23
PAISAGEM 1. Uma palavra simples, um termo polissémico Paisagem, palavra de uso quotidiano, que cada pessoa utiliza a seu modo; o que a não impediu de se tomar um vocábulo à moda. Paisagem, uma destas noções utilizadas por um número sempre cres- cente de disciplinas, que muitas vezes ainda se ignoram. Paisagem, enfim, um dos temas clássicos da investigação geográfica. Conforme o interesse de que é objecto ou a maneira como se encara, a própria noção de paisagem difere. Se um geógrafo, um historiador, um arqui- tecto se debruçarem sobre a mesma paisagem, o resultado dos seus trabalhos e a maneira de os conduzir serão diferentes, segundo o ângulo de visão de cada um dos que a examinam. No seu sentido mais cor- rente o termo ‘paisagem’ designa a parte de um território que a natureza apresenta ao observador; mas esta acepção banal é hoje considerada insuficiente, porque nunca como hoje este termo da lin- guagem corrente foi carregado de tão grande número de ambiguidades e incertezas. É um vocábulo polissémico, e cada um de nós deveria explicar o que entende por paisagem. Que actualmente ele esteja muito na moda é um facto incontestável que faz parte do moderno interesse pela ecologia e pelas condições ambientais. O estudo das expressões com ele relacionadas mostra que é utilizado em acepções disciplinares tão vagas quanto variadas. A paisagem, como de resto o espaço, assemelha-se de há alguns anos para cá àquelas estalagens espanholas onde se encontra apenas aquilo que cada um leva consigo. 2. A paisagem dos artistas: uma vivência cultural Embora corrente, o termo aparece desde há muito carregado de conotações culturais, e mais particularmente artísticas: é a natureza vista através do olhar humano, transformada pela intervenção e pelos olhos do homem. Na realidade, e durante muito tempo, não gozou na cultura europeia de qualquer autonomia em relação ao homem. Na origem, não foi mais do que ornamento ou símbolo: a floresta só existe pelos caçadores que lá perseguem a caça; as paisagens dos «pri-

BLANC-PAMARD, Chantal; RAISON, Jean-Pierre. Paisagem

Embed Size (px)

DESCRIPTION

In: Enciclopédia Einaudi, vol. 8, Região. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986, p.138-159.

Citation preview

  • PAISAGEM

    1. Uma palavra simples, um termo polissmico

    Paisagem, palavra de uso quotidiano, que cada pessoa utiliza a seu modo; o que a no impediu de se tom ar um vocbulo moda. Paisagem, uma destas noes utilizadas por um nmero sempre crescente de disciplinas, que muitas vezes ainda se ignoram. Paisagem, enfim, um dos temas clssicos da investigao geogrfica. Conforme o interesse de que objecto ou a maneira como se encara, a prpria noo de paisagem difere. Se um gegrafo, um historiador, um arquitecto se debruarem sobre a mesma paisagem, o resultado dos seus trabalhos e a maneira de os conduzir sero diferentes, segundo o ngulo de viso de cada um dos que a examinam. No seu sentido mais corrente o termo paisagem designa a parte de um territrio que a natureza apresenta ao observador; mas esta acepo banal hoje considerada insuficiente, porque nunca como hoje este termo da linguagem corrente foi carregado de to grande nmero de ambiguidades e incertezas.

    um vocbulo polissmico, e cada um de ns deveria explicar o que entende por paisagem. Que actualmente ele esteja muito na moda um facto incontestvel que faz parte do moderno interesse pela ecologia e pelas condies ambientais. O estudo das expresses com ele relacionadas mostra que utilizado em acepes disciplinares to vagas quanto variadas. A paisagem, como de resto o espao, assemelha-se de h alguns anos para c quelas estalagens espanholas onde se encontra apenas aquilo que cada um leva consigo.

    2. A paisagem dos artistas: uma vivncia cultural

    Embora corrente, o termo aparece desde h muito carregado de conotaes culturais, e mais particularmente artsticas: a natureza vista atravs do olhar humano, transformada pela interveno e pelos olhos do homem. Na realidade, e durante muito tempo, no gozou na cultura europeia de qualquer autonomia em relao ao homem. Na origem, no foi mais do que ornamento ou smbolo: a floresta s existe pelos caadores que l perseguem a caa; as paisagens dos pri

  • 139 PAISAGEM

    mitivos flamengos so simultaneamente sinais dos dons de Deus e do esforo dos homens para as valorizar. Cena profana na aparncia, a queda de caro pintada por Brueghel exprimir tambm outra coisa qualquer? O heri epnimo do quadro apenas um ponto luminoso, quase imperceptvel na paisagem. Numa vertiginosa perspectiva a pique sobre o mar destaca-se no primeiro plano um humilde lavrador: no pretende igualar-se aos deuses, mas aproveita modestamente os seus dons. Natureza vista atravs duma cultura: a paisagem no outra coisa em obras to diversas como os poemas de Ronsard nos quais os carvalhos so apenas uma metamorfose das ninfas antigas ou, embora bem radicadas no presente, as cenas dos paisagistas holandeses do sculo XVI: marinhas que exaltam a conquista dos oceanos pelos Batavos; moinhos de vento, instrumentos da lenta progresso das terras arveis.

    O sculo XVIII marca uma viragem a partir da qual a paisagem passa a ser considerada por si mesma. Mas at aquela que parece ser a mais fiel das imagens no passa da traduo de uma tomada de posio filosfica: o homem, naqueles momentos privilegiados to caros aos romnticos ingleses, s atinge o seu pleno desenvolvimento quando em comunho com um panorama que responda o melhor possvel aos seus sentimentos e s suas aspiraes. Neste ponto, realismo e romantismo podem conjugar-se a fim de fixar melhor o instante significativo. Nunca deixar fugir a primeira impresso que nos comoveu, dizia Corot. A tcnica esfora-se por encontrar maneira de exprimir este encontro fugaz: a aguarela, quase to rpida e fugente como a emoo que a inspira, ou a tinta lanada com um pincel gil pelos paisagistas chineses, mas tambm a minuciosa procura da pincelada exacta dum Monet.

    A paisagem pode inspirar outras buscas e outras relaes: para Czanne esqueleto, estrutura e portanto durao, e em tom o da sua montanha Sainte-Victoire os pinheiros s palpitam na trmula luz do meio-dia para melhor sublinhar o longo tempo, se no mesmo a eternidade, da arquitectura dos calcrios que o pintor pe em evidncia, quase como faria o gelogo. J no mais comunho, efuso, mas procura das leis comuns ao objecto e ao sujeito que o observa.

    Deveremos, pois, admirar-nos de que noutras artes a paisagem tenha ainda uma menor realidafde autnoma? O prprio cinema no consegue capt-la sem pr outras intenes por trs da imagem. O local da aco pode ser antes de mais uma referncia cultural: Ma nuit chez Maud (1969) de Eric Rohmer situa junto ao Puy-de-Dme subtis reflexes sobre a existncia de Deus; em Le genou de Claire(1970), do mesmo autor, parece, pelo contrrio, que desempenham uma funo oposta, em contraponto, as vistas do lago de Bourget, que recordam Rousseau ou Lamartine, enquanto o erotismo dos protagonistas evidentemente o de Laclos. A paisagem pode participar mais directamente na aco. No ela talvez, sobretudo na sua profundidade espacial, um elemento importante dos westerns? Todavia, ela apenas existe para desaparecer: nestes filmes, os mais belos panoramas

  • PAISAGEM 140

    so os destinados a morrer, conquistados e transformados pelos pioneiros e, na sequncia final, o heri confunde-se com o horizonte apenas para melhor o dominar. Estas vistas, que parecem de bilhete-postal, s tm existncia enquanto smbolos. Mais aperfeioado ainda, o realismo desemboca no fantstico. Alfred Hitchcock, por exemplo, fez continuamente uso da profundidade de campo, que lhe permite fixar os mais pequenos elementos duma cena: muitas vezes a angstia brota desse mundo mais preciso do que habitualmente nos parece, onde o perigo pode ocultar-se no mnimo pormenor, pormenor que ns vemos, mas que pelo contrrio escapa aos participantes do drama. Com efeito, pela recusa do realismo que na pantalha a paisagem se traduz da forma mais autnoma e mais real: o Bengala de Marguerite Duras (ndia Song, 1975) pode ser filmado na regio parisiense, mas extremamente vivo por si mesmo, paisagem sem paisagem, recriado por ns atravs do jogo das cores glaucas, dos rudos, da respirao dos actores. Neste caso, percepo fsica global, nem viso, nem construo intelectual.

