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Bial, Pedro - Cronicas de Reporter
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PPEDROEDRO B BIALIAL
CRNICASCRNICAS
DE REPRTERDE REPRTER
O correspondente internacional
conta tudo
o que no se diz "no ar"
Orelhas do LivroOrelhas do Livro
Em agosto de 1988, Pedro Bial desembarcava em Londres,
para assumir o posto de correspondente da TV Globo, naquela
cidade.
Sortilgios da sorte, artimanhas do destino, ele seria, a
partir de ento, testemunha privilegiada das grandes mudanas
que abalariam o mundo neste final de sculo.
Foram oito anos de viagens. Oito anos de, muitas vezes,
estar no olho do furaco. Oito anos de estreitar as distncias que
separavam o Brasil do mundo.
Crnicas de Reprter traz os bastidores destas grandes
reportagens. Longe do olho impiedoso da cmera, dos segundos
cronometrados, do corta incisivo, Bial conta agora detalhes do que
no foi ao ar.
O olhar arguto do reprter mostra aqui a adrenalina que
corre, a boca seca, a ansiedade de estar no lugar certo, na hora
exata. O olhar sensvel do poeta revela aqui frestas de poesia que o
pragmatismo do telejornal, muitas vezes, deixou escapar. O olhar
investigador do jornalista reparte com o leitor curiosas
estranhezas de cada povo, que nenhuma globalizao ser capaz
de destruir.
Crnicas de Reprter uma instigante viagem pelos quatro
cantos do mundo. No texto envolvente de Bial, voc testemunhar
a revoluo romena de 89. Voc se refugiar num tanque em meio
a tiros e exploses que estremeceram o Parlamento russo em 93.
Voc descobrir, por trs da bela Teer, um sistema brutal, capaz
de punir uma mulher por trazer as unhas pintadas. Voc
conhecer, enfim, a lmina afiada que ronda o dia-a-dia de quem
arrisca tudo pelo prazer de contar.
Crnicas de Reprter textos sensveis, irnicos,
emocionados, divertidos... Histrias, que se vo juntando num
sedutor painel desta nossa aldeia global.
http://groups.google.com/group/digitalsource
1996 by Pedro Bial
Direitos em lngua portuguesa para o Brasil, adquiridos ao autor
por EDITORA OBJETIVA LTDA.,
rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090
Tel.: (021) 556-7824 Fax: (021) 556-3322
Internet: http://www.objetiva.com
Capa
Luciana Mello e Monika Mayer
Reviso
Mariflor Rial
Sandra Pssaro
Teresa Ftima da Rocha
Editorao Eletrnica Textos & Formas Ltda.
1996
10 9 8 7 6 5 4
SUMRIOSUMRIO
Prefcio
Introduo
Cartilha Brasileira
Adis Muchachos
ncora, Leme ou Vela
Ares Londrinos
Campeonato de Bales
Camelos e Outros Bichos
Fanatismo
A Guerra do Golfo Aconteceu?
Profisso: Viciados em Perigo
Trs Segundos de Astronauta
"Voc Sabe o que Est Acontecendo em Nosso Pas?"
Batismo de Chumbo na Rssia
Receita Tambm Notcia
Fundamentalismo No Religio
Natal Revolucionrio
Bsnias
Longe Daqui, Aqui Mesmo
Bombas, Jornais e Tablides
Sabe Quem Morreu?
Onde Tudo Comea?
B de Beatles e Brasil
Um Rio Passa no Meio
What do You do In This Country?
A Flor e a Bola
Parece, Portanto
Imagem Tudo
Supermercado de Iluses. Vamos s Compras?
Francamente, tica, o que Vem a Ser Isso?
O Co do Mundo
T Tranqilo
De Brasil em Brasil
TV Falada
True Stories
Nada Causa Mais Nada
Salve-se Quem Puder
No Proibido Fumar
Brasil aos Pedaos
Um Velho Pas Jovem
Vai Entender o Brasil
Ao Encalo da Poesia
Esporte, o Show da Dor
A Vida No Como Ela
Saudades de Parreira
Bye Bye Brasil
Uma Mulher Chamada Domingo
A Vov e o Lobo
Histrias e Historinhas do Sculo
Perguntas Desnecessrias
De Volta ao Mundo
Bom, Ruim, Assim, Assim
PREFCIOPREFCIO
O Perseguidor do SonhoO Perseguidor do Sonho
Envolto nessa aura especial dos reprteres que estiveram l
onde as coisas acontecem, no olho do furaco como
correspondente de guerra, em todas as Bsnias e Iraques, como
diz ele, no mapa da confuso, longe daqui e aqui mesmo, capaz de
falar igualmente dos lugares ao longo do Rio So Francisco, dos
riscos de andar no calado de Copacabana, de como estar
frente do cano de uma arma na guerra civil angolana, da vida em
Vigrio Geral e da preparao do documentrio sobre o revival dos
Beatles, Pedro Bial pratica um jornalismo vivo, no-burocrtico.
Coloquial, proporciona tiradas assim: Alis, acabei me estendendo
demais sobre o assunto, e nem comecei a falar do que tencionava
dizer, acabei. Instigado pela conscincia de estar no mundo
ps-89, ps-guerra fria, mas nem por isso pacificado, chama a
ateno, sem tornar-se apocalptico, para a dissoluo de cdigos
e referncias, apontando desde a onipresena das mfias at a
hipocrisia de proibir o cigarro em um pas de motoristas-suicidas.
Talvez por ser filho de imigrantes, conforme relata, e ter viajado
tanto, mostra especial sensibilidade para as diferenas, a
diversidade cultural, ao apontar, como contraste marcante entre
Brasil e tantos lugares, o modo como se relacionam etnias,
crenas e nacionalidades, aqui de modo mais aberto, l de modo
excludente.
Envolvido no instrumento de globalizao que uma
grande rede de TV, a fbrica de notcias e no-notcias do
telejornalismo (sem poupar, tambm, o que chama de corja do
subjornalismo na imprensa escrita), quer, atravs da palavra
escrita, ultrapassar os limites da tela, de seu cdigo mais estreito,
de sua seleo e, s vezes, fabricao de acontecimentos, to bem
exposta na denncia do episdio do carro incendiado de propsito
na Romnia, da fabricao da guerra do Iraque, e em suas crticas
ao sensacionalismo.
Constantemente nos lembra de suas origens literrias, de
que tambm poeta. Ou, antes, perseguidor da poesia, como se
define no breve, porm tocante relato de como seguia Drummond,
e, seguindo-o, procurava enxergar o mundo atravs dos seus olhos
e sua sensibilidade, enquanto fazia perguntas abissais: O que faz
dele um poeta? O que ele est vendo agora? Como? Em que estar
pensando? Onde nasce a poesia? De modo discreto, obedece
vocao potica em imagens como esta, na descrio de sua
caminhada atravs de Londres: Nesta cidade, no preciso conhecer
o caminho das ruas. As ruas sabem o meu caminho. Por essa
familiaridade com a literatura, tem o sentido do ritmo: sabe que
no precisa enfeitar o texto, pois, em vrias passagens, a srie de
nomes de lugares j tem fora, poder de sugesto. Da virem
textos em tudo diferentes do amontoado de chaves e cacoetes
que, em muitos lugares, passa como sendo o modo jornalstico de
escrever.
A memria, componente fundamental da sensibilidade
potica, em Bial no apenas lembrana, reproduo do
acontecido. Poderia servir-lhe como epgrafe a frase de T. S. Eliot
libertao: esta a utilidade da memria. Quer a recuperao do
que foi perdido, amando o perdido na. tentativa de anular o tempo:
Depois de quase oito anos em Londres, quando volto ao Brasil no
me ocorrem lembranas de 1987 ou 1988, quando deixei de aqui
morar. As memrias que as pedras das ruas e dos prdios me
trazem vm de muito mais longe. Cada esquina, cada nibus, cada
escola me transportam mais remota infncia. um lrico que se
contm, ao encaixar um comentrio que poderia ser um ttulo ou
uma epgrafe: bom sonhar. Talvez, antes de ser poeta e reprter,
seja um flaneur, o caminhante ao acaso na tradio inaugurada
por Baudelaire: Mas a rua ainda melhor que a realidade virtual,
talvez at mesmo mais real...
Voltar-se para o passado, viver o sonho, no o impede de
encarar de frente a realidade e a modernidade. Por isso,.sua
relao com o meio eletrnico no apenas de crtica e tentativa
de ultrapass-lo, mas tambm de continuidade. Algumas das
qualidades exibidas neste livro, como a fala direta, a clareza e
simplicidade, a condensao, so as mesmas que o projetaram na
TV. V-se, em cada trecho, que e sempre ser um reprter. Por
exemplo, em Vai entender o Brasil..., presente Bienal do Livro,
convidado para ler seus poemas, no deixa de informar-se sobre o
mercado editorial, para oferecer seu relato e suas reflexes. Tanto
nos episdios corriqueiros como diante dos grandes dramas da
humanidade, mostra-se um jornalista da melhor espcie, do tipo
investigativo, que acompanha de perto os acontecimentos,
encosta-se a eles na obsesso pelo factual, e na busca de sentido
do que acontece.
Sem exagero e grandiloqncia, humaniza o relato
jornalstico atravs da ateno ao particular, o traado do perfil
dos personagens, o detalhe revelador de um mundo. Seus relatos
so no-lineares, com o formato de parbolas. Entre o comeo e o
fim de uma histria, o leitor o acompanha por diversos lugares e
situaes. Isso fica evidente na crnica antolgica sobre a rvore
de Natal na Romnia: entre o encontro do romeno que o leva a sua
casa e a descoberta da rvore, passa o mundo todo. s vezes, mais
comedido ainda, obliquamente, por aluso, inteiramente avesso
pieguice, como na resenha do livro de Marcelo Rubens Paiva, que
termina em uma tocante revelao, quase sussurrada, de como a
represso havia afetado sua prpria vida.
Ser a crnica o mais literrio dos modos jornalsticos, ou o
mais jornalstico dos gneros literrios? Provavelmente, as duas
alternativas so corretas. Tambm certo que a crnica um
gnero apenas aparentemente menor, com a dificuldade das
coisas ilusoriamente simples. Sem querer classificar, catalogar em
gneros e modalidades, prefiro chamar de crnicas aos textos de
Pedro Bial, inserindo-o em uma tradio que ele honra
plenamente, da qual fazem parte, entre outros, o trao elptico de
Lus Martins, a preciso aliada intensidade potica de Rubem
Braga, e as ousadias de Paulo Mendes Campos, que era capaz de
fazer que tudo fosse crnica: poemas em prosa, tradues,
pequenos ensaios, relatos diretos. Ao integrar trechos de
reportagem, comentrios polticos, memorialstica e depoimento,
Bial oferece um belo exemplo de encontro de jornalismo e
literatura, e mostra, mais uma vez, que no h separao, muito
menos antagonismo, entre as duas modalidades. So
complementares, pois dependem da palavra, e freqentemente se
confundem. J sabamos disso: j o havamos aprendido com
Rubem Braga e outros mestres da difcil arte de ser direto, claro,
franco, lcido e coloquial.
