Bial, Pedro - Cronicas de Reporter

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Bial, Pedro - Cronicas de Reporter

Citation preview

  • PPEDROEDRO B BIALIAL

    CRNICASCRNICAS

    DE REPRTERDE REPRTER

    O correspondente internacional

    conta tudo

    o que no se diz "no ar"

  • Orelhas do LivroOrelhas do Livro

    Em agosto de 1988, Pedro Bial desembarcava em Londres,

    para assumir o posto de correspondente da TV Globo, naquela

    cidade.

    Sortilgios da sorte, artimanhas do destino, ele seria, a

    partir de ento, testemunha privilegiada das grandes mudanas

    que abalariam o mundo neste final de sculo.

    Foram oito anos de viagens. Oito anos de, muitas vezes,

    estar no olho do furaco. Oito anos de estreitar as distncias que

    separavam o Brasil do mundo.

    Crnicas de Reprter traz os bastidores destas grandes

    reportagens. Longe do olho impiedoso da cmera, dos segundos

    cronometrados, do corta incisivo, Bial conta agora detalhes do que

    no foi ao ar.

    O olhar arguto do reprter mostra aqui a adrenalina que

    corre, a boca seca, a ansiedade de estar no lugar certo, na hora

    exata. O olhar sensvel do poeta revela aqui frestas de poesia que o

    pragmatismo do telejornal, muitas vezes, deixou escapar. O olhar

    investigador do jornalista reparte com o leitor curiosas

    estranhezas de cada povo, que nenhuma globalizao ser capaz

    de destruir.

    Crnicas de Reprter uma instigante viagem pelos quatro

    cantos do mundo. No texto envolvente de Bial, voc testemunhar

    a revoluo romena de 89. Voc se refugiar num tanque em meio

    a tiros e exploses que estremeceram o Parlamento russo em 93.

    Voc descobrir, por trs da bela Teer, um sistema brutal, capaz

    de punir uma mulher por trazer as unhas pintadas. Voc

    conhecer, enfim, a lmina afiada que ronda o dia-a-dia de quem

  • arrisca tudo pelo prazer de contar.

    Crnicas de Reprter textos sensveis, irnicos,

    emocionados, divertidos... Histrias, que se vo juntando num

    sedutor painel desta nossa aldeia global.

    http://groups.google.com/group/digitalsource

  • 1996 by Pedro Bial

    Direitos em lngua portuguesa para o Brasil, adquiridos ao autor

    por EDITORA OBJETIVA LTDA.,

    rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090

    Tel.: (021) 556-7824 Fax: (021) 556-3322

    Internet: http://www.objetiva.com

    Capa

    Luciana Mello e Monika Mayer

    Reviso

    Mariflor Rial

    Sandra Pssaro

    Teresa Ftima da Rocha

    Editorao Eletrnica Textos & Formas Ltda.

    1996

    10 9 8 7 6 5 4

  • SUMRIOSUMRIO

    Prefcio

    Introduo

    Cartilha Brasileira

    Adis Muchachos

    ncora, Leme ou Vela

    Ares Londrinos

    Campeonato de Bales

    Camelos e Outros Bichos

    Fanatismo

    A Guerra do Golfo Aconteceu?

    Profisso: Viciados em Perigo

    Trs Segundos de Astronauta

    "Voc Sabe o que Est Acontecendo em Nosso Pas?"

    Batismo de Chumbo na Rssia

    Receita Tambm Notcia

    Fundamentalismo No Religio

    Natal Revolucionrio

    Bsnias

    Longe Daqui, Aqui Mesmo

    Bombas, Jornais e Tablides

    Sabe Quem Morreu?

    Onde Tudo Comea?

    B de Beatles e Brasil

    Um Rio Passa no Meio

    What do You do In This Country?

    A Flor e a Bola

    Parece, Portanto

  • Imagem Tudo

    Supermercado de Iluses. Vamos s Compras?

    Francamente, tica, o que Vem a Ser Isso?

    O Co do Mundo

    T Tranqilo

    De Brasil em Brasil

    TV Falada

    True Stories

    Nada Causa Mais Nada

    Salve-se Quem Puder

    No Proibido Fumar

    Brasil aos Pedaos

    Um Velho Pas Jovem

    Vai Entender o Brasil

    Ao Encalo da Poesia

    Esporte, o Show da Dor

    A Vida No Como Ela

    Saudades de Parreira

    Bye Bye Brasil

    Uma Mulher Chamada Domingo

    A Vov e o Lobo

    Histrias e Historinhas do Sculo

    Perguntas Desnecessrias

    De Volta ao Mundo

    Bom, Ruim, Assim, Assim

  • PREFCIOPREFCIO

    O Perseguidor do SonhoO Perseguidor do Sonho

    Envolto nessa aura especial dos reprteres que estiveram l

    onde as coisas acontecem, no olho do furaco como

    correspondente de guerra, em todas as Bsnias e Iraques, como

    diz ele, no mapa da confuso, longe daqui e aqui mesmo, capaz de

    falar igualmente dos lugares ao longo do Rio So Francisco, dos

    riscos de andar no calado de Copacabana, de como estar

    frente do cano de uma arma na guerra civil angolana, da vida em

    Vigrio Geral e da preparao do documentrio sobre o revival dos

    Beatles, Pedro Bial pratica um jornalismo vivo, no-burocrtico.

    Coloquial, proporciona tiradas assim: Alis, acabei me estendendo

    demais sobre o assunto, e nem comecei a falar do que tencionava

    dizer, acabei. Instigado pela conscincia de estar no mundo

    ps-89, ps-guerra fria, mas nem por isso pacificado, chama a

    ateno, sem tornar-se apocalptico, para a dissoluo de cdigos

    e referncias, apontando desde a onipresena das mfias at a

    hipocrisia de proibir o cigarro em um pas de motoristas-suicidas.

    Talvez por ser filho de imigrantes, conforme relata, e ter viajado

    tanto, mostra especial sensibilidade para as diferenas, a

    diversidade cultural, ao apontar, como contraste marcante entre

    Brasil e tantos lugares, o modo como se relacionam etnias,

    crenas e nacionalidades, aqui de modo mais aberto, l de modo

    excludente.

    Envolvido no instrumento de globalizao que uma

    grande rede de TV, a fbrica de notcias e no-notcias do

    telejornalismo (sem poupar, tambm, o que chama de corja do

  • subjornalismo na imprensa escrita), quer, atravs da palavra

    escrita, ultrapassar os limites da tela, de seu cdigo mais estreito,

    de sua seleo e, s vezes, fabricao de acontecimentos, to bem

    exposta na denncia do episdio do carro incendiado de propsito

    na Romnia, da fabricao da guerra do Iraque, e em suas crticas

    ao sensacionalismo.

    Constantemente nos lembra de suas origens literrias, de

    que tambm poeta. Ou, antes, perseguidor da poesia, como se

    define no breve, porm tocante relato de como seguia Drummond,

    e, seguindo-o, procurava enxergar o mundo atravs dos seus olhos

    e sua sensibilidade, enquanto fazia perguntas abissais: O que faz

    dele um poeta? O que ele est vendo agora? Como? Em que estar

    pensando? Onde nasce a poesia? De modo discreto, obedece

    vocao potica em imagens como esta, na descrio de sua

    caminhada atravs de Londres: Nesta cidade, no preciso conhecer

    o caminho das ruas. As ruas sabem o meu caminho. Por essa

    familiaridade com a literatura, tem o sentido do ritmo: sabe que

    no precisa enfeitar o texto, pois, em vrias passagens, a srie de

    nomes de lugares j tem fora, poder de sugesto. Da virem

    textos em tudo diferentes do amontoado de chaves e cacoetes

    que, em muitos lugares, passa como sendo o modo jornalstico de

    escrever.

    A memria, componente fundamental da sensibilidade

    potica, em Bial no apenas lembrana, reproduo do

    acontecido. Poderia servir-lhe como epgrafe a frase de T. S. Eliot

    libertao: esta a utilidade da memria. Quer a recuperao do

    que foi perdido, amando o perdido na. tentativa de anular o tempo:

    Depois de quase oito anos em Londres, quando volto ao Brasil no

    me ocorrem lembranas de 1987 ou 1988, quando deixei de aqui

    morar. As memrias que as pedras das ruas e dos prdios me

  • trazem vm de muito mais longe. Cada esquina, cada nibus, cada

    escola me transportam mais remota infncia. um lrico que se

    contm, ao encaixar um comentrio que poderia ser um ttulo ou

    uma epgrafe: bom sonhar. Talvez, antes de ser poeta e reprter,

    seja um flaneur, o caminhante ao acaso na tradio inaugurada

    por Baudelaire: Mas a rua ainda melhor que a realidade virtual,

    talvez at mesmo mais real...

    Voltar-se para o passado, viver o sonho, no o impede de

    encarar de frente a realidade e a modernidade. Por isso,.sua

    relao com o meio eletrnico no apenas de crtica e tentativa

    de ultrapass-lo, mas tambm de continuidade. Algumas das

    qualidades exibidas neste livro, como a fala direta, a clareza e

    simplicidade, a condensao, so as mesmas que o projetaram na

    TV. V-se, em cada trecho, que e sempre ser um reprter. Por

    exemplo, em Vai entender o Brasil..., presente Bienal do Livro,

    convidado para ler seus poemas, no deixa de informar-se sobre o

    mercado editorial, para oferecer seu relato e suas reflexes. Tanto

    nos episdios corriqueiros como diante dos grandes dramas da

    humanidade, mostra-se um jornalista da melhor espcie, do tipo

    investigativo, que acompanha de perto os acontecimentos,

    encosta-se a eles na obsesso pelo factual, e na busca de sentido

    do que acontece.

    Sem exagero e grandiloqncia, humaniza o relato

    jornalstico atravs da ateno ao particular, o traado do perfil

    dos personagens, o detalhe revelador de um mundo. Seus relatos

    so no-lineares, com o formato de parbolas. Entre o comeo e o

    fim de uma histria, o leitor o acompanha por diversos lugares e

    situaes. Isso fica evidente na crnica antolgica sobre a rvore

    de Natal na Romnia: entre o encontro do romeno que o leva a sua

    casa e a descoberta da rvore, passa o mundo todo. s vezes, mais

  • comedido ainda, obliquamente, por aluso, inteiramente avesso

    pieguice, como na resenha do livro de Marcelo Rubens Paiva, que

    termina em uma tocante revelao, quase sussurrada, de como a

    represso havia afetado sua prpria vida.

