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BIOSSENSOR: UM CONCEITO INTERDISCIPLINAR Resumo: Este trabalho propõe o uso de um conceito interdisciplinar envolvendo as áreas de Química, Física e Biologia como temática aplicada em sala de aula, tanto para ensino médio como superior, para discussões conceituais e aplicação/contextualização de conhecimentos dessas áreas na atualidade. Fundamentado no tema “biossensores”, o texto traz os princípios básicos de funcionamento de um biossensor piezoelétrico relacionados com essas áreas, orientando tanto o professor como o aluno a identificar os conceitos propostos para a discussão e desenvolvimento de saberes relacionados à temática proposta. Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Biossensores; Química

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BIOSSENSOR: UM CONCEITO INTERDISCIPLINAR

Resumo: Este trabalho propõe o uso de um conceito interdisciplinar envolvendo as áreas de

Química, Física e Biologia como temática aplicada em sala de aula, tanto para ensino médio

como superior, para discussões conceituais e aplicação/contextualização de conhecimentos

dessas áreas na atualidade. Fundamentado no tema “biossensores”, o texto traz os princípios

básicos de funcionamento de um biossensor piezoelétrico relacionados com essas áreas,

orientando tanto o professor como o aluno a identificar os conceitos propostos para a

discussão e desenvolvimento de saberes relacionados à temática proposta.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Biossensores; Química

BIOSENSOR: AN INTERDISCIPLINARY CONCEPT

Abstract: This paper proposes the use of an interdisciplinary concept involving Chemistry,

Physics and Biology as applied theme in the classroom for high school and college. Based on

the theme "biosensors," the article brings the basic principles of operation of a piezoelectric

biosensor related to these areas of knowledge, guiding the teachers and students to identify

the concepts proposed for discussion and development of knowledge related to the

“biosensors” theme.

Keywords: Interdisciplinarity; Biosensors; Chemistry

Este texto situa-se na perspectiva de contribuir para a superação do caráter descontextualizado

dos conteúdos escolares, decorrentes de concepções neutras e dogmáticas de ciência e de

conhecimento científico, que reafirmam a fragmentação e a linearidade do currículo escolar

(Chassot, 2001). Possivelmente vinculado a tal caráter, está o baixo nível de aprendizagem

que afeta tanto o ensino básico como o superior.

Em oposição a esse sistema de ensino, propostas necessitam ser elaboradas e desenvolvidas

para que esse quadro possa ser alterado. De acordo com os Parâmetros Curriculares

Nacionais, PCNs (Brasil, 2000), os conteúdos de Química devem ser trabalhados

considerando-se a interdisciplinaridade e com a necessária construção cognitiva, social e

critica dos alunos. Segundo Lauxen et al. (2007), a característica interdisciplinar do ensino e

da formação escolar decorre do caráter contextual da abordagem de conceitos, na medida em

que os componentes curriculares co-participam, mediando o acesso a estilos próprios de

linguagem e significação conceitual. Assim, ocorre um processo de inter-relação com

situações reais, necessárias de serem problematizadas e tematizadas, em suas complexidades,

ou seja, levando em conta a pluralidade de saberes socialmente produzidos.

Com o intuito de exemplificar uma abordagem interdisciplinar de conteúdos envolvendo as

grandes áreas da ciência como a Química, a Física e a Biologia, serão mostrados, a seguir, os

conceitos que orientam a construção de um biossensor piezoelétrico para detecção de

Salmonella. De forma geral, os conceitos aqui apresentados podem ser utilizados por

professores dessas áreas, tanto no ensino médio como superior. Deve-se ressaltar, porém, a

necessidade de o professor realizar possíveis adaptações em função do nível de escolaridade e

contexto e reconhecer seu papel ativo enquanto mediador na implementação de atividades.

Para abordar o tema, será apresentada uma estória com personagens fictícios, criados com o

propósito de ilustrar um acontecimento verídico ocorrido no ano de 1993 numa escola

localizada em Pontalinda, SP (Kaku et al., 1995). Essa escola enfrentou um surto alimentar

causado por uma bactéria do gênero Salmonella.

Ao final da estória, apresentamos uma questão para que o professor possa buscar a interação

com e entre os alunos. As interações têm como objetivo tornar a aula mais interessante e

dinâmica, bem como dar oportunidade ao aluno de expor possíveis soluções e respostas,

possibilitando ao professor, desta forma, conhecer e identificar o progresso conceitual que o

aluno está passando.