Cludio Willer
INTRODUOINTRODUO
Um brasileiro reconhece outro brasileiro em qualquer lugar
do mundo, a cinqenta metros de distncia. Deve ser o jeito de
andar, ou talvez tenha a ver com o vesturio. No brincadeira,
no; somos irreconhecveis para qualquer terrqueo que no
tenha nascido no Brasil e inconfundveis para nossos
compatriotas.
No mercado de passaportes falsos, o brasileiro o mais
valorizado, pois temos todas as caras do mundo de japons a
rabe, africano a ariano.
E a formao desse estilo to prprio, ou se preferirem,
identidade, no carece de uma gerao para acontecer. Enquanto
na Europa os bisnetos de imigrantes mantm a nacionalidade e
cultura dos antepassados, no Brasil, os prprios imigrantes
acabam abrasileirados. Daqueles que a gente reconhece em
qualquer aia do mundo.
Sou filho de refugiados. Minha me tinha onze anos quando
embarcou sozinha no navio que a levaria da Alemanha ao Brasil.
Sozinha, no. Tinha a responsabilidade de cuidar do irmo mais
novo que ela dois anos. Os pais comunistas tinham partido um
ano antes, assim que Hitler tomou o poder, em 1933-
A primeira coisa que Susanne, minha me, viu no Brasil foi
o carnaval do Rio de Janeiro. Na primeira refeio, experimentou
duas delcias que nunca tinha visto na vida: chuchu com
camaro.
Meu pai s chegou em 41, plena guerra. Ele foi um dos
"judeus do vaticano"1, beneficiados pelo acordo de 39 entre Getlio
1 Os judeus do Vaticano Avraham Milgram Editora Imago.
Vargas e o Papa Pio XII: o Brasil se comprometia a receber 3.000
alemes catlicos no-arianos. Judeus capazes de comprovar que
sua converso ao catolicismo ocorrera antes de 33.
Somente 959 nomes chegaram ao fim da lista
"schindleriana". Peter Bial foi o nmero 699. Visto concedido pelo
Consulado do Brasil em Anturpia, includo na quota dos
israelitas catlicos fixada pela resoluo nmero 39 do Conselho
de Imigrao e Colonizao.
No dia treze de agosto de 1988, desembarquei em Londres
para assumir o posto de correspondente da TV Globo naquela
cidade.
Fazia, sem saber, o caminho de volta que meu pai no viveu
para fazer, meu legado.
Dois anos mais tarde, me encontraria diante do Porto de
Brandemburgo, transmitindo ao vivo o espetculo da reunificao
alem.
Quis a sorte, ou como prefere minha me, o destino,
reservar um turbilho de acontecimentos para os anos seguintes
minha chegada. Este livro carrega fragmentos de oito anos na
experincia de correspondente, mas no traz uma caixa-preta
dessa viagem.
No espere nessas pginas a anlise de alguns dos mais
importantes momentos da segunda metade do sculo, que tive o
privilgio de presenciar. Vamos ter uma conversa fragmentada
como a realidade, como o espelho iletrado da civilizao, a
televiso.
S a partir de 89, a TV conquistou a capacidade de mostrar
guerras, revolues e massacres; a histria, ao vivo. No comeo
daquele ano, a equipe da CNN mal era levada a srio pelos colegas
e pelos prprios "news-makers". No fim do ano, a capacidade de
transmitir ao vivo para todo o mundo revolucionou o
telejornalismo mundial e a prpria prtica da poltica
internacional. O primeiro rolo de pelcula com as imagens de um
muro sendo erguido em Berlim s foi exibido nos Estados Unidos
trs dias depois de filmado. Kennedy teve setenta e duas horas
para pensar. Quando o mesmo muro caiu, Bush assistiu ao vivo,
como todo mundo; minutos antes de dar uma entrevista coletiva,
tambm ao vivo.
Desde criana, tive o gosto de comentar as coisas com
meus amigos. Vocacionalmente, sabia que queria trabalhar em
algo que discutisse, refletisse a realidade. Tinha, e tenho, a
impresso de que a arte a forma mais profunda de abordagem
da realidade, de nossa alma. S que algum tem que circular as
notcias, algum tem que dar conta do superficial. Eu acabei
sendo um desses, reprter.
Sempre sonhei com viagens e aventuras. Ir, para voltar.
Partir, retornar e contar. Uma vida contm muitas vidas e muitas
mortes. Contei os mortos e conto aos vivos.
Adiante, antes que nos tornemos macabros!
As crnicas aqui reunidas, originalmente publicadas no
Jornal da Tarde, no obedecem ordem cronolgica, sequer
lgica. So impresses que espero compartilhar, confisses,
desabafos e pequenas provocaes. Espero que seja de valia a
algum.
publicado em memria e saudade de Renato Castelo
Branco.
CARTILHA BRASILEIRACARTILHA BRASILEIRA
Queridas filhas,
vocs chegam ao Brasil depois de amanh. Vocs, meninas,
so um tipo muito especial de brasileirinhas. Pois aqui vocs
vieram ao mundo, nasceram em dias de sol tropical, e receberam
as primeiras lufadas de vento direto do oceano Atlntico. S que
bem pequeninas ainda, vocs foram para o hemisfrio norte,
foram morar na Inglaterra, ou como se diz por aqui, nas Oropas...
Agora, vocs tero de aprender o que o Brasil bem
rapidinho... verdade que ns vnhamos em todas as frias, e
verdade tambm que vocs sempre adoraram. Brasil era sinnimo
de farra, biquni, praia, vov, vov, tio, tia, primo, prima... Uma
delcia...
Lembro daquela vez em que uma amiga minha perguntou a
uma de vocs, bem novinha ainda, o que achava do Brasil. A
resposta foi um sorriso encantado, feliz, e palavras contentes
sobre brincadeira, carnaval, sol e mar... A, a mesma amiga fez
(mira pergunta: e l na Inglaterra, como ? A resposta: l, voc
precisa saber bem as regras...
No Brasil, esse negcio de regras muda toda hora, e na
maioria dos casos vale para alguns e no para todos...
*
Em primeiro lugar, tenham pacincia. Principalmente,
porque vocs vm morar no Rio de Janeiro, onde parece que a
primeira soluo d qualquer problema o adiamento. Mas, com
tolerncia e esquecendo a pressa, as coisas acabam se resolvendo.
Porque, na batata mesmo, o nmero de pessoas que
gostaria de resolver as coisas, de melhorar a cidade maior, bem
maior do que o nmero de preguiosos e aproveitadores. Os
brasileiros trabalham muito.
*
Sorte, vocs chegarem agora em julho. Pode at ser que
vocs usem um daqueles cardigans de primavera londrina neste
inverno carioca. Mas, depois, preparem-se; quente, muito quente
por aqui.
*
Ser difcil para vocs entender como um pas rico desse
jeito tem tanta gente pobre na ma. Vocs vo ter que estudar um
bocado de Histria do Brasil, e mesmo assim vai ser duro chegar a
uma concluso.
Uma pista: lembram aquela revoluo na Frana, que vocs
estudaram, em que no fim da histria os reis perdiam suas
cabeas na guilhotina? Lembram que depois daquela sangueira
toda, os franceses deixaram de ser "sditos" e passaram a ser
"cidados"? Pois , meus amores, aqui nunca teve nada disso
no...
*
Por isso tambm, vocs tero de ser mais cuidadosas na
rua. Aqui, tem muito assalto e at seqestros. Em certas partes da
cidade, vocs nunca iro, ou s iro se eu estiver junto. Acho que
vocs at vo gostar de conhecer uma favela, ver como as pessoas
vivem no maior sufoco e mantm uma alegria de viver difcil de
encontrar naquela prosperidade europia.
Na verdade, a vidinha de vocs vai ser bem diferente. Vocs
vo andar de carro para cima e para baixo, em todos os lugares
vocs se vero cercadas por grades e guaritas de segurana, como
se dois pases ocupassem o mesmo lugar ao mesmo tempo. Num
pas, vocs vo curtir mordomias que a na Inglaterra a gente nem
sonhava. S que, em volta da gente, sombras de perigo estaro
rondando. Mas, no para ter medo no... tudo gente, e se, por
acaso, vocs se virem numa situao meio cabeluda, no
esqueam: quem parece to ameaador humano tambm, e s
nos resta negociar. Negociar pela prpria vida.
Mas, pode deixar que nada de mal vai acontecer.
Vocs vo ter que acordar mais cedo para ir escola, por
causa do trnsito. cada jam que vocs nem imaginam...
*
Ah!, vocs vo estranhar um pouco os modos de outras
meninas. Aqui, desde cedo, as garotas so incentivadas a se
comportar como mulheres. No s na maneira de vestir ou andar.
Nos programas infantis na televiso, as crianas aprendem umas
danas quase pornogrficas. Danas que a na Inglaterra vocs
nunca veriam, danas que no sairiam de casas noturnas,
vedadas a menores de dezoito anos.
*
Vai ser duro dizer adeus aos amiguinhos a de Londres. A
gente, que xingou tanto os ingleses, agora se d conta de como
fomos bem recebidos na ilha britnica. Depois que aprendemos as
tais regras, foi muito bom, no foi? Vamos sentir saudades da
televiso da, e teremos que nos acostumar com a quantidade
estpida de anncios da telinha daqui.
Vocs nem se do conta, mas o tempo em que vivemos na
Inglaterra nos fez brasileiros melhores.
E, nesses ltimos tempos, os brasileiros andam gostando
de cuspir na prpria bandeira, adoram falar mal do Brasil, como
se isto aqui no tivesse jeito mesmo. Ns, que aprendemos como
os europeus valorizam a sua nacionalidade, vamos ver se
ensinamos aos amigos, como que se trata a prpria ptria: com
amor e dedicao!
*
Ah, e aqui, vocs vo descobrir uma pessoa que vai
pertencer famlia, sem ser me, irm ou prima... A empregada!
Ela vai cozinhar, passar roupa, arrumar a casa, vai ser ntima da
gente... Isso s tem no Brasil.