    Em literatura as coisas no se passam diferentemente. Directamente, a pena no poderia dar vida ao espao abrangido pela observao: apenas no-lo transmite atravs de intermedirios e referncias. Para ns, a natureza de Jean-Jacques Rousseau s existe atravs das emoes que lhe inspira e na medida em que ns as partilhamos, e os seus esforos para a descrever so enganadores enquanto apenas tiverem o objectivo de nos reconduzir ao que ele prprio sente e pensa. Ao que parece, a nica evocao colorida da sua obra o ouro das giestas e a prpura das estevas enchiam-me os olhos com tal profuso que me tocava o corao no mais do que uma figura de retrica em que a verdadeira riqueza da paisagem se contrape falaz riqueza dos poderosos. A vida literria das paisagens no est no que retratam, mas sim no que sugerem. As frteis plancies da Flandres, as colinas pobres e ventosas do Haut Boulonnais tm enorme vitalidade no Journal dun cur de campagne (1936) de Bernanos porque cada paisagem se encarna na pessoa de um dos protagonistas e, influenciando-se reciprocamente, a regio reflecte-se no homem e vice-versa. Quando no se personifica, a paisagem pode existir atravs da msica, do ritmo, da poesia da luz: onde poder ver-se melhor o Mediterrneo do que no Cimetire marin ou no Aprs-midi dun faune!

    Tomada na sua acepo mais corrente, de ordem principalmente visual, a paisagem foge, de facto, a esta simples classificao: no fundo ela pode ser tudo excepto o que deveria ser, globalmente perceptvel pelos sentidos e secundariamente visual ou at ideal, quando no mesmo ideolgica. Vivida ou construda, e no observada. , alis, assim que hoje tratada at por muitos dos que pretendem lanar as bases das cincias da paisagem. Arquitectos e urbanistas, mesmo quando julgam preserv-la, s o fazem em funo de um certo conceito pr-for- mado, ou da ideia que o pblico possa formar a respeito dela. Mais do que sobre a vida da paisagem, baseiam-se na sua prpria vida em relao

  • 141 PAISAGEM

    a ela. Quando a no reconstroem integralmente, modificam-na; e qualquer que seja o respeito que lhes inspira, quando pretendem adaptar a cidade paisagem, e no o inverso, fazem-no em funo da imagem mental que dela traaram. A paisagem vulgar s existe mediante e para o homem.

    3. Uma cincia da paisagem? Como definir o seu objecto?

    Mas ento, no existir uma paisagem real, e portanto no ser possvel uma cincia da paisagem? Contudo, desde h muito que a geografia se apresenta como cincia objectiva das paisagens, cujo fim principal era a sua identificao, descrio e interpretao. No h dvida de que o prprio termo paisagem , bem como espao e regio, um dos mais frequentemente empregados em geografia, tal como os seus equivalentes noutras lnguas: landscape ingls, Landschaft alemo e russo, landskap sueco, paesaggio italiano ou paisais espanhol. Falsa unanimidade, alis, porque aqui como noutras disciplinas o sentido do vocbulo varia de acordo com a escala de observao e os critrios de classificao, conforme a geografia for entendida prioritariamente como cincia natural ou como cincia humana. Tanto assim , que no se fala de paisagem sem lhe apor um qualificativo: paisagem mediterrnica, vegetal, florestal, natural, rural ou agrria, ordenada, urbana, cultural... No ser talvez um simples pretexto, o sinal de uma unidade artificial baseada em mal-entendidos?

    Conviria, pois, entendermo-nos sobre o vocbulo. Desde 1938, no Congresso Internacional de Geografia de Amesterdo, houve a preocupao de definir este objecto essencial (George) para a curiosidade e os estudos geogrficos, mas sobretudo para afirmar que o conceito de paisagem na geografia humana pouco claro e pouco exacto devido a vrias cincias se terem apoderado do termo usado, alm disso, pelos artistas num sentido esttico. Como se as outras disciplinas fossem responsveis pela confuso que reina nas prprias fileiras dos gegrafos!

    Vejamos algumas definies recentes. Segundo Rougerie [1969], uma paisagem um todo apreendido por vrios sentidos e, se o quisermos compreender, deveremos destrinar, quer todas as relaes causais, quer as interaces do complexo vivo que ela constitui. Para Dollfus[1971], a paisagem define-se, isto , descreve-se ou explica-se a partir das formas, da sua morfologia em sentido lato. As formas nascem dos elementos do ambiente natural, ou so a consequncia da interveno do homem, que imprime a sua marca no espao. Gourou [1973], pelo seu lado, afirma que tudo quanto na paisagem obra da interveno humana constitui o primeiro objectivo da geografia humana; os campos, as casas, e o modo de se agruparem em cidades e aldeias, as paisagens industriais, os caminhos, as linhas frreas, os canais.

  • PAISAGEM 142

    Nestas frases podemos detectar pelo menos duas tendncias: para uns, a paisagem um ponto de partida, quer a encaremos como testemunho da actividade humana, e nesse caso as suas caractersticasreenviam-nos a uma realidade social, isto , resultante duma srie de processos naturais que ela permite estudar; para outros, umobjecto em si enquanto esfera de interaco entre os vrios factores de transformao. De facto, sob a influncia em primeiro lugar dosbiogegrafos, a noo de paisagem est hoje em plena renovao, econviria fazer uma distino entre a anlise tradicional e a da nova escola da cincia da paisagem. Ou, mais precisamente, partindo do mais simples para o mais complexo, poremos em confronto os trs tipos seguintes: 1) a paisagem enquanto tal: o que os olhos alcanam, segundo Vidal de la Blache [1903], ou o que se v, segundo Brunet [1974]; 2) as paisagens sectoriais: a aposio de qualificativos tais como natural, morfolgico, bioclimtico, vegetal, humanizado... serve apenas para revelar a complexidade das definies sem contudo esclarecer o conhecimento sinttico da sua realidade. As paisagens rurais, consideradas parte, constituem o tema de numerosssimos estudos; 3) o objecto- -paisagem, ou paisagem global, definida em Frana por Bertrand. a cincia da paisagem, muito desenvolvida, em primeiro lugar, na URSS.

    4. As paisagens geogrficas: histria de um conceito

    Graas a uma longa prtica, os gegrafos desenvolveram, incontestavelmente, uma particular sensibilidade em relao paisagem. Foi com Vidal de La Blache que, no incio deste sculo, apareceu na escola francesa o conceito de paisagem humanizada, ento exclusivamente rural. O Tableau de la gographie de la France, publicado em 1903 como prembulo grande Histoire de France de Lavisse, contm belssimos trechos evocativos. Do Boulonnais descrevem-se bosques e prados que surgem alternadamente; ribeiras que correm, rpidas, sobre leitos pedregosos; sebes vivas onde o azevinho se mistura com a madressilva e os salgueiros emolduram pequenas veredas, enquanto por toda a parte, mas especialmente nas colinas, se espalham casas longas e baixas com suas janelas floridas e a sua parcela de pomar, prado ou campo de cultivo.