Um susto com o surto alimentar

São três horas da tarde e o sinal do intervalo de aula toca numa escola de ensino

fundamental localizada na região Noroeste do Estado de São Paulo. Todos os alunos saem

eufóricos para o pátio e, nesse dia, final de julho, será servido pão com patê para o agrado

das crianças. Todas comem satisfeitas, inclusive Mariana, de sete anos, que adora essa

refeição. No dia seguinte, sábado, ocorre algo estranho. Mariana, por volta das cinco horas

da manhã, acorda sua mãe, pois não está se sentindo bem. Dona Rosália, preocupada,

verifica que sua filha está ardendo em febre e tenta controlá-la com compressas de água, mas

sem sucesso. Na verdade, começa a piorar. A menina, que já sentia cólicas abdominais,

começa a ter diarréia e vômito. Sem pensar duas vezes, a mãe leva a criança para o hospital

mais perto e percebe que ele já estava tumultuado, muito mais do que de costume. A sala de

espera estava cheia de crianças e de alguns funcionários da escola. Rosália, surpreendida ao

conversar com outras pessoas, descobre que todos estavam com o mesmo sintoma de

Mariana. Horas mais tarde, após ser consultada pelo médico, a pequena garota é internada

juntamente com mais de 80 pessoas (entre crianças e funcionários da escola que comeram o

pão com patê). Após dias de ensaios laboratoriais, descobriu-se que a escola enfrentou um

surto alimentar ocasionado por Salmonella, que contaminou o patê. O surto demorou

aproximadamente quatro dias e todos se curaram.

Infecção generalizada causada por Salmonella pode matar (CVE, 2011; FOLHAOnline,

2011), e o diagnóstico rápido da doença pode ajudar a equipe médica a encontrar uma solução

eficiente para controlar a doença, especialmente em idosos, crianças e pessoas com

deficiência no sistema imunológico (CVE, 2011) antes que a doença evolua para quadros

clínicos mais graves. Entretanto, a Salmonelose (como é chamada a infecção causada por

Salmonella) é diagnosticada após dias de testes laboratoriais (Alcocer e Oliveira, 2003), e a

necessidade de encontrar uma forma de rápida detecção e de baixo custo é altamente

desejável. Neste contexto, os biossensores podem ser uma das soluções para esse problema.

Mas, o que é um Biossensor?

Biossensor é um dispositivo capaz de detectar (e até quantificar) rapidamente determinadas

espécies químicas e/ou biológicas (analito). Estes sensores são construídos por meio da

imobilização de material biológico, tais como organelas (estruturas presentes nas células),

tecidos de origem animal ou vegetal, antígenos ou anticorpos, enzimas, lectinas (um tipo de

proteína que interage com carboidratos), ácidos nucléicos (DNA e RNA), dentre outros, a um

transdutor (Fatibello-filho e Capelato, 1992). Transdutor é um dispositivo capaz de converter

um sinal em outro (neste caso, de reação biológica ou bioquímica entre o analito e o material

biológico em sinal elétrico) passível de ser detectado e quantificado, pois a intensidade do

sinal está relacionada à quantidade de analito. É por meio do sinal originado entre o analito e

o material biológico, portanto, que o biossensor consegue identificá-lo e quantificá-lo.

Não precisa ir longe para encontrar um biossensor. Atualmente, um dispositivo amplamente

utilizado é o glicosímetro portátil, um aparelho vendido em farmácias e responsável por medir

em tempo real (ou seja, no momento do teste) o nível de glicose no sangue. Esse tipo de

biossensor é especialmente recomendado a diabéticos, visto da necessidade de monitoramento

diário do nível de glicose no sangue.

No caso da Salmonella, como seria possível construir um biossensor capaz de detectar uma

única espécie de bactéria e em tempo real?

Para começar a discussão, os conceitos científicos formulados no século XIX poderão nos

ajudar a entender.

Da piezoeletricidade aos sensores piezoelétricos

Como explicado anteriormente, um transdutor é um dispositivo capaz de transformar um

determinado tipo de sinal em outro. No caso de um transdutor piezoelétrico, este é capaz de

identificar uma pequena variação de massa sobre ele e transformar o sinal de massa em sinal

elétrico (Fatibello-filho e Capelato, 1992).

