocamos depassagem. Tentemos instalar-nos nele, nem que seja por

urn instante: mesmo entao, e urn querer individual, frag-mentario, que apreenderemos. Parachegar ao principio detoda vida bern como de toda materialidade, seria precisoir ainda mais lange. 1 3 . impossive1?Certamente nao: a his-t6ria da filosofia esta ai para comprova-lo. Nao existe sis-tema duradouro que nao seja, em pelo menos algumas desuas partes, vivificado pela intuicao. A dialetica e neces-sana para por a intuicao a prava, necessaria tambem paraque a intuicao se refrate em conceitos e se propague a ou-tros hornens; mas, muito freqiientemente, nao faz maisque desenvolver 0resultado dessa intuicao que a supera.A bern dizer, sao dois metodos de sentido contrario: 0mesmo esforco por meio do qualligamos ideias a ideiasfaz desaparecer a intuicao que as ideias se propunhamarmazenar, 0 filosofo e obrigado a abandonar a intuicaodepois de ter recebido seu ela e a fiar-se em si mesmopara continuar 0movirnento, empurrando os conceitosagora uns arras dos outros. Bernrapidamente, porem, sen-te que perdeu pe: urn novo contato se faz necessario: serapreciso desfazer a maior parte do que se tinha feito. Emsurna, a dialetica e a que assegura 0acordo de nosso pen-samento consigo mesmo. Mas, mediante a dialetica - quenfio e mais que uma distensao da intuicao -, muitos acor-

dos diferentes sao possiveis, e,no entanto, s6 existeumaverdade. A intuicao, se pudesse se prolongar para alem dealguns instantes, nao 56 asseguraria a acordo do fil6sofacom seu pr6prio pensamento, mas tambem 0de todos osfilosofos entre si.Talcomo existe, fugaz e incompleta, ela

e , em cada sistema, 0que vale mais que a sistema e 0quesobrevive a e1e.0 objetivo da filosofia seria atingido seessa intuicao pudesse manter-se, generalizar-se e, sobre-tudo, assegurar-se pontos de referenda exteriores paranao se extraviar.Paratanto, e necessario urn vaivem con-tinuo entre a natureza e 0espirito.

E.C,238-40.

6 4. A filo so fia c om o p e r c e p c a o

Eis,portanto, a questao que se colocae que tenho poressencial.Uma vez que todo ensaio de filosofiapuramen-te conceitual suscita tentativas antagonistas e que, no ter-reno da dialetica pura, nao hi sistema ao qual nao sepos-sa opor outro, pennaneceremos nesse terreno ou nao de-veriamos, antes (sem renunciar, e obvio, ao exercicio dasfaculdades de concepcao e de raciocinio), retornar a per-cepcao, conseguir que ela se dilate e se estenda? Diziaque e a insuficiencia da percepcao natural que levou osfilosofos a completar a percepcao com a concepcao - de-venda esta preencher os intervalos entre os dados dossentidos ou da consciencia e, assim, unificar e sistema-tizar nosso conhecimento das coisas. Mas 0 exame dasdoutrinas nos mostra que a faculdade de conceber, a me-dida que avanca nesse trabalho de integracao, ve-se obri-gada a eliminar do real urn'grande ruimero de diferen-cas qualitativas, a apagar em parte nossas percepcoes, a

empobrecer nossa visao concreta do universo. 1 3 ate mes-mo porque cada filosofia e levada a proceder assim, querqueira quer nao, que ela suscita filosofias antagonistas,cada uma das quais retoma alga do que aquela deixou delado. Portanto, 0metoda vai contra 0 objetivo: teorica-

 

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148 M EM OR IA E V ID A

mente, deveria estender e compIetar a percepcao; de fato,e obrigado a pedir a urn monte de percepcoes que des-vanecarn para que tal ou qual delas possa tomar-se re-presentativa das outras. - Suponham, no entanto, que emvez de querer nos elevar acima de nossa percepcao dascoisas, mergulhassemos nela para aprofunda-la e amplia-

la. Suponham que nela inserissemos nossa vontade, eque essa vontade, dilatando-se, dilate nossa visao das coi-sas. Obterfamos dessa feita uma filosofia onde nao have-ria nenhum sacrificio dos dados dos sentidos e da cons-ciencia: nenhuma qualidade, nenhurn aspecto do realsubstituiria 0resto a pretexto de explica-lo. Mas teriamossobretudo uma filosofia a qual nao sepoderiam opor ou-tras, pois ela nao teria deixado nada fora dela que outrasdoutrinas pudessem recolher: teria pego tudo. 'Ieria pegatudo 0que esta dado e ate mais do que esta dado, poisas sentidos e a consciencia, convidados par ela a urn es-

force excepcional,ter-lhe-iam entregado mais do que for-necem naturalmente. A multiplicidade de sistemas que.lutam entre si annados de conceitos diferentes, sucede-ria a unidade de uma doutrina capaz de reconciliar todosas pensadores numa mesma percepcao - percepcao, alias,que rna se ampliando grac;asao esforco combinado dosfil6sofos numa direcao comum.

P.M. , .147-9 .

6 5. A f il os ofi a c om o e mp iri sm o

Portanto, e bern menor do que se sup6e a distanciaentre urn suposto "empirismo" como 0de Taine e as es-.peculacoes mais transcendentes de certos panteistas ale-maes. 0 metodo e analogo em ambos as casas: consiste

CONDI<;AOHUMANA E FlLOSOFIA

em raciocinar sobre os elementos da traducao como sefos-sem partes do original. Mas 0verdadeiro empirismo eaquele que se propoe a cercar 0maximo possfvel 0pro-prio original, aprofundar-se na sua vida e, par urna es-

pede de au scu lt adio e sp ir it ua l, sentir palpitar sua alma; eesse empirismo verdadeiro e a verdadeira metaffsica. 0

trabalho e de uma dificuldade extrema, porque nenhurnadas concepcoes ja prontas de que 0pensamento se serve

para suas operacoes dimas lhe serve mais. Nao ha nadamais facil que dizer que 0eu e multiplicidade, au que elee unidade, ou que e a sintese de ambas. Unidade e mul-tiplieidade sao aqui representacoes que nao precisamostalhar conforme 0objeto, que ja encontramos fabricadas

e temos apenas que escolher de urn monte, roupas de

confeccao que cairao tao bern ern Pedro como em Paulo,porque nao desenham a forma de nenhurn dos dois.Masurn empirismo digno do nome, urn empirismo que so tra-

balha sob medida, ve-se obrigado, para cada novo objetoque estuda, a despender urn esforco absolutamente novo.Talhapara 0objeto urn conceito apropriado apenas ao ob-

jeto, conceito do qual mal sepode clizerque ainda sejaurnconceito, urna vez que s6 se aplica a essa iinica coisa.Naoprocede por combinacao de ideias encontradas no comer-

cio,unidade e multiplicidade, par exemplo; mas a repre-sentacao para a qual nos encaminha e , ao contrario, umarepresentacao tinica, simples, a qual, alias, uma vez for-mada, pode ser incluida FlOS quadros unidade, multipli-

eidade etc., 0que e facil de explicarja que sao todos bernmais largos que ela. Finalmente, a filosofia assim defini-da nao consiste em escolher entre conceitos e tomar apartido de urna escola, mas ern ir buscar uma intuicaoiinica da quaItornamos a descer aos mais diversos concei-tos, porque nos colocarnos acima das divisoes de escola.

 

150 CONDlcAo HUMANA E flLOSOFIA 151

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MEMORIA E VIDA

Que a personaJidade tenha unidade e algo certo;

mas semelhante afirrnacao nao me ensina nada sobre a

natureza extraordinaria dessa unidade que e a pessoa.Que nosso eu seja rruiltiplo e algo com que tambern con-

cordo, mas ha nele uma multiplicidade com relacao a qualse deve reconhecer que eIa nao tern nada de comum com

nenhuma outra. 0 que importa verdadeiramente para afilosofia e saber qu e unidade, qu e multiplicidade, qu e rea-

lidade superior ao urn e ao rmiltiplo abstratos e a unida-de rruiltipla da pessoa. E so 0sabera se recuperar a intui-

.;ao simples do eu peIo eu. Entao, conforme a encosta que

escolher para tamar a descer desse cume, desembocara

na unidade, ou na multiplicidade, ou em qualquer um dos

conceitos par meio dos quais se tenta definir a vida mo-

vente da pessoa. Mas nenhuma mistura desses conceitos

entre si, voltamos a repeti-Io, darla nada que se pareca

com a pessoa que dura.

PM., 196-7.