Alis, vocs nem se lembram, mas quando chegamos
Inglaterra, tnhamos levado uma empregada, que ficou s seis
meses. E este pouco tempo foi suficiente para ela se dar conta de
que no era s empregada. Era uma cidad! E isso aqui no Brasil,
ainda uma grande novidade...
*
Vai ser bom: tem requeijo, frutas de monto, msica boa,
e feijo, feijo, feijo!
*Vai ser bom: vou levar vocs para praias lindas, florestas
onde o macaco dourado vem brincar com a gente, onde pssaros
lindos cantam colorido, e onde as cascatas tm gua geladinha
para quando estivermos bem suados...
E principalmente, meninas, aqui vocs so muito
importantes. O Brasil precisa de moas como vocs, inteligentes e
esforadas. L, na Europa, vocs sabem, os jovens terminam a
escola e no tm muito o que fazer, ou melhor, tm que brigar
muito para fazer alguma coisa e tm aquela sensao de que tudo
j foi feito. A Europa velha...
Aqui, tudo ainda est por fazer.
Bem-vindas!
E, por favor, escrevam logo a vossa cartilha brasileira, para
que eu, burro velho, possa aprender por vossos olhinhos to
lindos a ver vim pas que ainda no foi inventado.
julho/96
ADIS MUCHACHOSADIS MUCHACHOS
O que voc quer ser quando crescer?
"Salva-vidas" respondia invariavelmente o menino. Mentia.
No ntimo, sonhava em ser Tintin, aventureiro solto no mundo,
reprter, heri, resolvendo crises internacionais, desbaratando
quadrilhas, divertindo-se um bocado. E Tintin ainda conseguia ser
jornalista, sem escrever uma linha sequer. Em nenhuma das
inmeras aventuras pelo planeta, o reprter Tintin enviou uma
matria que fosse. No precisava: ele era sempre a notcia.
No desejo de ser Tintin, o menino quase ficou tanta.
Pois o garoto cresceu e virou de fato um globe-trotter. S
para aprender que a vida nmade no passa de uma sucesso de
encontros e despedidas. Perseguindo o mapa das encrencas,
crises, guerras e revolues, ele conheceu gente diante de
situaes-limite. E, nesses momentos, as amizades ganham uma
intensidade insuspeitada em tempos de normalidade.
Assim, o menino ganhou amizades eternas que duraram
trs dias. Mais do que arte do encontro, a vida o aprendizado da
despedida. Pois a nica conseqncia garantida do "muito prazer"
o adeus.
Dizem que os bebs choram quando a me se ausenta por
dez minutos, pois para eles aquela foi uma partida definitiva. Eles
no sabem que as pessoas vo e voltam. E quem sabe?
*
No melancolia, nem filosofia.
A indstria de fatos.segue, uma crise ali, um divrcio aqui,
uma guerra, uma eleio nos jornais, o mundo ganha uma
ordem que no tem. Informar quer dizer "impor forma".
Nas sociedades mais avanadas, h uma aparncia de
ordem. As instituies funcionam como camadas, que abafam,
mascaram e organizam as relaes essencialmente primitivas dos
homens. Em matria de emoes e necessidades, somos todos
trogloditas.
Em momentos de crise e convulso social, as camadas
institucionais desabam e tornam aparente o emaranhado catico
das relaes humanas. Esse mesmo caos est presente em
sociedades desenvolvidas, mas invisvel. Porm, sob a ordem
aparente, h sempre uma sociedade rebelde e dinmica, que no
obedece lei do Estado. Em alguns casos, chama-se economia
paralela; em outros, simplesmente Mfia.
*
Reprteres marcam gols quando revelam a intimidade entre
as camadas mais visveis e respeitveis da sociedade e esse
submundo paralelo. O Estado no s impotente diante dessa
sociedade invisvel, como tambm depende de seus mecanismos.
H uma promiscuidade onipresente entre lei e crime. Em alguns
pases, como o Brasil e a Rssia, essa promiscuidade
transparente, escandalosa. Nos Estados Unidos ou na Gr-
Bretanha, esses laos escusos tambm existem e muitas vezes so
o combustvel da prosperidade. Em pases como a Itlia e a
Espanha, essas ligaes perigosas chegaram s primeiras pginas
e aos tribunais.
*
O primeiro-ministro espanhol Felipe Gonzales sempre disse
que no sabia de nada. Na melhor das hipteses, ignorncia. Na
pior, hipocrisia.
Escrevo antes do resultado das eleies na Espanha. s
vsperas da votao, todos anunciam a derrota do filipismo. A
primeira vitria da direita espanhola desde a morte de Franco no
deve ser interpretada ideologicamente. O povo precisava dizer no,
o que muito diferente de dizer sim a Jos Maria Aznar. Treze
anos de poder" conduzem arrogncia. Mesmo simptico e
carismtico, Gonzales caiu na arapuca da soberba. O homem que
conduziu a Espanha democracia, com o auxlio luxuoso do rei
Juan Carlos, virou um ditador dentro de seu prprio partido. E
fechou os olhos diante da corrupo.
Porm, mais do que a roubalheira, foi o desemprego que
condenou Felipe Gonzales. Jos Maria Aznar promete resolver
esse problema. Duvido. As economias ocidentais esto presas
contradio de retomada do desenvolvimento sem a criao de
novos empregos. Desemprego no mais um problema nacional, e
sim a conseqncia da nova regra do jogo mundial, que no Brasil
gostam de chamar de neoliberalismo.
*
A personagem mais divertida da poltica espanhola chama-
se Cristina Almeida. uma senhora gordota e hiperativa, que
parece sada de um filme de Almodvar. Entre suas faanhas,
destaca-se a seduo de Sadam Hussein. Cristina foi a primeira
emissria estrangeira a conseguir libertar os seus nacionais, parte
do escudo humano de Sadam depois da invaso do Kuwait. Em
meia hora de conversa com o ditador iraquiano a espanhola
conseguiu a libertao de todos os refns espanhis, e acabou
dando conselhos a Sadam sobre dores na coluna.
Cristina Almeida pode ser a prxima estrela da esquerda
espanhola. Populista chique, ela tem uma resposta pronta,
quando indagada sobre os seus quilinhos, muitos, a mais:
Depois do regime de Franco, eu no fao mais regime
nenhum...
maro/96
NCORA, LEME OU VELA?NCORA, LEME OU VELA?
Sei me virar um pouquinho em vrias funes do processo
telejornalstico. Bato uma bolinha na reportagem, editar matrias
foi a primeira coisa que fiz em TV, posso ajudar na concepo e
elaborao de um programa, e quando necessrio ponho a mo
nas mquinas mais simples, sem dar vexame muito grande atrs
da cmera ou da ilha de edio.
Da que s vezes sou convidado para falar dessas coisas.
Falo do texto submisso imagem ("em TV a cmera que informa,
o reprter se aproveita"), explico que cheguei ao telejornalismo no
por meio do jornalismo e sim via cinema. E que talvez por causa
disso tenha desenvolvido o gosto pela busca flagrante, este
momento fugazmente eterno. Digo, eternamente fugaz... Defendo a
teoria de que o reprter deve inventar uma pergunta de si para si
mesmo e perseguir a resposta a esta pergunta ntima e secreta.
Resposta que, assim como a pergunta, muitas vezes sequer
mencionada na histria final.
Pois ... Discorro ento um pouco sobre a natureza
perversa e frustrante do exerccio jornalstico. Proponho
discusses sobre os tais circos da mdia em que se transformam
as grandes coberturas jornalsticas, reclamo um pouco do
desinteresse nacional nos grandes temas e assuntos
internacionais, como histrias de aventuras e reportagens, enfim
falo do que conheo um bocadinho.
Pois no que agora estou a poucos instantes de proferir
uma palestra sobre "apresentao" em TV. Justo o terreno em que
sou novato, foca, aprendiz...
Acho que vou comear usando figuras e expresses
psicanalticas para me fazer entender. O negcio o seguinte,
como diria um amigo: na rua, ou mesmo na redao, o reprter
"sujeito". Vai l, atua, escuta, interpreta, organiza, informa. Toma
as decises que lhe cabe tomar, exerce os seus parcos e ilusrios
momentos de poder. Portanto, este o momento em que sou
"sujeito", quando tramo a teia de informaes, palavras e idias
que envolvero o espectador.
S que a partir do momento que boto a tal maquiagem,
escudo contra as luzes cruis e impiedosas do estdio, uma
transformao deve comear a se operar. Quando me sento na
bancada do apresentador, e devo tornar a tenso, nervosismo e
pressa do fechamento em serenidade, seduo e serena firmeza,
deixo de ser "sujeito". a hora de ser "objeto".
Talvez por um dos inmeros legados infelizes do
pensamento feminista, associamos logo o conceito de "objeto"
idia de "vtima". No nada disso: todos ns, em alguns
momentos, devemos nos submeter condio de "objeto".
Ali, ento, como apresentador de um programa de
variedades, com pitadas generosas de jornalismo, como o
Fantstico, devo me instalar confortavelmente na carapua de
"objeto". Uma vez no ar, estou alijado das decises editoriais e
formais e devo somente obedecer s instrues dos colegas que
esto atrs das cmeras e a algo bem mais subjetivo que nos
submete a todos: o desejo misterioso do pblico.
*
Sinto falta de um computador na bancada de apresentao.
Assim poderia, mesmo como dcil "objeto", atuar na linha do
programa, enquanto "no ar", e acompanhar melhor a relativa
loucura da operao.
*
Nossa escola de apresentao ainda muito marcada pelo
estilo radiofnico. H um excesso indiscriminado da nfase. Tudo
manchetado. Isto vem melhorando, mas esta tendncia tinha
chegado a paroxismos no antigo Jornal Nacional. Estava ficando
difcil discernir a notcia realmente importante da corriqueira.
E o Brasil o nico pas que conheo onde os telejornais
no obedecem a uma ordem decrescente de importncia durante o
programa. Explico: no resto do mundo, os telejornais comeam
pela notcia mais importante e seguem para os destaques menores
at encerrar na famosa and finally, a historinha leve e divertida
que precede o "boa-noite". Com nossa linguagem gil, fluente,
envolvente e eficaz, fica difcil para o telespectador entender quais
foram as notcias de maior relevncia ao final da edio. Mas isto
faz parte, expresso da cultura brasileira.
Procuro sempre um tom mais baixo de voz. Algo assim
como escolher Peter Jennings antes de Dan Rather. No s ajuda
a conquista de uma certa intimidade com o ouvinte, como tambm
diminui o desagrado de se ter algum berrando na sua noite de
domingo.