O uso desse tipo de transdutor se fundamenta em uma propriedade (chamada

piezoeletricidade) encontrada em determinados materiais. Na etimologia da palavra, ela

significa “eletricidade por pressão”, uma vez que piezo (palavra de origem grega) significa

pressão.

A piezoeletricidade foi primeiramente investigada por vários pesquisadores no início do

século XIX (Andrade et al., 1991). Entretanto, o mérito de serem os primeiros a observarem e

a estudarem esta propriedade ficou para os irmãos Pierre e Jacques Curie, em 1880. Estes

pesquisadores observaram que certos materiais como o quartzo (mineral constituído

basicamente de dióxido de silício, SiO2), quando comprimidos em determinadas direções, era

registrado um potencial elétrico entre as superfícies do material deformado (Curie e Curie,

1880). Mais tarde verificaram o efeito oposto, ou seja, que o material sofria deformação

mecânica quando aplicado a uma diferença de potencial. A esta propriedade foi dado o nome

de piezoeletricidade.

A principal característica de um material que possui propriedade piezoelétrica é a ausência de

um centro de simetria (Andrade et al., 1991) em sua estrutura cristalina, levando o

aparecimento de dipolos elétricos (Figura 1a). Quando estes materiais sofrem compressão,

ocorre uma separação das espécies opostamente carregadas presentes na estrutura cristalina,

provocando uma mudança no momento de dipolo líquido em cada molécula. Esta alteração,

por sua vez, provoca o aparecimento de cargas elétricas nas faces do cristal, sendo que a

intensidade da carga elétrica gerada dependente da intensidade da força aplicada no material e

da orientação de seus dipolos em relação às suas faces. Da mesma forma, os dipolos presentes

na estrutura cristalina desses materiais são atraídos ou repelidos quando expostos a uma

diferença de potencial aplicada através de eletrodos presentes em faces opostas do cristal,

provocando uma reorientação da rede cristalina, isto é, deformando o material (Figura 1b).

Figura 1

As propriedades piezoelétricas desses materiais, tais como o modo de vibração preferencial e

o coeficiente de temperatura, dependem do tipo de corte utilizado para se obter as lâminas

empregadas na construção dos sensores, uma vez que o cristal de quartzo apresenta

propriedades físicas anisotrópica, ou seja, propriedade que varia com a direção considerada no

material. Cada tipo de cristal se refere aos diferentes ângulos de corte em relação aos eixos

cristalográficos do material. Para o quartzo existem variados tipos de cortes, a saber

(Watanabe, 2006): AB, AT, BT, CT, DT, SC dentre outros. O tipo de corte mais utilizado no

desenvolvimento de biossensores é o AT porque apresenta pequeno coeficiente de

temperatura (em condições ambiente) e grande sensibilidade de massa (Andrade et al., 1991).

A frequência ressonante da lamina de quartzo depende de determinados fatores, como suas

dimensões físicas e a espessura dos eletrodos depositados sobre ele (Andrade et al., 1991). A

necessidade de deposição de eletrodos metálicos se justifica pelo fato de possibilitar a

aplicação da diferença de potencial na superfície do cristal (Watanabe, 2006).

Caso uma diferença de potencial alternada (AC) fosse aplicada nos eletrodos depositados nas

faces opostas de uma lâmina de cristal de quartzo de corte AT, este sofreria uma deformação

em um sentido graças à presença de cargas opostas aos pólos nos eletrodos. Entretanto,

quando o potencial aplicado variasse com o tempo carregando os eletrodos com cargas de

sinais opostos, a deformação deste cristal ocorreria no sentido contrário (Figura 1b).

Novamente, quando a diferença de potencial voltasse para as condições iniciais, o material

apresentaria a mesma forma daquela do início, voltando a sofrer deformação no sentido

inverso quando a diferença de potencial voltar a carregar as placas com sinais opostos à

condição inicial. Este fenômeno, portanto, se processaria em ciclos alternados (ou seja, numa

determinada frequência de oscilação) de acordo com a diferença de potencial alternada

aplicada.

