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114 Biotecnologia CiŒncia & Desenvolvimento - n” 29 PESQUISA Fotos cedidas pelos autores Bioconservaªo de Alimentos Elaine Cristina Pereira De Martinis Professora doutora do Departamento de AnÆlises Clnicas Toxicolgicas e Bromatolgicas Faculdade de CiŒncias FarmacŒuticas de Ribeirªo Preto- Universidade de Sªo Paulo [email protected] Virgnia Farias Alves FarmacŒutica-Bioqumica Mestranda do Departamento de AnÆlises Clnicas Toxicolgicas e Bromatolgicas Faculdade de CiŒncias FarmacŒuticas de Ribeirªo Preto- Universidade de Sªo Paulo [email protected] Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco* Professora Associada do Departamento de Alimentos e Nutriªo Experimental Faculdade de CiŒncias FarmacŒuticas- Universidade de Sªo Paulo [email protected] *Autor para correspondŒncia: Faculdade de CiŒncias FarmacŒuticas - Universidade de Sªo Paulo, Av. Prof. Lineu Prestes 580, 05508-900, Sªo Paulo - Sªo Paulo, Brasil. Tel.: +55 11 30912191. Fax: +55 11 38154410. 1. Introduªo notrio que alimentos, industriali- zados ou nªo, podem conter uma ampla variedade e quantidade de microrga- nismos, que podem interferir em sua vida œtil ou causar doenas. Existem inœmeros recursos para eliminar esses microrganismos ou controlar o seu de- senvolvimento nos alimentos, incluin- do tratamento tØrmico, adiªo de con- servadores qumicos, uso de baixa tem- peratura (refrigeraªo e congelamen- to) durante o armazenamento, entre outros. No entanto, a cada dia aumenta a procura por alimentos naturais, que nªo tenham sido submetidos a ne- nhum tipo de processamento industri- al ou que sejam minimamente proces- sados, e que nªo sejam adicionados de produtos qumicos. Muitos consumido- res consideram que esses procedimen- tos interferem na qualidade nutricional dos alimentos, alØm de acreditar que os conservadores qumicos sªo perigo- sos para a saœde, atØ mais perigosos que os prprios microrganismos que esses produtos pretendem controlar (Muriana, 1996). Com isso, aumenta tambØm a pre- ocupaªo dos fabricantes de alimentos em produzir alimentos que nªo neces- sitem desses procedimentos para que sejam saudÆveis e para que atendam os parmetros de qualidade e seguran- a exigidos pelos consumidores e fa- bricantes. Uma dessas estratØgias Ø explorar a capacidade dos microrga- nismos incuos, naturalmente presen- tes nos alimentos ou artificialmente adicionados, de inibir microrganismos que sªo indesejÆveis, quer sejam dete- riorantes, quer sejam prejudiciais a saœ- de. Esse processo denomina-se bio- conservaªo, e vem sendo cada vez mais estudado devido ao seu enorme potencial de aplicaªo nos mais varia- dos tipos de alimentos. Os microrga- nismos mais adequados para uso como bioconservadores sªo as bactØrias lÆti- cas, devido a suas caractersticas anta- gonsticas e sua grande tradiªo de uso como bactØrias grau-alimento em ali- mentos fermentados (Schillinger et al., 1996, De Martinis et al., 2002). 2. BactØrias lÆticas (BAL) em bioconservaªo As bactØrias lÆticas (BAL) compre- endem um grupo amplo de microrga- nismos, mas que apresentam diversas caractersticas morfolgicas, metabli- cas e fisiolgicas comuns. Sªo micror- ganismos Gram positivos, nªo forma- dores de esporos, anaerbios, aeroto- lerantes, fastidiosos, Æcido tolerantes, com metabolismo estritamente fermen- tativo, apresentando o Æcido lÆtico como principal produto da fermenta- ªo de carboidratos (De Martinis et al., 2002). As BAL podem interferir com a multiplicaªo de bactØrias deterioran- tes e patogŒnicas por meio de vÆrios mecanismos: competiªo por oxigŒ- nio, competiªo por stios de ligaªo e produªo de substncias antagonsti- cas, especialmente bacteriocinas. A pro- duªo de bacteriocinas tem sido verifi- Aplicaªo de bactØrias lÆticas e suas bacteriocinas para a garantia da segurana microbiolgica de alimentos

bioconservação de alimentos

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PESQUISA

Fotos cedidas pelos autores

Bioconservação deAlimentos

Elaine Cristina Pereira De MartinisProfessora doutora do Departamento de AnálisesClínicas Toxicológicas eBromatológicasFaculdadedeCiênciasFarmacêuticasdeRibeirãoPreto- Universidadede Sã[email protected]