Na rua, cheguei a uma relao amistosa com a lente.
Aprendi a ter prazer na hora de falar para a cmera. S que
quando est fazendo o tal stand-up na rua, o reprter est cercado
pelo mundo, pelas pessoas, pela realidade.
No estdio, no. Tudo no estdio artificial, um teatro
entre quatro paredes, um palco sem platia, um ambiente
acstico e estranhamente silencioso. O silncio, esta a primeira
causa de desconforto para o novato na apresentao. Quando
acende a luz verde das palavras "no ar", um silncio sepulcral se
instala como se o mundo tivesse parado para lhe ouvir...
Troo esquisito!
Mas, t aprendendo...
Gosto da adrenalina de falar ao vivo, a condio de no
retorno, a presena do erro, do gaguejar, a intromisso da
autenticidade no cenrio de plstico.
Um perigo...
Pobre daquela apresentadora...
No sei o nome dela, mas nunca esqueci o seu ato falho, ao
vivo, para todo o mundo na CNN.
Ela deveria apresentar uma reportagem sobre CDs, compact
discs, japoneses. Na hora de pronunciar compact discs, alguma
coisa aconteceu entre o crebro e a lngua da pobrezinha que
disparou compact dicks, "pintos compactos"... E isto falando sobre
produtos japoneses... Mais ou menos a mesma coisa que trocar
"canrios do reino", por "caralhos do reino"... Resultado: depois
que a matria foi apresentada, a infeliz ncora no voltou mais ao
ar. Deve ter ido direto para o analista...
*
E por que chamar de "ncora"? ncora, no! Leme talvez,
vela, por que no?
junho/96
ARES LONDRINOSARES LONDRINOS
Nesta cidade, no preciso conhecer o caminho das ruas. As
ruas sabem o meu caminho. Saio andando de casa, passo pelo
pub The Constitution, entro. Apesar de andar sumido, h seis
meses que no apareo, o dono me cumprimenta como se tivesse
me visto ontem. Sigo adiante pela Georgiana Street, uma rua
inteira habitada apenas por down and outs, os bbados,
toxicmanos e malucos em geral que esta sociedade produz em
abundncia. Em algum governo do passado, certamente
trabalhista, a rua foi consagrada pelo Estado aos egressos de
asilos de lunticos, como se diz aqui...
Dobro esquerda na Royal College Street, onde fica o
Hospital de Doenas Tropicais daqui. Sempre achei que iria parar
l, na volta de uma dessas viagens insalubres e saborosas pelos
buracos africanos e asiticos do mundo. Nunca passei da porta,
pela qual passava diariamente.
Enfim, vocs sabem que em Londres vrias casas ostentam
uma plaquinha redonda, azul, identificando ilustres moradores do
passado? Poetas, cientistas, polticos, de todas as nacionalidades,
aparecem nas plaquinhas da posteridade. Nossa guia de Haia
tem uma plaquinha aqui, "Here lived Ruy Barbosa..."
Pois bem, na Royal College Street, numa casinha toda
escalavrada, uma placa diferente, retangular e branca, indica a
antiga morada de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. Sempre me
perguntei por que eles no mereceram a placa azul, por que a casa
no tem direito a uma reforma...
Passo direto pela casa dos poetas eternamente malditos e
chego rea perigosa: de um lado, o gasmetro do norte de
Londres, ante-sala de King's Cross, zona de prostituio e trfico
de herona; do outro lado, um conjunto habitacional popular
recheado de asiticos e ingleses pobres, onde de vez em quando
sai briga feia. J botaram fogo na loja de um paquistans, j
morreu gente, a polcia mantm uma vigilncia constante da rea.
Bom, da, mais uma meia hora de caminhada e chego ao
West End, a zona dos teatros, cinemas, museus. E caminho,
caminho, sem querer saber do caminho...
As partes mais chiques de Londres esto cada vez mais
chiques. As mais pobres, cada vez mais pobres.
*
Mas, para matar as saudades que tenho de Londres, no
preciso sair de casa. Basta ligar a televiso e me deliciar com a
melhor programao do mundo, os melhores documentrios, o
melhor telejornalismo.
No pas que inaugurou a mar irresistvel da privatizao, a
tev estatal continua imbatvel e o melhor argumento para
demonstrar como o dinheiro pblico pode ser bem aplicado e
viabilizar a realizao de produtos que no teriam chance na
lgica do mercado. S que, como tudo neste mundo globalizado, a
BBC est sendo obrigada a responder s demandas
mercadolgicas. Em outras palavras, est tendo de se
"popularizar", ou seja, neste caso, piorar...
Pelo menos, as brigas internas na BBC, entre os apstolos
do mercado e os que resistem s mudanas, so de domnio
pblico.
Por exemplo, um dos programas "populares" da BBC, leia-
se "tabloidsticos", da jornalista Esther Rantzen, exibiu uma
reportagem feita num asilo, em tom de denncia, revelando os
supostos "maus-tratos" que sofrem os velhinhos.
Pois no que no dia seguinte, um dos mais respeitados
reprteres investigativos da BBC publica uma carta aberta no
Daily Telegrapb espinafrando a matria e acusando Esther.
Rantzen de ter distorcido toda a histria? John Ware, o reprter,
mostrou que no havia substncia alguma nas acusaes e que a
Mrs. Rantzen tinha usado a cmera oculta como um artifcio
sensacionalista, pois no havia impedimento ou proibio de
filmagem.
Estaria a BBC, na batalha por mais audincia, relaxando os
seus padres de tica e sobriedade?
*
Nesta silly season, outra histria que poderia ter se
esgotado em memorandi internos da televiso acabou chegando s
primeiras pginas. Foi a crtica feita pelo diretor da BBC escocesa
ao trabalho da reprter Kate Adie, veterana de coberturas
internacionais, na tragdia de Dunblane, onde crianas de um
jardim de infncia foram massacradas por um maluco. O escocs
Colin Cameron afirmou que Mrs. Adie fez uma cobertura
assptica, "pericial", fria, de uma tragdia nacional. A reprter
exige agora, na justia, que seu colega pea desculpas pblicas. O
problema que Kate Adie foi escalada para reportar o massacre de
Dunblane pois tinha se celebrizado em coberturas de massacres
ao redor do mundo.
Do que ningum se d conta por aqui que Mrs. Adie
uma das jornalistas mais etnocntricas deste pas etnocntrico.
Portanto, ela ficava muito vontade para relatar,
emocional-mente, os horrores praticados por aliengenas
selvagens, como chineses, iraquianos e americanos. Mas, quando
foi falar de sua prpria gente, a reprter se refugiou na tal
imparcialidade, to confortvel em situaes desconfortveis...
Ah! E como as concesses das emissoras privadas so
renovveis a cada seis anos, a ITV, a Televiso Independente
daqui, tambm levou uma bronca pblica.
Desta vez, foi por causa de uma entrevista, conduzida por
seu mais ilustre ncora, o negro Trevor MacDonald, com o
primeiro-ministro John Major. A autoridade independente de
televiso, que fiscaliza as programaes, acusou Mac'Donald de
ter sido frouxo e subserviente a Major e afirmou que a ITV
ofereceu horrio poltico gratuito ao Partido Conservador.
J imaginaram isso no Brasil? Um rgo de fiscalizao,
mantido pelo Estado, advertindo uma emissora de tev por causa
da conduta pouco firme de seu reprter diante da mxima
autoridade do pas?
This is democracy...
agosto/96
CAMPEONATO DE BALESCAMPEONATO DE BALES
No dia 2 de agosto de 1990, eu olhava bales. O cu do
norte da Inglaterra recebia sereno, apenas nuvens esparsas no
decorrer do perodo, o vo sem rumo dos baloeiros. Olhava bales,
e ainda estava ganhando por isso. Tinha a espinhosa misso de
fazer uma reportagem sobre um campeonato de bales.
No se pode dizer que era uma atribuio arriscada ou um
servio perigoso. Poderia ser mais emocionante, se houvesse lugar
em uma das naves. No h, mas o cameraman insiste com o
comandante. Cinegrafista saboreia esta camaradagem com o
reprter, este gnero masculino de humor, que consiste em meter
o outro em pequenas enrascadas. Mas os bales teriam de
esperar.
Chega um recado para voltarmos imediatamente a Londres.
O Iraque invadira o Kuwait.
Ainda no escritrio londrino, preparo boletins com as
ltimas notcias. Surge a primeira dvida da crise do Golfo: como
pronunciar o nome do pas invadido? Kuwait? Ou Kuweit? Fica
decidido em acordo com a direo, que diramos Kuwait, com o "a"
aberto. Era a pronncia brasileira da palavra.
Durante a crise, porm, todos os brasileiros
trabalhadores, engenheiros, diplomatas ou tcnicos de futebol
diziam Kuweit, do jeito ingls. Da, que todo mundo chamava a
ento 19a provncia do Iraque de um jeito, e os reprteres de
outro... Nada grave, s uma conseqncia da ausncia de norma
na lngua brasileira quando se trata de pronunciar nomes
estrangeiros. Os portugueses tm uma regra e "traduzem" tudo,
Amsterdo, Roterdo, Moscovo... Pode nos soar engraado, mas
uma norma.
No dia seguinte, estou num pas do Golfo Prsico, sob um
calor de 50 graus. impossvel ficar ao ar livre. Para permanecer
no pas, os reprteres no podem revelar onde esto, nem
transmitir imagens que possam identificar o lugar. O Golfo estava
com medo do prximo passo de Sadam. Os boatos de uma nova
invaso, desta vez na Arbia Saudita, circulavam pelos corredores
refrigerados.
noite, no hotel, os hspedes recebiam instrues de como
proceder em caso de ataque qumico. Em resumo, nos
aconselhavam a encher a banheira, submergir todo o corpo, cobrir
o nariz e a face com uma toalha molhada e, de preferncia, no
respirar. No seria m idia ligar para o homem de negcios ingls
que conhecemos no avio, que pelo jeito vendia de tudo, de
refrigerante a metralhadora. A prxima reportagem seria sobre
mscaras de gs...
Mas deixa explicar por que lembro agora daquele longo
vero no deserto. Ali comeava uma viagem pelo mundo das
paixes, dios, e eterno p de guerra do Oriente Mdio. Depois do
Golfo, veio a Jordnia, o Iraque, Ir e Kuwait, Turquia, Curdisto,
enfim percorri todo o mapa da confuso. S no fui aonde tudo
comea e tudo termina. Nunca tinha ido a Israel.