. 6 6. Emp ir ismo e m i et ic ismo

Reconhecemos, contudo, que, abandonada a si mes-

rna, a experiencia rnistica nao pode trazer para 0filosofo

a certeza definitiva. S6 seria tota1mente convincente se

este tivesse chegado por outra via, tal como a experiencia

sensfvel e 0 raciocinio fundado nela, a considerar possf-

vel a existencia de uma experiencia privilegiada por meioda qual 0homem entraria em corrumicacao com um prin-

cipio transcendente. Encontrar nos misticos essa expe-

riencia, tal como esperada, permitir ia, entao, amp liar as

resultados ja estabelecidos, ao passo que esses resultados

estabelecidos fariam repercutir sobre a experiencia mis-

tica algo da propria objetividade deles. Nao existe outra

fonte de conhecimento que nao seja a experiencia. Mas,

como a notacao intelectual do fato extrapola necessaria-

mente 0 fato bruto, as experiencias estao longe de ser

todas igualmente conclusivas e de autorizar a mesma cer-

teza. Muitas nos conduzem a conclusoes simplesmenteprovaveis. Todavia, as probabilidades podem somar-se e

a soma dar urn resultado que equivalha praticamente a

certeza. Falavamos outrora daquelas "linhas de fatos"

que fornecem, cada urna, tao-somente a direcao da verda-

de, porque nao vao longe a suficiente: contudo, prolon-

gando duas delas ate 0ponto onde se cortam, chega -se

a pr6pria verdade. 0 agrimensor mede a distancia de urn

ponto inacessivel mirando-o sucessivamente de dois pon-

tos aos quais tern acesso. Estimamos que esse metoda de

cruzamento e 0unico que pode fazer avancar definitiva-

mente a metafisica. Por meio dele se estabelecera umacolaboracao entre filosofos, a metaffsica, assim como a

ciencia, progredira par acumulacao gradual de resultados

estabelecidos, em vez de ser urn sistema complete, que

e preciso pegar OU largar , sempre contestado, sempre a

recomecar, No entanto, verifica-se precisamente que 0

aprofundamento de uma certa ordem de problemas, to-

talmente diferentes do problema religiose, levou-nos a

conclus6es que tomavam provavel a existencia de uma

experiencia singular, privilegiada, tal como a experiencia

rrustica, E,pOI outro lado, a experiencia mfstica, estudada

par si mesma, fornece-nos indicacoes capazes de se sa-mar aos ensinamentos obtidos num terreno totalmente

diferente, mediante urn metodo tota1mente diferente. Haportanto aqui realmente reforco e complementacao rmi-tuos. Comecemos pelo primeiro ponto.

 

152 MEMORIA EVIDA CONDlc;Ao HUMANA EFILOSOFIA 153

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Foi seguindo tao de perto quanta possivel os dados

da biologia que havfarnos chegado a concepcao de um ela

vital e de uma evolucao criadora .. .Essa concepcao nao ti-

nha nada de comum com as hipoteses sobre as quais sao

construidas as metaffsicas; era uma condensacao de fa-

tos, urn resumo de resumos. Agora, de onde vinha 0ela,

e qual era °seu principio? Caso se bastasse a si mesmo,o que seria em si mesmo e que sentido se deveria dar ao

conjunto de suas manifestacoes? Para essas perguntas,

os fatos considerados nao fomeciam nenhuma resposta;

mas era possfvel perceber de que direcao a resposta pode-

ria vir. Com efeito, a energia lancada atraves da materia

aparecera-nos como infraconsciente ou supraconsciente,

em todo caso demesma especie que a consciencia, Tivera

de contomar muitos obstaculos, encolher-se para passar

e sobretudo se dividir entre linhas de evolucao divergen-

tes; finalmente, foi na extremidade das duas linhas prin-

cipais que encontramos os dois modes de conhecimentonos quais ela se tinha instalado para se materializar, 0ins-

tinto do inseto e a inteligencia do homem. 0nstinto era

intuitivo, a inteligencia refletia e raciocinava. E verdadeque a Intuicao tivera que se degradar para tornar-se ins-

tinto; tinha ficado hipnotizada pelo interesse da especie e

o que tinha conservado de consciencia assumira a forma

sonambtilica, Mas, assirn como em torno do instinto ani-

.mal subsistia uma franja de inteligencia, tambem a inteli-

gencia humana estava aureolada de intuicao, Esta, no ho-

mem, permanecera plenamente desinteressada e cons-

ciente, mas era apenas uma pequena luz, e que nao seprojetava muito longe. Contudo, e dela que viria a luz,se algum dia devesse iluminar-se 0interior do ela vital,

sua significacao, sua destinacao. Pois estava voltada para

dentro; ese, por uma primeira intensificacao, ela nos fa-

zia apreender a continuidade de nossa vida interior, se a

maioria de nos nao fosse mais longe, uma intensificacao

superior a levaria, quem sabe, ate as raizes de nosso ser

e, assirn, ate 0proprio principio da vida em geral . A alma

mfstica nao tinha justamente esse pnvilegio?

M.R., 263-5.

b) A condicao humana e sua superacao

67. Siiuadio da inieligincia

Essa solucao consistiria primeiro em considerar a in-

teligencia urna funcao especial do espfrito, essenciaImen-

te voltada para a materia inerte". Consistiria em seguida

em dizer que nem a materia determina a forma da inte-

ligencia, nem a inteligencia impoe sua forma a materia,nem a materia e a inteligencia foram regradas urna pela

outra por nao sei que harmonia preestabelecida, mas que

a inteligencia e a materia se adaptaram progressivamen-

te uma a outra para finalmente se deterem nurna forma

comum. E s sa a da pt ad io t er -s e- ia e fe tu a do , alias, de m od o to -

talmente natural, porque e a m esm a inversiio do m esm o m o-

vim ento q ue criou ao m esm o tem po a intelectu alidade do es-

p irito e a m ate ria lid ad e d as co isa s .

Desse ponto de vista, 0conhecimento que nos dao da

materia nossa percepcao, por urn lado, e a ciencia, por ou-

tro, aparece-nos como aproximativo, por certo, mas nao

2.0 problema levantado por Bergson e 0de uma genese simultO-

ne a da inteligencia e dos corpos. Critica a metafisica por brindar-se pri-

meiro a lntel igencia num pr incipio; cri tica Spencer por se conceder a

existencia de objetos ja exteriores uns aos outros.

 

154 MEM6RIA E VIDA CONDI<;AO HUMANA EFILOSOFIA 155

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como relativo. Nossa percepcao, cujo papel e aclarar nos-

sas acoes, opera urn seccionamento da materia que sera

sempre nftido demais, sempre subordinado a exigencies

praticas, sempre a ser revisto, consequentemente. Nossa

ciencia, que aspira a assumir a forma matematica, acentua

rnais do que e preciso a espacialidade da materia; por-

tanto, seus esquemas serao, em geral, precisos demais e,alias, sempre a ser refeitos. Para que urna teoria cientifica

fosse definitiva, seria preciso que 0espirito pudesse abar-

car em bloeo a totalidade das coisas e situa-las exatamen-

te umas em relacao as outras; mas, na realidade, somas

obrigados a levantar os problemas urn par urn, em termos

que sao, por isso mesmo, provisorios, de sorte que a so-

lucao de cada problema devera ser indefinidamente cor-

rigida pela solucao que for dada aos problemas seguintes,

e a ciencia, em seu conjunto, e relativa a ordem contin-

gente na qual as problemas foram levantados sucessiva-

mente. E nesse sentido e nessa medida que e preciso to-

mar a ciencia por convencional, mas a convencionalidade

.e de fato, por assim dizer, e nao de direi to. Em pnncipio,

a ciencia positiva versa sobre a propria realidade, con-

tanto que nao saia de seu dominio proprio, que e a materia

inerte.

o conhecimento cientffico, assim entendido, eleva-se.

Em compensacao, a teoria do conhecimento toma-se uma

empresa infinitamente diffcil e que ultrapassa as forcas da

pura inteligencia. Nao basta, com efeito, determinar, por

uma analise conduzida com prudencia, as categorias do

pensamento, trata-se de engendra-las. No que concerne

ao espaco, dever-se-ia, por urn esforco su i generis do espi-rita, seguir a progressao, au antes, a regressao do extra-es-

pacial degradando-se em espacialidade. Colocando-nos,

de inicio, tao alto quanta possfvel na nossa propria cons-

ciencia para nos deixar em seguida cair pouco a pouco, te- t

j ···

.

mos efetivamente a sensacao de que nosso eu se estende

em lembrancas inertes exteriorizadas umas com relacao

as outras, em vez de se tensionar em urn querer indivisi-

vel e atuante. Mas isso e 56 urn comeco. Nossa conscien-

cia, ao esbocar 0movimento, nos mostra sua direcao e

nos faz entrever a possibilidade que ele tern de continuar

ate 0f im; ela nao vai tao lange. Em compensacao, se con-siderarmos a materia que nos parece inicialmente coinci-

dir com a espaco, descobrimos que, quanta mais nossa

atencao se fixa nela, mais as partes que diziamos estar

justapostas entram umas dentro das outras, cada uma de-

las sofrendo a acao do todo que Ihe e, por conseguinte,

presente de alguma maneira. Assim ..ainda que se desdo-

bre no sentido do espaco, a materia nao consegue faze-lo

por completo: do que se pode concluir que ela nao faz

mais que continuar bern mais longe 0movimento que a

consciencia podia esbocar em nos em estado nascente.