    Mas a prpria colocao deste prembulo um ndice de ambiguidade em relao ao seu contedo. Tratar-se-, de facto, dum prlogo com factores permanentes que vo, se no determinar, pelo menos pesar na histria da Frana ou, pelo contrrio, dum eplogo onde sinteticamente so descritos os efeitos da histria sobre uma parte do globo? Os gegrafos do sculo XIX, de formao naturalista, tinham tentado explicar as paisagens rurais pela qualidade do solo, pelo relevo ou pelo clima; mas no sero elas, sobretudo, produtos histricos ou culturais? Num artigo publicado em 1925 com o ttulo The morphology

  • 143 PAISAGEM

    of landscape, Cari Sauer, fundador da escola de Berkeley, desenvolve o conceito de paisagem cultural que em seguida esclarece: a paisagem natural valorizada pelas actividades humanas e suas consequncias. Mais tarde, em 1955, Sauer foi o principal organizador do debate sobre o tema Mans Role in Changing the Face of the Earth. Designadamente em Frana, a concepo geogrfica da paisagem vai ser fortemente influenciada pelos estudos histricos em matria agrria, a partir dos anos 30, com os trabalhos de Bloch [1931], Roupnel [1932] e Dion [1934]. Gegrafo de formao, Dion, no seu Essai sur la formation du paysage rural franais, no aceita basear-se apenas na geografia fsica para explicar a paisagem rural; observa que os elementos naturais s adquirem sentido quando relacionados com um contexto histrico e tecnolgico, e sublinha a importncia dos factores sociais. A participao do homem na formao da paisagem rural , segundo Dion, antes de mais, o ordenamento dos terrenos agrcolas segundo um plano determinado, que regula no apenas a forma, mas tambm a distribuio do prprio habitat. A Histoire de la campagne franaise de Gaston Roupnel abre algumas perspectivas para a compreenso da paisagem rural francesa; o mesmo acontece com a Storia del pae- saggio agrario italiano de Emillo Sereni, editada em 1961-

    5. As paisagens entre geografia fsica e geografia humana: o insucesso de uma grelha de interpretao por zonas

    O tomo da Encyclopdie de la Pliade consagrado geografia geral demonstra bem quais eram em Frana, h uns quinze anos, as preocupaes dos gegrafos clssicos em matria de paisagem. Paisagens naturais, no mbito da geografia fsica, e paisagens rurais, no da geografia humana, constituem o tema de longas dissertaes distintas. Uma interpretao demasiado analtica tende, deste modo, a fazer esquecer o conceito global de paisagem. Ao vocbulo sempre associado um qualificativo que lhe reduz o sentido: paisagem geomor- folgica, ou vegetal, por exemplo. Em menor escala, o reagrupamento formado com a salvaguarda duma climatologia zonal, que diferencia paisagens das zonas temperadas, paisagens glaciares e periglaciares, paisagens tropicais, paisagens desrticas. E mesmo quando se pretendia que a abordagem por zonas fosse, e parecia ser, sinttica, esta dava origem a uma como que tirania do clima em detrimento de factores no zonais, como por exemplo as estruturas morfolgicas. Deste ponto de vista, so realmente preferveis as interpretaes recentes, o relevo dado ao pormenor com prejuzo dos grandes conjuntos. Czanne cede o passo ao miniaturista. A durao, que tambm uma das dimenses dos acontecimentos fsicos, desvalorizada com vantagem para as condies atmosfricas de hoje, o que leva a minimizar o papel at aqui desempenhado pela paleoclimatologia e as suas interaces com os processos actuais. Considerados em separado, os factores humanos

  • PAISAGEM 144

    so, no entanto, catalogados segundo a mesma grelha; em teoria, tratar-se-ia de traar a geografia da obra paisagstica dos homens sobre a Terra, a descrio e a explicao daquilo que os homens vieram acrescentar pouco a pouco s paisagens fsicas j estudadas, o que, tomado letra, no poderia ser mais do que uma ligeira modificao dos condicionalismos impostos pelo clima.

    Lendo estes textos, depressa nos apercebemos de como um trabalho que pretendia ser sinttico tenha assumido um carcter arbitrrio: os especialistas de geografia humana tm outros cdigos de leitura, e mesmo quando parecem aderir aos esquemas propostos, o no fazem sem subentendidos: as circunstncias obrigaram cada um deles a trabalhar em zonas climticas diferentes, mas a sua especificidade s assume o seu pleno significado porque se apoia em elementos sociais e econmicos originais: os pases tropicais so, substancialmente, o Terceiro Mundo. Na mesma poca, j certos estudos mostravam bem como estruturas semelhantes tinham podido surgir, em pocas diversas, em contextos ecolgicos diferentes. No seu artigo intitulado A propos de quelques terroirs dAfrique occidentale [1962], G. Sautter explica a gnese dos terrenos em aurolas, caracterizados pela desigual pujana das culturas, em confronto com exemplos europeus: a comparao com situaes fundamentalmente diferentes permite evidenciar os elementos gerais das dinmicas e das estruturas; a observao das actuais alteraes na zona tropical ajuda a compreender, por sua vez, as condies em que se criaram certas paisagens europeias hoje cristalizadas, quando no fossilizadas.

    6. A s paisagens, construes das sociedades

    A obra dos historiadores colocou em primeiro plano a influncia das sociedades e das civilizaes na construo das paisagens, e no por certo estranha ao facto de numerosos gegrafos considerarem prioritrio o estudo das paisagens agrrias ou, num sentido mais lato, das paisagens rurais. O seu contributo foi em grande parta brilhantemente resumido numa pequena obra de Meynier [1958], na qual o autor afirma que, logo que o homem ultrapassa a fase o da simples recolha, logo que raspa o solo a fim de modificar os seus produtos naturais, cria uma paisagem agrria. Partindo do que visvel, tentam analisar-se estas paisagens como espaos construdos, partes de territrio em que se verificam combinaes de factos visveis resultantes da interveno dos agricultores em ambientes naturais diferentes. Procedimento lgico na aparncia; partir de elementos visveis no ser ser o mais fiel possvel ao conceito de paisagem? Poder-se- porm pensar que um a fidelidade excessiva pode limitar um pouco o xito da investigao. Estudar os fenmenos agrcolas em funo dos seus resultados visveis quer dizer, dos que so geralmente mais evidentes conduz

  • 145 PAISAGEM

    a uma classificao pelo menos incompleta, quando no mesmo arbitrria, e a polmicas por vezes muito afastadas da realidade.

    A escola rural francesa, inspirada em trabalhos de historiadores da Frana, limitou-se muitas vezes a um debate sobre o openfield e a pequena propriedade fechada {bocage), esquecendo que grandes sectores do territrio nacional fugiam a esta dicotomia, ainda menos pertinente noutros pases. Alis, o prprio aspecto da paisagem pode ocultar um passado, um presente e um futuro totalmente diversos: bocage nunca foi rigorosamente sinnimo de terrenos de pastagem, por exemplo: Fiarmo-nos nas formas, mesmo sem as caricaturar, significa, obviamente, agir como gemetra mais do que como bilogo: atitude justificvel num certo estdio da evoluo agrcola em que forma e contedo se equilibram, mas que deixa de ter sentido a longo prazo, que no permite entender a transformao da paisagem natural em paisagem construda, nem o futuro desta quando se toma um obstculo agricultura moderna que no sabe que destino dar aos seus modelos. Finalmente, a morfologia agrria, que tantos estudos mostram no estar obrigatoriamente relacionada com o uso modemo do solo, pode ser uma mscara que nos esconda a dinmica das interaces entre a natureza transformada e as sociedades que a transformam; da resulta o particular interesse, para o estudo das paisagens, dos trabalhos realizados sobre situaes em vias de mudana, quer incidam sobre zonas tropicais talvez ainda em evoluo para uma forma de equilbrio mais estvel, quer sobre regies desenvolvidas onde estes equilbrios formais se esto modificando.