Em 1959 Sauerbrey (Sauerbrey, 1959) estudando depósito de filmes metálicos em cristais de

quartzo encontrou uma equação matemática que relaciona a variação de frequência de

oscilação do cristal com a massa depositada (Equação 1):

202

fq q

f mf C mA μ ρ− Δ

Δ = = − Δ (1)

onde Δf é a variação de frequência, f0 a frequência de oscilação fundamental do cristal de

quartzo, Δm a variação de massa, A é a área ativa do cristal de quartzo, µq o modo de

cisalhamento do cristal e ρq a densidade da lâmina de quartzo. Como os valores de frequência

fundamental, área ativa do cristal, modo de cisalhamento e densidade do quartzo são

constantes, estes valores combinados geram uma constante Cf, permitindo uma relação direta

entre a variação da frequência de oscilação do cristal de quartzo com a massa depositada

sobre ele. De acordo com esta relação matemática, Δf é proporcional a menos a quantidade de

massa depositada, ou seja, se houver a deposição de massa sobre um cristal de quartzo

oscilando na frequência f0, o valor de Δf decairá.

Um importante passo na construção de um sensor piezoelétrico é desenvolver um sistema

elétrico que consiga realizar a oscilação do cristal e detectar o sinal de variação de sua

frequência (Δf). Para a oscilação, o cristal pode ser conectado a um sistema oscilador, que

garante a oscilação do cristal em sua frequência fundamental. Para o monitoramento de Δf no

tempo pode-se utilizar frequencímetros (Watanabe et al., 2009) interfaceados a computadores

contendo softwares específicos que registram a frequência no tempo.

O que foi discutido até o momento é a base da técnica conhecida como Microbalança a Cristal

de Quartzo (MCQ) ou Quartz Crystal Microbalance (QCM), que se fundamenta na

propriedade piezoelétrica do cristal de quartzo e na equação de Sauerbrey (Equação 1). Esta é

uma técnica que pode ser utilizada para a detecção de analito por meio do monitoramento da

frequência em função do tempo.

Entretanto, como o analito pode ser distinguido de qualquer outra substância (interferentes)

para que o sinal não seja falso, ou seja, um sinal que não está relacionado com o

reconhecimento biológico com o analito, mas com o interferente?

Tudo se inicia utilizando moléculas de tiol.

Desenvolvendo um biossensor piezoelétrico

Após a discussão dos aspectos teóricos fundamentais do princípio de funcionamento de uma

QCM, iniciaremos a descrição das etapas básicas do processo de construção de um biossensor

piezelétrico.

Um biossensor piezoelétrico geralmente é constituído de uma lâmina fina de cristal de quartzo

(corte AT, 14 mm de diâmetro e 0,3 mm de espessura, frequência fundamental de oscilação

de 5 MHz) contendo finíssimos depósitos de ouro ou outros metais (Love et al., 2005) para

contato elétrico. Um desses depósitos é destinado à construção de um filme sensível ao

analito por meio de um processo chamado de funcionalização. Este processo se resume,

basicamente, na mudança da propriedade química da superfície de ouro em outra desejável

para a detecção do analito. Alguns questionamentos parecem ser fundamentais:

- O que deverá ser aderido na superfície do cristal de quartzo para que o biossensor se torne

seletivo1? No nosso caso, como é possível construir um biossensor capaz de detectar apenas

uma bactéria desejada do gênero Salmonella?

- Para conseguir seletividade num dispositivo, ou seja, torná-lo capaz de interagir somente

com o analito desejado, é necessário uma espécie biológica que interaja apenas com o analito

de interesse. Mas como conseguir essa especificidade?

Quando moléculas ou microorganismos estranhos (antígenos) entram em contato com o nosso

organismo, nosso sistema imunológico produz determinadas proteínas (anticorpos) capazes de

neutralizar sua ação. Os anticorpos são capazes de reconhecer apenas um tipo de antígeno,

pois são altamente específicos. Portanto, se queremos identificar apenas uma bactéria do

gênero Salmonella, uma alternativa viável é utilizar um anticorpo específico. E é exatamente

nesse princípio em que se baseiam os biossensores chamados de imunossensores (Riccardi et

al., 2002).

Entretanto, outra questão se torna evidente: como imobilizar o anticorpo no cristal de quartzo

tornando-o seletivo à bactéria de interesse, ou em outras palavras, como funcionalizar a

superfície de ouro?

