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 P  ARTE  I Inquisição em África Organização de FRANCISCO BETHENCOURT e PHILIP HAVIK. Colóquio realizado no Centro Cultural Gulbenkian, em Paris, no dia 2 de Junho de 2003. Estudos

Bettencourt, Francisco

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  • PARTE IInquisio em frica

    Organizao de FRANCISCO BETHENCOURT e PHILIP HAVIK.Colquio realizado no Centro Cultural Gulbenkian,

    em Paris, no dia 2 de Junho de 2003.

    Estudos

  • A actividade da Inquisio mal conhecida,

    devido inexistncia de um tribunal prprio.

    Seria necessrio o levantamento exaustivode denncias e processos,

    para verificar a enormegama de prticas

    e crenas heterodoxas,nomeadamente de

    portugueses influenciadospelo Islamismo no Nortede frica ou praticantes

    do Judasmo nos rios da Guin, bem como

    de africanos convertidos,acusados de magia

    e feitiaria, que regressavam s suas religies.

    Francisco BethencourtFaculdade de Cincias Sociaise Humanas da Universidade

    Nova de Lisboa

    Philip Havikrea de Sociedades

    e Culturas Tropicais (SOC)Instituto de Investigao

    Cientfica Tropical (IICT)

    I N Q U I S I O E M F R I C A

    A frica e a Inquisioportuguesa:

    novas perspectivas

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES Ano III, 2004 / n. 5/6 21-27 21

    AInquisio desenvolveu a sua actividade em quatrocontinentes Europa, Amrica, sia e frica. verdadeque a Europa do Sul (pennsulas Ibrica e Itlica) cons-tituiu o centro dessa actividade, dada a densa rede de tri-bunais e o elevado volume de processos contra heresiasinstrudos entre os sculos XVI e XVIII. Mas o tribunalda f seguiu a expanso dos pases ibricos, enraizando--se nos territrios de outros continentes no seguimentodas misses de franciscanos, dominicanos, jesutas,agostinhos, capuchinhos ou carmelitas e no quadro dacriao de estruturas eclesisticas estveis parquias,dioceses, tribunais.

    J nas Antilhas, em 1517, encontramos uma estru-tura mista entre o tribunal eclesistico e a Inquisiopara a perseguio dos delitos de heresia, mas em1569-1570 que so criados os tribunais do Mxico e deLima, rede completada pelo tribunal de Cartagena de n-dias em 1610. Do lado portugus, a criao do tribunalde Goa em 1560, com jurisdio sobre todo o Estado dandia (que compreendia os estabelecimentos portu-gueses da costa oriental de frica a Macau) no teveseguimento nas outras regies do imprio. A conquistado Brasil, por exemplo, no imps a criao de um tri-bunal da Inquisio, ao contrrio do que se passou naAmrica espanhola.

    O Atlntico Sul portugus, estruturado pela colo-nizao do Brasil e pelo trfico de escravos para a Am-rica, regio onde se concentrou a esmagadora maioria da

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    FRANCISCO BETHENCOURT / PHILIP HAVIK

    emigrao portuguesa dos sculos XVII e XVIII, dependia do controlo distante do tri-bunal de Lisboa, estabelecido logo a seguir fundao da Inquisio em Portugal em15361.