    Ser a crnica o mais literrio dos modos jornalsticos, ou o

    mais jornalstico dos gneros literrios? Provavelmente, as duas

    alternativas so corretas. Tambm certo que a crnica um

    gnero apenas aparentemente menor, com a dificuldade das

    coisas ilusoriamente simples. Sem querer classificar, catalogar em

    gneros e modalidades, prefiro chamar de crnicas aos textos de

    Pedro Bial, inserindo-o em uma tradio que ele honra

    plenamente, da qual fazem parte, entre outros, o trao elptico de

    Lus Martins, a preciso aliada intensidade potica de Rubem

    Braga, e as ousadias de Paulo Mendes Campos, que era capaz de

    fazer que tudo fosse crnica: poemas em prosa, tradues,

    pequenos ensaios, relatos diretos. Ao integrar trechos de

    reportagem, comentrios polticos, memorialstica e depoimento,

    Bial oferece um belo exemplo de encontro de jornalismo e

    literatura, e mostra, mais uma vez, que no h separao, muito

    menos antagonismo, entre as duas modalidades. So

    complementares, pois dependem da palavra, e freqentemente se

    confundem. J sabamos disso: j o havamos aprendido com

    Rubem Braga e outros mestres da difcil arte de ser direto, claro,

    franco, lcido e coloquial.

    Cludio Willer

  • INTRODUOINTRODUO

    Um brasileiro reconhece outro brasileiro em qualquer lugar

    do mundo, a cinqenta metros de distncia. Deve ser o jeito de

    andar, ou talvez tenha a ver com o vesturio. No brincadeira,

    no; somos irreconhecveis para qualquer terrqueo que no

    tenha nascido no Brasil e inconfundveis para nossos

    compatriotas.

    No mercado de passaportes falsos, o brasileiro o mais

    valorizado, pois temos todas as caras do mundo de japons a

    rabe, africano a ariano.

    E a formao desse estilo to prprio, ou se preferirem,

    identidade, no carece de uma gerao para acontecer. Enquanto

    na Europa os bisnetos de imigrantes mantm a nacionalidade e

    cultura dos antepassados, no Brasil, os prprios imigrantes

    acabam abrasileirados. Daqueles que a gente reconhece em

    qualquer aia do mundo.

    Sou filho de refugiados. Minha me tinha onze anos quando

    embarcou sozinha no navio que a levaria da Alemanha ao Brasil.

    Sozinha, no. Tinha a responsabilidade de cuidar do irmo mais

    novo que ela dois anos. Os pais comunistas tinham partido um

    ano antes, assim que Hitler tomou o poder, em 1933-

    A primeira coisa que Susanne, minha me, viu no Brasil foi

    o carnaval do Rio de Janeiro. Na primeira refeio, experimentou

    duas delcias que nunca tinha visto na vida: chuchu com

    camaro.

    Meu pai s chegou em 41, plena guerra. Ele foi um dos

    "judeus do vaticano"1, beneficiados pelo acordo de 39 entre Getlio

    1 Os judeus do Vaticano Avraham Milgram Editora Imago.

  • Vargas e o Papa Pio XII: o Brasil se comprometia a receber 3.000

    alemes catlicos no-arianos. Judeus capazes de comprovar que

    sua converso ao catolicismo ocorrera antes de 33.

    Somente 959 nomes chegaram ao fim da lista

    "schindleriana". Peter Bial foi o nmero 699. Visto concedido pelo

    Consulado do Brasil em Anturpia, includo na quota dos

    israelitas catlicos fixada pela resoluo nmero 39 do Conselho

    de Imigrao e Colonizao.

    No dia treze de agosto de 1988, desembarquei em Londres

    para assumir o posto de correspondente da TV Globo naquela

    cidade.

    Fazia, sem saber, o caminho de volta que meu pai no viveu

    para fazer, meu legado.

    Dois anos mais tarde, me encontraria diante do Porto de

    Brandemburgo, transmitindo ao vivo o espetculo da reunificao

    alem.

    Quis a sorte, ou como prefere minha me, o destino,

    reservar um turbilho de acontecimentos para os anos seguintes

    minha chegada. Este livro carrega fragmentos de oito anos na

    experincia de correspondente, mas no traz uma caixa-preta

    dessa viagem.

    No espere nessas pginas a anlise de alguns dos mais

    importantes momentos da segunda metade do sculo, que tive o

    privilgio de presenciar. Vamos ter uma conversa fragmentada

    como a realidade, como o espelho iletrado da civilizao, a

    televiso.

    S a partir de 89, a TV conquistou a capacidade de mostrar

    guerras, revolues e massacres; a histria, ao vivo. No comeo

    daquele ano, a equipe da CNN mal era levada a srio pelos colegas

    e pelos prprios "news-makers". No fim do ano, a capacidade de

  • transmitir ao vivo para todo o mundo revolucionou o

    telejornalismo mundial e a prpria prtica da poltica

    internacional. O primeiro rolo de pelcula com as imagens de um

    muro sendo erguido em Berlim s foi exibido nos Estados Unidos

    trs dias depois de filmado. Kennedy teve setenta e duas horas

    para pensar. Quando o mesmo muro caiu, Bush assistiu ao vivo,

    como todo mundo; minutos antes de dar uma entrevista coletiva,

    tambm ao vivo.

    Desde criana, tive o gosto de comentar as coisas com

    meus amigos. Vocacionalmente, sabia que queria trabalhar em

    algo que discutisse, refletisse a realidade. Tinha, e tenho, a

    impresso de que a arte a forma mais profunda de abordagem

    da realidade, de nossa alma. S que algum tem que circular as

    notcias, algum tem que dar conta do superficial. Eu acabei

    sendo um desses, reprter.

    Sempre sonhei com viagens e aventuras. Ir, para voltar.

    Partir, retornar e contar. Uma vida contm muitas vidas e muitas

    mortes. Contei os mortos e conto aos vivos.

    Adiante, antes que nos tornemos macabros!

    As crnicas aqui reunidas, originalmente publicadas no

    Jornal da Tarde, no obedecem ordem cronolgica, sequer

    lgica. So impresses que espero compartilhar, confisses,

    desabafos e pequenas provocaes. Espero que seja de valia a

    algum.

    publicado em memria e saudade de Renato Castelo

    Branco.

  • CARTILHA BRASILEIRACARTILHA BRASILEIRA

    Queridas filhas,

    vocs chegam ao Brasil depois de amanh. Vocs, meninas,

    so um tipo muito especial de brasileirinhas. Pois aqui vocs

    vieram ao mundo, nasceram em dias de sol tropical, e receberam

    as primeiras lufadas de vento direto do oceano Atlntico. S que

    bem pequeninas ainda, vocs foram para o hemisfrio norte,

    foram morar na Inglaterra, ou como se diz por aqui, nas Oropas...

    Agora, vocs tero de aprender o que o Brasil bem

    rapidinho... verdade que ns vnhamos em todas as frias, e

    verdade tambm que vocs sempre adoraram. Brasil era sinnimo

    de farra, biquni, praia, vov, vov, tio, tia, primo, prima... Uma

    delcia...

    Lembro daquela vez em que uma amiga minha perguntou a

    uma de vocs, bem novinha ainda, o que achava do Brasil. A

    resposta foi um sorriso encantado, feliz, e palavras contentes

    sobre brincadeira, carnaval, sol e mar... A, a mesma amiga fez

    (mira pergunta: e l na Inglaterra, como ? A resposta: l, voc

    precisa saber bem as regras...

    No Brasil, esse negcio de regras muda toda hora, e na

    maioria dos casos vale para alguns e no para todos...

    *

    Em primeiro lugar, tenham pacincia. Principalmente,

    porque vocs vm morar no Rio de Janeiro, onde parece que a

    primeira soluo d qualquer problema o adiamento. Mas, com

    tolerncia e esquecendo a pressa, as coisas acabam se resolvendo.

  • Porque, na batata mesmo, o nmero de pessoas que

    gostaria de resolver as coisas, de melhorar a cidade maior, bem

    maior do que o nmero de preguiosos e aproveitadores. Os

    brasileiros trabalham muito.

    *

    Sorte, vocs chegarem agora em julho. Pode at ser que

    vocs usem um daqueles cardigans de primavera londrina neste

    inverno carioca. Mas, depois, preparem-se; quente, muito quente

    por aqui.

    *

    Ser difcil para vocs entender como um pas rico desse

    jeito tem tanta gente pobre na ma. Vocs vo ter que estudar um

    bocado de Histria do Brasil, e mesmo assim vai ser duro chegar a

    uma concluso.

    Uma pista: lembram aquela revoluo na Frana, que vocs

    estudaram, em que no fim da histria os reis perdiam suas

    cabeas na guilhotina? Lembram que depois daquela sangueira

    toda, os franceses deixaram de ser "sditos" e passaram a ser

    "cidados"? Pois , meus amores, aqui nunca teve nada disso

    no...

    *

    Por isso tambm, vocs tero de ser mais cuidadosas na

    rua. Aqui, tem muito assalto e at seqestros. Em certas partes da

    cidade, vocs nunca iro, ou s iro se eu estiver junto. Acho que

  • vocs at vo gostar de conhecer uma favela, ver como as pessoas

    vivem no maior sufoco e mantm uma alegria de viver difcil de

    encontrar naquela prosperidade europia.

    Na verdade, a vidinha de vocs vai ser bem diferente. Vocs

    vo andar de carro para cima e para baixo, em todos os lugares

    vocs se vero cercadas por grades e guaritas de segurana, como

    se dois pases ocupassem o mesmo lugar ao mesmo tempo. Num

    pas, vocs vo curtir mordomias que a na Inglaterra a gente nem

    sonhava. S que, em volta da gente, sombras de perigo estaro

    rondando. Mas, no para ter medo no... tudo gente, e se, por

    acaso, vocs se virem numa situao meio cabeluda, no

    esqueam: quem parece to ameaador humano tambm, e s

    nos resta negociar. Negociar pela prpria vida.

    Mas, pode deixar que nada de mal vai acontecer.

    Vocs vo ter que acordar mais cedo para ir escola, por

    causa do trnsito. cada jam que vocs nem imaginam...

    *

    Ah!, vocs vo estranhar um pouco os modos de outras

    meninas. Aqui, desde cedo, as garotas so incentivadas a se

    comportar como mulheres. No s na maneira de vestir ou andar.

    Nos programas infantis na televiso, as crianas aprendem umas

    danas quase pornogrficas. Danas que a na Inglaterra vocs

    nunca veriam, danas que no sairiam de casas noturnas,

    vedadas a menores de dezoito anos.

    *

    Vai ser duro dizer adeus aos amiguinhos a de Londres. A

  • gente, que xingou tanto os ingleses, agora se d conta de como

    fomos bem recebidos na ilha britnica. Depois que aprendemos as

    tais regras, foi muito bom, no foi? Vamos sentir saudades da

    televiso da, e teremos que nos acostumar com a quantidade

    estpida de anncios da telinha daqui.

    Vocs nem se do conta, mas o tempo em que vivemos na

    Inglaterra nos fez brasileiros melhores.

    E, nesses ltimos tempos, os brasileiros andam gostando

    de cuspir na prpria bandeira, adoram falar mal do Brasil, como

    se isto aqui no tivesse jeito mesmo. Ns, que aprendemos como

    os europeus valorizam a sua nacionalidade, vamos ver se

    ensinamos aos amigos, como que se trata a prpria ptria: com

    amor e dedicao!

    *

    Ah, e aqui, vocs vo descobrir uma pessoa que vai

    pertencer famlia, sem ser me, irm ou prima... A empregada!