Virgínia Farias AlvesFarmacêutica-BioquímicaMestranda do Departamento de Análises ClínicasToxicológicas eBromatológicasFaculdadedeCiênciasFarmacêuticasdeRibeirãoPreto- Universidadede Sã[email protected]

Bernadette Dora Gombossy de MeloFranco*Professora Associada do Departamento deAlimentos e Nutrição ExperimentalFaculdadedeCiênciasFarmacêuticas-UniversidadedeSã[email protected]

*Autor para correspondência: FaculdadedeCiênciasFarmacêuticas -Universidadede SãoPaulo, Av. Prof.Lineu Prestes 580, 05508-900, São Paulo - São Paulo,Brasil. Tel.: +55 11 30912191. Fax: +55 11 38154410.

1. Introdução

Énotórioquealimentos, industriali-zadosounão,podemconterumaamplavariedade e quantidade de microrga-nismos, que podem interferir em suavida útil ou causar doenças. Existeminúmeros recursospara eliminar essesmicrorganismosoucontrolaro seude-senvolvimentonos alimentos, incluin-do tratamento térmico, adiçãode con-servadoresquímicos,usodebaixa tem-peratura (refrigeração e congelamen-to) durante o armazenamento, entreoutros.Noentanto, acadadiaaumentaa procura por alimentos naturais, quenão tenham sido submetidos a ne-nhumtipodeprocessamento industri-al ouque sejamminimamenteproces-sados, equenãosejamadicionadosdeprodutosquímicos.Muitosconsumido-resconsideramqueessesprocedimen-tos interferemnaqualidadenutricionaldos alimentos, além de acreditar queosconservadoresquímicos sãoperigo-sos para a saúde, até mais perigososque os próprios microrganismos queesses produtos pretendem controlar(Muriana, 1996).

Com isso, aumenta também a pre-ocupaçãodos fabricantesdealimentosemproduzir alimentosquenãoneces-sitemdesses procedimentos para quesejam saudáveis e para que atendamosparâmetrosdequalidadee seguran-ça exigidos pelos consumidores e fa-bricantes. Uma dessas estratégias éexplorar a capacidade dos microrga-nismos inócuos, naturalmentepresen-tes nos alimentos ou artificialmente

adicionados,de inibirmicrorganismosque são indesejáveis, quer sejamdete-riorantes,quer sejamprejudiciaisa saú-de. Esse processo denomina-se bio-conservação, e vem sendo cada vezmais estudado devido ao seu enormepotencial de aplicaçãonosmais varia-dos tipos de alimentos. Os microrga-nismosmaisadequadosparausocomobioconservadores sãoasbactérias láti-cas, devido a suas características anta-gonísticase suagrande tradiçãodeusocomo bactérias grau-alimento em ali-mentos fermentados (Schillinger et al.,1996, De Martinis et al., 2002).

2. Bactérias láticas (BAL)em bioconservação

As bactérias láticas (BAL) compre-endemumgrupo amplo demicrorga-nismos,mas que apresentamdiversascaracterísticasmorfológicas,metabóli-cas e fisiológicas comuns. Sãomicror-ganismosGrampositivos, não forma-dores de esporos, anaeróbios, aeroto-lerantes, fastidiosos, ácido tolerantes,commetabolismoestritamente fermen-tativo, apresentando o ácido láticocomo principal produto da fermenta-çãode carboidratos (DeMartinis et al.,2002).