*
Foi rpido, apenas cinco dias em Israel, na semana
passada. Uma espcie de viagem para marcar o fim de um ciclo, j
que estou mudando para o Brasil, iniciando uma nova misso. Por
mais que se acompanhe a vida de um pas, por meio de livros e
jornais, s na presena fsica o bvio se revela. Por exemplo,
pouca gente entende com clareza a diferena entre judeus e
judeus-israelenses.
Os judeus-israelenses querem que Israel seja um pas, e
para isso trabalham e trabalham muito bem. J muitos judeus,
como os tpicos colonos norte-americanos e os imigrantes
ortodoxos, querem que Israel seja uma vingana. Os israelenses
sabem que fazem parte de povos marcados pela mesma bno,
ou maldio. A terra foi prometida a todos... .
Este o pedao do mundo onde a manh no anunciada
pelo canto do galo e sim pela orao amplificada da mesquita.
Este o lugar onde cristos choram vista de uma pedra, onde os
judeus esperam a chegada do Messias e a ressurreio de todos os
mortos. Onde ocidentalizao alguma vence as tradies e onde a
origem comum das grandes religies monotestas, somada falta
de alternativa melhor, terminar por obrigar os fiis a algum tipo
de coexistncia. Conviver, palavra difcil.
*
E, como esta coluninha serve tambm para contar as
curiosidades, pequenas demais para merecer incluso no grande
drama das notcias, a vai uma que pouca gente conhece: no
Shabbath, dia consagrado ao descanso e prece, os judeus
religiosos no podem fazer nada, criar nada. No podem apertar
um boto.
Como, ento, pegar um elevador para o 15. andar? No,
no preciso encarar as escadas. Durante todo o sbado, um
elevador reservado aos seguidores da tradio. O elevador pra
em todos os andares, subindo e descendo, descendo e subindo.
Para que a religio seja respeitada e que as mais nobres oraes
possam subir aos cus, de onde no costuma cair nem chuva,
nem paz.
fevereiro/96
CAMELOS E OUTROS BICHOSCAMELOS E OUTROS BICHOS
Leio nos jornais que a montagem da pera Ada, na Praa
da Apoteose carioca, contar com coadjuvantes das Arbias:
camelos em corcovas e osso. Neste pas de enchentes e secas, de
carncia e desperdcio, de fartura e "faltura", os camelos tm um
apelo insupervel. Creio que deve bater com o nosso desejo
infantil e insular de auto-suficincia, essa onipotncia nacional
que pensa poder se lixar para a globalizao e tudo o que se passa
l fora.
Outro dia, uma estudante de jornalismo me disse, a srio,
que o noticirio internacional, j nfimo, deveria ser banido, pois o
Brasil precisa mesmo se concentrar no prprio umbigo. E no so
apenas universitrias otrias que pensam assim. Este parece ser o
padro pelo qual se guiam muitos de nossos polticos, e grandes
cabeas de nossa esquerda. Tudo o que vem de fora parece ser
resultado de conspiraes e conluios que visam nossa
explorao, aniquilao e subjugao. Em uma palavra,
insuportavelmente abusada por aqui, "neoliberalismo".
No h esta ordem no jogo da economia internacional. As
multinacionais no se renem para definir a nova maneira de
estropiar o Terceiro Mundo. As coisas so muito mais caticas e
perversas. a tal lgica do mercado.
Sem entender isto, atacam o governo federal pelo que tem
de mais correto: a sua posio ideolgica.
Mas eu quero falar de camelos. A minha primeira
lembrana dos bichinhos triste: pobres camelinhos e
dromedrios de corcovas murchas, no Zoolgico do Rio de Janeiro.
Fiquei decepcionado e preocupado, pois afinal se as corcovas
estavam a zero era sinal de que os bichos poderiam estar com
sede. Muitos anos se passaram at que vi os camelos em seu
hbitat.
Estava num emirado do Golfo Prsico, mas no podia
revelar o nome do pas em minhas reportagens. O Kuwait acabara
de ser invadido e todos os vizinhos temiam o prximo passo de
Sadam. Para gravar os comentrios on camera, escolhamos
criteriosamente palmeiras fotognicas para servir de pano de
fundo. Aquele negcio comeou a ficar repetitivo, alm do que as
palmeiras e coqueiros so parte destacada de qualquer paisagem
brasileira. O calor de mais de 50 graus que, volta e meia,
paralisava a cmera e fazia o reprter derreter no ficava evidente
na imagem. At que algum teve a idia: bota um camelo pra fazer
figurao!
*
Assim foi feito. Ao final de cada dia de trabalho, deixvamos
a capital do tal pas e nos encaminhvamos para o deserto cm
busca dos coadjuvantes de Ada. No que eles fossem muito
disciplinados. Sempre que montvamos o trip e chegvamos ao
enquadramento desejado, os camelos cismavam de cismar pelas
dunas mais prximas. No nosso ponto de vista, mais distantes...
E no muito fcil encontrar camelos vira-latas nas
proximidades dos assentamentos humanos. Camelo no mundo
rabe mais do que animal, moeda. Quando um amigo meu
esteve num pas rabe recebeu boas ofertas pela namorada. Nada
em dinares, dlares ou petrodlares. A unidade monetria para se
avaliar uma mulher naqueles lados sempre o camelo.
Quinhentos, mil, dois mil camelos pelas senhoritas ocidentais.
E a paixo pelas corridas de camelos nos pases do Golfo
muitas vezes supera em fanatismo religiosos de todas as cores...
*
Depois, fiquei besta. Um camelo a mais ou a menos, j os
olhava como se fossem fuscas no Brasil.
S me chamaram a ateno de novo, numa outra viagem,
agora para a sia Central. Estava na repblica da Caracalpquia,
regio autnoma do Usbequisto. Os camelos de l so diferentes,
quase pretos de to escuros. E passeiam por um deserto que at
bem pouco tempo era o mar do Arai.
Acreditando na docilidade que encontrei entre os camelos
do Golfo, fui me aproximando sem medo daquele grupo que
vagava beira da estrada. At que um deles investiu, ou fingiu
investir, contra mim, fazendo uns barulhos de dar medo. S
depois me explicaram que era a poca de procriao e que tanto
fmeas grvidas quanto os machos ficavam ferozes e perigosos.
Sim, a coluna de hoje um despropsito. Mas de propsitos
e despropsitos de propsito tambm faz-se a crnica.
Ah!, e uma certa feita tive o privilgio de viver alguns
minutos animais... Era no Zo de Londres, onde um ator
especialista em animais convidava grupos para que incorporassem
algum animal. O ator j tinha conseguido se socializar com um
grupo de chimpanzs. Ele no nos propunha nada to arrojado.
Apenas oferecia um exerccio teraputico de observao e
concentrao. Cada um escolhia o seu animal e fazia, mais do que
uma imitao, uma transfigurao. Escolhi o camelo, com seus
olhos baixos e mansos, seu lento mastigar da existncia, suas
pernas flexveis, velozes e lentas a um s tempo.
Foi bom para mim tambm. Esquecer as contas, ver o
mundo com olhos sabiamente indefesos.
Desde ento, no suporto ver qualquer nmero de circo
com animais amestrados. Adestramento quer dizer tortura.
abril/96
FANATISMOFANATISMO
"Que fanatismo!", exclamam os brasileiros diante das lutas
sangrentas do Oriente Mdio. Habituados nossa tradicional
cordialidade, ou seria pusilanimidade?, no conseguimos entender
por que estes povos se matam tanto e h tanto tempo.
O que um fantico? Qual a diferena entre um fantico
e um criminoso comum? Um bandido, como estes tantos que a
tragdia social brasileira produz, tem vrios traos em comum
com o que chamamos de fantico. Disse Glauber Rocha, no seu
manifesto por uma "Esttica da Fome", que "...a violncia a
manifestao mais nobre da misria". As idias por trs da frase
no poderiam estar mais fora de moda, e ainda bem que assim.
Pois, embutida na genialidade de Glauber, havia uma
romantizao da misria e da violncia. Mas, sem dvida,
bandidos e fanticos germinam na injustia. Ambos esto
dispostos a matar e a morrer. E os dois lutam pela sobrevivncia.
S que o fantico luta pela sobrevivncia de uma idia.
No se trata de perdoar o fanatismo, mas de tentar
entender...
Terroristas, no Oriente Mdio, todos, sem exceo, foram
em algum momento de suas biografias. Os rabes no esto
errados quando dizem que o Estado de Israel foi criado por
terroristas. E isso no se aplica s a trajetrias como a de Rabin,
que fez a transio de guerrilheiro a estadista. A origem de Israel
est no terror nazista.
Lembro-me de um diplomata asitico que exps em uma
frase o ponto de vista rabe: "Ento, a Europa faz o holocausto e
os rabes tm de pagar o pato..."
Bom, se o Estado judeu deveria ter sido implantado num
pedao gelado do Canad ou no Qunia, agora no faz sentido
perguntar. Israel existe, e tem o direito de existir. At os iranianos
j reconhecem isso, mesmo que no o possam admitir
publicamente.
*
Resta reconhecer que os palestinos tm o mesmo direito. Se
hoje eles tm de se submeter superioridade israelense, para
alcanar algum tipo de Estado palestino, devem isso, em grande
parte, incompetncia e arrogncia rabes.
Mas, no estou aqui para fazer anlises sobre poltica
internacional. Conto histrias.
Vamos a elas.
*
Beirute. Num leito de hospital, uma mulher palestina de 74
anos agonizava. Ela vive no exlio, desde que foi expulsa de sua
terra pela guerra entre rabes e israelenses em 1948. A filha
chega com as notcias. "Houve dois atentados suicidas em Israel.
Mais de vinte pessoas morreram!"A velha d um pulo da cama,
iluminada por um sopro de vida com a notcia da morte brbara
de inocentes.
Os sobreviventes da dispora palestina j perderam h
muito qualquer compaixo pelo sofrimento de Israel. Nos muros
de Sabra e Chatila, a pichao mais recorrente o retrato do
"Engenheiro" Yahya Ayash, assassinado por agentes israelenses
no dia 5 de janeiro de 1996.
*Hebron, territrios ocupados. Um jovem palestino d uma
aula de histria recente ao reprter americano que reclama de sua
passividade diante das atrocidades do Hamas: "Israel e Hamas
tiveram um cessar-fogo que durou sete meses. Israel rompeu a
trgua ao matar Ayash. Ento Hamas foi atrs da forra e agora os
israelenses querem que derramemos lgrimas por eles".
O jornalista americano s no teve a presena de esprito de
lembrar que Ayash era um militar, e a revanche sobrou para
judeus civis...