    A multiplicao dos panoramas aerofotografados facilitou o estudo destes fenmenos e imprimiu-lhe um novo sentido. As imagens areas podem sem dvida substituir, em certa medida, os cadastros inexistentes, mas no so desenhos tridimensionais que vo privilegiar excessivamente a morfologia e os elementos fundirios: eles oferecem a quem os sabe 1er uma gama de observaes infinitamente maior. Em comparao com a viso oblqua obtida no terreno, oferecem a enorme vantagem de ser possvel apreender imediatamente, e num certo sentido objectivamente, o conjunto dos diversos aspectos da paisagem. Enfim, e na medida em que daqui em diante, especialmente com a compilao de grandes coleces de fotos tiradas por satlites, ser possvel dispor de imagens comparveis escalonadas no tempo, o seu estudo dinmico ficar extremamente simplificado.

    Poder-se- assim compreender que a morfologia agrria apenas um elemento, e nem sempre o mais importante, duma srie de caractersticas que, embora sempre visveis, nem sempre impressionam de igual modo. No caso das agriculturas africanas, por certo menos importante saber qual a forma e qual a durao que os agricultores do aos seus campos do que conhecer as relaes que mantm com o mundo vegetal. O estudo morfolgico das culturas em terrenos previamente queimados enganador do ponto de vista esttico, e pouco interessante do ponto de vista cientfico; pelo contrrio, interessan

  • PAISAGEM 146

    tssimo saber qual o tratamento dado s rvores: sero elas destrudas sistematicamente ou seleccionadas em parques de espcimes teis; tentar-se-, como por vezes fazem os Baul da Costa do Marfim, promover o avano da floresta ou, pelo contrrio, a exemplo dos Mashokora da Tanznia, tenta-se substituir floresta pela mata de corte basto que fornece mais matria vegetal e cinzas? Assim, tambm menos importante estudar-se meticulosamente o xadrez formado pelos arrozais do que averiguar como se faz o seu abastecimento hdrico e, por consequncia, como se modificam a longo prazo os terrenos. Esta perspectiva dinmica no recusa a noo de paisagem construda, nem repe em cansa a primazia do homem sobre a natureza, mas situa-a sob outro ngulo: nem sempre o essencial o mais evidente; de algumas casas basta descrever as paredes, doutras necessrio compreender o equilbrio de foras realizado na sua estrutura.

    No outro extremo, o estudo das alteraes nas paisagens mais estticas pe geralmente problemas de observao menores. A destruio dos bocages na Frana ocidental, as amplas reconstituies parcelares dos openfields da bacia parisiense no podem passar despercebidas. J mais difcil procurar-lhes as causas, como Brunet fez para os campos toulousianos, pois que isto exige, para alm das prprias paisagens, um estudo das relaes sociais, das transformaes nas estruturas das sociedades rurais e tambm nas suas relaes com os centros do poder, muitas vezes bem distantes do quadro campestre. Mas tambm a convm no perder de vista a articulao dos factores fsicos com os factores naturais, e tomar em considerao os efeitos das modificaes socioeconmicas nos equilbrios ecolgicos.

    Seguindo a evoluo dos estudos sobre ela feitos, o conceito de paisagem construda surge-nos cada vez mais complexo. Gourou [1973], em particular, lembrou com insistncia um aspecto demasiado esquecido, isto , que esse conceito no encontra em si prprio qualquer justificao. A paisagem humanizada, sublinha Gourou, no se explica directa e principalmente pelo que se v, mas sim e sobretudo por factores de civilizao. As paisagens analisadas pelos gegrafos no so ecossistemas, mas sim lugares apetrechados, como requerem as civilizaes que as transformam. Esta supremacia dos factos sociais aconselha-nos a no nos rendermos ao encanto da forma, mas a procurar por detrs dela os seus autores, e portanto a desprezar, se for caso disso, as belas snteses morfolgicas, ou melhor, a aperfeio-las, sem privilegiar erradamente um dado s porque mais imediato, mais generalizvel do que outros; preferindo antes encarar as formas como conjuntos cuja vida s se compreende atravs da estrutura que liga os vrios elementos, segundo a frmula de Renard.

    Mas no basta a vontade de uma sociedade para abolir o passado: toda a paisagem o reflecte atravs de formas herdadas que, embora conservando o seu sentido (caso contrrio teriam sido destrudas), se inseriram numa outra estrutura, com um grau de funcionalidade talvez m enor e, em qualquer caso, diferente; s a referncia a um passado

  • 147 PAISAGEM

    mais remoto permite compreend-las. Se entendermos essas relquias, aceitaremos mais facilmente coisa que o gegrafo, ainda impregnado de esttica, nem sempre faz de boa vontade o facto de a paisagem no se destinar a ser eterna. Desprezando os saudosistas, Gourou [1973] afirma claramente que as paisagens humanas nem so sagradas, nem imutveis, e que, para se harmonizarem com as novas tcnicas, podem e devem modificar-se; nenhum mal haver se isso se fizer, precisa Gourou, com a compreenso dos aspectos herdados do passado. A reconstituio das paisagens antigas por meio de todas as tcnicas disponveis (no apenas a histria, mas tambm a arqueologia, a palinologia, etc.) um trabalho til, no exclusivamente pelo puro prazer do conhecimento, mas tambm porque pode explicar as dinmicas da paisagem: o essencial no reside no aspecto exterior (h paisagens que, primeira vista, mentem), mas em reduzir a problema o que se v: a paisagem deve ser posta no banco dos rus. muitas vezes anacrnica, especialmente nas regies industriais onde as mutaes rurais so rpidas, onde a degradao dos campos enorme, embora mascarada por um perodo de acalmia durante o qual tudo parece ainda intacto quando est mesmo prestes a desmoronar-se. No Haut Livradois (Macio Central francs), o que parece ainda prado est j salpicado por estacas de pirrceas, invisveis no meio da erva; no vale mdio da Durance, as aldeias continuam alcandoradas nas encostas, mas no se vem culturas nos terraos ainda visveis, restos de uma morfologia agrria que nada mais do que um esqueleto mas por quanto tempo ainda?

    Este fenmeno simultaneamente social e dinmico foi, sem dvida, um dos factores que permitiram o desenvolvimento de novos estudos, h muito descurados, sobre paisagens urbanas (cf. os artigos Cidade e Fixao). Para isso contribuiu tambm a evoluo doutras disciplinas como a arquitectura e a histria da arte, doravante menos intimamente ligadas elaborao e ao estudo dos estilos do que compreenso do significado simblico e social das formas e das suas ligaes. A paisagem urbana no interessava porque parecia relativamente idntica em toda a superfcie do globo, porque era (e cada vez mais) o reflexo duma tendncia uniformizante e muito pouco sensvel s especificidades ecolgicas. Assume novo significado quando considerada como resultante de etjuilbrios sociais periodicamente repostos em causa, mais subtis e mais diversificados do que primeira vista pareciam.

    7. Para uma cincia fsica das paisagens

    Mas evidentemente perigoso, mesmo em matria de paisagens urbanas, reduzi-las funo de espelho duma sociedade, ainda que a longo prazo. Se ela se identifica com a natureza vista e examinada atravs do prisma duma civilizao, esse prisma no pode abolir a existncia duma dinmica do ambiente natural, desviada mas no des-

  • PAISAGEM 148

    truda pela interveno humana. Nada o demonstra melhor do que o estudo das consequncias ecolgicas devidas s iniciativas modernas de reordenamento das paisagens rurais, das quais se fazem porta-vozes os movimentos para a defesa da natureza; parece incontestvel que a destruio do bocage na Frana ocidental provoca uma brutal alterao do equilbrio hdrico, que se traduz sobretudo por cheias terrveis desconhecidas at agora, pela alterao dos mecanismos da eroso e pela modificao dos microclimas. O estudo das paisagens como simples construes humanas parece hoje tanto mais inadequado quanto mais tende a privilegiar a anlise da dinmica dos fenmenos: requer uma cincia fsica das paisagens, que de incio se criou paralelamente a ela, mas que, como se ver, por uma feliz convergncia, tende pouco a pouco a situar-se entre a natureza e a sociedade [G. Bertrand 1978].