    Ela vai cozinhar, passar roupa, arrumar a casa, vai ser ntima da

    gente... Isso s tem no Brasil.

    Alis, vocs nem se lembram, mas quando chegamos

    Inglaterra, tnhamos levado uma empregada, que ficou s seis

    meses. E este pouco tempo foi suficiente para ela se dar conta de

    que no era s empregada. Era uma cidad! E isso aqui no Brasil,

    ainda uma grande novidade...

    *

    Vai ser bom: tem requeijo, frutas de monto, msica boa,

    e feijo, feijo, feijo!

  • *Vai ser bom: vou levar vocs para praias lindas, florestas

    onde o macaco dourado vem brincar com a gente, onde pssaros

    lindos cantam colorido, e onde as cascatas tm gua geladinha

    para quando estivermos bem suados...

    E principalmente, meninas, aqui vocs so muito

    importantes. O Brasil precisa de moas como vocs, inteligentes e

    esforadas. L, na Europa, vocs sabem, os jovens terminam a

    escola e no tm muito o que fazer, ou melhor, tm que brigar

    muito para fazer alguma coisa e tm aquela sensao de que tudo

    j foi feito. A Europa velha...

    Aqui, tudo ainda est por fazer.

    Bem-vindas!

    E, por favor, escrevam logo a vossa cartilha brasileira, para

    que eu, burro velho, possa aprender por vossos olhinhos to

    lindos a ver vim pas que ainda no foi inventado.

    julho/96

  • ADIS MUCHACHOSADIS MUCHACHOS

    O que voc quer ser quando crescer?

    "Salva-vidas" respondia invariavelmente o menino. Mentia.

    No ntimo, sonhava em ser Tintin, aventureiro solto no mundo,

    reprter, heri, resolvendo crises internacionais, desbaratando

    quadrilhas, divertindo-se um bocado. E Tintin ainda conseguia ser

    jornalista, sem escrever uma linha sequer. Em nenhuma das

    inmeras aventuras pelo planeta, o reprter Tintin enviou uma

    matria que fosse. No precisava: ele era sempre a notcia.

    No desejo de ser Tintin, o menino quase ficou tanta.

    Pois o garoto cresceu e virou de fato um globe-trotter. S

    para aprender que a vida nmade no passa de uma sucesso de

    encontros e despedidas. Perseguindo o mapa das encrencas,

    crises, guerras e revolues, ele conheceu gente diante de

    situaes-limite. E, nesses momentos, as amizades ganham uma

    intensidade insuspeitada em tempos de normalidade.

    Assim, o menino ganhou amizades eternas que duraram

    trs dias. Mais do que arte do encontro, a vida o aprendizado da

    despedida. Pois a nica conseqncia garantida do "muito prazer"

    o adeus.

    Dizem que os bebs choram quando a me se ausenta por

    dez minutos, pois para eles aquela foi uma partida definitiva. Eles

    no sabem que as pessoas vo e voltam. E quem sabe?

    *

    No melancolia, nem filosofia.

    A indstria de fatos.segue, uma crise ali, um divrcio aqui,

  • uma guerra, uma eleio nos jornais, o mundo ganha uma

    ordem que no tem. Informar quer dizer "impor forma".

    Nas sociedades mais avanadas, h uma aparncia de

    ordem. As instituies funcionam como camadas, que abafam,

    mascaram e organizam as relaes essencialmente primitivas dos

    homens. Em matria de emoes e necessidades, somos todos

    trogloditas.

    Em momentos de crise e convulso social, as camadas

    institucionais desabam e tornam aparente o emaranhado catico

    das relaes humanas. Esse mesmo caos est presente em

    sociedades desenvolvidas, mas invisvel. Porm, sob a ordem

    aparente, h sempre uma sociedade rebelde e dinmica, que no

    obedece lei do Estado. Em alguns casos, chama-se economia

    paralela; em outros, simplesmente Mfia.

    *

    Reprteres marcam gols quando revelam a intimidade entre

    as camadas mais visveis e respeitveis da sociedade e esse

    submundo paralelo. O Estado no s impotente diante dessa

    sociedade invisvel, como tambm depende de seus mecanismos.

    H uma promiscuidade onipresente entre lei e crime. Em alguns

    pases, como o Brasil e a Rssia, essa promiscuidade

    transparente, escandalosa. Nos Estados Unidos ou na Gr-

    Bretanha, esses laos escusos tambm existem e muitas vezes so

    o combustvel da prosperidade. Em pases como a Itlia e a

    Espanha, essas ligaes perigosas chegaram s primeiras pginas

    e aos tribunais.

    *

  • O primeiro-ministro espanhol Felipe Gonzales sempre disse

    que no sabia de nada. Na melhor das hipteses, ignorncia. Na

    pior, hipocrisia.

    Escrevo antes do resultado das eleies na Espanha. s

    vsperas da votao, todos anunciam a derrota do filipismo. A

    primeira vitria da direita espanhola desde a morte de Franco no

    deve ser interpretada ideologicamente. O povo precisava dizer no,

    o que muito diferente de dizer sim a Jos Maria Aznar. Treze

    anos de poder" conduzem arrogncia. Mesmo simptico e

    carismtico, Gonzales caiu na arapuca da soberba. O homem que

    conduziu a Espanha democracia, com o auxlio luxuoso do rei

    Juan Carlos, virou um ditador dentro de seu prprio partido. E

    fechou os olhos diante da corrupo.

    Porm, mais do que a roubalheira, foi o desemprego que

    condenou Felipe Gonzales. Jos Maria Aznar promete resolver

    esse problema. Duvido. As economias ocidentais esto presas

    contradio de retomada do desenvolvimento sem a criao de

    novos empregos. Desemprego no mais um problema nacional, e

    sim a conseqncia da nova regra do jogo mundial, que no Brasil

    gostam de chamar de neoliberalismo.

    *

    A personagem mais divertida da poltica espanhola chama-

    se Cristina Almeida. uma senhora gordota e hiperativa, que

    parece sada de um filme de Almodvar. Entre suas faanhas,

    destaca-se a seduo de Sadam Hussein. Cristina foi a primeira

    emissria estrangeira a conseguir libertar os seus nacionais, parte

    do escudo humano de Sadam depois da invaso do Kuwait. Em

  • meia hora de conversa com o ditador iraquiano a espanhola

    conseguiu a libertao de todos os refns espanhis, e acabou

    dando conselhos a Sadam sobre dores na coluna.

    Cristina Almeida pode ser a prxima estrela da esquerda

    espanhola. Populista chique, ela tem uma resposta pronta,

    quando indagada sobre os seus quilinhos, muitos, a mais:

    Depois do regime de Franco, eu no fao mais regime

    nenhum...

    maro/96

  • NCORA, LEME OU VELA?NCORA, LEME OU VELA?

    Sei me virar um pouquinho em vrias funes do processo

    telejornalstico. Bato uma bolinha na reportagem, editar matrias

    foi a primeira coisa que fiz em TV, posso ajudar na concepo e

    elaborao de um programa, e quando necessrio ponho a mo

    nas mquinas mais simples, sem dar vexame muito grande atrs

    da cmera ou da ilha de edio.

    Da que s vezes sou convidado para falar dessas coisas.

    Falo do texto submisso imagem ("em TV a cmera que informa,

    o reprter se aproveita"), explico que cheguei ao telejornalismo no

    por meio do jornalismo e sim via cinema. E que talvez por causa

    disso tenha desenvolvido o gosto pela busca flagrante, este

    momento fugazmente eterno. Digo, eternamente fugaz... Defendo a

    teoria de que o reprter deve inventar uma pergunta de si para si

    mesmo e perseguir a resposta a esta pergunta ntima e secreta.

    Resposta que, assim como a pergunta, muitas vezes sequer

    mencionada na histria final.

    Pois ... Discorro ento um pouco sobre a natureza

    perversa e frustrante do exerccio jornalstico. Proponho

    discusses sobre os tais circos da mdia em que se transformam

    as grandes coberturas jornalsticas, reclamo um pouco do

    desinteresse nacional nos grandes temas e assuntos

    internacionais, como histrias de aventuras e reportagens, enfim

    falo do que conheo um bocadinho.

    Pois no que agora estou a poucos instantes de proferir

    uma palestra sobre "apresentao" em TV. Justo o terreno em que

    sou novato, foca, aprendiz...

    Acho que vou comear usando figuras e expresses

  • psicanalticas para me fazer entender. O negcio o seguinte,

    como diria um amigo: na rua, ou mesmo na redao, o reprter

    "sujeito". Vai l, atua, escuta, interpreta, organiza, informa. Toma

    as decises que lhe cabe tomar, exerce os seus parcos e ilusrios

    momentos de poder. Portanto, este o momento em que sou

    "sujeito", quando tramo a teia de informaes, palavras e idias

    que envolvero o espectador.

    S que a partir do momento que boto a tal maquiagem,

    escudo contra as luzes cruis e impiedosas do estdio, uma

    transformao deve comear a se operar. Quando me sento na

    bancada do apresentador, e devo tornar a tenso, nervosismo e

    pressa do fechamento em serenidade, seduo e serena firmeza,

    deixo de ser "sujeito". a hora de ser "objeto".

    Talvez por um dos inmeros legados infelizes do

    pensamento feminista, associamos logo o conceito de "objeto"

    idia de "vtima". No nada disso: todos ns, em alguns

    momentos, devemos nos submeter condio de "objeto".

    Ali, ento, como apresentador de um programa de

    variedades, com pitadas generosas de jornalismo, como o

    Fantstico, devo me instalar confortavelmente na carapua de

    "objeto". Uma vez no ar, estou alijado das decises editoriais e

    formais e devo somente obedecer s instrues dos colegas que

    esto atrs das cmeras e a algo bem mais subjetivo que nos

    submete a todos: o desejo misterioso do pblico.

    *

    Sinto falta de um computador na bancada de apresentao.

    Assim poderia, mesmo como dcil "objeto", atuar na linha do

    programa, enquanto "no ar", e acompanhar melhor a relativa

  • loucura da operao.

    *

    Nossa escola de apresentao ainda muito marcada pelo

    estilo radiofnico. H um excesso indiscriminado da nfase. Tudo

    manchetado. Isto vem melhorando, mas esta tendncia tinha

    chegado a paroxismos no antigo Jornal Nacional. Estava ficando

    difcil discernir a notcia realmente importante da corriqueira.

    E o Brasil o nico pas que conheo onde os telejornais

    no obedecem a uma ordem decrescente de importncia durante o

    programa. Explico: no resto do mundo, os telejornais comeam

    pela notcia mais importante e seguem para os destaques menores

    at encerrar na famosa and finally, a historinha leve e divertida

    que precede o "boa-noite". Com nossa linguagem gil, fluente,

    envolvente e eficaz, fica difcil para o telespectador entender quais

    foram as notcias de maior relevncia ao final da edio. Mas isto

    faz parte, expresso da cultura brasileira.

    Procuro sempre um tom mais baixo de voz. Algo assim

    como escolher Peter Jennings antes de Dan Rather. No s ajuda

    a conquista de uma certa intimidade com o ouvinte, como tambm

    diminui o desagrado de se ter algum berrando na sua noite de

    domingo.