Seguramos, pais, as duas pontas da corrente, embora nfio

consigamos agarrar 05 outros elos. Sempre nos escapa-

rao? Deve-se considerar que a filosofia, tal como a defi-

nimos, ainda nao tomou consciencia completa de si mes-

rna. Affsica compreende seu papel quando empurra a

materia no sentido da espacialidade; mas teria a metafi -

sica compreendido 0 seu quando pura e simplesrnente

acertava 0passo com a ffsica, com a quimerica esperanca

de ir mais longe na mesma direcao? Sua tarefa propria

nao serial pelo contrario, voltar a subir a encosta que a if-

sica desce, reconduzir a materia a suas origens e constituir

progressivamente uma cosmologia que serial se assim se

pode dizer , uma psicologia invert ida? Tudo a que apare-ce como positivo para a fisico e para 0geometra torna-se..

desse novo ponto de vista, interrupcao au interversao da

positividade verdadeira, que caberia definir em termos psi-cologicos.

 

156 MEM6RIA EVIDA CONDlcAo HUMANA E FILOSOFLA 157

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E certo que, se considerarmos a ordem adrniravel da

materna tical 0acordo perfeito dos objetos de que ela se

ocupa, a 16gica imanente aos ruimeros e as figuras, a cer-

teza que temos, seja qual for a diversidade e a complexi.da-

de de nossos raciocinios sobre 0mesmo tema, de dar sem-

pre na mesma conclusao, hesitaremos em ver em proprie-

dades de aparencia tao positiva urn sistema de negacoes,a ausencia mais que a presenc;a de uma realidade verda-

deira. Mas nao devemos esquecer que a nossa inteligen-

cia, que constata essa ordem e que a admira, esta dirigida

no mesmo sentido do movimento que desemboca na rna-

terialidade e na espacialidade de seu objeto. Quanto mais

complicacao poe no seu objeto ao analisa-lo, mais com-

plicada e a ordem que nele encontra. E essa ordem e essa

complicacao dao-lhe necessariamente a impressao de uma

realidade positive, ja que sao de mesmo sentido que ela.

E.c, 207-10.

68 . Po s si bi li dad es d a inteligenda

Uma inteligenciaque reflete e urna inteligencia que,

afora 0 esforco praticamente titil, possuia urn excedente

de forca para gastar. E uma consciencia que, virtualmente,

ja se reconquistou a si mesma. Mas ainda e preciso que

a virtualidade passe ao ato. E de presumir que, sem a lin-

guagem, a inteligencia teria ficado atada aos objetos rna-

teriais que tinha interesse em considerar. Teria vivido nurn

estado de sonambulismo, exterionnente a si me sma, hip-notizada por seu trabalho. A linguagem contribuiu mui-

to para liberta-Ia. A palavra, feita para ir de uma coisa

para outra, e, com efeito, essencialmente deslocavel e li-

vre. Fodera, portanto, estender-se, nao s6 de uma coisa

I··1_,'

.~

1j

percebida a outra coisa percebida, mas tambem da coi-

sa percebida a lembranca dessa coisa, da lembranca pre-

cisa a uma imagern mais fugidia, de uma imagem fugidia,

mas no entanto ainda representada,. a representacao do ate

pelo qual e representada, . ou seja, a ideia. Abrir-se-a, as-

sim, aos olhos da inteligencia que olhava para fora, todo

urn. mundo interior, 0 espetaculo de suas pr6prias ope-racoes, Ela, alias, estava s6 esperando essa oportunidade.

Aproveita-se do fato de que a palavra e ela mesma uma

coisa para penetrar, levada pela palavra, no interior de seu

proprio trabalho. Por mais que seu prirneiro offcio fosse

fabricar instrumentos, essa fabricacao so e possfvel peloemprego de certos meios que nao estao talhados na me-

elida exata de seu objeto, que 0ultrapassam e que, dessa

forma, permitem a inteligencia urn trabalho suplementar,

isto e, desinteressado. A partir do dia ern que a inteligen-

cia, refletindo sobre seus procedirnentos, percebe-se a si

mesma como criadora de ideias, como faculdade de re-

presentacao em geral, nao ha mais objeto do qual nao

queira ter a ideia, mesmo que este nao tenha relacao dire-

ta com a a<;aopratica, Eis por que dizfamos que existem

coisas que s6 a inteligencia pode procurar. Com efeito, so

ela se preocupa com teoria. E sua teoria gostaria de abar-

car tudo, nao 56 a materia bruta, sobre a qual tern natu-

ralmente dominio, mas tambem a vida e 0pensamento.

E.C., 159-60.

69 . S it u ar ii o d a s o ci ed ade

Instinto e inteligencia tern por objetivo essencial uti-

lizar instrumentos: ora ferramentas inventadas e,por con-

seguinte, variaveis e imprevistas; ora orgaos fornecidos

 

158 MEMORIA E VIDA CONDI<;AD HUMANA E FlLOSOFlA 159

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pela natureza e, por conseguinte, imutaveis, 0 instrumen-

to, alias, esta destinado a urn trabalho, e esse trabalho etanto mais eficaz quanta mais especializado e, por con-

seguinte, mais dividido for entre trabalhadores diversa-

mente qualif icados que se completam mutuamente. Por-

tanto, a vida social e imanente, como urn vago ideal, tanto

ao instinto como a inteligencia; esse ideal encontra suarealizacao mais completa na colmeiaou no formigueiro

por urn lado, nas sociedades humanas, por outro. Huma-

na ou animal, uma sociedade e uma organizacao, irnplicauma coordenacao e geralmente tambem uma subordina-

c;aode elementos uns aos outros; oferece, pois, urn con-

junto de regras ou leis simplesmente vividas ou, ademais,

representadas. Mas, numa colmeia ou num formigueiro,

o indivfduo esta atado ao seu ernprego por sua estrutura

e a organizacao e relativarnente invariavel, ao passo que a

forma da cidade humana e variavel, aberta a todos os pro-gressos. Disso resulta que, nos primeiros, cada regra e im-posta pela natureza, ela e necessaria; ao passo que, nas ou-tras, uma iinica coisa e natural, a necessidade de uma re-

gra. Portanto, nurna sociedade humana, quanta mais se

cavar ate a raiz das obrigacoes diversas para chegar a obri-gacao ern geral, rnais a obrigacao tendera a se tomar ne-

cessidade, mais ira se aproxirnar do instinto no que ela

tern de imperioso. Ainda assim, seria cometer urn enorrne

engano querer relacionar 0instinto com urna obrigacao

particular, fosse ela qual fosse. 0 que sera preciso lembrar

sernpre e que, embora nenhuma obrigacao seja de natu-

reza instintiva, 0todo da obrigacao teria sido instinto se as

sociedades humanas nao estivessem de alguma maneiralastreadas de variabilidade e de inteligencia. E urn instin-to virtual, como aquele que ha por tras do habito de falar.

A moral de uma sociedade humana e de fato cornparavela sua linguagem. Deve-se notar que embora as formigas

I

I

troquem sinais entre si, como parece provavel que facam,

o sinallhes e fomecido pelo proprio instinto que as faz

.comunicarem-se. Pelo contrario, urna lingua e urn produ-to do uso. Nada, nem no vocabulario nero mesmo na sin-

taxe, vern da natureza. No entanto, falar e natural, e os

sinais invariaveis, de origem natural, que provavelmente

servem nurna sociedade de insetos representam 0que te-ria sido nossa linguagem se a natureza, outorgando-nos a

faculdade de falar, nao Thetivesse acrescido essa funcao

fabricadora e utilizadora da ferramenta, inventiva por con-

seguinte, que e a inteligencia, Nao cessemos de nos re-

portar ao que a obrigacao t er ia s ido se a sociedade huma-

na tivesse sido instintiva em vez de ser inteligente: nao

explicaremos, assim, nenhurna obrigacao em particular,

daremos ate, da obrigacao ern geral, uma ideia que seria

falsa se nos ativessemos a eIa; e, no entanto, deveremos

pensar nessa sociedade instintiva como urn simetrico da

sociedade inteligente se nao quisermos nos meter sem fio

condutor na busca dos fundamentos da moral.

M.R.,22-3.