    8. Uma abordagem sobretudo pragmtica

    As anlises globais do ambiente natural tm na realidade origens muito antigas, que remontam s narrativas dos exploradores do sculo XVIII e da primeira metade do sculo XIX, sobretudo de eruditos como Alexander von Humboldt, naturalista e viajante alemo, autor do clebre Kosmos (1845-58). Durante muito tempo ignorados em Frana, os estudos sobre a paisagem considerada como tema cientfico desenvolveram-se longamente nos pases anglo-saxnicos (Inglaterra, Estados Unidos, Canad e Austrlia) e sobretudo na URSS, onde foi definida como um sistema territorial natural. Em Frana, os primeiros trabalhos dignos de nota s surgiram nos anos 60, e devem-se a Bertrand, chefe-de-fila da nova escola geogrfica da paisagem, numerosos artigos metodolgicos, fruto de reflexes individuais ou feitas em comum com outros investigadores franceses ou soviticos, bem como trabalhos de campo nos quais o seu mtodo foi posto prova.

    Com o apelativo de land (ou landscape) survey, os trabalhos realizados nos pases anglo-saxnicos destinam-se a responder s necessidades imediatas do ordenamento do territrio. O mtodo aperfeioado por um organismo de investigao aplicada, o CSIRO (Commonwealth Scientific and Industrial Research Organization), foi adoptado durante a Segunda Guerra Mundial na Austrlia, continente pouco povoado e terra pouco conhecida. O CSIRO baseia-se no uso sistemtico das fotografias areas: os levantamentos de territrio destinam-se ao reconhecimento de regies inexploradas do ponto de vista cientfico, e praticamente despovoadas, e recolha de documentao em pequena escala (cartografia da Nova Guin, por exemplo, levada a cabo em 1957). O objeictivo desses levantamentos de territrio puramente descritivo; a paisagem continua a ser um conceito de natureza fisionmica. Os mtodos, se bem que facilmente adaptveis, tiveram de ser alterados

  • 149 PAISAGEM

    a fim de se tomarem mais eficientes, especialmente no caso do estudo integrado da regio do lago Saint-Jean no Quebeque.

    Esta abordagem geogrfica das paisagens, que segue uma linha naturalista, desenvolveu-se na Europa Central e Oriental: o termo Landschaft faz desde h muito parte do vocabulrio cientfico da geografia alem. Os trabalhos sobre a Landschaftskunde e depois sobre a Landschaftskologie de Cari Troll constituem os primeiros esboos duma anlise integrada das paisagens. Podem igualmente citar-se as pesquisas metodolgicas de Schmitthiisen [1964; 1968], que inspiraram mais ou menos alguns investigadores italianos, como Sestini. Mas foi sobretudo na URSS que se prosseguiram mais activamente as pesquisas, ao mesmo tempo fundamentais e aplicadas anlise da paisagem natural, considerada globalmente na sua complexidade (geografia fsica global). Dokutchaiev, o fundador da pedologia, lanou no sculo passado a ideia do complexo natural total e retomou o termo alemo Landschaft, preferindo-o ao vocbulo francs paysage, mais descritivo e subjectivo. Uma vez definidos os seus objectivos, esta nova cincia desenvolveu-se rapidamente aps a Segunda Guerra Mundial. Os anos de 1950-60 vem multiplicar-se na URSS as publicaes a um ritmo sempre crescente. Na origem, este interesse corresponde necessidade de valorizar um pas mal conhecido e pouco povoado, em condies semelhantes s da Austrlia. Desde 1947, a cincia da paisagem ensinada em todas as grandes universidades soviticas. A partir de 1960, os investigadores deixaram de pr o problema terico da definio da paisagem, mas insistem sobre os problemas de mtodo. Adoptaram duas definies sistemticas elementares, a de complexo territorial natural, que sublinha a sua dimenso espacial, e a de geossistema (ou sistema geogrfico), que pe a tnica na sua natureza global. Podem citar-se os trabalhos de Isachenko e de Kalesnik, em Moscovo, e os da equipa de Tbilisi (Berutchachvili). Nos aspectos tradicionais da anlise do geossistema, os mtodos de investigao e as aplicaes ao ordenamento do territrio esto intimamente ligados. Regionalizao e planificao para a valorizao agrcola das terras virgens, mapas de kolkhoses, arquitectura adaptada paisagem so alguns exemplos dessa utilizao. Ao longo dos dez ltimos anos, investigaes a nvel local permitiram aperfeioar uma anlise integrada do geossistema, um mtodo oneroso baseado na utilizao de mltiplos parmetros fsicos e bioqumicos, mais tarde elaborados por computador, que abre algumas perspectivas no campo da aplicao directa ao ordenamento do territrio.

    Estes trabalhos soviticos inspiraram estudos similares nos pases vizinhos da Europa de Leste, na Checoslovquia e na Polnia com Czamecki e Kondracki. Na Repblica Democrtica Alem, os investigadores dedicam-se desde 1962 Landschaftskologie; a escola de Dresde, com Hasse e Neef, continua a ser a mais prxima, quer da tradio naturalista alem, quer da ecologia, e pe o problema metodolgico do estudo das relaes entre a ecologia das paisagens e o estudo do ambiente natural [cf. tambm Leser 1978], Nos trabalhos orientados

  • PAISAGEM 150

    pelos cientistas da RDA tal como nos do CSIRO, a concepo permanece esttica. O mesmo acontece com a planificao ecolgica iniciada nos Estados Unidos (University of Pennsylvania) por MacHarg e Strong, mais tarde conhecida em Frana a partir de 1971 graas aos trabalhos de Falque e Tarlet. O mtodo seguido no estudo do ambiente natural o de um inventrio esttico e no suficientemente integrado.

    Poder a paisagem, s por si, ser objecto de estudo cientfico? A pergunta foi posta em 1970 no decurso dum colquio organizado em Toulouse e subordinado ao tema: La science du paysage et ses applications. O xito das investigaes sobre a paisagem global em Frana depende duma sria renovao da investigao cientfica, tanto ao nvel das ideias como ao dos mtodos empregados. Mais do que atitude mental ou ponto de partida da reflexo como quando se pensa a paisagem tout court, a cincia da paisagem um mtodo de estudo cientificamente estabelecido. Da o interesse suscitado, quer no plano de investigao terica, que progride incessantemente, quer no das suas aplicaes. Bertrand [1972] defende que a cincia da paisagem se situa na confluncia da geografia com a ecologia; em resumo, o desenvolvimento da cincia da paisagem no se compreende fora dos dos problemas das condies ambientais, que se apresentam em termos dinmicos de aces e reaces recprocas, e do apelo geral feito aos cientistas para a gesto dos recursos e o ordenamento do territrio.

    9. A nova abordagem paisagstica

    Em Frana, Bertrand adoptou o conceito de paisagem, inspirando-se nas diversas correntes que se desenvolveram no estrangeiro, e formulou-o em 1964. Insistiu depois [1968] no facto de que estudar a paisagem , antes de mais, pr um problema de mtodo. O tema central das investigaes da escola de Toulouse, de que ele o orientador, a anlise integrada do ambiente natural, segundo uma metodologia naturalista, e a sua aplicao com a ajuda das cincias sociais sistematizao do espao. Os vrios trabalhos utilizam mtodos de anlise taxinmica das paisagens globais e inspiram-se no vocabulrio clssico dos ecossistemas.

    Num primeiro tipo de classificao, a lgica seguida para ordenar as paisagens naturais simplesmente natural. Desde 1964-65, o geos- sistema foi definido como uma unidade taxocorolgica integrada numa srie hierarquizada (do mais pequeno ao maior: getopo, geof- des, geossistema, regio natural, campo geogrfico, zona). Cada uma dtestas combinaes dialcticas caracteriza-se por um potendal ecolgico, uma explorao biolgica, e define-se prindpalmente mediante um sistema evolutivo que integra o sistema de eroso tradicional, a dinmica puramente biolgica e a aco antrpica. Uma tipologia dinmica

  • 151 PAISAGEM

    permite classificar as paisagens em funo da sua mobilidade relativamente ao clmax geral (evoluo regressiva ou progressiva, estabilidade). O mtodo completado por uma cartografia sistemtica das paisagens ao nvel dos geossistemas (escalas de 1/100 000 e 1/200 000) e das geofcies (1/20 000). Com estas bases foram conduzidos estudos no Sudoeste da Frana, nos Montes Cantbricos, no Himalaia Central e nos Andes.