    Na rua, cheguei a uma relao amistosa com a lente.

    Aprendi a ter prazer na hora de falar para a cmera. S que

    quando est fazendo o tal stand-up na rua, o reprter est cercado

    pelo mundo, pelas pessoas, pela realidade.

    No estdio, no. Tudo no estdio artificial, um teatro

    entre quatro paredes, um palco sem platia, um ambiente

    acstico e estranhamente silencioso. O silncio, esta a primeira

  • causa de desconforto para o novato na apresentao. Quando

    acende a luz verde das palavras "no ar", um silncio sepulcral se

    instala como se o mundo tivesse parado para lhe ouvir...

    Troo esquisito!

    Mas, t aprendendo...

    Gosto da adrenalina de falar ao vivo, a condio de no

    retorno, a presena do erro, do gaguejar, a intromisso da

    autenticidade no cenrio de plstico.

    Um perigo...

    Pobre daquela apresentadora...

    No sei o nome dela, mas nunca esqueci o seu ato falho, ao

    vivo, para todo o mundo na CNN.

    Ela deveria apresentar uma reportagem sobre CDs, compact

    discs, japoneses. Na hora de pronunciar compact discs, alguma

    coisa aconteceu entre o crebro e a lngua da pobrezinha que

    disparou compact dicks, "pintos compactos"... E isto falando sobre

    produtos japoneses... Mais ou menos a mesma coisa que trocar

    "canrios do reino", por "caralhos do reino"... Resultado: depois

    que a matria foi apresentada, a infeliz ncora no voltou mais ao

    ar. Deve ter ido direto para o analista...

    *

    E por que chamar de "ncora"? ncora, no! Leme talvez,

    vela, por que no?

    junho/96

  • ARES LONDRINOSARES LONDRINOS

    Nesta cidade, no preciso conhecer o caminho das ruas. As

    ruas sabem o meu caminho. Saio andando de casa, passo pelo

    pub The Constitution, entro. Apesar de andar sumido, h seis

    meses que no apareo, o dono me cumprimenta como se tivesse

    me visto ontem. Sigo adiante pela Georgiana Street, uma rua

    inteira habitada apenas por down and outs, os bbados,

    toxicmanos e malucos em geral que esta sociedade produz em

    abundncia. Em algum governo do passado, certamente

    trabalhista, a rua foi consagrada pelo Estado aos egressos de

    asilos de lunticos, como se diz aqui...

    Dobro esquerda na Royal College Street, onde fica o

    Hospital de Doenas Tropicais daqui. Sempre achei que iria parar

    l, na volta de uma dessas viagens insalubres e saborosas pelos

    buracos africanos e asiticos do mundo. Nunca passei da porta,

    pela qual passava diariamente.

    Enfim, vocs sabem que em Londres vrias casas ostentam

    uma plaquinha redonda, azul, identificando ilustres moradores do

    passado? Poetas, cientistas, polticos, de todas as nacionalidades,

    aparecem nas plaquinhas da posteridade. Nossa guia de Haia

    tem uma plaquinha aqui, "Here lived Ruy Barbosa..."

    Pois bem, na Royal College Street, numa casinha toda

    escalavrada, uma placa diferente, retangular e branca, indica a

    antiga morada de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. Sempre me

    perguntei por que eles no mereceram a placa azul, por que a casa

    no tem direito a uma reforma...

    Passo direto pela casa dos poetas eternamente malditos e

    chego rea perigosa: de um lado, o gasmetro do norte de

  • Londres, ante-sala de King's Cross, zona de prostituio e trfico

    de herona; do outro lado, um conjunto habitacional popular

    recheado de asiticos e ingleses pobres, onde de vez em quando

    sai briga feia. J botaram fogo na loja de um paquistans, j

    morreu gente, a polcia mantm uma vigilncia constante da rea.

    Bom, da, mais uma meia hora de caminhada e chego ao

    West End, a zona dos teatros, cinemas, museus. E caminho,

    caminho, sem querer saber do caminho...

    As partes mais chiques de Londres esto cada vez mais

    chiques. As mais pobres, cada vez mais pobres.

    *

    Mas, para matar as saudades que tenho de Londres, no

    preciso sair de casa. Basta ligar a televiso e me deliciar com a

    melhor programao do mundo, os melhores documentrios, o

    melhor telejornalismo.

    No pas que inaugurou a mar irresistvel da privatizao, a

    tev estatal continua imbatvel e o melhor argumento para

    demonstrar como o dinheiro pblico pode ser bem aplicado e

    viabilizar a realizao de produtos que no teriam chance na

    lgica do mercado. S que, como tudo neste mundo globalizado, a

    BBC est sendo obrigada a responder s demandas

    mercadolgicas. Em outras palavras, est tendo de se

    "popularizar", ou seja, neste caso, piorar...

    Pelo menos, as brigas internas na BBC, entre os apstolos

    do mercado e os que resistem s mudanas, so de domnio

    pblico.

    Por exemplo, um dos programas "populares" da BBC, leia-

    se "tabloidsticos", da jornalista Esther Rantzen, exibiu uma

  • reportagem feita num asilo, em tom de denncia, revelando os

    supostos "maus-tratos" que sofrem os velhinhos.

    Pois no que no dia seguinte, um dos mais respeitados

    reprteres investigativos da BBC publica uma carta aberta no

    Daily Telegrapb espinafrando a matria e acusando Esther.

    Rantzen de ter distorcido toda a histria? John Ware, o reprter,

    mostrou que no havia substncia alguma nas acusaes e que a

    Mrs. Rantzen tinha usado a cmera oculta como um artifcio

    sensacionalista, pois no havia impedimento ou proibio de

    filmagem.

    Estaria a BBC, na batalha por mais audincia, relaxando os

    seus padres de tica e sobriedade?

    *

    Nesta silly season, outra histria que poderia ter se

    esgotado em memorandi internos da televiso acabou chegando s

    primeiras pginas. Foi a crtica feita pelo diretor da BBC escocesa

    ao trabalho da reprter Kate Adie, veterana de coberturas

    internacionais, na tragdia de Dunblane, onde crianas de um

    jardim de infncia foram massacradas por um maluco. O escocs

    Colin Cameron afirmou que Mrs. Adie fez uma cobertura

    assptica, "pericial", fria, de uma tragdia nacional. A reprter

    exige agora, na justia, que seu colega pea desculpas pblicas. O

    problema que Kate Adie foi escalada para reportar o massacre de

    Dunblane pois tinha se celebrizado em coberturas de massacres

    ao redor do mundo.

    Do que ningum se d conta por aqui que Mrs. Adie

    uma das jornalistas mais etnocntricas deste pas etnocntrico.

    Portanto, ela ficava muito vontade para relatar,

  • emocional-mente, os horrores praticados por aliengenas

    selvagens, como chineses, iraquianos e americanos. Mas, quando

    foi falar de sua prpria gente, a reprter se refugiou na tal

    imparcialidade, to confortvel em situaes desconfortveis...

    Ah! E como as concesses das emissoras privadas so

    renovveis a cada seis anos, a ITV, a Televiso Independente

    daqui, tambm levou uma bronca pblica.

    Desta vez, foi por causa de uma entrevista, conduzida por

    seu mais ilustre ncora, o negro Trevor MacDonald, com o

    primeiro-ministro John Major. A autoridade independente de

    televiso, que fiscaliza as programaes, acusou Mac'Donald de

    ter sido frouxo e subserviente a Major e afirmou que a ITV

    ofereceu horrio poltico gratuito ao Partido Conservador.

    J imaginaram isso no Brasil? Um rgo de fiscalizao,

    mantido pelo Estado, advertindo uma emissora de tev por causa

    da conduta pouco firme de seu reprter diante da mxima

    autoridade do pas?

    This is democracy...

    agosto/96

  • CAMPEONATO DE BALESCAMPEONATO DE BALES

    No dia 2 de agosto de 1990, eu olhava bales. O cu do

    norte da Inglaterra recebia sereno, apenas nuvens esparsas no

    decorrer do perodo, o vo sem rumo dos baloeiros. Olhava bales,

    e ainda estava ganhando por isso. Tinha a espinhosa misso de

    fazer uma reportagem sobre um campeonato de bales.

    No se pode dizer que era uma atribuio arriscada ou um

    servio perigoso. Poderia ser mais emocionante, se houvesse lugar

    em uma das naves. No h, mas o cameraman insiste com o

    comandante. Cinegrafista saboreia esta camaradagem com o

    reprter, este gnero masculino de humor, que consiste em meter

    o outro em pequenas enrascadas. Mas os bales teriam de

    esperar.

    Chega um recado para voltarmos imediatamente a Londres.

    O Iraque invadira o Kuwait.

    Ainda no escritrio londrino, preparo boletins com as

    ltimas notcias. Surge a primeira dvida da crise do Golfo: como

    pronunciar o nome do pas invadido? Kuwait? Ou Kuweit? Fica

    decidido em acordo com a direo, que diramos Kuwait, com o "a"

    aberto. Era a pronncia brasileira da palavra.

    Durante a crise, porm, todos os brasileiros

    trabalhadores, engenheiros, diplomatas ou tcnicos de futebol

    diziam Kuweit, do jeito ingls. Da, que todo mundo chamava a

    ento 19a provncia do Iraque de um jeito, e os reprteres de

    outro... Nada grave, s uma conseqncia da ausncia de norma

    na lngua brasileira quando se trata de pronunciar nomes

    estrangeiros. Os portugueses tm uma regra e "traduzem" tudo,

    Amsterdo, Roterdo, Moscovo... Pode nos soar engraado, mas

  • uma norma.

    No dia seguinte, estou num pas do Golfo Prsico, sob um

    calor de 50 graus. impossvel ficar ao ar livre. Para permanecer

    no pas, os reprteres no podem revelar onde esto, nem

    transmitir imagens que possam identificar o lugar. O Golfo estava

    com medo do prximo passo de Sadam. Os boatos de uma nova

    invaso, desta vez na Arbia Saudita, circulavam pelos corredores

    refrigerados.

    noite, no hotel, os hspedes recebiam instrues de como

    proceder em caso de ataque qumico. Em resumo, nos

    aconselhavam a encher a banheira, submergir todo o corpo, cobrir

    o nariz e a face com uma toalha molhada e, de preferncia, no

    respirar. No seria m idia ligar para o homem de negcios ingls

    que conhecemos no avio, que pelo jeito vendia de tudo, de

    refrigerante a metralhadora. A prxima reportagem seria sobre

    mscaras de gs...

    Mas deixa explicar por que lembro agora daquele longo

    vero no deserto. Ali comeava uma viagem pelo mundo das

    paixes, dios, e eterno p de guerra do Oriente Mdio. Depois do

    Golfo, veio a Jordnia, o Iraque, Ir e Kuwait, Turquia, Curdisto,

    enfim percorri todo o mapa da confuso. S no fui aonde tudo

    comea e tudo termina. Nunca tinha ido a Israel.