É neste ponto que as moléculas de tiol entram em ação. Tiol é uma molécula que possui o

grupo –SH em sua estrutura. Esse grupo tem grande afinidade pelo ouro e, por causa dessa

propriedade, esse grupo de moléculas é amplamente utilizado na funcionalização de

superfícies desse metal. Geralmente, para a construção de biossensores, são utilizadas

moléculas de tiol que contém, no final de sua estrutura, outro grupo químico desejado para

realizar a ligação com o material biológico que, em nosso caso, é uma proteína (anticorpo).

Um tiol propício para esta função, por exemplo, é o ácido 11-mercaptoundecanóico,

conhecido como MUA (Figura 2), que contem, além do grupo tiol, um grupo carboxila no

final de sua estrutura.

Figura 2

A obtenção de um filme fino de tiol sobre a superfície do ouro é conhecida como técnica de

monocamadas automontadas (SAM, do inglês Self Assembled Monolayer). Neste

procedimento, é preparada uma solução de tiol (na ordem de 10-3M) na qual o cristal de

quartzo será imerso por um tempo e temperatura determinados, objetivando a formação de

uma monocamada estável sobre o eletrodo, como mostrado na Figura 3 (Bain et al., 1989;

Love et al., 2003; Ulman, 1996; Wink et al., 1997). As monocamadas formadas são estáveis

por causa de duas contribuições energéticas diferentes: a primeira, como comentado, a forte

afinidade do átomo de enxofre do grupo tiol pelo ouro, que garante uma ligação química forte

para que a molécula não se desprenda da superfície metálica facilmente. A reação que explica

a formação da ligação entre o enxofre com o ouro é mostrada abaixo (Karpovich e Blanchard,

1994):

Au(s) + RS-H(solv.) RS-Au(s) + 1/2 H2 (solv.)

Outra contribuição energética para a estabilidade das monocamadas é as forças

intermoleculares (Forças de London, dipolo-dipolo, etc.) existentes entre moléculas

adjacentes adsorvidas na superfície de ouro. Desta forma, o tipo de interação depende da

molécula de tiol sendo utilizado (se utilizar espécies contendo apenas grupos apolares, por

exemplo, as interações ocorrerão por meio das Forcas de London).

Figura 3

Após a formação da monocamada, é realizada a substituição do grupo carboxila terminal por

um éster. Esse processo, conhecido como ativação, se faz necessário para agilizar a reação

química entre o grupo amino presente na proteína (do anticorpo, neste caso) com a molécula

de tiol aderida na superfície de ouro. Cada etapa do processo, bem como reagentes e

condições que podem ser adotadas são mostrados na Figura 4.

Figura 4

Mesmo após a imobilização do material biológico, alguns ésteres NHS não reagiram com o

anticorpo, permanecendo inalterados. Como forma de evitar esse inconveniente, geralmente é

empregada solução protéica de albumina de soro bovino (BSA) para bloquear esses sítios,

evitando que o analito ou interferentes interajam com o sensor inespecificamente (Fung e

Wong, 2001).

Uma vez finalizada esta etapa, o biossensor está pronto para ser testado.

O biossensor em ação.

Após o desenvolvimento do biossensor (imunossensor), ele deve passar por inúmeros testes

para verificar sua eficiência e seletividade. Para analisar sua seletividade, o dispositivo pode

ser exposto a várias soluções de concentrações diferentes de antígenos de outras espécies de

Salmonella e verificar seu comportamento, ou seja, se o biossensor detecta substâncias nas

quais o dispositivo não foi desenvolvido. Caso detectar, é indício que o dispositivo não é

seletivo para o determinado analito e que existem interferentes que podem influenciar no

resultado analítico. Por outro lado, se não houver detecção de qualquer outra espécie, o

biossensor pode ser considerado seletivo.

Além da especificidade, é importante que seja analisado a sensibilidade, o limite de detecção,

o limite de quantificação, a reprodutibilidade e muitos outros parâmetros, para que seja

possível validar o método e permitir que o dispositivo seja utilizado para fins analíticos.

Como não é o objetivo deste trabalho apresentar conceitos sobre validação de método

analítico, esse tema não será abordado. Entretanto, as definições podem ser encontradas no

site do INMETRO (INMETRO, 2011).

A Figura 5, a seguir, ilustra como é possível o biossensor, neste caso um imunossensor,

detectar especificamente, em uma amostra de água, apenas um determinado antígeno de

Salmonella, mesmo quando ele se encontra em meio a outros microorganismos.