    Na Costa do Marfim, uma equipa de investigadores da ORSTOM, que se propunha realizar um estudo cientfico (com base objectiva) da paisagem-ambiente natural e do fenmeno humano nos seus aspectos concretos e visveis, elaborou uma terminologia descritiva da paisagem, interdisciplinar que visava descrever, quer os aspectos sectoriais do ambiente (solo, superfcie do solo, vegetao, etc.), quer o ambiente na sua totalidade, pelo mtodo de diagnstico; esta terminologia destina-se especificamente aos estudos integrados do ambiente natural.

    A investigao do sistema territorial natural concretizou-se, pois, ao nvel do estudo global do ambiente fsico. Resta ver se nele se pode introduzir tambm o elemento social. Fora de Frana, diversos estudos foram empreendidos na Tailndia, no Alto Volta, no Congo e na Guatemala em escalas muito diversas, mas sempre baseados na utilizao de fotografias areas e na elaborao de mapas muito fiis das unidades paisagsticas. Esses mapas no elucidam apenas sobre o estado, mas tambm sobre a dinmica da utilizao das paisagens (em via de abandono ou em curso de explorao agrcola); mas no parece que nalgum desses trabalhos os elementos de organizao natural e os elementos sociais se possam situar numa nica e mesma triangulao paisagstica e, sobretudo, num mesmo sistema hierarquizado.

    G. Bertrand teve o mrito de pretender atribuir uma perspectiva histrica ao estudo dos geossistemas combinando nela histria ecolgica e histria social; ele introduziu, em 1975, o conceito de agrossistema, que abre novos horizontes: o ponto exacto de encontro entre o sistema natural e os sistemas socioeconmicos que se sucederam no mesmo espao. Uma monografia sobre o Sidobre proporcionou aos seus autores [C. e G. Bertrand e Raynaud 1978], a propsito dum projecto de ordenamento, a ocasio de proceder a uma anlise cientfica que pretende atribuir natureza e aos factos naturais uma interpretao social. E enfim, G. Bertrand [1978], num artigo que ficou clebre, situa a anlise da paisagem entre a natureza e a sociedade.

    Mas os gegrafos no so os nicos a tentar uma anlise metdica da paisagem. Alguns agrnomos, entre eles Deffontaines, estudaram sistematicamente as relaes entre paisagem e agricultura em quatro cantes dos Vosges, conseguindo relacionar de forma convincente os diversos elementos naturais, tcnicos e humanos, e os vrios nveis da paisagem cultivada. Com grande subtileza so ento analisadas prticas agrcolas, paisagens das prticas e transformao do espao.

  • PAISAGEM 152

    10. A abordagem sistmica

    A par destes estudos, integrados na nova abordagem paisagstica, preciso colocar o estudo dos ecsistemas, que feito pelos biogegrafos e pelos ecologistas. Nestes trabalhos, diversamente dos acima citados, pode sempre detectar-se um propsito econmico de ordenamento do ambiente natural. So estudos que desenham cartografica- mente ou analisam minuciosamente o espao do ponto de vista das unidades de relao, que podem implicar apenas os elementos naturais, mais ou menos modificados, ou associ-los a factores econmicos, tcnicos, sociais ou at demogrficos. A tnica incide sobre as relaes e o dinamismo interno que subentendem e organizam, a diversos nveis, as unidades significativas. Os recentes trabalhos dos biogegrafos demonstram o interesse pela paisagem como ponto de partida para uma abordagem biogeogrfica.

    O estudo sistmico da paisagem pressupe um procedimento duplo: primeiro, procurar o modo de decompor o sistema-paisagem em elementos simples e detectar as suas inter-relaes e, depois, proceder a uma reconstituio esquemtica que sirva de ponto de partida para novos estudos. Os meios cartogrficos e estatsticos (com recurso informtica) so largamente utilizados. Aps um primeiro reconhecimento da paisagem global que permite definir as suas formas essenciais, a paisagem pode ser limitada a um s dos seus aspectos, por exemplo a floresta, que, estudada a nvel local, se revela um ambiente muito complexo. Alguns biogegrafos, que empregam instrumentos matemticos nos estudos integrados da paisagem, insistem na apreciao global, objectiva, e elaborada com anlises multivariveis. Outros trabalhos se aparentam, num certo sentido, aos estudos do6 ecologistas na medida em que a vegetao ocupa neles o lugar principal. O esforo concentrou-se sobretudo na definio de unidades de paisagem, na concretizao das suas estruturas e dos seus nveis de estabilidade. Trata-se, sobretudo, de evidenciar os graus de equilbrio ligados noo de ambiente de vida e, por outro lado, de calcular os nveis de vulnerabilidade, o que pode conduzir a propostas de ordenamento. Estas preocupaes avizinham-se das dos ecologistas do Centre dEtudes Phytosociologiques et Ecologiques Louis Emberger de Montpellier, que h vinte anos iniciaram toda uma srie de estudos sobre a anlise dos sistemas ecolgicos complexos, a partir do mtodo do diagnstico fito-ecolgico. A obra fundamental de Long [1974] expe o seu princpio e as suas principais aplicaes.

    A recente obra de um gegrafo e de um pedlogo, Tricart e Killian [1979], apresenta a ecogeografia como uma nova abordagem para o estudo integrado e dinmico do ambiente natural, entendido como ambiente ecolgico. A prpria noo de estudo integrado constitui o tema de um longo captulo no qual so resumidos os mtodos existentes. Segundo os seus autores, trata-se de compreender a complexidade

  • 153 PAISAGEM

    do ambiente ecolgico, sob a forma de um conjunto de interaces analisadas mediante o mtodo sistmico, de modo a determinar-lhe a sensibilidade aos impactos tecnolgicos. Neste trabalho reencontra-se em grande parte a linguagem dos ecologistas.

    11. A preocupao com a paisagem: a paisagem e o ambiente

    O entusiasmo pela ecologia e pelo ambiente vai de par e passo com um novo interesse pela paisagem e pelas condies de preservao do ambiente (cf. o artigo Ambiente). Este renovado interesse obriga os poderes pblicos a intensificarem esforos, durante muito tempo insuficientes, tanto nos programas como nas realizaes: o exemplo francs, na medida em que traduz uma tomada de conscincia tardia, bem significativo. De incio, a paisagem foi encarada saudosistica- mente. Era a esttica da paisagem no seu aspecto arquitectural e pictrico, que se traduzia por actos isolados. A lei francesa de 2 de Maio de 1930 sobre a proteco do patrimnio permitiu que se salvassem numerosos stios famosos, o que teve como efeito e como risco que as reas protegidas se tomassem excessivamente frequentadas. O mesmo fenmeno se verifica na Inglaterra, onde o Lake District, que se pretendeu salvaguardar como recordao dos arroubos poticos de Wordsworth, a tal ponto invadido pelos turistas de fim-de-semana que a sua prpria existncia est seriamente ameaada.

    Numa segunda etapa, a paisagem deixou de estar isolada, separada do seu contexto. Especialmente em Frana isso traduziu-se na criao de parques; a primeira lei que criou parques nacionais data de 1960, e o decreto que instituiu parques naturais regionais, de 1967. O interesse mais especificamente paisagstico dos parques evidente na ptica da salvaguarda de algumas paisagens histricas que constituem um patrimnio natural e cultural, e na de uma evoluo harmoniosa de novas paisagens rurais (nomeadamente nas zonas perifricas dos parques). A lei francesa de 10 de Julho de 1976 relativa proteco da natureza amplia o conceito de paisagem e considera-a na sua evoluo. (No artigo 1. declara-se o princpio de que a proteco dos espaos naturais e das paisagens, a preservao dos recursos animais e vegetais, a conservao dos equilbrios biolgicos em que se integram e a defesa dos recursos naturais contra todas as causas de degradao que os ameaam, so de interesse geral).