    *

    Foi rpido, apenas cinco dias em Israel, na semana

    passada. Uma espcie de viagem para marcar o fim de um ciclo, j

    que estou mudando para o Brasil, iniciando uma nova misso. Por

    mais que se acompanhe a vida de um pas, por meio de livros e

    jornais, s na presena fsica o bvio se revela. Por exemplo,

  • pouca gente entende com clareza a diferena entre judeus e

    judeus-israelenses.

    Os judeus-israelenses querem que Israel seja um pas, e

    para isso trabalham e trabalham muito bem. J muitos judeus,

    como os tpicos colonos norte-americanos e os imigrantes

    ortodoxos, querem que Israel seja uma vingana. Os israelenses

    sabem que fazem parte de povos marcados pela mesma bno,

    ou maldio. A terra foi prometida a todos... .

    Este o pedao do mundo onde a manh no anunciada

    pelo canto do galo e sim pela orao amplificada da mesquita.

    Este o lugar onde cristos choram vista de uma pedra, onde os

    judeus esperam a chegada do Messias e a ressurreio de todos os

    mortos. Onde ocidentalizao alguma vence as tradies e onde a

    origem comum das grandes religies monotestas, somada falta

    de alternativa melhor, terminar por obrigar os fiis a algum tipo

    de coexistncia. Conviver, palavra difcil.

    *

    E, como esta coluninha serve tambm para contar as

    curiosidades, pequenas demais para merecer incluso no grande

    drama das notcias, a vai uma que pouca gente conhece: no

    Shabbath, dia consagrado ao descanso e prece, os judeus

    religiosos no podem fazer nada, criar nada. No podem apertar

    um boto.

    Como, ento, pegar um elevador para o 15. andar? No,

    no preciso encarar as escadas. Durante todo o sbado, um

    elevador reservado aos seguidores da tradio. O elevador pra

    em todos os andares, subindo e descendo, descendo e subindo.

    Para que a religio seja respeitada e que as mais nobres oraes

  • possam subir aos cus, de onde no costuma cair nem chuva,

    nem paz.

    fevereiro/96

  • CAMELOS E OUTROS BICHOSCAMELOS E OUTROS BICHOS

    Leio nos jornais que a montagem da pera Ada, na Praa

    da Apoteose carioca, contar com coadjuvantes das Arbias:

    camelos em corcovas e osso. Neste pas de enchentes e secas, de

    carncia e desperdcio, de fartura e "faltura", os camelos tm um

    apelo insupervel. Creio que deve bater com o nosso desejo

    infantil e insular de auto-suficincia, essa onipotncia nacional

    que pensa poder se lixar para a globalizao e tudo o que se passa

    l fora.

    Outro dia, uma estudante de jornalismo me disse, a srio,

    que o noticirio internacional, j nfimo, deveria ser banido, pois o

    Brasil precisa mesmo se concentrar no prprio umbigo. E no so

    apenas universitrias otrias que pensam assim. Este parece ser o

    padro pelo qual se guiam muitos de nossos polticos, e grandes

    cabeas de nossa esquerda. Tudo o que vem de fora parece ser

    resultado de conspiraes e conluios que visam nossa

    explorao, aniquilao e subjugao. Em uma palavra,

    insuportavelmente abusada por aqui, "neoliberalismo".

    No h esta ordem no jogo da economia internacional. As

    multinacionais no se renem para definir a nova maneira de

    estropiar o Terceiro Mundo. As coisas so muito mais caticas e

    perversas. a tal lgica do mercado.

    Sem entender isto, atacam o governo federal pelo que tem

    de mais correto: a sua posio ideolgica.

    Mas eu quero falar de camelos. A minha primeira

    lembrana dos bichinhos triste: pobres camelinhos e

    dromedrios de corcovas murchas, no Zoolgico do Rio de Janeiro.

    Fiquei decepcionado e preocupado, pois afinal se as corcovas

  • estavam a zero era sinal de que os bichos poderiam estar com

    sede. Muitos anos se passaram at que vi os camelos em seu

    hbitat.

    Estava num emirado do Golfo Prsico, mas no podia

    revelar o nome do pas em minhas reportagens. O Kuwait acabara

    de ser invadido e todos os vizinhos temiam o prximo passo de

    Sadam. Para gravar os comentrios on camera, escolhamos

    criteriosamente palmeiras fotognicas para servir de pano de

    fundo. Aquele negcio comeou a ficar repetitivo, alm do que as

    palmeiras e coqueiros so parte destacada de qualquer paisagem

    brasileira. O calor de mais de 50 graus que, volta e meia,

    paralisava a cmera e fazia o reprter derreter no ficava evidente

    na imagem. At que algum teve a idia: bota um camelo pra fazer

    figurao!

    *

    Assim foi feito. Ao final de cada dia de trabalho, deixvamos

    a capital do tal pas e nos encaminhvamos para o deserto cm

    busca dos coadjuvantes de Ada. No que eles fossem muito

    disciplinados. Sempre que montvamos o trip e chegvamos ao

    enquadramento desejado, os camelos cismavam de cismar pelas

    dunas mais prximas. No nosso ponto de vista, mais distantes...

    E no muito fcil encontrar camelos vira-latas nas

    proximidades dos assentamentos humanos. Camelo no mundo

    rabe mais do que animal, moeda. Quando um amigo meu

    esteve num pas rabe recebeu boas ofertas pela namorada. Nada

    em dinares, dlares ou petrodlares. A unidade monetria para se

    avaliar uma mulher naqueles lados sempre o camelo.

    Quinhentos, mil, dois mil camelos pelas senhoritas ocidentais.

  • E a paixo pelas corridas de camelos nos pases do Golfo

    muitas vezes supera em fanatismo religiosos de todas as cores...

    *

    Depois, fiquei besta. Um camelo a mais ou a menos, j os

    olhava como se fossem fuscas no Brasil.

    S me chamaram a ateno de novo, numa outra viagem,

    agora para a sia Central. Estava na repblica da Caracalpquia,

    regio autnoma do Usbequisto. Os camelos de l so diferentes,

    quase pretos de to escuros. E passeiam por um deserto que at

    bem pouco tempo era o mar do Arai.

    Acreditando na docilidade que encontrei entre os camelos

    do Golfo, fui me aproximando sem medo daquele grupo que

    vagava beira da estrada. At que um deles investiu, ou fingiu

    investir, contra mim, fazendo uns barulhos de dar medo. S

    depois me explicaram que era a poca de procriao e que tanto

    fmeas grvidas quanto os machos ficavam ferozes e perigosos.

    Sim, a coluna de hoje um despropsito. Mas de propsitos

    e despropsitos de propsito tambm faz-se a crnica.

    Ah!, e uma certa feita tive o privilgio de viver alguns

    minutos animais... Era no Zo de Londres, onde um ator

    especialista em animais convidava grupos para que incorporassem

    algum animal. O ator j tinha conseguido se socializar com um

    grupo de chimpanzs. Ele no nos propunha nada to arrojado.

    Apenas oferecia um exerccio teraputico de observao e

    concentrao. Cada um escolhia o seu animal e fazia, mais do que

    uma imitao, uma transfigurao. Escolhi o camelo, com seus

    olhos baixos e mansos, seu lento mastigar da existncia, suas

    pernas flexveis, velozes e lentas a um s tempo.

  • Foi bom para mim tambm. Esquecer as contas, ver o

    mundo com olhos sabiamente indefesos.

    Desde ento, no suporto ver qualquer nmero de circo

    com animais amestrados. Adestramento quer dizer tortura.

    abril/96

  • FANATISMOFANATISMO

    "Que fanatismo!", exclamam os brasileiros diante das lutas

    sangrentas do Oriente Mdio. Habituados nossa tradicional

    cordialidade, ou seria pusilanimidade?, no conseguimos entender

    por que estes povos se matam tanto e h tanto tempo.

    O que um fantico? Qual a diferena entre um fantico

    e um criminoso comum? Um bandido, como estes tantos que a

    tragdia social brasileira produz, tem vrios traos em comum

    com o que chamamos de fantico. Disse Glauber Rocha, no seu

    manifesto por uma "Esttica da Fome", que "...a violncia a

    manifestao mais nobre da misria". As idias por trs da frase

    no poderiam estar mais fora de moda, e ainda bem que assim.

    Pois, embutida na genialidade de Glauber, havia uma

    romantizao da misria e da violncia. Mas, sem dvida,

    bandidos e fanticos germinam na injustia. Ambos esto

    dispostos a matar e a morrer. E os dois lutam pela sobrevivncia.

    S que o fantico luta pela sobrevivncia de uma idia.

    No se trata de perdoar o fanatismo, mas de tentar

    entender...

    Terroristas, no Oriente Mdio, todos, sem exceo, foram

    em algum momento de suas biografias. Os rabes no esto

    errados quando dizem que o Estado de Israel foi criado por

    terroristas. E isso no se aplica s a trajetrias como a de Rabin,

    que fez a transio de guerrilheiro a estadista. A origem de Israel

    est no terror nazista.

    Lembro-me de um diplomata asitico que exps em uma

    frase o ponto de vista rabe: "Ento, a Europa faz o holocausto e

    os rabes tm de pagar o pato..."

  • Bom, se o Estado judeu deveria ter sido implantado num

    pedao gelado do Canad ou no Qunia, agora no faz sentido

    perguntar. Israel existe, e tem o direito de existir. At os iranianos

    j reconhecem isso, mesmo que no o possam admitir

    publicamente.

    *

    Resta reconhecer que os palestinos tm o mesmo direito. Se

    hoje eles tm de se submeter superioridade israelense, para

    alcanar algum tipo de Estado palestino, devem isso, em grande

    parte, incompetncia e arrogncia rabes.

    Mas, no estou aqui para fazer anlises sobre poltica

    internacional. Conto histrias.

    Vamos a elas.

    *

    Beirute. Num leito de hospital, uma mulher palestina de 74

    anos agonizava. Ela vive no exlio, desde que foi expulsa de sua

    terra pela guerra entre rabes e israelenses em 1948. A filha

    chega com as notcias. "Houve dois atentados suicidas em Israel.

    Mais de vinte pessoas morreram!"A velha d um pulo da cama,

    iluminada por um sopro de vida com a notcia da morte brbara

    de inocentes.

    Os sobreviventes da dispora palestina j perderam h

    muito qualquer compaixo pelo sofrimento de Israel. Nos muros

    de Sabra e Chatila, a pichao mais recorrente o retrato do

    "Engenheiro" Yahya Ayash, assassinado por agentes israelenses

    no dia 5 de janeiro de 1996.

  • *Hebron, territrios ocupados. Um jovem palestino d uma

    aula de histria recente ao reprter americano que reclama de sua

    passividade diante das atrocidades do Hamas: "Israel e Hamas

    tiveram um cessar-fogo que durou sete meses. Israel rompeu a

    trgua ao matar Ayash. Ento Hamas foi atrs da forra e agora os

    israelenses querem que derramemos lgrimas por eles".

    O jornalista americano s no teve a presena de esprito de

    lembrar que Ayash era um militar, e a revanche sobrou para

    judeus civis...