70 . Possib il idade s da soci edade

A vida, por outro lado, poderia ter-se limitado a isso

e nao fazer mais nada alem de constituir sociedades fe-

chadas, cujos membros tivessem estado ligados uns aos

outros par ngidas obrigacoes, Compostas de seres inte-

ligentes, as sociedades teriam apresentado urna variabili-dade que nao se encontra nas sociedades animais, regidas

pelo instinto; mas a variacao nao teria sido suficiente para

encorajar 0sonho de uma transforrnacao radical; a huma-

nidade nao teria se modificado a ponto de urna sociedade

 

160 MEMORIA EVIDA COND I~O HUMANA E F ILOSOFIA 161

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unica, que abrangesse todos os homens, aparecer como

possfvel, De fato, esta ainda nao existe e talvez nunca exis-

ta: ao dar ao homem a conformacao moral de que neces-

sitava para viver em grupo, a natureza provavelmente fez

pela especie tudo 0que podia. Mas, assim como existiram

genios que fizeram recuar as fronteiras da inteligencia e

foi concedido a alguns individuos, de tempos em tempos,bern mais do que fora possivel dar de golpe a especie, as-sim tarnbern surgiram aImas privilegiadas que se sentiam

aparentadas com todas as aImas e que, em vez de perma-

necer nos limites do grupo e ater-se a solidariedade esta-

belecida pela natureza, voltavam-se para a humanidade

em geral num ela de arnor. 0 aparecimento de cada uma

delas era como a criacao de uma nova especie composta

de urn indivfduo iinico, 0mpulso vital desembocando de

tempos em tempos, nurn determinado hornern, em urn

resultado que nso poderia ter sido obtido de golpe para 0

conjunto da humanidade. Cada uma delas marcava assim

urn certo ponto alcancado pela evolucao da vida; e cada

uma delas manifestava de uma forma original urn arnor

que parecia ser a propria essen cia do esforco criador. A

emocao criadora que enlevava essas almas privilegiadas e

que era urn transbordamento de vitalidade espalhou-se

em tomo delas: entusiastas, irradiavam urn entusiasrno

que nunea se apagou de todo e que pode sempre reen-

contrar sua chama. Hoje, quando ressuscitamos pelo pen-

samento esses grandes homens de bern, quando os ou-

vimos falar e quando os vern os fazer, sentimos que eles

nos comunicam seu ardor e que nos arrastam no seu mo-

vimento: nao e mais uma coercao mais ou menos atenua-da, e urna mais au menos irresistfvel atracao. Mas essa

segunda forca, assim como a primeira, nao precisa de ex-

plicacao, Voce nao pode nao se impor a sernicoacao exer-

cida par habitos que correspondem simetricamente ao

-------------------------------- ---

instinto; voce nao pode nao prop or esse enlevo da alma

que e a emocao: no primeiro caso, voce tern a obrigacao

original e, no outro, alga que se torna seu prolongamen-

to; mas, em ambos as casas, esta diante de forcas que

nao sao propria e exclusivamente morais e das quais nao

cabe ao moralista fazer a genese. Por ter querido faze-la,

os filosofos ignoraram 0carater misto da obrigacao sobsua forma atual; em seguida, tiveram de atribuir a essa au

aquela representacao da inteligencia 0poder de conduzir

a vontade: como se alguma vez urna ideia pudesse exigi!

categoricamente sua propria realizacaol Como se a ideia

Fosse outra coisa aqui que nao 0 extrato intelectual co-

mum, au melhor, a projecao no plano inte1ectual de urn

conjunto de tendencias e de aspiracoes, sendo que umas

estao acima e as outras abaixo da pura inteligencia! Res-

tabelecamos a dualidade de origem: as dif icu1dades de-

saparecem. E a pr6pria dualidade e absorvida na unida-

de, pois "pressao social" e "ela de arnor" sao apenas duas

manifestacoes complementares da vida, normalmente

aplicada a conservar em termos genericos a forma social

que foi caracteristica da especie humana desde a origem,

mas excepcionalmente capaz de transfigura-Ia, gracas a

individuos que representam, cada quat tal como teria fei-

to 0surgimento de uma nova especie, urn esforco de evo-

lucao criadora.

M.R,97-8.

71 . S ii u ac do e po ss ib il id ade s d a r el ig i ii o

... 0 ser inteligente nao vivia mais somente no pre-

sente; nao ha reflexao sem previsao, nao ha previsao sem

inquietude, inquietude sem urn relaxamento momenta-

 

162 M EM ORIA E VID A C ON Dlc;AO H UM AN A E F IL OS OF IA 163

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neo do apego a vida. Sobretudo, nao ha hurnanidade semsociedade, e a sociedade pede ao individuo urn despren-

dimento que 0 inseto, em seu automatismo, leva ate acompleta abnegacao. Nao se deve contar com a reflexaopara sustentar esse desprendimento. A inteligencia, a me-nos que seja a de urn sutil fil6sofo utilitario, aconselharia

antes 0egoismo. Por dois lados, portanto, ela pedia urncontrapeso. Ou, antes, ja estava munida dele, pois a natu-

reza' mais uma vez, nao faz os seres de pecas disparata-das: 0que e multi plo em sua manifestacao pode ser sim-ples na sua genese. Uma especie que surge traz consigo,na indivisibilidade do ate que a poe, todo0detalhe do quea toma viavel. A propria detencao do ela criador que setraduziu pelo surgirnento de nossa especie deu, junto coma inteligencia humana, no interior da inteligencia huma-na, a funcao fabuladora que elabora as religi6es. E esseportanto 0papel, e essa a significacaoda religiao que cha-

mamos estatica ou natural. A religiao e 0 que deve su-prir, em seres dotados de reflexao, urn eventual deficit doapego a vida.

E verdade que imediatamente sevislumbra uma ou-tra solucao possfvel do problema. A religiao estatica ape-ga 0homem a vida e, par conseguinte, 0individuo a so-ciedade, contando-lhe hist6rias comparaveis aquelas comque se embalam as criancas. Por certo nao sao hist6riascomo as outras. Oriundas da funcao fabuladora por ne-cessidade e nao por simples prazer, contrafazem a reali-dade percebida a ponto de se prolongar em acoes: as ou-

tras criacoes imaginativas tern essa tendencia, mas naoexigem que nos abandonemos a elas; podem permanecerem estado de ideias: essas hist6rias, ao contrario, sao ideo-motoras. Nem por isso deixam de ser fabulas, que, comovimos, espiritos criticos aceitarao muitas vezes de fato,

mas que de direito deveriam rejeitar. 0 principio ativo,movente, cujomero estacionarnento num ponto extremoexprimiu-se pela humanidade, exige sem diivida de todas

as especies criadas que se aferrem a vida.Mas, como mos-tramos outrora, embora esse principio de todas as espe-cies globalmente, a maneira de uma arvore que estende

em todas as direcoes galhos terminados em brotos, e 0

dep6sito, na materia, de uma energia livremente criadora,e 0homem ou qualquer ser de mesma significacao- naode mesma forma - que e a razao de ser do desenvolvi-mento inteiro. 0 conjunto poderia ter sidomuito superiorao que e, e e provavelmente 0que acontece em mundosonde a corrente e lancada atraves de uma materia menosrefrataria. Como tambem a corrente poderia nao ter en-contrado nunca uma passagem livre,nem mesmo insufi-ciente, caso este em que [amais teriam side liberadas emnosso planeta a qualldade e a quantidade de energia cria-

dora que a forma humana representa. De qualquer ma-neira, porem, a vida e coisa ao menos tao desejavel, maisdesejavel ate para 0homem que para as outras especies,porque estas sofrem-na comourn efeitoproduzido de pas-sagem pela energia criadora, ao passo que no homem elae 0pr6prio sucesso, por mais incompleto e precario que

seja, desse esforco. Por que, entao, 0hornem nao recupe-raria a confianca que lhe falta ou que a reflexao abalourecuando, para recuperar 0eia, na direcao de onde 0ela

viera? Nao e por meio dainteligencia, OUt ern todo caso,apenas corn a inteligencia, que ele poderia faze-Io: esta

iria antes no sentidoinverso; ela tern uma destinacao es-pecial e, quando se eleva em suas especulacoes, faz-nos

conceber, no maximo, possibilidades, ela nao toea umarealidade. Mas sabemos que ern torno da inteligencia 50-brou uma franja de intuicao, vaga e evanescente. Nao se-

 

164 MEM6RIA EVIDA CONDI<;AO HUMANA E FILOSOFIA 165

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ria possfvel fixa-la, intensifica-la e, sobretudo, completa-la

em acao, uma vez que s6 se tomou pura visao por urn en-

fraquecimento de seu principio e, se assim se pode dizer,

par uma abstracao praticada sobre ela mesma?

Uma alma capaz e digna desse esforco nem mesmo

se perguntaria se a principia com 0qual ela agora se man-

tern em contato e a causa transcendente de todas as coi-sas ou se e apenas sua delegacao terrestre. Bastar-lhe-ia

sentir que se deixa penetrar, sem que sua personalidade

nele seja absorvida, por urn ser que pode imensamente

mais que ela, como a ferro e penetrado pelo fogo que 0

envermelha. Seu apego a vida seria doravante sua inse-

parabilidade desse principio, alegria na alegria, arnor pelo

que e s6 arnor. A sociedade ela se daria par acrescimo,

mas a urna sociedade que seria entao a humanidade in-

teira, amada no arnor pelo que e seu principia. A confian-c;aque a religiao estatica traria para 0homem ver-se-ia

transfigurada: nao haveria mais preocupacao com 0futu-ro e retorno inquieto sobre si mesmo; 0objeto nao valeria

mais materialmente a pena e adquir iria moraImente uma

significacao alta demais. Agora, e de urn desapego de cada

coisa em particular que seria feito 0apego a vida em ge-

ral. Mas dever-se-ia entao ainda falar de religiao? Ouen-

tao, acerca de tudo 0que precedeu, sera que ja era 0caso

de empregar essa palavra? As duas coisas nao diferem a

ponto de se excluirem e de nao poderem ser chamadas

pelo mesmo nome?