    Desde ento criou-se em Frana toda uma regulamentao jurdica para a proteco e valorizao dos stios e das paisagens. Depois do patrimnio cultural fala-se cada vez mais de patrimnio natural e paisagstico. Este mesmo adjectivo paisagstico faz uma entrada triunfal no discurso. Fazem-se estudos paisagsticos, traam-se diagnsticos paisagsticos, h preocupaes quanto s consequncias paisagsticas do acrscimo do turismo no macio do Monte Branco, por exemplo; prope-se um ordenamento paisagstico das pedreiras,

  • PAISAGEM 154

    etc. Qualidade da paisagem, valorizao das suas belezas, reabilitao da paisagem, so hoje expresses de uso corrente. Com a actual tomada de conscincia das condies ambientais, criou-se toda uma nova atitude em relao paisagem. Todos parecem sentir-se responsveis por esta proteco-defesa que deve inserir-se no quadro mais amplo dos problemas do ambiente. Apela-se cada vez mais para os especialistas da paisagem, mas quem so eles?

    Por muito interessante que seja, um movimento deste gnero est carregado de ambiguidades. Conquanto teoricamente nos possamos congratular por, na concepo e na conservao da paisagem, entrarem parmetros cada vez mais numerosos, na prtica devemos constatar que a aplicao destes princpios varia muito, conforme o tipo de interesses que esto em jogo. Portanto, se tambm houver a preocupao de preservar o ambiente natural em regies como a Lozre e os Alpes do Sul que parecem ter perdido qualquer interesse produtivo, mas que podem ser ainda fonte de lucros graas ao turismo, esqueceremos, alis muitas vezes e numa perspectiva a curto prazo, que a paisagem que apreciamos resulta de um equilbrio produtivo da natureza explorada pelo homem, e que pretender conserv-la sem a valorizar inseri-la numa evoluo regressiva. Inversamente, outras regies consideradas de rendibilidade econmica imediata so tambm tidas como menos pitorescas, e descuradas do ponto de vista paisagstico.

    Foi em parte por reaco que o problema da qualidade das paisagens e dos locais se transformou numa preocupao de natureza poltica. Existem provas que demonstram como um sector cada vez maior da opinio pblica deixou de ser indiferente ao que considera como degradao do seu meio ambiente. Criam-se s centenas associaes para a sua defesa, mas num pas como a Frana falta ainda muito para que o cuidado com a paisagem se integre num global esforo produtivo, como pode, por exemplo, acontecer na Gr-Bretanha. O que explica bastante bem a tendncia manifestada pelos estudiosos das condies ambientais.

    12. A paisagem e o estudo do ambiente

    Para alm da descrio da paisagem e dos seus aspectos fsicos tarefa fundamental da geografia clssica , os estudos sobre o valor das paisagens fazem realar as relaes subjectivas entre o homem e o meio ambiente. Passa-se do ambiente natural a um contexto cultural. O conceito de condies ambientais substituiu o do ambiente no d ia em que os homens se deram conta de que viviam num mundo frgil [George 1978], a parte do sonho, do regresso s origens, o apelo esttica da paisagem em arte e em literatura, e a todos os significados das condies ambientais no actual contexto sociocultural. As condies ambientais no so neutras, e a percepo que delas se tem

  • 155 PAISAGEM

    introduziu a noo de ambiente de vida, no qual se sobrepem, imbrin- cando-se, diversos nveis de percepo. Os estudos sobre o conhecimento da paisagem no interessam apenas exclusivamente os gegrafos, mas tambm os arquitectos, os planificadores, os desenhadores de jardins, todos os que se interrogam sobre o aspecto exterior das paisagens, as suas relaes com as construes agrcolas, com as saibreiras ou com cabos de alta tenso. Parece que nunca houve tanta preocupao como h hoje com a beleza da paisagem, paisagem-espectculo tanto urbano como rural, e com a nossa sensibilidade perante ela... E as belas* paisagens j no so somente as naturais, mas as urbanas tambm. interessante sublinhar que a noo de paisagem se desenvolveu de h anos a esta parte no quadro mais geral (mas muitas vezes simplesmente terico) duma tica da qualidade de vida. As duas expresses condies ambientais e qualidade de vida no apareceram certamente por acaso ao mesmo tempo na linguagem corrente. Mas preten- der-se- com isso dar qualidade a todo o conjunto da vida, ou con- tentar-nos-emos com acrescentar um toque de qualidade vida tal como ela ?

    13. O valor da paisagem

    ainda preciso ter em conta a qualidade concreta da paisagem. Para responder aos novos problemas postos pelo ordenamento do territrio, os fito-ecologistas interrogam-se sobre a maneira como se deve avaliar a qualidade da paisagem, e buscam a possibilidade de atribuir um valor a cada um dos seus elementos. Os economistas, pelo seu lado, calculam facilmente, numa perspectiva a curto prazo, o seu valor econmico, contando com as suas potencialidades agrcolas, florestais, pastoris, urbanas ou tursticas, desprezando embora o seu valor enquanto riqueza natural. Que valem, por exemplo, uma charneca ou uma turfeira sob o ponto de vista econmico? Convir ser prudente neste tipo de clculos e ter em conta, a longo prazo, a evoluo que pode ter e ter cada tipo de ambiente e o lugar que ocupa no quadro dum equilbrio mais vasto. Como avaliar, pois, o patrimnio paisagstico?

    14. A paisagem vivida

    As preocupaes em matria de proteco da natureza, de ecologia, de condies ambientais, de urbanismo e de ordenamento do territrio fazem com que as paisagens rurais, urbanas, industriais , cuja complexidade sempre interessou os gegrafos, sejam hoje de enorme actualidade. Numa poca em que rapidamente alastra uma tomada de conscincia sobre a degradao do ambiente, abundam as publicaes sobre a percepo da paisagem. A paisagem vivida volta a ser um tema actual. As geografias do comportamento e da cultura anglo-

  • PAISAGEM 156

    -saxnicos contriburam, de par com a influncia de socilogos, psiclogos e urbanistas, para mobilizar um nmero crescente de estudiosos para o tema das condies ambientais. Os problemas de proteco ou de conservao das paisagens passam pela percepo que deles tm os indivduos ou os grupos. Como observou Michel-Jean Bertrand [1978], a paisagem entendida como uma rede de significados e de significantes compreendida de maneira diferente por cada um, quer seja um indivduo quer um grupo, e por cada um diversamente utilizada.

    O estudo do espao vivido d lugar anlise das situaes e mecanismos da percepo do espao e da paisagem. A ecologia objectiva apaga-se em benefcio das condies ambientais, noo subjectiva. A noo de espao vivido inverte a perspectiva habitual dos gegrafos, e estes, ao interessarem-se pelo espao visto pelos homens que o habitam, deparam com grande nmero de problemas. Esta nova orientao data do fim dos. anos 60 e manifestou-se paralelamente em lugares to diversos como os pases tropicais (onde se explica assaz facilmente com a descoberta do exotismo) nos campos e as urbes mdias do Oeste da Frana, e os aglomerados muito vastos. Assim, tomando em conta os fruidores da paisagem e os seus juzos de valor, o estudo dos espaos urbanizados j se no limita descrio duma aglomerao ou duma rede de cidades, mas define a paisagem no seu aspecto subjectivo. Arquitectos, psiclogos, socilogos, urbanistas e gegrafos trabalham nesta ptica, embora em escalas diferentes. (Rim- bert [1973] escreveu que a paisagem urbana feita de tantos signos quanto de tijolos).