*
Israel ajudou a criar o Hamas, acreditando que a
organizao seria um contraponto islmico influncia de Arafat.
Isso quando a OLP era tida como a grande organizao terrorista
do Oriente Mdio. Shimon Peres j se encontrou pessoalmente
com ativistas do Hamas. E h duas semanas, o governo israelense
ameaou reabrir conversaes com a organizao islmica se
Arafat no tomasse conta deles.
Os Estados Unidos acusam o Ir, no sem razo, de estar
por trs das operaes do Hamas. Mas, alm das doaes do Ir e
de alguns estados do Golfo, a maior parte do dinheiro do Hamas
vem mesmo de palestinos americanos...
*
A base de sustentao do Hamas, cerca de vinte por cento
da populao, no foi forjada por bombas. Os fundamentalistas
fazem algo parecido com os chefes do trfico dos morros cariocas.
Fornecem populao o que os ocupantes israelenses negaram e
que a autoridade palestina ainda no conseguiu prover: educao,
transporte, assistncia mdica, alimentos, oportunidades.
S um milagre dar a reeleio Shimon Peres. Os
fundamentalistas judeus, o pessoal de Ygal Amir, saboreiam a
desgraa dos trabalhistas. Conversando com Baruch Malzel, lder
radical judeu em priso domiciliar, ele me diz que a opo tambm
no lhe agrada. Para o fantico, o Likud de esquerda...
Alis, depois de conversar com Malzel, me ocorre uma
definio de fantico bem mais simples e eficiente do que as
elocubraes do primeiro pargrafo. Fantico no aquele que s
acredita no que v, ao contrrio. Ele s v o que acredita.
mais um momento de desespero para Israel. No dia
seguinte bomba no centro de Tel-Aviv, o jornal Jerusalm Post
afirmava, em editorial, que uma situao no convencional exigia
solues no-convencionais. Por "situao no convencional", leia-
se a impotncia diante dos terroristas suicidas. O jornal ento
sugeria a soluo encontrada pelos imperialistas britnicos
quando enfrentaram problemas idnticos no Sudo ocupado. Os
britnicos passaram a enterrar os suicidas, cobertos em pele de
porco. Como vestido de porco ningum entra no paraso islmico,
os atentados cessaram.
*
Israel s se livrou do terrorismo da OLP, e os palestinos s
tiveram algumas conquistas, ainda que modestas, quando
comearam a negociar. Prises, assassinatos e represso s
criaro novos mrtires, heris e fanticos. Sculos da justia do
olho por olho criaram uma legio de cegos.
Terrorismo imperdovel. Hipocrisia tambm.
maro/96
A GUERRA DO GOLFO ACONTECEU?A GUERRA DO GOLFO ACONTECEU?
Cham-lo de feio seria elogio. Nariz descomunal, verrugas
em profuso por toda a face, remela nos olhos, ranho sobre os
lbios, parcos dentes. Banho no via desde a guerra contra o Ir.
O cachecol s no era mais gorduroso do que os cabelos rasos.
Cheirava mal, tinha mau hlito e, alm de asqueroso, fazia
questo de ser desagradvel. No entanto, Adnan era o homem
mais assediado de Am, naquele inverno de 91.
Francesas, alems, italianas e suecas, todas se derretiam
em charme para Adnan, rolavam os olhinhos, faziam biquinho,
jogavam o feminismo na lata de lixo do consulado iraquiano na
capital da Jordnia. Os homens tambm s pensavam em seduzi-
lo e usavam suas armas. noite, no bar do Hotel Intercontinental,
os reprteres disputavam o privilgio de pagar um drinque para
Adnan. Cenas de bajulao explcita e suborno implcito.
Adnan era o funcionrio do consulado em Am, responsvel
pela emisso de vistos para o Iraque durante a guerra.
Todas as manhs o mesmo espetculo se repetia, diante da
porta da representao iraquiana. Jornalistas de todo o mundo
esperavam a sorte grande: o momento em que Adan apareceria,
anunciando a lista dos contemplados da vez. A algazarra
desesperada de cada dia na fila dos vistos foi o circo da mdia que
ningum viu.
Quando precisam de algo, reprteres engolem qualquer
resqucio de orgulho e suplicam, imploram, se humilham com
gosto. Hoje, parece engraado. Na poca era s pattico.
Depois de berrar os nomes dos agraciados com os vistos,
Adnan virava-se para o resto e dizia, com carregado sotaque
rabe: "Come back tomorrrow! Maybe tomorrrow, Maybe
tomorrrow..."
Uma certa manh, confesso, Adnan sorriu para mim... Ele
garantiu que nossos vistos sairiam tarde. A equipe teve o almoo
mais feliz de toda a guerra.
H cinco exatos anos, amanh, comeava a Guerra do
Golfo. Hoje, tendo a concordar com o acadmico francs Jean
Baudrillard, que escreveu o livro A Guerra do Golfo Nunca
Aconteceu. So trs artigos, originalmente publicados no
Liberation, onde Baudrillard analisa o conflito de 91, sob a tica de
sua teoria do simulacro.
Cito: "... Assim como a riqueza no mais aferida por sua
ostentao e sim pela circulao secreta do capital especulativo;
tambm a guerra no medida por sua deflagrao, mas por seu
desdobramento especulativo num espao informtico, eletrnico e
abstrato, o mesmo espao onde se move o capital...". Em resumo,
Baudrillard afirma que a Guerra do Golfo no aconteceu, pois s
h guerra quando os dois lados correm riscos. Segundo o
raciocnio do intelectual francs, no Golfo pela primeira vez "... O
poder de criar uma crise se mesclou ao poder de dirigir o filme
sobre a crise...".
Todos os elementos de um roteiro de Hollywood estavam
presentes, desde a linguagem "John Wayne" usada pelos militares
americanos em seus briefings, passando pela reutilizao de
cones do passado (o pssaro banhado de leo, que j tinha sido
estrela do desastre ecolgico do Exxon Valdez no Alasca), at a
edio das cenas de batalha, a montagem ao vivo da realidade.
Como exemplo do absurdo da auto-representao da mdia,
Baudrillard lembra o momento em que o estdio da CNN em
Atlanta chamou um grupo de reprteres no meio do deserto,
apenas para ouvi-los declarar que eles tambm estavam
esperando o noticirio da CNN para saber o que estava
acontecendo.
Em Am, a sala de espera da guerra, nem a CNN tnhamos
pois o governo do rei Hussein, aliado a Sadam, censurava o sinal
da rede mundial de telejornalismo.
*
Em cinqenta anos de poltica, Franois Mitterrand fez
histria em vrios momentos. Alm de ter sido o primeiro
presidente socialista da Frana, Mitterrand bateu o recorde de De
Gaulle, permanecendo 14 anos no poder. Porm, durante to
longa e bem-sucedida carreira, foi durante a Guerra do Golfo que
Mitterrand alcanou seus mais altos ndices de popularidade.
"A Frana tem uma obsesso por 'Grandes Homens'", disse
o articulista Serge July no dia seguinte morte do ex-presidente.
"O 'Grande Homem', na Frana, objeto de uma religio nacional."
No toa que Paris a nica capital do mundo com um
"Panthon", e tambm no foi por acaso que em 81, assim que foi
eleito, Mitterrand no inaugurou o seu governo no Eliseu, e sim
no Panthon. "Mitterrand no foi apenas a anttese de De Gaulle",
afirma July, "foi tambm a sua imagem no espelho da esquerda."
Paris ficou muda na segunda-feira passada. O silncio da
multido em torno do prdio onde Mitterrand morreu era
impressionante.
Uma rdio transmitia telefonemas ao vivo, com a opinio
dos franceses sobre seu lder por tanto tempo. Uma mulher liga,
irada, dizendo que at na hora de morrer Mitterrand a irritou. O
marido da senhora gosta de apostar nos cavalinhos e, por causa
do falecimento do estadista, as rdios no transmitiram o
resultado das corridas. No pas da racionalidade, o dio a
Mitterrand era irracional. O amor tambm. Entre as milhares de
pessoas que foram Bastilha, debaixo de chuva na vspera do
enterro, muitas votaram em Chirac, na ltima eleio.
Catorze anos no poder tiram qualquer um do poder.
H 20 anos em Downing Street, os conservadores britnicos
esto batendo todos os recordes. Agora, governam com uma
maioria insignificante de dois deputados no Parlamento. As
recentes deseres tm uma explicao. Todo parlamentar quer
um emprego ministerial. Os conservadores j criaram vrios
postos para atender voracidade dos parlamentares por uma
boquinha no governo. S que depois de 20 anos, no adianta
prometer um emprego na prxima reforma ministerial, pois todos
sabem que a farra est para acabar. Da que resta aos
parlamentares o gesto espetacular de mudar de partido para
investir no prximo governo.
*
Ah, o Adnan... Naquela tarde, nossos vistos para o Iraque
no se materializaram. Depois apuramos que o repugnante
diplomata tinha vendido os nossos vistos para jornalistas alemes.
Adnan foi punido por corrupo, aps a guerra.
Perdeu o emprego e caiu em desgraa. Parece que fugiu de
Bagd...
Ns acabamos chegando a Bagd um dia depois do cessar-
fogo.
Preso em Ama, espera do visto sempre prometido e nunca
expedido, a Guerra do Golfo foi para mim uma oportunidade de
conhecer melhor a questo palestina. Diariamente, visitava os
acampamentos dos refugiados e me debruava sobre o ponto de
vista rabe da Histria, to oposto viso hegemnica ocidental.
Estava perto, corri riscos, vivi as conseqncias da guerra. Mas as
bombas sobre Bagd foram para mim to virtuais quanto para os
telespectadores de todo o mundo.
"Maybe tomorrow..."
janeiro/96
PROFISSO: VICIADOS EM PERIGOPROFISSO: VICIADOS EM PERIGO
Bocas secas, mal conseguem falar. Chapados pela forte
maconha angolana, dois soldados se espremem sob a parca
sombra, ouvindo rdio, emboscados pelo sol do meio-dia. Nada se
move no calor viscoso, s o motor do automvel, que deixamos
ligado.
No sabamos, mas aquele par de corpos inertes, abraados
s "Kalashnikov", constitua a ltima posio do governo, a 60
quilmetros da capital Luanda. A cinco minutos dali, nos esperava
a guerrilha da UNITA.
Antes de seguirmos para a boca do lobo, a Rdio Angola
nos surpreende com a trilha sonora daquela frica desolada e
devastada. Vincius e Toquinho cantando "Na Tonga da Mironga
do Kabulet..."
Seguimos a estrada por pouco tempo.