    As diferenas organizacionais entre os dois imprios hispnicos esto ligadas adiferenas polticas. Na Amrica espanhola a criao dos tribunais da Inquisio foiprecedida por um diploma de Filipe II onde proibia a perseguio de convertidos deorigem indgena. As comunidades nativas ficaram de certa maneira protegidas: du-rante todo o perodo de funcionamento dos tribunais, o alvo foi sempre o desvio reli-gioso no seio das comunidades de origem espanhola. No caso do tribunal de Goa noencontramos diplomas comparveis e a perseguio transferiu-se rapidamente doscristos novos de origem judaica (o primeiro alvo declarado, que concentrou asatenes dos inquisidores em 1560-1580 e de novo em 1630-1640) para os hindus emuulmanos convertidos. O volume de processos tambm radicalmente diferente:o nmero de 2000 por tribunal na Amrica espanhola contrasta com os 14000 na Inqui-sio de Goa, um nmero esmagador dadas as dimenses do Estado da ndia e dapopulao cristianizada. As colnias portuguesas no Atlntico Sul eram controladas,do ponto de vista da ortodoxia religiosa, pelo tribunal da Inquisio de Lisboa, comoj referimos. verdade que a entrada da Inquisio no espao atlntico foi tardia, pon-tuada pelas visitas de inspeco aos arquiplagos da Madeira e dos Aores em 1575--1576, 1591-1593 e 1618-1619, a Angola em 1596-1598, ao Brasil em 1591-1595 e 1618--1620. A documentao respeitante s visitas da Inquisio de Goa aos territrios doEstado da ndia, em 1596, 1610, 1619-1621, 1636 e 1690, foi destruda, pelo que no possvel reconstituir a informao sobre as colnias portuguesas na frica Oriental2.Em todo o caso, diversos processos foram sendo instrudos contra rus residentes ouoriundos dessas reas, pois verificou-se desde o incio uma forte articulao entre a In-quisio e as estruturas eclesisticas locais, mesmo que o estabelecimento das redes defamiliares e comissrios tenha sido relativamente tardio, ao longo do sculo XVII.

    A actividade da Inquisio no Brasil relativamente bem conhecida, as visitasforam publicadas e estudadas, as redes de comissrios e familiares foram reconstitu-das, os processos, os inventrios de bens e mesmo as denncias foram objecto de es-tudos srios3. Dispomos actualmente de uma estatstica rigorosa: so mais de mil osprocessos da Inquisio respeitantes a residentes e naturais do Brasil4. Este dado corres-ponde a metade da mdia dos tribunais da Amrica espanhola, mas as diferenas noficam por aqui: verifica-se uma forte percentagem de cristos novos de origem judaicaentre os rus brasileiros, pouco mais de metade dos acusados, fenmeno que notem paralelo nos tribunais hispano-americanos, onde os cristos novos acusados de ju-dasmo no ultrapassam 20% dos rus, embora essa minoria fornecesse a esmagadora

    1 Francisco Bethencourt, Histria das Inquisies. Portugal, Espanha e Itlia, sculos XV-XIX, Lisboa, Cr-culo de Leitores, 1994.

    2 Antnio Baio, A Inquisio de Goa. Tentativa de histria da sua origem, estabelecimento, evoluo e extino,2 tomos, Lisboa/Coimbra, 1939-1949.

    3 Arnold Wiznitzer, Os judeus e o Brasil colonial, traduo do ingls, So Paulo, Livraria Pioneira, 1966;Jos Gonalves Salvador, Cristos novos, jesutas e Inquisio, So Paulo, Livraria Pioneira, 1969; idem, Oscristos novo. Povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680), So Paulo, Livraria Pioneira, 1976; AnitaNovinsky, Cristos-novos na Bahia: 1624-1654, So Paulo, Edusp, 1972; Sonia Siqueira, A Inquisio portuguesae a sociedade colonial, So Paulo, tica, 1978

    4 Anita Novinsky, Inquisio: prisioneiros do Brasil, sculos XVI-XIX, Rio de Janeiro, Expresso e Cultura,2002.

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    maioria dos excomungados (ou seja, executados). A outra diferena corresponde sheresias dos indgenas convertidos. Embora o tribunal de Lisboa tenha mostrado umaconteno ausente do tribunal de Goa, existiram numerosos processos contra ascrenas desviadas dos indgenas. Um dos casos mais clebres diz respeito a uma ex-ploso popular (indgena, mas no s) milenarista no final do sculo XVI no Brasil 5,mas temos muitos outros processos contra crenas desviadas de nativos.