Ha, no entanto, muitas razoes para falar de religiao

. em ambos as casos. Primeiro, par mais que 0misticismo- pois e nele que estamos pensando - transporte a alma

para urn outro plano, nem por isso deixa de Ihe assegurar,

de uma forma eminente, a seguranca e a serenidade que

a religiao estatica tern por funcao proporcionar. Mas, so-

bretudo, deve-se considerar que 0misticismo puro e umaessencia rara, que geralmente e encontrado em estado de

diluicao, que nem por isso deixa de comunicar a massa aqual se mistura sua cor e seu perfume, e que devemos dei-

xa-lo corn ela, praticamente inseparavel dela, se quiser-

mos pega-lo ativo, pois foi assim que ele acabou por se

impor ao mundo. Se nos situassemos nesse ponto de vis-ta, perceberiamos uma serie de transicoes e como que di-ferencas de grau ali onde, na verdade, ha uma diferenca

radical de natureza.

M.R,222-5.

72.0 mistico

Pois 0arnor que 0consome nao e mais simplesmen-

te 0arnor de urn homem por Deus, e 0arnor de Deus portodos as homens. Atraves de Deus, por meio de Deus,

ele ama toda a humanidade com urn divino arnor. Nao ea fraternidade que os filosofos recomendaram em nome

da razao, argumentando que todos os homens participarn

originalmente de uma mesma essencia racional: diante de

urn ideal tao nobre nos inclinaremos com respeito; esfor-

car-nos-emos por realiza-lo se nao for incomodo demais

para 0ndividuo e para a comunidade; nao nos ligaremos

a ele corn paixao, A nao ser que tenhamos respirado em

algum canto de nossa civilizacao 0perfume inebriante

que 0misticismo ali deixou. Teriarn as pr6prios fil6sofosproposto com tanta certeza 0principio, tao poueo confor- .

me a experiencia corrente, da igual participacao de todos

os homens numa essencia superior, se nao tivesse havido

misticos para abracar a humanidade inteira nurn iinico e

 

166 MEMORIA EVIDA CONDlc :AO Hl lMANA E F lLOSOF IA 167

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indivisivel arnor? Portanto, nao se trata aqui da fratemi-dade cuja ideia foi construida para fazer dela urn ideal.Tampouco se trata da intensificacao de urna simpatia ina-

ta do homem pelo hornern. Pode-se alias indagar se talinstinto algurna vez existiu salvo na imaginacao dos filo-sofos, onde surgiu por raz5es de simetria. Familia, patria

e humanidade aparecendo como circulos cada vez maio-res, pensou-se que 0homem deveria amar naturalmentea hurnanidade como se ama a patria e a familia, quandona realidade 0agrupamento familiar e 0agrupamento so-cial sao os unicos que foram queridos pela natureza, osiinicos aos quais correspondem instintos, e os instintossociais levariam as sociedades a Iutar umas contra as ou-tras bern mais do que a se unir para se constituir efetiva-mente em humanidade. 0 sentimento familiar e socialpodera, no maximo, superabundar acidentalmente e serempregado para hide suas fronteiras naturais, por luxe ou

por diversao: isso nunca ira multo longe. Bern diferente eo amor mistico pela humanidade. Ele nao prolonga urninstinto, nao deriva de uma ideia, Nao e algo nem sensi-vel nem racional. E ambas as coisas implicitamente e bernmais efetivamente. Porque tal arnor esta na propria raizda sensibilidade e da razao, bern como do resto das coisas.Coincidindo com 0arnor de Deus por sua obra, arnor quefez tudo, confi~a a quem soubesse interroga-lo 0segre-do da criacao.E de essencia bern rnais metafisica que mo-

ral. Gostaria, com a ajuda de Deus, de concluir a criacaoda especie hurnana e fazer da humanidade 0que ela teria

sido imediatamente se tivesse podido se constituir defini-tivamente sem a ajuda do proprio hornem. Ou, para em-pregar palavras que dizem, como veremos, a mesma coi-sa em outra lingua: sua direcao e a mesma do ela de vida;ele e esse ela mesmo, comunicado integralmente a ho-

mens privilegiados que gostariam de imprimi -10 entaoa humanidade inteira e, por urna contradicao realizada,

transformar em esforco eriador essa coisa criada que euma especie, fazer urn movirnento do que e , par defini-c;ao,uma parada.

Conseguira ele? Se0misticismo deve transformar

a humanidade, s6 podera faze-lo transmitindo poueo apouco, lentamente, uma parte dele mesmo. Os misticospercebem-no claramente. 0 grande obstaculo com quetoparao sera aquele que impediu a criacao de uma hu-manidade divina. 0 homem deve ganhar seu pao como suor de seu rosto: em outras palavras, ahumanidade euma especie animal, submetida como tal a lei que regeo mundo animal e que condena 0vivo a comer 0vivo.Uma vez que, entao, seu alimento e disputado pela natu-reza em geral e por seus congeneres, ele tern de empre-gar necessariamente seu esforco em consegui-Io, sua in-

teligencia e justamente feita para lhe fomecer as annas eas ferramentas tendo em vista essa luta e esse trabalho.Como, nessas condicoes, a humanidade voltaria para 0ceu urna atencao essencialmente fixada na terra? Seissofor possfvel.so 0sera pelo ernprego simultaneo ou suces-sivode dois rnetodos muito diferentes. 0 primeiro consis-tiria em intensificar tanto 0 trabalho intelectual, em levara inteligencia tao mais longe do que a natureza quis paraela que a Simples ferramenta cederia Iugar a urn imensosistema de maquinas capazes de liberar a atividade huma-

na, essa liberacao sendo, alias,consolidada por uma orga-

nizacao politica e social que assegurasse ao maquinismosuaverdadeira destinacao. Meio perigoso, pois a mecani-cal ao se desenvolver, podera se voltar contra a mistica:ate mesmo, e em aparente reacao contra esta que a me-canica se desenvolvera 0mais completamente. Mas e pre-

 

168 M EM OR IA E VIDA CONDI<;:A.O HlIlvfANA E F I LOSOF IA 169

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ciso correr alguns riscos: uma atividade de ordem supe-

rior, que necessita de uma atividade mais baixa, deverasuscita-la ou, em todo caso, deixa-la funcionar, com a pos-

sibilidade de dela se defender se for preciso; a experiencia

mostra que se, de duas tendencies contrarias mas com-

plementares, uma cresceu a ponto de querer ocupar todo

o espaco, a outra nao tera do que reclamar con tanto quetenha conseguido se conservar minimamente: sua vez

chegara e, entao, ira se beneficiar de tudo 0que foi feito

sem ela, de tudo, ate, que foi feito vigorosamente apenas

contra ela. Seja como for, esse meio s6 iria poder ser uti-

lizado bern mais tarde e, nesse entretempo, havia urn me-

todo totalmente diferente a seguir. Consistia em nao so-

nhar para 0ela rnfstico urna propagacao geral imediata,

evidentemente impossivel, e sim comunica-lo, ainda que

ja enfraquecido, a urn pequeno mimero de privilegiados

que formariam juntos uma sociedade espiritual; as socie-

dades desse genero poderiam propagar-se; cada uma de-las, por meio daqueles de seus membros excepcionalmen-

te bem dotados, darla origem a uma ou varias outras; as-

sim se conservaria, assim teria continuidade 0ela ate 0dia

em que uma mudanca profunda das condicoes mareriais

impostas a humanidade pela natureza possibilitasse, do

lade espiritual, uma transformacao radical. Foi esse 0me-

todo que os grandes mfsticos seguiram. Poi por necessi-

dade e porque nao podiam fazer de outro modo que des-

penderam sua energia superabundante sobretudo em

fundar conventos ou ordens religiosas. Nao tinham de

. olhar mais adiante por enquanto. 0 ela de arnor que oslevava a elevar a humanidade ate Deus e conduir a cria-

c ; a o divina s6 podia at ingir seu objetivo, aos olhos deles,

com a ajuda de Deus, de quem eram os instrumentos.

Todo 0seu esforco deveria portanto concentrar-se numa

t

I1I;

tarefa muito grande, muito dilicil, mas limitada. Outros

esforcos virao, outros, alias, ja tinham vindo; todos seriam

convergentes, ja que Deus os unificava.