Na entrada da vila de Caxito, o carro cercado pelos
homens de Savimbi. Esto desesperados, toda a sua liderana
imediata foi massacrada na batalha que sucedeu as eleies de
novembro de 1992.
Apontam a pistola para a cabea de nosso motorista, de
uma etnia inimiga. O lder dos guerrilheiros grita:
Vai morrer!
*
Para quem gosta dos bastidores do jornalismo, nada se
compara s histrias de guerra.
Na sexta-feira passada, em Berlim, os maiores
correspondentes de guerra da atualidade fizeram uma conferncia
sobre "Segurana na Reportagem". Da BBC, Martin Bell, o homem
do terno branco, que cobre o conflito na ex-Iugoslvia, desde o seu
incio; da CNN, a bela guerreira Christiane Amanpour, especialista
em coberturas de alto risco; da WTN, a brava brasileira.
Christiana Mesquita, que fez de Sarajevo um segundo lar; e o
veterano cinegrafista da BBC, Mohammed Amin.
A mesma frase que abriu as duas horas de debate tambm
o encerrou:
No h segurana em reportagem, talvez segurana
relativa, afirmou Martin Bell.
Ele sabe bem disso. Em Sarajevo, levou estilhaos na
barriga, mas voltou aps umas frias no hospital. Srvios e
bsnios reconhecem o terno claro a distncia. Apesar de britnico,
Bell tem as suas supersties: usa ps de meia descasados, para
afastar a falta de sorte.
Christiane Amanpour nunca se feriu gravemente, s Deus
sabe como... Ela pertence a um clube que se encontra nos
troublespots do mundo, profissionais viciados em perigo.
D para entender o vcio. Na guerra, um reprter lida com a
matria-prima essencial da natureza humana, e os conceitos
fundamentais de vida e morte, verdade e mentira.
Disse "viciados em perigo" e agora me pergunto: no seriam
viciados em medo? Ou antes, dependentes do fluxo de adrenalina,
da superao do medo?
Pois, na linha de frente, o medo passa em dois minutos,
voc se acostuma e logo quer tirar "as manguinhas de fora".
Deve ser a tal fabulosa capacidade de adaptao do ser
humano. S que, onde acaba o medo, pode comear o perigo.
No h como escapar da mistificao, quando se fala em
cobertura de guerra. Depois de muito blablabl, Christiane
Amanpour no tinha por que temer o cabotinismo-.
H algumas pessoas "equipadas" mentalmente para este
tipo de trabalho, disse Amanpour. Ns sabemos onde estamos nos
metendo, e sabemos que talvez no voltemos vivos.
Nos conflitos quentes ps-guerra fria, tudo ficou mais
perigoso para os correspondentes de guerra. Ningum mais
considerado neutro, reprteres, agentes humanitrios, ONU ou
Cruz Vermelha.
Alm de muito pesados, os coletes prova de bala no
garantem nada. No Haiti, assassinos cortaram o pescoo do
fotgrafo, para ficar com o colete. Martin Bell reconheceu que no
usa as placas de cermica, pois ningum consegue correr com
aquele peso todo.
Serve o que Steven Ambrose escreveu sobre os soldados: "A
profisso... tem a dignidade do perigo".
*
Por falar em encrenca, as eleies na Arglia se aproximam.
A votao ter enormes conseqncias, no s para o norte da
frica, como tambm para a segurana da Europa e do mundo.
Mas a barra argelina to pesada que as maiores televises do
mundo no pretendem enviar equipes.
*
Imploro ao guerrilheiro pela vida do motorista.
Para os jornalistas brasileiros, vir at a primeira linha da
guerrilha angolana era uma reportagem. Para o angolano era a
morte.
ramos quatro. Leo Serva, Paulo Pimentel, Gonalo
Gomes e este que vos escreve.
Carregaramos aquele fantasma negro para sempre.
Desando a falar, no lembro o qu. Na memria, ficou a
impresso de que, mais do que o significado das palavras, a
torrente de som transmitia uma freqncia tranqilizante para o
homem com o dedo no gatilho.
De repente, ele recua, deixa a bala cair no asfalto.
Mesmo assim, nosso motorista levado para um casebre
beira da estrada com as paredes tingidas de sangue fresco,
brilhoso. L, os guerrilheiros tiram os sapatos do "suspeito".
Procuram calos. Se os tivessem encontrado, isto evidenciaria que
o motorista j tinha usado botas, portanto j tinha servido ao
Exrcito. Seria morto na hora.
Sem calos, mas quase branco de to plido e tremendo da
cabea aos ps, nosso guia sai vivo. Ele se junta ao grupo de
jornalistas, uns oito, aprisionados pela guerrilha. Os homens da
UNITA seguem a tradio tribal, s conversam com os mais
velhos. Um jovem cinegrafista tenta impedir o confisco de sua
cmera e acaba usando uma palavra que atia a ira de nossos
captores.- "Essa cmera minha vida!". A meno da palavra vida
desestabiliza os guerrilheiros. "Vida! No me fale em vida!", berra o
homem que tem uma vida de morte...
J me preparava internamente para um longo cativeiro.
sempre assim em situaes-limite, fico pronto para o pior. Mas a
captura foi breve, fomos libertados poucas horas depois.
No caminho de volta, a dupla da "Tonga na Mironga"
desapareceu. Leo canta o repertrio completo de Leandro e
Leonardo. Aprendemos uma: "cuidado redobrado", na guerra,
significa cuidar para no morrer, e no matar.
novembro/95
TRS SEGUNDOS DE ASTRONAUTATRS SEGUNDOS DE ASTRONAUTA
"Bem bolado..." comentei com meus botes e cintos de
segurana. Todas as cadeiras do pequeno avio davam os
costados para a cabine do piloto. "Deve amenizar o impacto do
pouso." Alis, num porta-avies no se chama pouso. rescue,
resgate, recuperao.
Como se chega a um porta-avies? De barco? Negativo... De
helicptero? No, se a esticada vai do Mediterrneo ao Adritico,
at a costa da ex-Iugoslvia. Num porta-avies se desembarca...
de avio!'
Para pousar, o piloto no pode diminuir a velocidade. O
avio precisa de toda a sua potncia para uma possvel
arremetida, pois s vezes o ganchinho na barriga no encontra o
cabo de ao na pista exgua. Quando gancho e cabo se entendem,
a desacelerao instantnea e brutal. Um tranco seco e
competente. De costas para o nariz do avio, o passageiro absorve
a freada que o amassa contra o assento..
Quem pousa, tem de decolar mais cedo ou mais tarde.
Decolemos mais tarde...
Um pouso mais convencional no aeroporto de Frankfurt
resulta em desembarque nada convencional.
As rachaduras polticas da Unio Europia se manifestam
visualmente na pista. Policiais recebem os passageiros, antes que
estes possam descer o ltimo degrau da escada de desembarque.
Isto ao fim do vo Londres-Frankfurt, ponte-area da UE! U...
No se trata somente de medo de terrorismo. A preveno
contra os imigrantes dos vizinhos. A Gr-Bretanha no assinou o
Tratado de Schengen, que aboliu as fronteiras do continente
europeu. Agora, quem cruza a fronteira do primeiro pas europeu,
passa direto pelas outras. As excees so o Reino Unido, Irlanda
e Itlia, que ficaram, fora do espao livre de Schengen. Este o
pretexto para a recepo armada. Nem todos os passageiros so
intimados a mostrar o passaporte. Os guardas pedem a
identificao de quem tem pele mais escura ou outro trao tnico
marcante. O critrio racista no chega a escandalizar ningum,
a regra do jogo. Difcil entender por que, cinco minutos mais
tarde, no interior do terminal, desta vez todos os passageiros
devem mostrar seus passaportes, na Imigrao moda antiga.
Pelo menos no segundo controle, os policiais no trazem uma
metralhadora a tiracolo...
Autoridades do Alto Comissariado das Naes Unidas para
Refugiados tm um apelido corrente para a Unio Europia:
"Fortaleza Europa".
*
Mas digamos que o estrangeiro chegue Alemanha, como
turista, jornalista ou brasileiro. No h um que no se deslumbre
com as auto-bahns, as superestradas alems, que no tm limite
de velocidade. Voc pensa que est planando a 150 por hora,
sobre o tapete de asfalto, quando... zzzuuuuummmmm!, um carro
nacional passa voando de verdade.
Os brasileiros, usurios de matadouros de asfalto ralo,
apreciam ainda mais a perfeita planura, o desenho suave, a
segurana das rodovias alems.
Nem sabemos que a perfeio rodoviria germnica
depende do gnio de um engenheiro pernambucano. Antnio
Bulhes morava em Olinda, com a mulher alem e filhos. O
confisco de Zlia/Collor mandou a famlia para Munique. Para
entrar no mercado europeu Antnio amalgamou-se ao computador
e s levantou depois de ter criado um programa genial, para
projetar estradas. O soft de Antnio resolve, em poucas horas,
clculos que antes exigiam trs dias de trabalho. Eis um
estrangeiro imprescindvel.
E as superestradas alemes custam menos do que as
nossas corruptelas.
Vo da marinha americana no tem aeromoa. Tem duas
moas, exemplos de soldado, autoconfiana e eficincia. Elas me
remetem a Colin Powell, que encontrou mais democracia nas
Foras Armadas do que na sociedade americana, e fico apreciando
o estilo militar feminino. O barulho dos motores ensurdecedor,
escrevo uma pergunta para uma delas. Na resposta, a decepo:
minha doce soldada semianalfabeta.
Um empresrio brasileiro, dono de filiais nos Estados
Unidos, encontrou o mesmo sintoma durante o recrutamento de
operrios locais: ndices de analfabetismo crescentes na nica
superpotncia mundial.
*
No pouso, as cadeiras estavam viradas para trs. Agora,
presumo, partiremos de frente.
Presuno... Ao embarcar, constato que os assentos
permanecem na mesma posio. Isso significa que suportaremos a
acelerao de 0 a 220 quilmetros por hora, em menos de trs
segundos, sustentados apenas pelos cintos de segurana,
cruzados frente ao peito?
Sim.
Algumas instrues antes da decolagem-relmpago.
Voc no quer quebrar o pescoo, portanto no olhe pela
janela!
No olhei, cruzei cintos e braos, colei o queixo no peito, e
vivi meus trs segundos de astronauta. No, no d frio na
barriga. O corpo todo ganha instantnea imponderabilidade,
durante longos segundos fica leve como um balo.
Eu, que gosto da Rssia e no aprecio parque de diverses,
devo admitir: melhor do que qualquer montanha-russa.
outubro/95
VOC SABE O QUE EST ACONTECENDO VOC SABE O QUE EST ACONTECENDO
EM NOSSO PAS?"EM NOSSO PAS?"