    Em frica, os estabelecimentos europeus mantiveram uma expresso reduzida at descoberta e difuso do quinino nas ltimas dcadas do sculo XIX. Eram quasetodos situados na costa, excepo da presena portuguesa no vale do Cuanza em An-gola e do vale do Zambeze em Moambique. A actividade da Inquisio mal conhe-cida, devido inexistncia de um tribunal prprio, como j referimos. Seria necessriodesenvolver um trabalho idntico ao de Anita Novinsky no Brasil, com o levantamentoexaustivo de denncias e processos, para verificar a enorme gama de prticas e crenasheterodoxas, nomeadamente de portugueses influenciados pelo islamismo no Nortede frica, assimilados pelas culturas locais na frica subsaariana ou praticantes do ju-dasmo nos rios da Guin, bem como de africanos convertidos, acusados de magia efeitiaria, que regressavam s suas religies em Portugal ou nas colnias portuguesasde frica. Em todo o caso, verifica-se uma pesquisa cada vez mais intensa sobre esteassunto, pois a riqueza dos arquivos inquisitoriais (no s portugueses como tambmespanhis) permite colmatar as lacunas de outros arquivos para aceder s culturasafricanas e aos fenmenos de miscigenao cultural 6. Foi este motivo que nos levou aorganizar em Paris, em Junho de 2003, no Centro Cultural Calouste Gulbenkian, umcolquio sobre a Inquisio em frica. o resultado desse colquio que aqui apre-sentamos, embora os pesquisadores convidados, na maior parte autores de teses demestrado e de doutoramento inditas, tenham tido tempo para reelaborar os seus tex-tos depois do debate que suscitaram.

    Os estudos que se debruaram sobre a feitiaria, nomeadamente de FranciscoBethencourt, Maria Benedita Arajo, Francisco Santana e Jos Pedro Paiva, j fornece-ram algumas pistas acerca da presena de Africanos entre os acusados de feitiaria 7.Isaas da Rosa Pereira e Didier Lahon destacaram a histria das irmandades dehomens pretos em Lisboa, enquanto autores como Maria Cristina Neto e Jorge Fon-seca focaram a vida dos escravos no Sul do pas 8. Abordagens vrias, histricas e

    5 Ronaldo Vainfas, A heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, So Paulo, Companhia dasLetras, 1999.

    6 A primeira obra significativa, embora numa perspectiva extremamente conservadora, a de AntnioBrsio, Os Pretos em Portugal, Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1944. Os estudos mais recentes tm outradimenso: A. C. C. M. Saunders, Histria social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555), traduodo ingls, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994; Jos Ramos Tinhoro, Os negros em Portugal:uma presena silenciosa, Lisboa, Caminho, 1997.

    7 Francisco Bethencourt, Imaginrio da magia: feiticeiras, saludadores e nigromantes no sculo XVI, Lisboa,Universidade Aberta, 1987; Maria Benedita Araujo, Magia, demnio e fora mgica na tradio portuguesa (scu-los XVII e XVIII), Lisboa, Cosmos, 1994; Francisco Santana, Bruxas e curandeiros na Lisboa joanina, Lisboa,Academia Portuguesa da Histria, 1996; Jos Pedro Paiva, Bruxaria e superstio num pas sem caa s bruxas(1600-1774), Lisboa, Ed. Notcias, 1997.

    8 Isaas da Rosa Pereira, Dois compromissos de Irmandades de Homens Pretos, Arqueologia e Histria,9. srie, IV, Lisboa, 1972; Didier Lahon, Esclavage et confrries noires au Portugal durant lAncien Rgime (1441--1830), tese de doutoramento, Paris, EHESS, 2001; Maria Cristina Neto, Os negros em Lisboa no sculoXIX - Tentativa de caracterizao histrico-biolgica, Garcia de Orta, Lisboa, 7 (1-2), 1994, pp. 1-14; JorgeFonseca, Escravos no Sul de Portugal, sculos XVI-XVII, Lisboa, Vulgata, 2002.

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    antropolgicas, retomaram os trabalhos pioneiros de Pedro de Azevedo e Leite de Vas-concelos no incio do sculo XX, aproveitando a maior acessibilidade de arquivos dainquisio e de arquivos distritais9. A presena de africanos e seus descendentes no pastambm foi objecto de debate em vrios encontros, com uma frequncia crescente nosanos noventa. Seminrios e conferncias organizadas em Portugal por iniciativa de c-maras municipais, universidades, centros de investigao, a Comisso dos Descobri-mentos e a UNESCO, resultaram numa maior difuso desta temtica, principalmentesobre os percursos de escravos no continente e nas ilhas. A exposio Os Negros emPortugal realizada no Mosteiro dos Jernimos entre Setembro de 1999 e Janeiro de 2000foi uma iniciativa pioneira que muito contribuiu para um melhor conhecimento de co-munidades ignoradas pelo grande pblico 10.