    *

    Israel ajudou a criar o Hamas, acreditando que a

    organizao seria um contraponto islmico influncia de Arafat.

    Isso quando a OLP era tida como a grande organizao terrorista

    do Oriente Mdio. Shimon Peres j se encontrou pessoalmente

    com ativistas do Hamas. E h duas semanas, o governo israelense

    ameaou reabrir conversaes com a organizao islmica se

    Arafat no tomasse conta deles.

    Os Estados Unidos acusam o Ir, no sem razo, de estar

    por trs das operaes do Hamas. Mas, alm das doaes do Ir e

    de alguns estados do Golfo, a maior parte do dinheiro do Hamas

    vem mesmo de palestinos americanos...

    *

    A base de sustentao do Hamas, cerca de vinte por cento

  • da populao, no foi forjada por bombas. Os fundamentalistas

    fazem algo parecido com os chefes do trfico dos morros cariocas.

    Fornecem populao o que os ocupantes israelenses negaram e

    que a autoridade palestina ainda no conseguiu prover: educao,

    transporte, assistncia mdica, alimentos, oportunidades.

    S um milagre dar a reeleio Shimon Peres. Os

    fundamentalistas judeus, o pessoal de Ygal Amir, saboreiam a

    desgraa dos trabalhistas. Conversando com Baruch Malzel, lder

    radical judeu em priso domiciliar, ele me diz que a opo tambm

    no lhe agrada. Para o fantico, o Likud de esquerda...

    Alis, depois de conversar com Malzel, me ocorre uma

    definio de fantico bem mais simples e eficiente do que as

    elocubraes do primeiro pargrafo. Fantico no aquele que s

    acredita no que v, ao contrrio. Ele s v o que acredita.

    mais um momento de desespero para Israel. No dia

    seguinte bomba no centro de Tel-Aviv, o jornal Jerusalm Post

    afirmava, em editorial, que uma situao no convencional exigia

    solues no-convencionais. Por "situao no convencional", leia-

    se a impotncia diante dos terroristas suicidas. O jornal ento

    sugeria a soluo encontrada pelos imperialistas britnicos

    quando enfrentaram problemas idnticos no Sudo ocupado. Os

    britnicos passaram a enterrar os suicidas, cobertos em pele de

    porco. Como vestido de porco ningum entra no paraso islmico,

    os atentados cessaram.

    *

    Israel s se livrou do terrorismo da OLP, e os palestinos s

    tiveram algumas conquistas, ainda que modestas, quando

    comearam a negociar. Prises, assassinatos e represso s

  • criaro novos mrtires, heris e fanticos. Sculos da justia do

    olho por olho criaram uma legio de cegos.

    Terrorismo imperdovel. Hipocrisia tambm.

    maro/96

  • A GUERRA DO GOLFO ACONTECEU?A GUERRA DO GOLFO ACONTECEU?

    Cham-lo de feio seria elogio. Nariz descomunal, verrugas

    em profuso por toda a face, remela nos olhos, ranho sobre os

    lbios, parcos dentes. Banho no via desde a guerra contra o Ir.

    O cachecol s no era mais gorduroso do que os cabelos rasos.

    Cheirava mal, tinha mau hlito e, alm de asqueroso, fazia

    questo de ser desagradvel. No entanto, Adnan era o homem

    mais assediado de Am, naquele inverno de 91.

    Francesas, alems, italianas e suecas, todas se derretiam

    em charme para Adnan, rolavam os olhinhos, faziam biquinho,

    jogavam o feminismo na lata de lixo do consulado iraquiano na

    capital da Jordnia. Os homens tambm s pensavam em seduzi-

    lo e usavam suas armas. noite, no bar do Hotel Intercontinental,

    os reprteres disputavam o privilgio de pagar um drinque para

    Adnan. Cenas de bajulao explcita e suborno implcito.

    Adnan era o funcionrio do consulado em Am, responsvel

    pela emisso de vistos para o Iraque durante a guerra.

    Todas as manhs o mesmo espetculo se repetia, diante da

    porta da representao iraquiana. Jornalistas de todo o mundo

    esperavam a sorte grande: o momento em que Adan apareceria,

    anunciando a lista dos contemplados da vez. A algazarra

    desesperada de cada dia na fila dos vistos foi o circo da mdia que

    ningum viu.

    Quando precisam de algo, reprteres engolem qualquer

    resqucio de orgulho e suplicam, imploram, se humilham com

    gosto. Hoje, parece engraado. Na poca era s pattico.

    Depois de berrar os nomes dos agraciados com os vistos,

    Adnan virava-se para o resto e dizia, com carregado sotaque

  • rabe: "Come back tomorrrow! Maybe tomorrrow, Maybe

    tomorrrow..."

    Uma certa manh, confesso, Adnan sorriu para mim... Ele

    garantiu que nossos vistos sairiam tarde. A equipe teve o almoo

    mais feliz de toda a guerra.

    H cinco exatos anos, amanh, comeava a Guerra do

    Golfo. Hoje, tendo a concordar com o acadmico francs Jean

    Baudrillard, que escreveu o livro A Guerra do Golfo Nunca

    Aconteceu. So trs artigos, originalmente publicados no

    Liberation, onde Baudrillard analisa o conflito de 91, sob a tica de

    sua teoria do simulacro.

    Cito: "... Assim como a riqueza no mais aferida por sua

    ostentao e sim pela circulao secreta do capital especulativo;

    tambm a guerra no medida por sua deflagrao, mas por seu

    desdobramento especulativo num espao informtico, eletrnico e

    abstrato, o mesmo espao onde se move o capital...". Em resumo,

    Baudrillard afirma que a Guerra do Golfo no aconteceu, pois s

    h guerra quando os dois lados correm riscos. Segundo o

    raciocnio do intelectual francs, no Golfo pela primeira vez "... O

    poder de criar uma crise se mesclou ao poder de dirigir o filme

    sobre a crise...".

    Todos os elementos de um roteiro de Hollywood estavam

    presentes, desde a linguagem "John Wayne" usada pelos militares

    americanos em seus briefings, passando pela reutilizao de

    cones do passado (o pssaro banhado de leo, que j tinha sido

    estrela do desastre ecolgico do Exxon Valdez no Alasca), at a

    edio das cenas de batalha, a montagem ao vivo da realidade.

    Como exemplo do absurdo da auto-representao da mdia,

    Baudrillard lembra o momento em que o estdio da CNN em

    Atlanta chamou um grupo de reprteres no meio do deserto,

  • apenas para ouvi-los declarar que eles tambm estavam

    esperando o noticirio da CNN para saber o que estava

    acontecendo.

    Em Am, a sala de espera da guerra, nem a CNN tnhamos

    pois o governo do rei Hussein, aliado a Sadam, censurava o sinal

    da rede mundial de telejornalismo.

    *

    Em cinqenta anos de poltica, Franois Mitterrand fez

    histria em vrios momentos. Alm de ter sido o primeiro

    presidente socialista da Frana, Mitterrand bateu o recorde de De

    Gaulle, permanecendo 14 anos no poder. Porm, durante to

    longa e bem-sucedida carreira, foi durante a Guerra do Golfo que

    Mitterrand alcanou seus mais altos ndices de popularidade.

    "A Frana tem uma obsesso por 'Grandes Homens'", disse

    o articulista Serge July no dia seguinte morte do ex-presidente.

    "O 'Grande Homem', na Frana, objeto de uma religio nacional."

    No toa que Paris a nica capital do mundo com um

    "Panthon", e tambm no foi por acaso que em 81, assim que foi

    eleito, Mitterrand no inaugurou o seu governo no Eliseu, e sim

    no Panthon. "Mitterrand no foi apenas a anttese de De Gaulle",

    afirma July, "foi tambm a sua imagem no espelho da esquerda."

    Paris ficou muda na segunda-feira passada. O silncio da

    multido em torno do prdio onde Mitterrand morreu era

    impressionante.

    Uma rdio transmitia telefonemas ao vivo, com a opinio

    dos franceses sobre seu lder por tanto tempo. Uma mulher liga,

    irada, dizendo que at na hora de morrer Mitterrand a irritou. O

    marido da senhora gosta de apostar nos cavalinhos e, por causa

  • do falecimento do estadista, as rdios no transmitiram o

    resultado das corridas. No pas da racionalidade, o dio a

    Mitterrand era irracional. O amor tambm. Entre as milhares de

    pessoas que foram Bastilha, debaixo de chuva na vspera do

    enterro, muitas votaram em Chirac, na ltima eleio.

    Catorze anos no poder tiram qualquer um do poder.

    H 20 anos em Downing Street, os conservadores britnicos

    esto batendo todos os recordes. Agora, governam com uma

    maioria insignificante de dois deputados no Parlamento. As

    recentes deseres tm uma explicao. Todo parlamentar quer

    um emprego ministerial. Os conservadores j criaram vrios

    postos para atender voracidade dos parlamentares por uma

    boquinha no governo. S que depois de 20 anos, no adianta

    prometer um emprego na prxima reforma ministerial, pois todos

    sabem que a farra est para acabar. Da que resta aos

    parlamentares o gesto espetacular de mudar de partido para

    investir no prximo governo.

    *

    Ah, o Adnan... Naquela tarde, nossos vistos para o Iraque

    no se materializaram. Depois apuramos que o repugnante

    diplomata tinha vendido os nossos vistos para jornalistas alemes.

    Adnan foi punido por corrupo, aps a guerra.

    Perdeu o emprego e caiu em desgraa. Parece que fugiu de

    Bagd...

    Ns acabamos chegando a Bagd um dia depois do cessar-

    fogo.

    Preso em Ama, espera do visto sempre prometido e nunca

    expedido, a Guerra do Golfo foi para mim uma oportunidade de

  • conhecer melhor a questo palestina. Diariamente, visitava os

    acampamentos dos refugiados e me debruava sobre o ponto de

    vista rabe da Histria, to oposto viso hegemnica ocidental.

    Estava perto, corri riscos, vivi as conseqncias da guerra. Mas as

    bombas sobre Bagd foram para mim to virtuais quanto para os

    telespectadores de todo o mundo.

    "Maybe tomorrow..."

    janeiro/96

  • PROFISSO: VICIADOS EM PERIGOPROFISSO: VICIADOS EM PERIGO

    Bocas secas, mal conseguem falar. Chapados pela forte

    maconha angolana, dois soldados se espremem sob a parca

    sombra, ouvindo rdio, emboscados pelo sol do meio-dia. Nada se

    move no calor viscoso, s o motor do automvel, que deixamos

    ligado.

    No sabamos, mas aquele par de corpos inertes, abraados

    s "Kalashnikov", constitua a ltima posio do governo, a 60

    quilmetros da capital Luanda. A cinco minutos dali, nos esperava

    a guerrilha da UNITA.

    Antes de seguirmos para a boca do lobo, a Rdio Angola

    nos surpreende com a trilha sonora daquela frica desolada e

    devastada. Vincius e Toquinho cantando "Na Tonga da Mironga

    do Kabulet..."

    Seguimos a estrada por pouco tempo.