Figura 5

Conclusões

A discussão da temática “biossensores” pode ser desenvolvida em salas de aula de ensino

médio e superior, favorecendo a interdisciplinaridade das áreas da ciência, como a Química, a

Física e a Biologia e facilitando o entendimento dos alunos.

Ao valorizarmos o estabelecimento de relações entre saberes contextuais e conceituais dentro

de cada disciplina e entre disciplinas, reconhecemos uma forma de aprender a lidar com

situações reais e acontecimentos do cotidiano, à luz de conhecimentos científicos escolares

(Lauxen et al., 2007). Conceitos como os de interações intermoleculares, trabalhados no

ensino médio para explicar as propriedades físicas das substâncias (ponto de fusão e

ebulição), podem ser contextualizados dentro de avanços da ciência moderna, deixando claro

que “velhos conceitos” estão presentes, sutilmente, na tecnologia “de ponta”. Exemplos de

reações e grupos químicos também podem ser abordados utilizando o tema “biossensores”,

visto que as reações químicas são as bases da formação desses dispositivos. Outros exemplos

conceituais, bem como a inter-relação entre as áreas do saber podem ser vistos na Figura 6.

Figura 6

Além disso, acreditamos que a temática “biossensores”, discutida neste artigo, pode permitir a

compreensão da natureza da Ciência, ao professor promover nos alunos a atitude de tentar

entender e relacionar conhecimentos, avaliar as possibilidades e limites de conhecimentos

cientificamente obtidos e observar o caráter provisório da ciência entendido como qualidade e

não como fraqueza.

REFERÊNCIAS

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                                                            1 Entende-se por seletividade a capacidade do dispositivo em interagir com apenas um analito, rejeitando outros. A seletividade é desejável porque a não interação do material biológico com outras moléculas garante que o sinal detectado pelo biossensor é devido apenas à existência da espécie de interesse.  

Figura 1. Piezoeletricidade. a) Cristal de quartzo de corte AT contendo eletrodos de ouro, conectados uma fonte de potencial. O material piezoelétrico não possui centro de simetria, resultado em dipolos elétricos. b) Ao aplicar uma diferença de potencial, os eletrodos são carregados com cargas opostas e de mesma intensidade. Como o material possui dipolos em sua estrutura, as cargas negativas dos dipolos são atraídas pelo eletrodo positivamente carregado, enquanto as positivas pelo eletrodo negativamente carregado. A atração dos dipolos pelos eletrodos deforma o material (as setas indicam o sentido do movimento). Quando os eletrodos são carregados com cargas opostas, as cargas dos dipolos são novamente atraídas, deformando o material no sentido inverso do anteriormente discutido.

Figura 2. Estrutura molecular plana da molécula de ácido 11-mercaptoundecanóico (MUA).

Figura 3. Procedimento para obtenção de SAM de tiol sobre eletrodo de ouro. Uma solução etanólica de tiol é preparada e o cristal de quartzo é mergulhado na solução a uma temperatura T. Após um período de tempo t, o cristal é retirado da solução e lavado com etanol. A SAM formada por tióis de cadeia longa, como o MUA, é compacta, com forte interação entre os grupos -CH2- de moléculas adjacentes. O grupo funcional terminal (neste caso o -COOH) se localiza na extremidade em contado com o ar da monocamada, tornando possível a funcionalização da superfície de ouro.

Figura 4. Procedimento de imobilização do anticorpo sobre a superfície da monocamada de MUA. O cristal de quartzo contendo SAM de MUA sobre sua superfície é exposta por 2h em uma solução aquosa de pH 7,0 contendo EDC e NHS, formando um éster NHS. Após essa etapa, o cristal é exposto a uma solução de anticorpo. O grupo amino terminal da proteína reage com o éster, formando amida. Esse procedimento resulta na imobilização (adsorção) do anticorpo sobre o cristal de quartzo.

Figura 5. Exemplo (hipotético) de processo de reconhecimento de antígenos da Salmonella paratyphi por um imunossensor.

Figura 6. Conexão de diferentes saberes disciplinares com a temática “Biossensores”. Neste caso, a temática é o eixo integrador que orienta e coordena três áreas do saber para um conhecimento mais profundo e holístico a respeito do desenvolvimento e funcionamento de biossensores piezoelétricos.

   

Figura 1

  

 

Figura 2

  

 

Figura 3

  

 

Figura 4

  

 

 

Figura 5

  

 

Figura 6