    Os artigos, todos baseados nas respectivas teses de doutoramento, de DidierLahon, Daniela Calainho e Timothy Walker, retomam dois temas que ultimamente tmconquistado um lugar cimeiro na pesquisa sobre os africanos em Portugal. DidierLahon traa-nos um esboo do imaginrio dos escravos transmitido pelos documen-tos da inquisio durante todo o perodo da sua actividade (1536-1821). Baseado numtrabalho minucioso de arquivo, este investigador passa em revista elementos chave dasvidas e estratgias dos rus, como a genealogia, as relaes entre as vrias comunidades(mouriscos e negros) de origem africana, a sua insero social, as relaes entredonos e escravos, a motivao dos rus e delatores, questes raciais associadas ao con-ceito de pureza de sangue. O complexo mgico-religioso africano reconstitudo peloautor baseia-se numa anlise da vivncia de pessoas cativas naturalmente filtradapela viso dos perseguidores. Mas o que facto que essas pessoas, pelo seu estatutosocial e pela sua grande mobilidade, dificilmente teriam tido oportunidade de deixartraos da sua experincia. Se, por um lado, o controlo social produzido pelo Santo Of-cio enorme devido sobreposio vida pblica/vida privada, por outro notvel aelasticidade de comportamentos e a maneira como delatores e rus, apesar do seu es-tatuto social marginal, aproveitaram ou manipularam a Inquisio a seu favor. TantoTimothy Walker como Daniela Calainho centram a sua anlise nos africanos que ac-tuaram como curandeiros e na maneira diferenciada como a Inquisio castigou os au-tores destes crimes. No mbito da investigao sobre as supersties populares, o usodas bolsas de mandinga e dos encantamentos para proteger ou curar os seus donosde males e doenas, levou africanos a serem denunciados e processados pelo Santo Of-cio. Se a difuso das mandingas um termo oriundo da frica ocidental e dos pro-cedimentos de cura africanos muito teve a ver com a existncia de um mercado emcrescimento numa metrpole necessitada de mdicos oficiais, a perseguio dos seusprotagonistas por crimes de magia mostrou que negros e mulatos formavam umgrupo pequeno mas activo entre os rus. A falta de conhecimento, por parte dos in-quisidores, das crenas e costumes africanos, vistos como marginais, implicou um pro-cesso de aprendizagem destes rituais, que tinham aceitao tanto entre as camadaspopulares como entre as camadas letradas. Durante o sculo XVIII as sentenas in-dicam uma diferenciao entre rus livres e cativos, sendo os primeiros mais severa-

    9 J. Leite de Vasconcelos, Excurso Archeolgica a Alccer do Sal: uma raa originria de frica,O Archeologo Portugus, I, 1895; Pedro de Azevedo, Os Escravos, Archivo Histrico Portugus, I, 9, 1903,pp. 289-307.

    10 Didier Lahon e Maria Cristina Neto, Os Negros em Portugal - sculos XV a XIX, catlogo da exposio,Lisboa, Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1999.

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    A FRICA E A INQUISIO PORTUGUESA

    mente punidos que os segundos, num padro que sugere processos de aculturao (eexpectativas) distintos face aos dois grupos em questo.