As BAL podem interferir com amultiplicaçãodebactérias deterioran-tes e patogênicas por meio de váriosmecanismos: competição por oxigê-nio, competiçãopor sítios de ligaçãoeprodução de substâncias antagonísti-cas,especialmentebacteriocinas.Apro-duçãodebacteriocinas temsidoverifi-

Aplicação de bactérias láticas e suas bacteriocinas para a garantia da segurança microbiológica de alimentos

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cada em bactérias láticas associadas aalimentos, incluindorepresentantesdosgêneros Lactococcus spp, Lactobaci-llus spp e Pediococcus spp (De Mar-tinis et al., 2002, Rosa et al., 2002).

Em alimentos, a multiplicação ousobrevivência demicrorganismos pa-tógenosoudeteriorantes édetermina-da por fatores intrínsecos (pH, sal,conservadores, fatoresantimicrobianosnaturais) e extrínsecos (período dearmazenamento, atmosfera da emba-lagem)quepodematuar comobarrei-rasparamultiplicaçãodemicrorganis-mos.Oconhecimentoeutilizaçãocom-binadadesses fatores emumalimentoformamos fundamentos da teoria dosobstáculos (hurdle technology), quepermite controlar a vida de prateleira,a estabilidade microbiológica, bemcomo impedir a multiplicação e/ou aproduçãode toxinas pormicrorganis-mos patogênicos eventualmente pre-sentes (De Martinis et al., 2002).

Emcontraste combarreiras biostá-ticas, que simplesmente inibemamul-tiplicaçãodemicrorganismoscontami-nantes, as bacteriocinas podem serusadas como barreiras bactericidas eajudar a reduzir a susceptibilidade dealimentosàmultiplicaçãodemicrorga-nismospatogênicos (DeMartinis et al.,2002).

AhabilidadedeBALprodutorasdebacteriocinase/ou suasproteínas anti-microbianas em inibir Listeria mono-cytogenes e outros organismos Grampositivospatogênicospodepromoverumamaior segurança microbiológicadealimentosprocessados. Seuusoemsistemas de bioconservação poderánãoapenas suprir ademandados con-sumidoresporconservadoresnaturais,mas também pode ser consideradauma medida de segurança adicionalaos produtosminimamenteprocessa-dos, quedependemapenasde refrige-ração comomeiode conservação (DeMartinis et al., 2002).

3. Fundamentos da aplicaçãode bacteriocinas de bactériasláticas em bioconservação.

O uso de bacteriocinas pode serconsideradouma �tecnologia biológi-ca� com uso potencial em sistemasalimentares. As bacteriocinas contras-

tamcomosantibióticos, consideradosilegais como conservadores pelo fatodenãoapresentaremutilizaçãono tra-tamento de doenças clínicas infeccio-sas. Os antibióticos são formados porreações de condensação enzimáticadeaminoácidos, enquantoasbacterio-cinas são peptídeos ou proteínas comatividadeantibacterianasintetizados ri-bossomicamente,nãosendoletaisparaas células que asproduzem (DeMarti-nis et al., 2002).

As bacteriocinas deBAL investiga-das até o momento diferem em seusespectros de atividade, característicasbioquímicas e determinantes genéti-cos. Entretanto, amaioria delas possuibaixo peso molecular (3 a 10 KDa),alto ponto isoelétrico, e contêm regi-õeshidrofílicasehidrofóbicas (DeMar-tinis et al., 2002).

Segundo Klaenhammer, 1993, asbacteriocinas podemser divididas emquatroclasses:

Classe I: pequenos peptídeos(<5kDa), contendoaminoácidos inco-muns comodehidroalanina, dehidro-butirina, lantioninaeβ-metillantionina.Exemplos:nisina, lactacina481, carno-cina UI49 e lactocina S.

Classe II: pequenos peptídeos

(<10kDa)hidrofóbicos, termoestáveise quenão contêm lantionina. Abacte-riocinasmaduras dessa classe formamhélicesanfifílicas comhidrofobicidadevariável, estrutura de β-folha e estabi-lidade térmicamoderada (100oC) aalta(121oC). Dentro dessa classe podemser definidas três subclasses:

IIa: Peptídeos ativos contra Liste-ria, com uma seqüência N-terminalcomum, composta por -Tir-Gli-Asn-Gli-Val-Xaa-Cis. Exemplos: pediocinaPA-1, sakacinas A e P, leucocina A,bavaricinaMNe curvacinaA.