M.R,247-50.

c) Conclusao

7 3. R e al id ad e d o t em p o

...A sucessao existe, tenho consciencia disso, e urnfato. Quando urnprocesso fisico realiza-se diante de meus

olhos, nao depende de minha percepcao ou de minha in-

clinacaoacelera-lo ou retarda-lo. 0 que importa para 0

fisico e 0namero de unidades de duracao que 0processo

preenche: nao precisa se preocupar com as pr6pdas uni-

dades, e e por isso que os estados sucessivos do mundo

poderiam ser desdobrados de golpe no espaco .sem que

sua ciencia mudasse por isso e sem que ele deixasse de

falar do tempo. Mas, para nos, seres conscientes, sao as

unidades que importam, pois Iiao contamos extremida-

des de intervalo, sentimos e vivemos os pr6prios inter-

valos. Acontece que temos consciencia desses intervalos

como intervalos detenninados. Volto sempre ao meu copo

de agua com aciicar: por que preciso esperar 0acucar der-

reter? Se a duracao do fenomeno e relativa para 0ffsico, ja

que se reduz a um certo niimero de unidades de .tempo e

as unidades elas mesmas podem ser o que se quiser, essa

duracao e um absoluto para minha consciencia, pois coin-ode com um certo grau de impaciencia que e, ele, rigoro-

samente determinado. De onde vem essa determinacao?

Q que me obriga a esperar e a esperar durante urn certo

comprimento de duracao psico16gica que se impoe, com

 

170MEM6RIA EVIDA CONDI<;4.0 HUMANA E FlLOSOFIA 171

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rela~a~ ao qual nada posso fazer? Se a sucessao, enquan-to distinta da simples justaposicao, nao tern eficacia real,se0tempo nao e uma especie de forca,par que a univer-so desenrola seus estados sucessivos com uma velocida-de que, aos olhos de minha consciencia, e urn verdadei-ro absoluto? Por que com essa velocidade determinada e

nao com qualquer outra? Por que nao com uma velocida-d: in~ita? De onde vern, em outras palavras, que tudonao seJadado de urn 56golpe, como na pelicula do cine-mat6grafo? Quanta mais aprofundo esse ponto, mais meparece que, se 0porvir esta condenado a suceder ao pre-sente em vez de ser dado ao seu lado, e porque nfio estatotalmente determinado no momento presente, e porque,se0t:mpo ocupado por essa sucessao e algo diferente deurn. numero, se tern, para a consciencia que nele esta ins-talada, urn valor e uma realidade absolutos, e porque nelese cn~. s.emcessaf;certamente nfioem tal au qual siste-m~ artificialmenta isolado, como urn copo de agua com

acucar, mas no todo concreto ao qual esse sistema ade-ref a imprevisivel e0novo. Essa duracao pode nao ser urnatributo da propria materia, e sim da Vida que vai no seuco~tr~uxo: os dois movimentos nern por isso sao menossolidarios urn do outro. A d u ra ca o d o u ni ve rs o c on fu n de -s e

p or ta nto co m a la titu de d e c ria dio q ue n el e p od e o co rre r.

E.C.,338-9.

Com efeito,0misterio que paira sobre a existencia douniverso ~ecorre, em grande parte, do fato de querermosque sua genese tenha se dado de urn s6 golpe, ou entaoque toda materia seja etema. Quer se falede criacao,que;

se postule uma materia incriada, em ambos os casos e atotalidade do universo que e posta em questao. Exami-nando mais profundamente esse habito do espfrito, neleencontrariamos ...a ideia,comurn aosmaterialistas e a seusadversaries, de que nao ha duracao realmente atuante ede que 0absoluto - materia ou espirito - nao poderia

instalar-se no tempo concreto, no tempo que sentimos sero proprio tecido de nossa vida: donde resultaria que tudoesta dado de urna vez par todas e que e preciso postulardesde sempre, ou a propria multiplicidade material, ou0ate criador dessa multiplicidade, dado em bloeo na essen-ciadivina.Uma vez desenraizado esse preconceito, a ideiade criacao ficamais clara,pois se eonfunde com a de cres-cimento. Mas entao nao e mais do universo em sua tota-lidade que deveremos falar...

...Tudoe obscuro na ideia de criacao sepensamos emcoisas que seriam criadas e em uma coisa que eria, comose faz de habito, como 0entendimento nao pode se im-

pedir de fazer... Mas coisas e estados sao apenas vistasque nos so espirito toma do porvir. Nao existem coisas,existem apenas ac;6es.Mais particulannente, se conside-ro °mundo em que vivemos, descubro que a evolucao au-tomatica e rigorosamente determinada desse todo bernamarrado e a~aoque se desfaz, e que as formas imprevis-tas que a vida nele recorta, formas capazes de se prolon-garem a si mesmas ern movimentos imprevistos, repre-sentam ac;aoque se faz.Ora, tenho todos osmotivos paracrer que os outros mundos sao analogos ao nosso, que ascoisas neles ocorrem da mesma maneira. E sei que eles

nao se constituiram todos aomesmo tempo, ja que a ob-servacaome mostra, ainda hoje, nebulosas se coneentran-do. Se, par todaparte, e a mesma especie de acao que serealiza, seja desfazendo-se, seja procurando refazer-se,simplesmente exprimo essa provavel similitude quando

 

172.MEMORIA EVIDA CONDlc;AO HUMANA EFILOSOFIA 1 7 3

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falo de urn centro de onde os mundos jorrariam como os

foguetes de urn imenso buque - desde que eu, todavia,

nao considere esse centro uma coisa, e sim uma continui-

dade de jorro. Deus, assim definido, nada tern de ja pron-

to; e vida incessante, ac;ao, liberdade. A criacao, assim

concebida, nao e urn misterio, experimentamo-Ia em n6s

mesmos sempre que agimos livremente. Que novas coi-sas possam se aerescentar as coisas que existem e algo

absurdo, sem dtivida nenhuma, porque a coisa resulta de

uma solidificacao operada por nosso entendimento e por-

que nunca ha outras coisas alem daquelas que a entendi-

mento constituiu. Falar de coisas que se criarn equivaleria

portanto a dizer que 0entendimento se da mais do que

aquilo que ele se -da - afirmacao contradit6ria consigo

mesma, represenracao vazia e va. Mas que a a~ao se avo-lume ao avancar, que erie a medida que progride e 0que

cada linde nos constata quando se ve agir. As coisas se

constituem pelo corte Instantaneo que 0entendirnentopratica, nurn momento dado, num fluxo desse genero, e

o que e misterioso quando comparamos entre si os cortes

torna-se claro quando nos remetemos ao fluxo. Mesmo

a~ m~dalidades cia ac;a.ocriadora que prossegue na orga-

ruzacao das form as vivas simplificam -se singularmente

quando sao tomadas par esse vies. Diante da comple-

xidade de urn organismo e a multidao quase infinita de

analises e sinteses entrelacedas que ela pressupos, nosso

entendimento recua desconcertado. Custa-nos erer que 0

puro e simples jogo das forcas ffsicas e quimicas possa fa-

-zer essa maravilha. R se e uma ciencia profunda que estaem operacao, como compreender a influencia exercida

sobre a materia sem forma par essa forma sern materia?

Mas a dificuldade nasce do fato de concebermos estatica-. ,mente, particu1as materiais ja prontas, justapostas urnas

JI

as outras, e, estaticamente tambern, uma causa exterior

que aplicaria nelas urna organizacao cientifica. Na realida-

de, a vida e urn movimento, a materialidade e 0movimen-

to inverso e cada urn desses dois movimentos e simples,

a materia que forma urn mundo sendo urn £luxoindiviso,

e indivisa tambem sendo a vida que a atravessa recor-

tando nela seres vivos. Dessas duas correntes, a segundacontraria a primeira, mas a primeira obtern assim mesmo

algo da segunda: dai resulta urn modu s v iv e nd i entre eIas,

que e precisamente a organizacao. Essa organizacao ado-

ta para nossos sentidos e para nossa inteligencia uma

forma de partes inteiramente exteriores a partes no tempo

e no espaco. Nao so fechamos os olhos para a unidade

do ela que, atravessando as geracoes, liga os individuos

aos individuos, as especies as especies e faz da serie in-

teira dos vivos uma iinica e imensa onda correndo sobre

a materia, mas cada indivfduo ele proprio nos aparece

como urn agregado, agregado de molecules e agregado defatos. A razao disso estaria na estrutura de nossa inteli-

gencia, feita para agir de fora sobre a materia e que 56 0

consegue praticando cortes instantaneos no fluxo do real,

cada urn dos quais se torna, ern sua fixidez, indefinida-

mente decomponiveL Ao perceber, num organismo, ape-

nas partes exteriores a partes, 0entendimento s6 pode

escolher entre dois sistemas de explicacao: ou tomar a

organizacao infinitamente cornplicada (e, desse modo, in-

finitamente cientifica) pO£urna reuniao fortuita, ou reme-

te-la a influencia incompreensivel de uma forca exterior

que teria agrupado seus elementos. Mas essa complica-~ao e obra do entendimento, essa incompreensibilidade

tambem e obra dele. Procuremos ver, nao mais com os

olhos apenas da inteligencia, que 50 apreende 0todo fei-

to e que olha de fora, mas com 0espfrito, ou seja, essa fa-

 

174 MEMORIA EVlDA

I1\

\CONDIC;Ao H UM AN A E FILOSOFIA 175

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cu1dade de ver que e irnanente a facuIdade de agir e que

jorra, de certo modo, da torcao do querer sobre si mesmo.