    Na entrada da vila de Caxito, o carro cercado pelos

    homens de Savimbi. Esto desesperados, toda a sua liderana

    imediata foi massacrada na batalha que sucedeu as eleies de

    novembro de 1992.

    Apontam a pistola para a cabea de nosso motorista, de

    uma etnia inimiga. O lder dos guerrilheiros grita:

    Vai morrer!

    *

    Para quem gosta dos bastidores do jornalismo, nada se

    compara s histrias de guerra.

    Na sexta-feira passada, em Berlim, os maiores

  • correspondentes de guerra da atualidade fizeram uma conferncia

    sobre "Segurana na Reportagem". Da BBC, Martin Bell, o homem

    do terno branco, que cobre o conflito na ex-Iugoslvia, desde o seu

    incio; da CNN, a bela guerreira Christiane Amanpour, especialista

    em coberturas de alto risco; da WTN, a brava brasileira.

    Christiana Mesquita, que fez de Sarajevo um segundo lar; e o

    veterano cinegrafista da BBC, Mohammed Amin.

    A mesma frase que abriu as duas horas de debate tambm

    o encerrou:

    No h segurana em reportagem, talvez segurana

    relativa, afirmou Martin Bell.

    Ele sabe bem disso. Em Sarajevo, levou estilhaos na

    barriga, mas voltou aps umas frias no hospital. Srvios e

    bsnios reconhecem o terno claro a distncia. Apesar de britnico,

    Bell tem as suas supersties: usa ps de meia descasados, para

    afastar a falta de sorte.

    Christiane Amanpour nunca se feriu gravemente, s Deus

    sabe como... Ela pertence a um clube que se encontra nos

    troublespots do mundo, profissionais viciados em perigo.

    D para entender o vcio. Na guerra, um reprter lida com a

    matria-prima essencial da natureza humana, e os conceitos

    fundamentais de vida e morte, verdade e mentira.

    Disse "viciados em perigo" e agora me pergunto: no seriam

    viciados em medo? Ou antes, dependentes do fluxo de adrenalina,

    da superao do medo?

    Pois, na linha de frente, o medo passa em dois minutos,

    voc se acostuma e logo quer tirar "as manguinhas de fora".

    Deve ser a tal fabulosa capacidade de adaptao do ser

    humano. S que, onde acaba o medo, pode comear o perigo.

    No h como escapar da mistificao, quando se fala em

  • cobertura de guerra. Depois de muito blablabl, Christiane

    Amanpour no tinha por que temer o cabotinismo-.

    H algumas pessoas "equipadas" mentalmente para este

    tipo de trabalho, disse Amanpour. Ns sabemos onde estamos nos

    metendo, e sabemos que talvez no voltemos vivos.

    Nos conflitos quentes ps-guerra fria, tudo ficou mais

    perigoso para os correspondentes de guerra. Ningum mais

    considerado neutro, reprteres, agentes humanitrios, ONU ou

    Cruz Vermelha.

    Alm de muito pesados, os coletes prova de bala no

    garantem nada. No Haiti, assassinos cortaram o pescoo do

    fotgrafo, para ficar com o colete. Martin Bell reconheceu que no

    usa as placas de cermica, pois ningum consegue correr com

    aquele peso todo.

    Serve o que Steven Ambrose escreveu sobre os soldados: "A

    profisso... tem a dignidade do perigo".

    *

    Por falar em encrenca, as eleies na Arglia se aproximam.

    A votao ter enormes conseqncias, no s para o norte da

    frica, como tambm para a segurana da Europa e do mundo.

    Mas a barra argelina to pesada que as maiores televises do

    mundo no pretendem enviar equipes.

    *

    Imploro ao guerrilheiro pela vida do motorista.

    Para os jornalistas brasileiros, vir at a primeira linha da

    guerrilha angolana era uma reportagem. Para o angolano era a

  • morte.

    ramos quatro. Leo Serva, Paulo Pimentel, Gonalo

    Gomes e este que vos escreve.

    Carregaramos aquele fantasma negro para sempre.

    Desando a falar, no lembro o qu. Na memria, ficou a

    impresso de que, mais do que o significado das palavras, a

    torrente de som transmitia uma freqncia tranqilizante para o

    homem com o dedo no gatilho.

    De repente, ele recua, deixa a bala cair no asfalto.

    Mesmo assim, nosso motorista levado para um casebre

    beira da estrada com as paredes tingidas de sangue fresco,

    brilhoso. L, os guerrilheiros tiram os sapatos do "suspeito".

    Procuram calos. Se os tivessem encontrado, isto evidenciaria que

    o motorista j tinha usado botas, portanto j tinha servido ao

    Exrcito. Seria morto na hora.

    Sem calos, mas quase branco de to plido e tremendo da

    cabea aos ps, nosso guia sai vivo. Ele se junta ao grupo de

    jornalistas, uns oito, aprisionados pela guerrilha. Os homens da

    UNITA seguem a tradio tribal, s conversam com os mais

    velhos. Um jovem cinegrafista tenta impedir o confisco de sua

    cmera e acaba usando uma palavra que atia a ira de nossos

    captores.- "Essa cmera minha vida!". A meno da palavra vida

    desestabiliza os guerrilheiros. "Vida! No me fale em vida!", berra o

    homem que tem uma vida de morte...

    J me preparava internamente para um longo cativeiro.

    sempre assim em situaes-limite, fico pronto para o pior. Mas a

    captura foi breve, fomos libertados poucas horas depois.

    No caminho de volta, a dupla da "Tonga na Mironga"

    desapareceu. Leo canta o repertrio completo de Leandro e

    Leonardo. Aprendemos uma: "cuidado redobrado", na guerra,

  • significa cuidar para no morrer, e no matar.

    novembro/95

  • TRS SEGUNDOS DE ASTRONAUTATRS SEGUNDOS DE ASTRONAUTA

    "Bem bolado..." comentei com meus botes e cintos de

    segurana. Todas as cadeiras do pequeno avio davam os

    costados para a cabine do piloto. "Deve amenizar o impacto do

    pouso." Alis, num porta-avies no se chama pouso. rescue,

    resgate, recuperao.

    Como se chega a um porta-avies? De barco? Negativo... De

    helicptero? No, se a esticada vai do Mediterrneo ao Adritico,

    at a costa da ex-Iugoslvia. Num porta-avies se desembarca...

    de avio!'

    Para pousar, o piloto no pode diminuir a velocidade. O

    avio precisa de toda a sua potncia para uma possvel

    arremetida, pois s vezes o ganchinho na barriga no encontra o

    cabo de ao na pista exgua. Quando gancho e cabo se entendem,

    a desacelerao instantnea e brutal. Um tranco seco e

    competente. De costas para o nariz do avio, o passageiro absorve

    a freada que o amassa contra o assento..

    Quem pousa, tem de decolar mais cedo ou mais tarde.

    Decolemos mais tarde...

    Um pouso mais convencional no aeroporto de Frankfurt

    resulta em desembarque nada convencional.

    As rachaduras polticas da Unio Europia se manifestam

    visualmente na pista. Policiais recebem os passageiros, antes que

    estes possam descer o ltimo degrau da escada de desembarque.

    Isto ao fim do vo Londres-Frankfurt, ponte-area da UE! U...

    No se trata somente de medo de terrorismo. A preveno

    contra os imigrantes dos vizinhos. A Gr-Bretanha no assinou o

    Tratado de Schengen, que aboliu as fronteiras do continente

  • europeu. Agora, quem cruza a fronteira do primeiro pas europeu,

    passa direto pelas outras. As excees so o Reino Unido, Irlanda

    e Itlia, que ficaram, fora do espao livre de Schengen. Este o

    pretexto para a recepo armada. Nem todos os passageiros so

    intimados a mostrar o passaporte. Os guardas pedem a

    identificao de quem tem pele mais escura ou outro trao tnico

    marcante. O critrio racista no chega a escandalizar ningum,

    a regra do jogo. Difcil entender por que, cinco minutos mais

    tarde, no interior do terminal, desta vez todos os passageiros

    devem mostrar seus passaportes, na Imigrao moda antiga.

    Pelo menos no segundo controle, os policiais no trazem uma

    metralhadora a tiracolo...

    Autoridades do Alto Comissariado das Naes Unidas para

    Refugiados tm um apelido corrente para a Unio Europia:

    "Fortaleza Europa".

    *

    Mas digamos que o estrangeiro chegue Alemanha, como

    turista, jornalista ou brasileiro. No h um que no se deslumbre

    com as auto-bahns, as superestradas alems, que no tm limite

    de velocidade. Voc pensa que est planando a 150 por hora,

    sobre o tapete de asfalto, quando... zzzuuuuummmmm!, um carro

    nacional passa voando de verdade.

    Os brasileiros, usurios de matadouros de asfalto ralo,

    apreciam ainda mais a perfeita planura, o desenho suave, a

    segurana das rodovias alems.

    Nem sabemos que a perfeio rodoviria germnica

    depende do gnio de um engenheiro pernambucano. Antnio

    Bulhes morava em Olinda, com a mulher alem e filhos. O

  • confisco de Zlia/Collor mandou a famlia para Munique. Para

    entrar no mercado europeu Antnio amalgamou-se ao computador

    e s levantou depois de ter criado um programa genial, para

    projetar estradas. O soft de Antnio resolve, em poucas horas,

    clculos que antes exigiam trs dias de trabalho. Eis um

    estrangeiro imprescindvel.

    E as superestradas alemes custam menos do que as

    nossas corruptelas.

    Vo da marinha americana no tem aeromoa. Tem duas

    moas, exemplos de soldado, autoconfiana e eficincia. Elas me

    remetem a Colin Powell, que encontrou mais democracia nas

    Foras Armadas do que na sociedade americana, e fico apreciando

    o estilo militar feminino. O barulho dos motores ensurdecedor,

    escrevo uma pergunta para uma delas. Na resposta, a decepo:

    minha doce soldada semianalfabeta.

    Um empresrio brasileiro, dono de filiais nos Estados

    Unidos, encontrou o mesmo sintoma durante o recrutamento de

    operrios locais: ndices de analfabetismo crescentes na nica

    superpotncia mundial.

    *

    No pouso, as cadeiras estavam viradas para trs. Agora,

    presumo, partiremos de frente.

    Presuno... Ao embarcar, constato que os assentos

    permanecem na mesma posio. Isso significa que suportaremos a

    acelerao de 0 a 220 quilmetros por hora, em menos de trs

    segundos, sustentados apenas pelos cintos de segurana,

    cruzados frente ao peito?

    Sim.

  • Algumas instrues antes da decolagem-relmpago.

    Voc no quer quebrar o pescoo, portanto no olhe pela

    janela!

    No olhei, cruzei cintos e braos, colei o queixo no peito, e

    vivi meus trs segundos de astronauta. No, no d frio na

    barriga. O corpo todo ganha instantnea imponderabilidade,

    durante longos segundos fica leve como um balo.