    Num contraste notvel com esta abordagem dos africanos em Portugal, o uso dedocumentao da Inquisio para traar a histria dos habitantes das possesses por-tuguesas em frica no mesmo perodo recebeu menos ateno, apesar da importn-cia do tema. Desde que Charles Boxer publicou as suas palestras crticas sobre as re-laes raciais no imprio colonial portugus nos anos sessenta, e mais tarde sobre opapel da igreja na expanso ultramarina, verificaram-se relativamente poucas inter-venes sobre o tema com base em fontes inquisitoriais11. Como j acima referimos, asatenes concentraram-se no caso do Brasil, sem dar o salto para o outro lado doAtlntico, salvo raras excepes 12. No obstante a boa organizao dos arquivos dainquisio portuguesa e a sua concentrao num local nico (em contraste com os ar-quivos da Inquisio espanhola) no h dvida que os africanos convertidos de frica,to importantes para a compreenso da presena portuguesa na regio, acabaram porficar marginalizados pelos investigadores. Certamente, o Estado Novo no tinha qual-quer interesse em incentivar o estudo do trfico de escravos ou daqueles que trabal-haram nas roas, nos prazos e na serventia domstica. verdade tambm que a ob-sesso da Inquisio com os cristos novos deixou marcas profundas na investigao,contribuindo para desviar as atenes dos nativos convertidos e perseguidos por here-sia ou superstio.

    A investigao de Antnio de Almeida Mendes, Filipa Ribeiro da Silva, Philip J. Havik, Beatriz Alonso Acero e Selma Pantoja tem como pano de fundo os ncleosde fixao portuguesa e espanhola na frica continental e insular, bem como no Nortede frica. Os seus artigos preenchem lacunas existentes no conhecimento no s dosprocessos e denncias, mas tambm dos habitantes destas regies. A presena de co-munidades sefarditas na frica Ocidental e as atitudes das autoridades eclesisticasperante a sua fixao numa zona de interesse comercial para a Coroa Portuguesa soanalisadas por Antnio de Almeida Mendes. Baseando-se em fontes missionrias einquisitoriais, o autor desvenda a maneira como estas comunidades evoluram atravsde um processo de interaco com sociedades africanas baseado em vantagens mtuas.A integrao destas comunidades nas redes atlnticas geridas pela dispora sefarditacom ligaes ao Norte de Europa, Carabas e Amrica Latina, bem como a crescentemestiagem que resultou da sua aculturao na Guin mostraram que a poltica de ex-cluso fracassou. Contudo, quando a costa se tornou mais um lugar de passagem quede refgio no sculo XVII e se dissiparam as distines entre os dois grupos, iniciou-se uma segunda fase marcada por uma mudana de prticas e identidades. A estru-tura e a aco da Inquisio na frica Ocidental, a saber nas Ilhas de Cabo Verde, SoTom e Prncipe, e Guin so descritas por Filipa Ribeiro da Silva. No sendo zonasprioritrias de interveno do Santo Ofcio, os dados apontam para o impacto dapoltica da Coroa portuguesa de monopolizar as trocas comerciais e a actividade de

    11 Charles Ralph Boxer, Relaes raciais no imprio colonial portugus, 1415-1825, traduo do ingls,Porto, Afrontamento, 1977 (publicado na verso original em Oxford em 1963, no Rio de Janeiro, primeiratraduo portuguesa, em 1967); idem, A Igreja e a expanso ibrica (1440-1770), traduo do ingls, Lisboa,Edies 70, 1989.

    12 Jos da Silva Horta, Africanos e Portugueses na Documentao Inquisitorial de Luanda a MbanzaKongo (1596-1598), in Actas do Seminrio Encontro de Povos e Culturas em Angola, Lisboa, CNCDP, 1997, pp. 301-21; Selma Pantoja, Negras em Terras de Brancas: as degredadas na rede da inquisio.

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    FRANCISCO BETHENCOURT / PHILIP HAVIK

    interesses privados, tanto fora como dentro dos circuitos oficiais. A progressiva frag-ilidade da posio portuguesa resultante da concorrncia europeia, a rivalidade entrecristos novos e cristos velhos, a m gesto das comunidades de origem portuguesana regio, so diversos factores que explicam as numerosas queixas sobre comporta-mentos suspeitos dirigidas ao tribunal de Lisboa. As denncias mais frequentes de ju-dasmo, blasfmias e feitiaria vindas das elites letradas, visaram no sculo XVII umgrupo cada vez mais alargado de cristos novos, incidindo igualmente sobre popu-laes autctones compostas por negros, gentios e baptizados.