IIb: Peptídeos formadores de po-rosnamembrana celular, constituídosdeduas subunidades importantesparaa atividade. Exemplos: lactococinaG,lactococinaM e lactacina F.

IIc: Peptídeos ativados por tiol,que requerem resíduos de cisteína re-duzidapara tornarem-seativos. Exem-plo: lactacinaB.

Classe III: grandes proteínas ter-molábeis (>30kDa). Exemplos: helve-ticina J, helveticinaV-1829, acidofilinae lactacinas A e B.

Classe IV: bacteriocinas comple-xas, compostasporuma fraçãoprotéi-ca e frações lipídicas ou glicídicas.Exemplos. plantaricina S, leuconocinaS, lactocina 27 e pediocina SJ1.

Existemoutraspropostasde classi-ficação de bacteriocinas de bactériasláticas e a pesquisa na área de bacteri-ocinas émuito dinâmica, devendo sernecessário algum tempo até que umsistemade classificaçãodefinitivo sejaobtido (De Martinis et al., 2002).

A seleção de BAL produtoras debacteriocinas a partir de alimentos ge-ralmente é feita pela semeadura dediluiçõesdecimais seriadasdoalimen-to em placas de ágar contendo meioseletivo. Em seguida, coloca-se umasobrecamada, composta de meio decultura contendo um microrganismosensível, e incuba-se em temperaturaadequadapelo temponecessárioparaobservação da presença de colôniascomatividadeantagonística, conformemostra a Figura 1.Deve-se usar simul-taneamente testes adicionais queper-mitamexcluir a possibilidadeda inibi-

Figura 1: Zonas de inibiçãoobservadas em placas de ágarMRS proveniente de uma amos-tra de salsicha, utilizandoLactobacillus sake ATCC 15521comomicrorganismo indicador(Autoria: E.C.P.DeMartinis)

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ção ter sido devida à produção deácidosorgânicosouperóxidodehidro-gênio ou a presença de bacteriófagoslíticos (De Martinis et al., 2002).

As cepas comatividade antagonís-tica isoladas devem ser, em seguida,submetidasaensaiosconfirmatóriosdaatividade inibitória. Entre osmétodospara confirmação, podemos destacaros seguintes:

a) difusão em poços: os sobrena-dantes de culturas supostamente pro-dutorasdebacteriocinassãocolocadosemorifícios cortados emumaplacadeágar semeadocomumorganismosen-sível (indicador).Durantea incubação,a bacteriocina difunde-se pelo ágar,inibindoocrescimentodo indicador eformandoumhalo ao redordoorifício(Figura 2).

b) �flip-streak�: as bactérias testesão semeadas emestrias na superfíciede ummeio sólido, invertendo-se emseguidaessemeio.Oorganismosensí-vel à bacteriocina é então semeadonolado inversodoágar.Durantea incuba-ção, verifica-se a inibição do cresci-mentodomicrorganismo sensível (Fi-gura 3).

c) �spot-on-the-lawn�: as culturasteste são semeadas comoumpontonasuperfície de ummeio de cultura sóli-do adequado contendo ágar. Após aincubaçãodessaplaca,adiciona-seumacamadadeum indicador sensível, ob-servando-se a inibição de seu cresci-mento após uma nova incubação (Fi-gura 4a).

A sensibilidade do inibidor à enzi-mas proteolíticas pode ser determina-da empregando-se uma modificaçãoda técnica �spot-on-the-lawn�. Nessatécnica, antes de se adicionar a sobre-

Tabela 1. Lista parcial de BAL e suas bacteriocinas.