    Eu, que gosto da Rssia e no aprecio parque de diverses,

    devo admitir: melhor do que qualquer montanha-russa.

    outubro/95

  • VOC SABE O QUE EST ACONTECENDO VOC SABE O QUE EST ACONTECENDO

    EM NOSSO PAS?"EM NOSSO PAS?"

    Quando voltou ao Brasil, depois de quase 30 anos, Vladimir

    no se emocionou ao pousar no Galeo. Ele tambm manteve o

    sangue-frio ao rever as montanhas do Rio, cercando a Lagoa

    Rodrigo de Freitas. Olhou a praia como se tivesse pegado jacar

    um dia antes.

    Foi s quando entrou no quarto de hotel que o corao

    sovitico-brasileiro disparou. Viu um rdio na cabeceira da cama.

    Aproximou-se devagarinho e procurou a freqncia.

    Estava l, no mesmo ponto do dial. Vladimir chorou ao

    ouvir a hora certa da Rdio Relgio.

    Algumas coisas no mudam, nem no Brasil.

    *

    Vladimir teve uma infncia feliz, no bairro de Santa Tereza.

    O pai dele era msico da Orquestra do Teatro Municipal. A famlia

    vivia numa casa ampla e confortvel. O pai trabalhava muito,

    desdobrando-se entre ensaios, concertos e aulas. S chegava tarde

    em casa, mas encontrava mulher e crianas bem alimentadas e

    felizes.

    O velho Ereemev tinha sido preso pelos alemes durante a

    Segunda Grande Guerra. No fim do conflito, apaixonou-se por

    uma russa das foras de liberao mas no perdeu a cabea a

    ponto de pensar em voltar para a Unio Sovitica. Sabia para onde

    Stalin mandaria os ex-prisioneiros de guerra. Entre o Gulag e a

    Amrica do Sul, no foi difcil escolher.

  • S que, depois do reatamento de relaes diplomticas

    entre Brasil e Unio Sovitica, uma febre de nostalgia tomou conta

    do ex-combatente. Farto do descaso brasileiro com as artes e a

    cultura, Ereemev vivia tecendo loas s realizaes do sistema

    sovitico. Resolveu voltar.

    O filho Vladimir ficou com um ltimo sambinha na cabea.

    A letra rimava paredo com Cuba e contramo. No refro, avisava

    Fidel que, no Brasil, barbudo s camaro...

    *

    Durante a viagem de navio at Gdansk, na Polnia, a

    temperatura foi despencando. Do vero carioca ao inverno

    polons, o menino Vladimir, de baixo dos seus doze anos,

    comeou a desconfiar que algo ia mudar radicalmente. Na hora de

    embarcar no trem para Moscou, a multido ocupava todas as

    portas, a plataforma fervilhava, gritaria eslava, cotovelos, casacos,

    malas, sufoco. Para embarcar o filho, a me de Vladimir o

    arremessou pela janela do vago. Vladimir teve uma crise

    histrica. Esperneou, berrou, resistiu, queria voltar para o Brasil.

    Foi contido. Calou a boca e nunca mais a abriu.

    A famlia de cinco pessoas foi viver num apartamento de

    dois cmodos em Moscou.

    Para ter a cidadania sovitica, foi obrigado a entregar o

    passaporte brasileiro. At hoje, ainda no conseguiu provar

    embaixada brasileira em Moscou que tem um registro de

    nascimento no Rio.

    Por ter nascido no exterior, ele nunca teve chance de

    desenvolver seu extraordinrio talento para a eletrnica.

    Fascinado por rdios, no foi aceito na Escola de

  • Telecomunicaes, rea de segurana nacional. Bem que ele

    tentou entrar no Partido, para viabilizar a carreira. No foi aceito

    nem depois de servir como voluntrio ao exrcito.

    Acabou se conformando com a funo de tradutor. Foi

    parar na guerra civil de Angola, onde um dia estranhou a sbita

    frieza dos diplomatas estrangeiros. S ficou sabendo da invaso do

    Afeganisto com um ms de atraso. Na frica, conheceu Irina,

    princesa por direito sangneo, menina proletria por formao e

    convico, que por sua vez s descobriu que Angola estava em

    guerra civil, quando foi surpreendida por uma batalha, ao chegar

    a Huambo. Vladimir e Irina casaram-se e tiveram um casal de

    filhos. Apesar de ter chorado lgrimas genunas quando Leonid

    Brejnev morreu, Irina s ingressou no Partido em plena

    Perestroika, para ver se conseguia ascender na universidade, onde

    clava aulas de Geografia.

    *

    Conheci Vladimir e Irina no dia 18 de agosto de 1991.

    Irina sonhava com a carreira de empresria, queria abrir

    um salo de beleza, se o governo Gorbatchev desse certo.

    Vladimir tinha montado o seu prprio computador em casa,

    depois de comprar pecinhas em feiras de rua.

    *

    Na manh seguinte, Irina me encontrou no lobby do hotel e

    exclamou com os olhos arregalados: "Voc sabe o que est

    acontecendo em nosso pas?"

    No, eu ainda no sabia que Gorbatchev tinha cado e que

  • estvamos prestes a ver os trs dias que iriam encerrar a

    Revoluo de Outubro de 1917.

    Por que conto tudo isso hoje?

    Irina no tem salo de beleza nenhum. Trabalha por um

    salrio de fome para uma empresa espanhola. Vladimir continua

    enfurnado em seu emaranhado de rdios e computadores. Ela tem

    de pagar Mfia para manter o seu negcio. Ele no sai de casa.

    O casal vota em Boris Yeltsin.

    abril/96

  • BATISMO DE CHUMBO NA RSSIABATISMO DE CHUMBO NA RSSIA

    Na outra margem do rio Moscou, a batalha do Parlamento.

    Deste lado, subimos num tanque, para obter um ngulo melhor de

    filmagem.

    4 de outubro de 1993, as tropas leais a Yeltsin j castigam

    o Parlamento h oito horas. Tiros, exploses, rajadas, mortos e

    feridos. Assistindo a tudo, uma multido de civis.

    "Essas coisas s acontecem na Rssia..." Ouvi esta frase na

    minha primeira estada moscovita, e em todas as visitas

    posteriores. Algumas vezes proferida com vergonha, outras como

    afirmao orgulhosa, quase vim desafio. Os russos vivem em

    oscilao ciclotmica entre a mais baixa auto-estima e a soberba.

    Quem pensa que Dostoievski se desatualizou no entende de

    literatura ou no conhece a Rssia.

    Sobre o tanque, consideramo-nos a salvo de balas perdidas.

    Eis que ao meu lado, outro tipo de perigo armado se aproxima.

    Um assaltante aponta o revlver na minha direo.

    Naquele dia, Boris Yeltsin deixou de ser heri.

    Dois anos antes, tnhamos visto sua ascenso ao herosmo

    e ao Kremlin, discursando sobre blindados, vencendo o poder

    sovitico.

    Por obra da sorte, ou como diz minha me, do destino, eu

    estava em Moscou naquele 19 de agosto de 1991. Era a primeira

    visita Unio Sovitica, onde realizaria um documentrio sobre os

    crimes do stalinismo, no extremo oriente da Sibria. Nunca

    cheguei l. Quando aqueles dias velozes e estonteantes esgotaram

    a ateno dos espectadores ocidentais, j no havia mais

    condies meteorolgicas para empreender a viagem. O clima s

  • permite chegar l durante quinze dias de vero.

    Dormi meia dzia de horas, naquela semana do golpe

    frustrado de agosto de 91. No figura de linguagem: o tempo

    parecia mesmo escorrer de forma espessa durante aquelas horas

    espantosas. No estava credenciado a trabalhar como reprter em

    Moscou. A rigor, nossa presena era ilegal.

    Esta semiclandestinidade acabou nos trazendo a maior

    oportunidade. J que no podia estar presente nas entrevistas e

    conferncias oficiais, fiz todo o meu trabalho na rua. Acabei

    assustando os meus chefes no Rio, quando no primeiro dia de

    golpe destaquei e enfatizei a resistncia popular sob a liderana de

    Yeltsin. As agncias de notcias ainda tratavam a Junta como

    vitoriosa.

    Me apaixonei por Moscou e tive um curso intensivo sobre a

    alma russa. Um dia ainda vou mostrar um poeminha que fiz para

    Moscou, mas hoje destaco um verso: "...capital dos amantes da

    dor...", ou algo assim, no estou bem certo.

    *

    Assim como o Ocidente no entende at hoje o que

    representa Gorbatchev sob a tica russa, nossa viso de Yeltsin

    no passa de caricatura. Cham-lo de bbado muito fcil.

    Boris Yeltsin a expresso mais precisa, e competente, da

    cultura poltica sovitica. O sistema do socialismo real se esmerou

    em produzir oportunistas, na melhor das hipteses, e bandidos

    como entourage dos primeiros.

    Pude ver em seus olhos que era isso que ele queria.

    Esta foi a resposta do primeiro-ministro Viktor

    Chernomyrdin, quando lhe perguntaram se Yeltsin havia decidido

  • renunciar voluntariamente ao controle dos quatro ministrios-

    chave: Defesa, Segurana, Exterior e Interior.

    Boris Nikolaievitch parece bem mais doente do que seus

    assessores querem nos fazer crer.

    A transferncia dos ministrios significa que agora o dedo

    de Chernomyrdin que paira sobre o boto atmico russo. O

    primeiro-ministro transmite segurana e moderao aos lderes

    ocidentais. Ningum garante, porm, que Viktor Chernomyrdin

    no se trata apenas de outro adereo sobre o decorativo Yeltsin.

    Mais uma vez, um Rasputin parece comandar o destino

    russo: Alexander Korzhakov (l-se Korjakov), general reformado,

    chefe da guarda presidencial. Korzhakov tornou-se o principal

    interlocutor de Yeltsin, d as cartas executivas sobre um

    Legislativo desmoralizado e atende aos interesses da turma da

    pesada do complexo industrial-militar. O povo russo cada vez se

    importa menos com o espectro da volta de um regime

    antidemocrtico. O Parlamento s provoca desprezo. Partidos

    patrocinam falsificaes em massa de assinaturas, para obter

    registro eleitoral. Vrios candidatos vm da "Mafiya", criminosos

    que buscam somente a imunidade parlamentar.

    *

    Este ano, o inverno chegou cedo a Moscou. Uma grande

    nevasca inaugurou a fajuta campanha eleitoral. Televiso e rdio

    funcionam sob censura. Oposio no tem vez, e nem mesmo a

    imagem que divertiu o mundo, os belisces presidenciais nos

    derrires das secretrias, os russos puderam ver.

    Em tais condies se dar a votao no dia 17 de dezembro,

    como que anunciando outra grande interrogao: a eleio para

  • presidente, em junho de 1996.

    O neofascista Vladimir Zhirinovsky no representa uma

    grande ameaa. O veterano do Afeganisto Alexander Rutskoy

    pode assustar. Chernomyrdin deve ser a preferncia ocidental, a

    despeito de uma possvel candidatura Gorbatchev.

    Mikhail Sergueievitch Gorbatchev teria mais chances

    disputando o poder na Inglaterra. As contradies autofgicas do

    mais importante es