Tudo voltara a se por em movimento e tudo se resolvera

em movimento. L a onde 0entendimento, exercendo-se

sobre a imagem supostamente fixa da a~ao em andamen-

to, mostrava-nos partes infinitamente rmiltiplas e uma

ordem infinitamente cientffica, adivinharemos urn proces-so simples, urna a~ao que se faz atraves de urna a~ao do

mesmo tipo que se desfaz, algo como a caminho que 0Ul-

timo foguete do fogo de artiffcio abre entre as destrocosdos foguetes apagados.

E.C, 241-2; 249-51.

75 . D u ra dio e l iberdade

E portanto uma psicologia grosseira, vitima dos en-godos da linguagem, aquela que nos mostra a alma deter-

minada par uma simpatia, uma aversao ou urn 6dio, bern

como por tantas outras forcas que pesam sobre ela. Cada

urn desses sentimentos, desde que tenha atingido uma

profundidade suficiente, representa a alma inteira, no sen-

tide de que todo 0conteiido da alma se reflete em cada

urn deles. Dizer que a alma se deterrnina sob a influen-

cia de qualquer urn desses sentimentos e portanto re-

conheeer que ela determina a si propria. 0 associacio-

nista reduz 0eu a urn agregado de fates de consciencia,

.sensacoes, sentimentos e ideias, Mas, caso nao veja nes-

ses divers os estados nada mais que 0 que 0nome deles

exprime, caso so conserve deles seu aspecto impessoal,

podera justapo-los indefinidamente sem obter outra coi-

sa alem de urn eu fantasma, a sombra do eu projetando-se

t

.•

no espaco, Pelo contrario, caso tome esses estados psico-logicos com a coloracao particular de que se revestem

numa determinada pessoa e que provem, para cada es-

tado, do reflexo de todos as outros, entao deixa de ser

necessario associar varies fatos de consciencia para re-

constituir a pessoa: ela esta inteira num iinico deles, con-

tanto que se saiba escolhe-Io, E a manifestacao exteriordesse estado interno sera precisamente 0que se chama

urn ate livre, ja que seu iinico autor tera sido 0eu, ja.que

exprimira 0eu inteiro. Nesse sentido, a liberdade nao

apresenta 0carater absoluto que 0espiritualismo as ve-

zes lhe confere; admite graus. - Pois todos os estados de

consciencia nao se misturam a seus congeneres como as

gotas de chuva a agua do lago. 0 eu, na medida em que

percebe urn espa~o homogeneo, apresenta uma certa su-

perffcie, e sabre essa superffcie poderao se formar e flutuar

vegetacoes independentes. Assim, uma sugestao recebida

em estado de hipnotismo nao se incorpora a massa dosfatos de consciencia, mas, dotada de umavitalidade pro-

pria, substituira a propria pes soa quando chegar a hora.

Umacolera violenta provocada por alguma circunstancia

acidental, urn vicio hereditario que emerge de repente das

profundezas obscuras do organismo para a supeclicie da

consciencia agirao mais ou menos como uma sugestao

hipn6tica. Ao lade desses tennos independentes, encon-

trarfamos series mais complexas, cujos elementos, em-

bora se penetrem entre si, nunca chegam a se fundir per-

feitamente na massa compacta do eu. Tal e 0conjunto de

sentimentos e de ideias que provem de uma educacao malcompreendida, aquela que se volta para a memoria e nao

para 0uizo, Forma -se assim, no proprio seio do eu fun-

damental, umeu parasita que avancara continuamente

sobre 0outro. Muitos vivem assim e morrem sem ter co-

 

176MEMORIA EVIDA CONDlc;J, .O HUMANA E FILOSOFIA 177

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nhecido a verdadeira liberdade. Mas a sugestao se torna-

r ia persuasao se 0eu inteiro a assimilasse; a paixao, mes-

mo stibita, nao apresentaria mais 0mesmo carater fatal se

nela se refletisse, tal como na indignacao de Alceste, toda

a historia da pessoa; e a mais autoritaria das educacoes

nao cercearia nem urn pouco nossa liberdade se nos trans-

mitisse apenas ideias e sentirnentas capazes de impreg-nar a alma inteira. E da alma inteira, com efeita, que a de-

cisao livre emana; e 0 ato sera tanto mais livre quanta

mais a serie dinamica a qual esta vinculada tender a se

identificar com a eu fundamental.

D.I. , 124-6.

7 6. V id a e l ib e rd ad e

Consciencia e materialidade apresentam-se portantocomo fannas de existencia radicalmente diferentes, anta-

ganistas ate, que adotam urn modu s v iv end i e,bern ou mal,

se acertam entre si.A materia e necessidade, aconscien-

cia e liberdade; mas, apesar de elas se oparem uma a au-tra, a vida encontra meios de reconctlia-las. Isso porque a

vida e precisamente a liberdade inserindo-se na necessi-

dade e transformando-a em proveito proprio. Ela seria

impossfvel se 0determinismo ao qual a materia obedece

nao pudesse relaxar seu rigor. Mas suponha que em cer-

tos momentos, em certos pontas, a materia ofereca uma

certa elasticidade, ali se instalara a consciencia, Insta-

lar-se-a fazendo-se bern pequena; depois, uma vez esta-

belecida, i r a se dilatar, expandir sua parte e acabara por

obter tuda, porque dispoe do tempo e porque a mais leve

quantidade de indeterminacao, somando-se indefinida-

· . · · . · " , I · · · · · , · I. .• . " •. .

., .

;:

i~

mente a si me sma, dara tanta liberdade quanta se quiser.

- Mas reencontraremos essa mesma conclusao em outras

linhas de fatos, que no-la apresentarao cam mais rigor.

Com efeito, se investigarmos como urn carpo vivopro-

cede para executar movimentos, deseobriremos que seu

rnetodo e sernpre 0mesmo. Consiste em utilizar eertas

substancias que poderiamos dizer explosivas e que, pare-cidas com p6lvora de canhao, estao esperanda apenas

urna faisca para estourar. Refire-me aos alirnentos, mais

particu1annente a s substancias ternarias - hidratos de car-bona e gorduras. Uma soma consideravel de energia po-

tencial ali esta acumulada, prestes a se transformar em

movimento. Essa energia foi lenta e gradualmente em-

prestada do sol pelas plantas; e 0animal que se nutre de

uma planta, ou de urn animal que se nutriu de uma plan-

tal ou de urn animal que se nutriu de urn animal que se

nutriu de Ulnaplanta etc., simplesmente faz passar para 0

seu corpo urn explosive que a vida fabrieou armazenandoenergia solar . Quando ele executa urn movimento e por-

que libera a energia assim aprisionada, para isso, precisa

apenas toear nurn disparador, trisear a gatilho de uma pis-

tola sem atrito, chamar a faisea: 0explosivo detona e na

direcao esco1hida 0movimenta se realiza. Se os primeiros

seres vivos osci1aram entre a vida vegetal e a vida animal

foi porque a vida, nos seus primordios, estava encarrega-

da a urn so tempo de fabricar 0explosive e de utiliza-Io

para movimentos. A medida que vegetais e animais se di-ferenciavam, a vida cindia-se em dois reinos, separanda

assim uma da outra as duas funcoes primitivamente reu-nidas. Num preocupava-se sabretudo em fabriear 0explo-

sivo, no outro, em faze-lo detonar. Mas, quer a eonside-

remos no comeco ou no fun de sua evolucao, a vida em

seu conjunto e sempre urn duplo trabalho de acumulacao

 

178MEMORIA E VIDA

..~ . . . ..

, ; , , - - .

cONDrc;Ao HUMANA E FILOSOFIA 179

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gradual e ~~ gasto brusco: para ela, t rata-se de conseguir

que a matena, par uma operacao lenta e diffcit.annazene

uma ~nergia de .potencia que se tornara de urn 56 golpe

energia de movimento. Ora, como procederia de outra

forma umacausa livre, ineapaz de romper a necessidade

a qual a materia esta submetida, eapaz no entanto de fle-

ti-la, e que gostaria, com a pequenfssima influencia deque disp6e sobre a materia, de obter dela, numa direcao

cada vez mais bern escolhida, movimentos cada vez maispotentes? Proeederia exatamente dessa maneira. Esfor-

car-se-ia por ter apenas de fazer funcionar urn disparador

ou forneeer uma fafsca, ut ilizar iristantaneamente uma

energia que a materia teria acumulado durante todo 0

tempo que tivesse sido preciso.

E.5., 13-5.