LinhagemprodutoraLactococcus lactis subsp. lactisLactobacillus reuteriLactobacillus sakei Lb 706Lactobacillus sakei 148Lactobacillus sakei CTC 494Lactobacillus sakei LTH 673Lactobacillus sakei Lb 674 e Lactobacillus sakei Lb 16Lactobacillus sakeiMNLactobacillus sakei 251Lactobacillus sakei L45, Lactobacillus sakei 148, Lactobacillus sakei V18Lactobacillus curvatus LTH 1174LactobacillusbavaricusEnterococcus faecium CTC 492Enterococcus faecium DCP 1146Enterococcus faecium T136Enterococcus faecium L50Leuconostoc gelidum A-UAL 187Leuconostoc mesenteroides TA33aLeuconostoc carnosum B-TA11aLeuconostoc curvatus FS47Carnobacterium piscicola KLV17BCarnobacterium piscicola JG126Carnobacterium divergens 750Pediococcus acidilactici PAC1.0, JD, H, E, F, M, Pediococcus pentosaceus Z102Pediococcus acidilactici L50Carnobacterium divergens 750Carnobacterium piscicolamutante LV17ACarnobacterium piscicolamutante LV61

bacteriocinanisinareuterinasakacinaAsakacinaMsakacinaKsakacinaPsakacina 674sakacinaMNsakacinaBlactocinaScurvacinaAbavaricinaAenterocinaAenterocina 1146enterocinas A e Benterocinas L50A e L50BleucocinaA-UALleucocinaTA33aleucocinaB-TA11acurvaticina FS47carnobacteriocinasB1 eB2piscicolina 126divergicina 750pediocinaPA1pediocina L50divergicina 750carnobacteriocinaApiscicolina 61

Fonte: De Martinis et al., 2002.

Figura 2: Foto de placa deensaio dediluição crítica paraquantificaçãodabacteriocina2a produzida por L. sake 2apelo método da difusão empoços, utilizando L.monocytogenes comomicror-ganismo indicador (Rosa,2001)

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camada comomicrorganismo indica-dor, adicionam-se aomeio proteases,alémde águadestilada comocontrolenegativo (Figura 4b).

4. Mecanismo de ação das bacte-riocinas de bactérias láticas.

Omecanismopara a atividade dasbacteriocinas sobrecélulasvegetativasnão está totalmente esclarecido, masenvolve ação sobre amembrana celu-lar.Bacteriocinaspertencentes àsqua-tro classes de Klaenhammer (1993)são capazes de causar o colapso daforça próton-motriz em células vege-tativas, sugerindo um modo de açãocomum, conforme demonstrado porBrunoeMontville (1993). A força pró-ton-motriz está relacionada com umgrandenúmerodeprocessosdemem-brana que envolvem dispêndio ener-gético.

A força próton-motriz pode serexpressa como segue:

PMF = ∆ψ - Z ∆pH

onde,PMF= forçapróton-motriz,∆ψ = potencial de membrana, Z = 2,3RT/F, sendoRaconstantedosgases, Ta temperatura absoluta e F a constantedeFaraday.

Hádúvidas, entretanto, se o colap-soda forçapróton-motriz éumeventoprimárioou secundário e tambémse a

desestabilizaçãodamembrana celularocorre pelo mecanismo de formaçãode poros ou pela ação detergente. AFigura5esquematizaosdoisprincipaismecanismospropostosparaocolapsoda força próton-motriz.Omecanismode formação de poros é o mais aceitoporqueuma solubilizaçãogeneraliza-da comoconseqüência da açãodeter-gente ocasionaria a lise total das célu-las, levando a um colapso repentinodos parâmetros bioenergéticos, nãosendo compatível com a cinética desaturação observada (Montville et al.,1995). Para a formação de poros, hádoismodelospropostos,conformeilus-trado na Figura 6.

No caso da ação da bacteriocinanisina sobre esporos, a germinação éimpedidapela reaçãodegrupamentosdehidrobutirinaedehidroalanina commoléculas sulfidrila vitais damembra-na, conforme mostrado na Figura 7(De Martinis et al., 2002).

Um fato importante a ser conside-radoé apossibilidadede aparecimen-to de células resistentes a bacterioci-nas, já observadas entre Listeria mo-nocytogenes, Staphylococcus aureus,Bacillus cereus e Clostridium botuli-num (De Martinis et al., 2002). Osmecanismospara resistência abacteri-ocinaspodemenvolver suadestruiçãoporproteasesouuma�bacteriocinase�específica, modificação estrutural ou,ainda, alteração da composição damembranada célula alvo (Montville etal., 1995).