    As mulheres livres pertencentes a estas ltimas camadas, as chamadas tungoms,vivendo ao redor das praas guineenses so os actores principais do ensaio de PhilipHavik. Se as delaes contra homens visaram europeus e cabo-verdianos, os denun-ciados por crimes de superstio, ritos gentios e feitiaria foram mulheres oriundasdestes entrepostos. Uma delas, acusada de feitiaria, capturada e enviada para oscrceres do tribunal de Lisboa em meados de seiscentos com a ajuda de foras secu-lares. O seu processo, rico em pormenores sobre a vida quotidiana, evoca a dimensodo sincretismo cultural destas comunidades beira do Atlntico, que intriga os in-quisidores. Jogando o papel de intermedirios entre sociedades africanas e atlnticas,e conhecedoras de curas para os males que afligem os habitantes das praas, estasmulheres ocuparam uma posio-chave nessas comunidades. Esta dimenso femininanas praas fortes situadas em zonas fronteirias tambm sobressai dos dados extra-dos dos arquivos da inquisio espanhola sobre o enclave de Oran na frica do Nortepor Beatriz Alonso-Acero nos sculos XVI e XVII.

    Cercada por povos berberes islamizados, a crescente interaco de grupos se-farditas, muulmanos e cristos desperta as atenes dos inquisidores para a necessi-dade de reinsero dos rus na sua cultura crist de origem. Acusadas de crenas su-persticiosas, magia e feitiaria, mulheres, algumas das quais antigas escravas, foramgeralmente castigadas com o degredo, tal como soldados espanhis ali colocados paradefender uma praa isolada. Seduzidos pela ideia de desero, os soldados (mas tam-bm muitos mouriscos) ensaiaram a sua fuga para Espanha ou para o enclave prxi-mo de Melilla, em maior nmero para as reas vizinhas numa regio muulmana,abandonando a f crist.

    No quadro da contestao da presena religiosa e poltica de Espanha no Norte defrica, a preocupao principal da Inquisio era de evitar a converso dos habitantese a sua mobilizao pelo adversrio. O percurso de pessoas originrias de Angola queserviram como militares nas fortalezas portuguesas no sculo XVIII traado porSelma Pantoja para ilustrar as tenses e conflitos nas relaes euro-africanas. Asacusaes de feitiaria que caram sobre dois mestios demonstram como a conversocrist em espaos urbanos virados para o comrcio passava por uma sntese detradies e identidades oriundas de ambas as culturas. As prticas tidas como supers-ticiosas pela inquisio, incluindo cerimnias fnebres gentias e o uso de bolsas demandinga pelos rus, permitem retratar um quotidiano pouco visvel num dos can-tos do imprio. A terminologia usada para descrever os alegados crimes nos casosapresentados tambm reflecte influncias vindas de sociedades africanas soberanas naregio, alm de terem conotaes atlnticas pelas ligaes triangulares resultantes docomrcio intercontinental.

    Os artigos aqui publicados fornecem variaes sobre um tema, nomeadamente a

  • importncia dos arquivos da inquisio para uma anlise crtica das relaes scio-cul-turais entre os vrios grupos e indivduos que se cruzaram perante os tribunais doSanto Ofcio. Na esteira da investigao recente que espreita alm das instituies paraincluir a sociedade civil como objecto de anlise, os delatores e denunciados nos casosapresentados so vistos como pessoas com interesses e estratgias prprias. So vis-tos como sujeitos activos de processos de interaco que atravessam fronteiras elevaram muitos dos que foram excludos da sociedade a se posicionar perante as au-toridades e assumir a sua identidade perante a histria. Ao mesmo tempo, estes tra-balhos mostram que no tm razo de ser as lacunas existentes no nosso conhecimentosobre os espaos de interaco donde saram as denncias de comportamentos des-viantes contra pessoas de ascendncia africana. Esperamos que estes textos forneamideias e pistas aos leitores interessados nesta temtica para trilhar novos caminhos eregressar s fontes, olhando alm da sua dimenso persecutria para reconstruirvivncias apagadas da memria colectiva.

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