7 7. M e m or ia e l ib er da de

Ao mesmo tempo em que nossa percepcao atual e,

por assim dizer, instantanea efetua essa divisao da mate-

ria em objetos independentes, nossa memoria solidifica

em qualidades sensiveis 0escoamento continuo das coi-

sas. Prolonga 0passado no presente, porque nossa ac;ao

disp<:ni do porvir na exata proporcao em que nossa per-

cepcao, avolumada pela memoria, tiver contraido 0pass a_

do. Responder a uma acao sofrida com uma reacao ime-

diata que se ajusta ao seu ritmo e se prolonga na mesma

duracao, estar no presente, e num presente que recomeca

sem cessar, eis a lei fundamental da materia: nisso consis-

t~ a necessi~ade. Caso haja acoes l iores ou peIo menos par-

cialmente mdetenninadas, elas 56 podem pertencer a se-

1

Iij

i

res capazes de fixar , de tempos em tempos, 0devir sobre

o qual seu proprio devir se aplica, de solidifica-lo em mo-

mentos distintos, de condensar assim sua materia e, as-

similando-a, digeri -la em movirnentos de reacao que pas-

sarao atraves das malhas da necessidade natural. A ten-

sao mais ou menos alta da duracao deles, que exprime,

no fundo, sua maior ou menor intensidade de vida, de-termina assim tanto a forca de concentracao de sua per-

cepcao quanta 0grau de sua liberdade. A independenda

de sua ac;aosobre a materia ambiente afirma-se cada vez

mais a meclida que eles se libertam mais do ritmo segun-

do 0qual essa materia se escoa. De sorte que as qualida-

des sensfveis, tal como figuram na nossa percepcao acres-

cida de memoria, sao de fato os momentos sucessivos

obtidos pela solidificacao do real. Mas, para distinguir es-

ses rnomentos e tambern para liga -los por urn fio que

seja comum a nossa propria existencia e a das coisas, so-mos forcados a imaginar urn esquema abstrato da suces-

sao em geral, urn meio homogeneo e indiferente que seja

para 0escoarnento da materia, no sentido do comprimen-

to, 0 que 0espac;o e no sentido da largura: nisso consiste

o tempo homogeneo, Espaco homogeneo e tempo ho-

mogeneo nao sao portanto nem propriedades das coisas

nem condicoes essenciais de nossa faculdade de conhe-

ce-las: exprimem, sob uma forma abstrata, 0 duplo tra-

balho de solidificacao e de divisao a que submetemos a

continuidade movente do real para nela garantirrnos pon-

tos de apoio, para nela fixannos centros de operacao, para

nela introduzirmos, enfim, verdadeiras mudancas: sao os

esquemas de nossa ar;f io sobre a materia.

M,M,,236-7.

 

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fNDlCE REMISSNO

Atencao, 73;

- a vida, 71;

- e percepcao, 57-9.Ati tude, 48, 59, 67, 73, 76.

Automatismo, 64-5, 78-80,

125-6, 133-4.

Nao citamos as palavrasduraplo, in tui~i io , memoria e vida , por-

que estao presentes na maioria d~steXtos .

A

Absolute, 6, 18, 28.

At;ao (pratica), 27-8;- e cerebro, 70, 79-80;

- e intel igencia, 137-40;

- e memoria, 48, 63-5;

- e percepcao, 80-3, 84;

- e visao, 65.

- virtual e real, 84-5;

Adaptacao, 117-9.

Meto,85-6.

Amnesia, Afasia, 56, 72-3, 76.

Amor, 150, 165-8.

Analise, 10, 24, 41;

- e sintese, 33-5;- inf inites imal, 43.

Animal, 97-9.

Associacao (de ide ia s ) , 49, 55,

62-3.

C

Carater, 48, 97.

Causalidade, 69-70, 109-10,

121,128.

Cerebra, 70-80, 134-5.

Gencia,37-45.

Comico, 125-6.

Conscienda, 11, 39, 48, 63,88-91, 133-5, 175.

Contingencia, 111.

Continuidade,

Descontinuidade, 3, 14-6;

 

182 MEMORIA E \-7DA iNDIeE REMISSNO 183

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- e materia, 138;

- e memoria, 60;

- e percepcao, 32, 89;

- e vida, 98-9.

Contracao, Distensao,

Relaxamento, 8, 32-3,53-5,

66-7,88,128-31.

Criacao, 8, 15, 30, 131, 133-5,160-1,170-4;

- dos problemas, 19.

D

Desordem, Ordem, 21-5.

Deus, 166-7.

Dialetica, 142, 146.

Dicotomia, 113.

Diferenciacao, Dissociacao,

Divergencia, 44, 96-101,106-16.

Discernimento, 84.

Divisibilidade, Indivisibilidade. '8-9, 12-6, 19-20, 32.

E

Empirismo, 148-50.·

Escolha, 79, 100, 111, 133.

Esforco, 69-70, 145-7.

Espaco, 11-4, 17,54,156.

Especie, 119,124.

Esquema, 60.

Etemidade, t o . 41-2, 141-2.Eu, 5, 175.

Evolucdo, 95-9, 103-7, 120-5,128-31.

Existencia, 1,21- 2, 26-7, 53.

Experiencia,39.

~ensao,15,54, 128.

F

Fabulacao, 162-3.

Fun~ao, Orgao, 109-11, 118,

127.

Frenesi, 114.

G

Graus, 33-37,52,55-9, Ill,119, 131, 175.

H

Harmonia, 119, 122-5.

Heterogeneidade,

Homogeneidade, 4-5, 11-4,

32,179.

Hist6ria, 111-6.

Homem ( g ra n de ) , 1 6 0 -1 .

I

Ideia, 40-1, 60;- abstrata e geral, 35,65-7.

C riiic a d as - 140-1.

Ilusao, 24, 29-30.

Imagem:

- e percepcao, 80-6;

- e esquema, 67-9;

- e lembranca, 50-9.

Inconsciente, 48, 63.

Instante, 31, 41-2, 53.

Instinto, 99-101, 158-9.

Instrumento, 100, 156-7.

Inteligencia, 24, 53,99-10l121,137-40, 153-9, 162.

Intensidade,25; cf . Graus.

Inversao, 42-1, 53, 128-31,

153-9.

L

Lembranca:

- e cerebro, 74-6;

- e imagem, 49, 60-3;

- e p er ce pc ao , 50-2, 59, 61-

3,86-7;

- e sonho, 63-4.

Liberdade, 52-3, 133-5, 145,

174-9.

Limitacao, 99-100, 122.

Linguagem, 19, 135,156-7.

Disturbios da - 74-7.

M

Materia. 53-4;

- bruta e organizada, 8;

- e ciencia, 38;

- e espfrito, 70-1;

- e inteligencia, 137-40;

- e p er ce pc ao , 31-2, 88-9;- e vida, 96-7, 129-30.

Materialidade:

- e espiritualidade, 10, 53;

- e vida, 122-3, 127.

Mecanicismo:

- e finalismo, 109, 117-25,

126-8, 134-5.

Misticismo, 152-3, 164-5, 168.

Movimento, Repouso, 14-9,

138-42,144-5.

Mudanca, 1-2, 11, 17, 41-2,

144.

Multiplicidade, 5, 12-3.

N

Negativo; cf.Inversao.

Nuancas, Matizes ; cf. Graus.

oObjeto, Sujei to , 32-33, 89.

Obrigac;ao,158-9.

Olho, Visao, 109-11, 118, 127.

Organismo, 96, 117-8, 172;

- e maquina, 126-7;

- e organizacao, 99-100.

- e orgaos, 107-9;Orgao: d. Puncao.

p

Paralelismo, 75-8.

Passado, Presente, 47-9, 52-3,

90.

Percepcao:

- e acao, 80-3;

- e atencao, 57-9;

- e filosofia, 142-5, 147-8;

- e lembranca, 50-2, 61-3,

86-7;- e mater ia, 32, 88-9;

- e sensacao, 86;

- e sistema nervoso, 82-3.

Planta, 97-9.

Porvir, 120, 133 176.

PassIvel,30-31.

Problema, 19;

Falso -, 21;

- e vida, 101.

Progresso, 112-3, 116;

- Estado e -, 2, 12, 14, 53-4,60,66,123.

Provavel, 150-2.

QQualidade, Quantidade, 4,

12-3,18,25,176.

 

184MEMORIA E VIDA

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R

Reconhecimenta, 73.

Reflexo, 78.

Religiao, 103, 161-4.

Repeti~ao:

- ffsi ca, 10, 39, 89;

- psiquica, 55, 58-9, 66.

Ritmo, 87-9, 123.

sSchema,67-70.

SeT,Nada,21-5, 26-9,140-1.

Semelhanca, 62, 69;

- e vida, 107-9.

Sensacao, 25-6, 51, 86.

Sensariomotricidade, 65-7,

78-80,92.

Sentimento, 174-5.

Sfmbolo, 43-4.

Sintese; cf, Analise.

Sistema nervoso, 78-9, 82-4,99,133.

Sistemas:

- isolaveis, 7;

- naturals , 8.

SCKiedade, 101, 157-9, 164-5.

Sonho, 4, 54, 63-4.

Substanci.al,17.

Sucessao, 6-7, 11, 169-70.

T'Iendencia, 48, 96-7, 111-6.

'Iensao, 35, 55-9, 72, 128-31.

Todo,6-7;

- e memoria, 58;

- e nada, 26-9.

- e partes, 8-9, 19, 107-8,

128;

U

Universal Universal, 8, 35-7.

V

Varia~ao, 104-7; ci.Mudan~a.- Virtual, 48-9, 58, 70, 84.

Vontade, 78, 145-6, 161.