Para diminuir a freqüência do apa-recimento de microrganismos resis-tentes a bacteriocinas em alimentos énecessárioocontroledaconcentraçãode cloreto de sódio, do pH e da tem-peratura de armazenamento dessesalimentos (De Martinis et al., 2002).

5. Emprego debacteriocinasemalimentos

Apesardograndenúmerode traba-lhos de pesquisa sobre a aplicação debacteriocinasdeBALembioconserva-ção, o uso efetivo desses compostosem alimentos ainda é bastante limita-do.

A nisina é a única bacteriocina dis-ponível comercialmente para utiliza-ção em alimentos. Esta bacteriocina é

produzida por algumas cepas de Lac-tococcus lactis subsp. lactis e seunome é derivado de �group N inhibi-tory substance�, porque L. lactis ante-riormente era classificadocomo Strep-tococcus do grupo N de Lancefield.Essa bacteriocina é atóxica, destruídapor enzimas digestivas e não confere

Figura 3: Representaçãoesquemática de um ensaio �flipstreak�mostrando: (A) culturaprodutora de bacteriocina, (B) e(C) culturas sensíveis àbacteriocina, (D) cultura não sen-sível à bacteriocina

Figura 4: Teste de sensibilidadea proteases referente à cepaLactobacillus sake 2a (determina-do pela técnica �spot-on-the-lawn�). a) adição de 20 µL deágua destilada estéril adjacenteao ponto de inoculação da bacté-ria produtora;b) adição deprotease (20 µl, 20 mg/mL) e c)adiçãodeα-quimotripsina (20 µL,20 mg/mL) (De Martinis, 1997)

Figura 5: Interação demonômerosdebacteriocina(formas ovais) com a membra-na citoplasmática de acordocom omecanismo de formaçãode poros (A) e o modelo deação detergente (B) (retiradode Montville et al., 1995, compermissão de Elsevier Science)

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sabores e odores desagradá-veis aos alimentos. A nisinapertence à classe dos lantibió-ticos, sendo composta por 34resíduos de aminoácidos compeso molecular de 3510 Dal-tons, podendo apresentar-sena forma de dímeros e tetrâ-meros(DeMartinisetal.,2002).

A nisina foi reconhecidacomo aditivo alimentar pelaOrganização de Alimentos eAgricultura/OrganizaçãoMun-dial de Saúde (FAO/OMS) em1969, como limitemáximodeingestão de 33.000 UnidadesInternacionais/kgdepesocor-póreo.Diversospaíses permi-temousodenisina emprodu-tos como leite, queijo, produ-tos lácteos, tomates e outrosvegetais enlatados, sopas en-latadas,maionese e alimentosinfantis (De Martinis et al.,2002).

NoBrasil, a nisina é aprovadaparauso em todos os tipos de queijo nolimite máximo de 12,5 mg/kg e nossopaís é pioneiro na utilização dessabacteriocinaemprodutoscárneos, sen-dopermitida a sua aplicaçãona super-fície externade salsichasdediferentestipos. O produto pode ser aplicadocomo solução comercial de nisina a0,02% em solução de ácido fosfóricograu alimentício (De Martinis et al.,2002).

A aplicação de nisina em carnes éumassuntobastantecontrovertido.Ela

foi avaliadapor alguns autores, obten-do-se sucesso quando aplicada emsuperfícies de carnes, a fim de reduziras contagens de L. monocytogenes(DeMartinis et al., 2002).Davies et al.,1999, relataram que nisina, utilizadanos níveis de 6,25 a 25 µg/g, foieficientepara controlar bactériasdete-riorantes emembutidodo tipoBolog-na.Os resultadospermitiramevidenci-ar aindaqueamaior inibição foiobtidanas formulações comomenor conteú-do de gordura (25%) e na presença dedifosfato comoemulsificante.

Entretanto, a aplicação de nisina

emcarnes pode ser limitadadevido à sua baixa solubili-dadenessesprodutos,àpos-sibilidade de destruição porenzimas da carne crua e àineficiência na inibição detodososorganismospatogê-nicosoudeteriorantesde im-portância em carnes (DeMartinis et al., 2002). A efe-tividadedaaplicaçãodenisi-nana superfíciede salsichas,conformepreconizadopeloMinistério daAgricultura doBrasil, foi avaliada por Cas-tro, 2002, que demonstrouque esse procedimento épouco efetivo no controlede L. monocytogenes ou demicrorganismosdeterioran-tes, incluindopsicrotróficose bactérias láticas.