Quando voltou ao Brasil, depois de quase 30 anos, Vladimir
no se emocionou ao pousar no Galeo. Ele tambm manteve o
sangue-frio ao rever as montanhas do Rio, cercando a Lagoa
Rodrigo de Freitas. Olhou a praia como se tivesse pegado jacar
um dia antes.
Foi s quando entrou no quarto de hotel que o corao
sovitico-brasileiro disparou. Viu um rdio na cabeceira da cama.
Aproximou-se devagarinho e procurou a freqncia.
Estava l, no mesmo ponto do dial. Vladimir chorou ao
ouvir a hora certa da Rdio Relgio.
Algumas coisas no mudam, nem no Brasil.
*
Vladimir teve uma infncia feliz, no bairro de Santa Tereza.
O pai dele era msico da Orquestra do Teatro Municipal. A famlia
vivia numa casa ampla e confortvel. O pai trabalhava muito,
desdobrando-se entre ensaios, concertos e aulas. S chegava tarde
em casa, mas encontrava mulher e crianas bem alimentadas e
felizes.
O velho Ereemev tinha sido preso pelos alemes durante a
Segunda Grande Guerra. No fim do conflito, apaixonou-se por
uma russa das foras de liberao mas no perdeu a cabea a
ponto de pensar em voltar para a Unio Sovitica. Sabia para onde
Stalin mandaria os ex-prisioneiros de guerra. Entre o Gulag e a
Amrica do Sul, no foi difcil escolher.
S que, depois do reatamento de relaes diplomticas
entre Brasil e Unio Sovitica, uma febre de nostalgia tomou conta
do ex-combatente. Farto do descaso brasileiro com as artes e a
cultura, Ereemev vivia tecendo loas s realizaes do sistema
sovitico. Resolveu voltar.
O filho Vladimir ficou com um ltimo sambinha na cabea.
A letra rimava paredo com Cuba e contramo. No refro, avisava
Fidel que, no Brasil, barbudo s camaro...
*
Durante a viagem de navio at Gdansk, na Polnia, a
temperatura foi despencando. Do vero carioca ao inverno
polons, o menino Vladimir, de baixo dos seus doze anos,
comeou a desconfiar que algo ia mudar radicalmente. Na hora de
embarcar no trem para Moscou, a multido ocupava todas as
portas, a plataforma fervilhava, gritaria eslava, cotovelos, casacos,
malas, sufoco. Para embarcar o filho, a me de Vladimir o
arremessou pela janela do vago. Vladimir teve uma crise
histrica. Esperneou, berrou, resistiu, queria voltar para o Brasil.
Foi contido. Calou a boca e nunca mais a abriu.
A famlia de cinco pessoas foi viver num apartamento de
dois cmodos em Moscou.
Para ter a cidadania sovitica, foi obrigado a entregar o
passaporte brasileiro. At hoje, ainda no conseguiu provar
embaixada brasileira em Moscou que tem um registro de
nascimento no Rio.
Por ter nascido no exterior, ele nunca teve chance de
desenvolver seu extraordinrio talento para a eletrnica.
Fascinado por rdios, no foi aceito na Escola de
Telecomunicaes, rea de segurana nacional. Bem que ele
tentou entrar no Partido, para viabilizar a carreira. No foi aceito
nem depois de servir como voluntrio ao exrcito.
Acabou se conformando com a funo de tradutor. Foi
parar na guerra civil de Angola, onde um dia estranhou a sbita
frieza dos diplomatas estrangeiros. S ficou sabendo da invaso do
Afeganisto com um ms de atraso. Na frica, conheceu Irina,
princesa por direito sangneo, menina proletria por formao e
convico, que por sua vez s descobriu que Angola estava em
guerra civil, quando foi surpreendida por uma batalha, ao chegar
a Huambo. Vladimir e Irina casaram-se e tiveram um casal de
filhos. Apesar de ter chorado lgrimas genunas quando Leonid
Brejnev morreu, Irina s ingressou no Partido em plena
Perestroika, para ver se conseguia ascender na universidade, onde
clava aulas de Geografia.
*
Conheci Vladimir e Irina no dia 18 de agosto de 1991.
Irina sonhava com a carreira de empresria, queria abrir
um salo de beleza, se o governo Gorbatchev desse certo.
Vladimir tinha montado o seu prprio computador em casa,
depois de comprar pecinhas em feiras de rua.
*
Na manh seguinte, Irina me encontrou no lobby do hotel e
exclamou com os olhos arregalados: "Voc sabe o que est
acontecendo em nosso pas?"
No, eu ainda no sabia que Gorbatchev tinha cado e que
estvamos prestes a ver os trs dias que iriam encerrar a
Revoluo de Outubro de 1917.
Por que conto tudo isso hoje?
Irina no tem salo de beleza nenhum. Trabalha por um
salrio de fome para uma empresa espanhola. Vladimir continua
enfurnado em seu emaranhado de rdios e computadores. Ela tem
de pagar Mfia para manter o seu negcio. Ele no sai de casa.
O casal vota em Boris Yeltsin.
abril/96
BATISMO DE CHUMBO NA RSSIABATISMO DE CHUMBO NA RSSIA
Na outra margem do rio Moscou, a batalha do Parlamento.
Deste lado, subimos num tanque, para obter um ngulo melhor de
filmagem.
4 de outubro de 1993, as tropas leais a Yeltsin j castigam
o Parlamento h oito horas. Tiros, exploses, rajadas, mortos e
feridos. Assistindo a tudo, uma multido de civis.
"Essas coisas s acontecem na Rssia..." Ouvi esta frase na
minha primeira estada moscovita, e em todas as visitas
posteriores. Algumas vezes proferida com vergonha, outras como
afirmao orgulhosa, quase vim desafio. Os russos vivem em
oscilao ciclotmica entre a mais baixa auto-estima e a soberba.
Quem pensa que Dostoievski se desatualizou no entende de
literatura ou no conhece a Rssia.
Sobre o tanque, consideramo-nos a salvo de balas perdidas.
Eis que ao meu lado, outro tipo de perigo armado se aproxima.
Um assaltante aponta o revlver na minha direo.
Naquele dia, Boris Yeltsin deixou de ser heri.
Dois anos antes, tnhamos visto sua ascenso ao herosmo
e ao Kremlin, discursando sobre blindados, vencendo o poder
sovitico.
Por obra da sorte, ou como diz minha me, do destino, eu
estava em Moscou naquele 19 de agosto de 1991. Era a primeira
visita Unio Sovitica, onde realizaria um documentrio sobre os
crimes do stalinismo, no extremo oriente da Sibria. Nunca
cheguei l. Quando aqueles dias velozes e estonteantes esgotaram
a ateno dos espectadores ocidentais, j no havia mais
condies meteorolgicas para empreender a viagem. O clima s
permite chegar l durante quinze dias de vero.
Dormi meia dzia de horas, naquela semana do golpe
frustrado de agosto de 91. No figura de linguagem: o tempo
parecia mesmo escorrer de forma espessa durante aquelas horas
espantosas. No estava credenciado a trabalhar como reprter em
Moscou. A rigor, nossa presena era ilegal.
Esta semiclandestinidade acabou nos trazendo a maior
oportunidade. J que no podia estar presente nas entrevistas e
conferncias oficiais, fiz todo o meu trabalho na rua. Acabei
assustando os meus chefes no Rio, quando no primeiro dia de
golpe destaquei e enfatizei a resistncia popular sob a liderana de
Yeltsin. As agncias de notcias ainda tratavam a Junta como
vitoriosa.
Me apaixonei por Moscou e tive um curso intensivo sobre a
alma russa. Um dia ainda vou mostrar um poeminha que fiz para
Moscou, mas hoje destaco um verso: "...capital dos amantes da
dor...", ou algo assim, no estou bem certo.
*
Assim como o Ocidente no entende at hoje o que
representa Gorbatchev sob a tica russa, nossa viso de Yeltsin
no passa de caricatura. Cham-lo de bbado muito fcil.
Boris Yeltsin a expresso mais precisa, e competente, da
cultura poltica sovitica. O sistema do socialismo real se esmerou
em produzir oportunistas, na melhor das hipteses, e bandidos
como entourage dos primeiros.
Pude ver em seus olhos que era isso que ele queria.
Esta foi a resposta do primeiro-ministro Viktor
Chernomyrdin, quando lhe perguntaram se Yeltsin havia decidido
renunciar voluntariamente ao controle dos quatro ministrios-
chave: Defesa, Segurana, Exterior e Interior.
Boris Nikolaievitch parece bem mais doente do que seus
assessores querem nos fazer crer.
A transferncia dos ministrios significa que agora o dedo
de Chernomyrdin que paira sobre o boto atmico russo. O
primeiro-ministro transmite segurana e moderao aos lderes
ocidentais. Ningum garante, porm, que Viktor Chernomyrdin
no se trata apenas de outro adereo sobre o decorativo Yeltsin.
Mais uma vez, um Rasputin parece comandar o destino
russo: Alexander Korzhakov (l-se Korjakov), general reformado,
chefe da guarda presidencial. Korzhakov tornou-se o principal
interlocutor de Yeltsin, d as cartas executivas sobre um
Legislativo desmoralizado e atende aos interesses da turma da
pesada do complexo industrial-militar. O povo russo cada vez se
importa menos com o espectro da volta de um regime
antidemocrtico. O Parlamento s provoca desprezo. Partidos
patrocinam falsificaes em massa de assinaturas, para obter
registro eleitoral. Vrios candidatos vm da "Mafiya", criminosos
que buscam somente a imunidade parlamentar.
*
Este ano, o inverno chegou cedo a Moscou. Uma grande
nevasca inaugurou a fajuta campanha eleitoral. Televiso e rdio
funcionam sob censura. Oposio no tem vez, e nem mesmo a
imagem que divertiu o mundo, os belisces presidenciais nos
derrires das secretrias, os russos puderam ver.
Em tais condies se dar a votao no dia 17 de dezembro,
como que anunciando outra grande interrogao: a eleio para
presidente, em junho de 1996.
O neofascista Vladimir Zhirinovsky no representa uma
grande ameaa. O veterano do Afeganisto Alexander Rutskoy
pode assustar. Chernomyrdin deve ser a preferncia ocidental, a
despeito de uma possvel candidatura Gorbatchev.
Mikhail Sergueievitch Gorbatchev teria mais chances
disputando o poder na Inglaterra. As contradies autofgicas do
mais importante es