Demodogeral, anisinaéativa apenas frente a bacté-

riasGrampositivas e seus esporos,não afetando as Gram negativas,bolores e leveduras. Postula-sequea parede das bactérias Gram nega-tivas, compostapor lipopolissacarí-deos e proteínas (Figura 8), atuacomo uma barreira de permeabili-dade celular, impedindoqueanisi-na atinja amembrana citoplasmáti-ca. Contudo, apresençadeagentesquelantes, pressão hidrostática ouinjúria celular podemdesestruturara parede, deixando a membranacelular exposta à ação da bacterio-cina.

Aaplicaçãodebacteriocinasemalimentos tendea sermais eficientequando as cepas produtoras sãoisoladasdopróprioprodutoemquese pretende utilizá-las. Neste senti-do, váriosestudos sobreaaplicaçãode bactérias láticas produtoras debacteriocina em produtos cárneosvêmsendodesenvolvidosnoBrasil.DeMartinis&Franco, 1998,demos-traramque abactéria Lactobacillussake 2a, atualmente Lactobacillussakei, produtora de bacteriocina eisoladade lingüiça frescal, apresen-ta atividade antilisterial em lingüiçafrescal artificialmentecontaminada.Esses autores verificaramque apósquatro semanas a 8oC, onúmerodecélulas demonocytogenes presen-te noproduto cárneo co-inoculado

Figura 6: Modelos de formação de po-ros: (A) �wedge-like� e (B) �barrel-stave� (adaptado de Moll et al., 1999,com a gentil permissão de KluwerAcademicPublishers)

Figura 7:Diagrama representativo do crescimento de um endosporodentro da célula vegetativa, mostrando estágio submetido a concentra-çãomínima inibitória de nisina (modificado de Franco e Landgraf, 1996)

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com L. sake 2a era cerca de 6 loginferior ao do controle, inoculadoapenas com L.monocytogenes. Pos-teriormente, Rosa et al., 2002, de-monstraram que essa bacteriocina,apresentavamododeaçãobacterici-da em meio de cultura. A atividadeeramantidaapósaquecimentoa60oCpor até 60 minutos, 100o C por 20minutos e 121oC por 15 minutos.Apóspurificaçãopor extração salinadas células de L. sake 2a seguida decromatografiade trocacatiônicautili-zando coluna Mono S, verificou-seque a bacteriocina 2a apresentavapeso molecular estimado de 3 a 6kDa.Pormeiodecompostos fluores-centes (�probes�) foi demonstradoqueabacteriocina2a formaporosnamembrana citoplasmática das célu-las-alvo, apresentandoomesmome-canismodeaçãoqueasbacteriocinasda classe 2 de Klaenhammer,1993.

Liserre e Franco, 2002, avaliaramo efeito combinado da embalagemematmosferamodificadaedaadiçãoda cepaprodutoradebacteriocina L.sake 2anamultiplicaçãodeL.mono-cytogenes em lingüiça frescal, emba-lada com filme plástico permeávelao oxigênio, 100% CO

2ou 50% +

50%N2emantidaa6oC.Os resultados

indicaram que a embalagem em at-mosfera modificada teve um efeitoantilisterial mais acentuado que aadição de L. sake 2a produtor debacteriocina.Entretanto, foiobserva-do um efeito sinergístico quando L.sake 2a e embalagem em atmosferamodificada foramutilizados simulta-neamente. Os autores ainda relata-ram que L. sake 2a nãomodificou aspropriedadessensoriaisdas lingüiças

em nenhuma condição, por até 11dias de armazenamento a 6oC.

Asbactérias láticas bacteriocino-gênicase/ousuasbacteriocinasapre-sentam grande potencial para apli-cação na garantia da segurança deprodutos cárneos embalados a vá-cuoemnossopaís, sendoumaalter-nativa interessante aosprocedimen-tos tradicionais de conservação.

6 - REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

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