    O estudo do comportamento dos habitantes, que h uma dezena de anos atrs no era tomado em considerao, na Europa Ocidental agora levado a cabo, com notvel avano nos pases anglo-saxnicos graas ao precoce impulso da corrente behaviorista. As anlises incidem sobre as relaes (e as reaces) entre os habitantes e os imveis, sobre os esforos dos habitantes-utentes para modificar os projectos dos arquitectos e, vice-versa, sobre a tendncia destes ltimos para modelar e adaptar o espao construdo. Os gegrafos interessam-se cada vez mais pelo conceito de bairro, realidade viva e vivida, medida do homem, e pela imagem que a se faz da cidade [Ledrut 1973]. Superando os conceitos de ambiente e de condies ambientais, Rougerie desenvolve o de quadro de vida segundo formas de organizao dos elementos que o rodeiam, nos quais prevalecem, ora dominantes ecolgicas, ora etolgicas (urbanas).

    15. A evoluo histrica das paisagens; o conceito de ecologia histrica

    Realizou-se recentemente em Paris um colquio sobre arqueologia e paisagem. Na anlise da paisagem, a geografia clssica manifesta uma certa conivncia com a cincia histrica e arqueolgica; a arqueo

  • 157 PAISAGEM

    logia interessa-se pela paisagem, e podemos situar esta nova orientao na linha do movimento ligado ecologia e s condies ambientais. Deu-se na arqueologia uma mudana; o seu interesse passou do estudo dos habitats, e de preferncia dos mais ricos de histria, de beleza e de poder, para o exame das paisagens ocupadas pelos homens, quer nas pocas pr-histricas, quer nas muito mais recentes da Idade Mdia. O aparecimento de novas tcnicas est tambm na origem desta evoluo para uma arqueologia da paisagem. No se trata duma banal arqueologia geomtrica apenas apoiada em medies, mas sim da procura duma ecologia histrica. Esta orientao para a evoluo da paisagem no tempo, longamente esquecida pelos ecologistas e os geo- morfologistas, at mesmo quando j se manifestava na histria e na geografia rural, pode assumir actualmente formas mais sintticas combinando tcnicas to variadas como a polinologia (tanto actual como fssil), o estudo de arquivos, a observao do terreno, a interpretao de fotografias e a teledeteco.

    O processo que leva em conta a dinmica e a estrutura da paisagem, e cuja principal preocupao averiguar como no passado o solo ter sido ocupado, no est em contradio com os actuais cuidados com a sua ordenao. A paisagem j no apenas a expresso das relaes entre a sociedade e o ambiente natural, mas tambm dos laos que ligam o presente herana do passado. Este conceito indispensvel para se poder definir a paisagem actual como a soma das paisagens fsseis ou herdadas que possvel reconstituir mediante uma investigao regressiva [Couderc 1979], ou seja, uma anlise integrada das paisagens e da arqueologia da paisagem.

    Esta dimenso histrico-paisagstica tambm se encontra nalguns trabalhos sobre geografia humana. A arqueologia da paisagem deve basear-se na reconstituio das paisagens enquanto combinaes socio- ecolgicas complexas; no pode ficar isolada, antes deve participar no desenvolvimento da ecologia histrica para a qual necessrio um estudo pluridisciplinar. Numa regio dos Pirenus de desenvolvimento agrcola muito reduzido, um historiador do perodo magdalenense, um botnico polinlogo, que fixa as datas baseando-se nos plens e no carbono relativos aos ltimos quinze milnios, e um especialista de histria moderna uniram esforos para esboar, no uma histria linear, mas uma reconstituio ainda imperfeita, mas nem por isso menos apaixonante, da dinmica das interaces entre o ambiente natural e as sociedades do passado. Numa paisagem-palimpsesto, s escalas espaciais devem associar-se as escalas temporais e a profundidade histrica.

    16. Recuperao ou valorizao do conceito de paisagem

    Uma reflexo sobre o conceito de paisagem permitiu evidenciar a enorme diversidade dos pontos de vista e a infinidade dos esquemas

  • PAISAGEM 158

    de observao utilizados para esse fim. A poca actual caracteriza-se pela descoberta da paisagem por um nmero cada vez maior de disciplinas e pelo facto de estudos geogrficos assaz variados terem reavivado o interesse que ela desperta. A paisagem continua a ser um conceito em expanso, mas tem tambm valor comercial: vende-se e faz-se vender, como escreveu Sautter [1979], e aparece como suporte duma certa publicidade. Dentro em pouco no haver gua mineral sem uma etiqueta embelezada por uma paisagem agreste e de preferncia montanhosa. Pode certamente apostar-se em como a cincia da paisagem no se libertar facilmente das ambiguidades nascidas da convergncia, em torno duma palavra tanto mais vaga quanto mais corrente, de preocupaes cientficas e de interesses comerciais, de nostalgias e de desejo de construir um futuro diferente. Embora limitando-nos ao campo da investigao, devemos alegrar-nos com o aparecimento de um termo que uma encruzilhada e recear ao mesmo tempo que ele no seja mais do que uma rotunda vazia a partir da qual cada um toma o seu caminho voltando as costas aos outros, persuadido no entanto de que detm uma verdade global. A cada um a sua paisagem? Mais vale esperar que em tom o deste vocbulo, inado de tantas aspiraes existenciais quanto de significados cientficos, se realize uma sntese eficaz das relaes dialcticas entre natureza e sociedade. [CH. B.-P e J.-P. R.].

    Bertrand, C.; Bertrand, G.; e Raynaud, J.1978 Le Sidobre (Tarny). Esquisse dune monographie, in Revue de gogra

    phie des Pyrnes et du Sud-Ouest, n. 2, pp. 259-314.Bertrand, G.

    1968 Paysage et gographie physique globale. Esquisse mthodologique, in Revue de gographie des Pyrnes et du Sud-Ouest, n. 3, pp. 249-72.

    1972 La science du paysage, une science diagonale, in Revue de gographie des Pyrnes et du Sud-Ouest, n. 2, pp. 127-33.

    1978 La paysage entre la Nature et la Socit, in Revue de gographie des Pyrnes et du Sud-Ouest, n. 2, pp. 239-58.

    Bertrand, M.-J.1978 Pratique de la ville, Masson, Paris.

    Bloch, M.1931 Les caractres originaux de lhistoire rurale franaise, Colin, Paris (trad.

    it. Einaudi, Torino 1977*).Brunet, R.

    1974 Analyse des paysages et smiologie, in LEspace Gographique, n. 2,pp. 120-26.

    Couderc, J.-M.1979 Les landes de Cravant (Indre-et-Loire): cologie historique, in Bulletin

    de lAssociation de Gographes franais, n. 460, pp. 119-24.Dion, R.

    1934 Essai sur la formation du paysage rural franais, Arrault, Tours. Dollfus, O.

    1971 L analyse gographique, Presses Universitaires de France, Paris.

  • 159 PAISAGEM

    George, P.1978 Des mots nouveaux: environnement, qualit de la vie, lutte contre la

    pollution et le gaspillage, une nouvelle stratgie de la gographie, in Intergo, n. 50, pp. 7-11.

    Gourou, P.1973 Pour une gographie humaine, Flammarion, Paris (trad. it. Mursia,

    Milano 1978).Ledrut, R.

    1973 Les images de la ville, Anthropos, Paris.Leser, H.

    1978 Landschaftskologie, Ulmer, Stuttgart.Long, G.

    1974 Diagnostic phyto-cologique et amnagement du territoire, Masson, Paris. Meynier, A.

    1958 Les paysages agraires, Colin, Paris.Rimbert, S.

    1973 Les paysages urbains, Presses Universitaires de France, Paris.Rougerie, G.

    1969 Gographie des paysages, Presses Universitaires de France, Paris. Roupnel, G.

    1932 Histoire de la campagne franaise, Grasset, Paris.Sautter, G.

    1962 A propos de quelques terroirs d'Afrique occidentale, in Etudes Rurales, n. 4, pp. 24-86.

    1979 Le paysage comme connivence, in Hrodote, n. 16, pp. 40-66. Schmitthfisen, J.

    1964 Was ist eine Landschaft?, in Erdkundlisches Wissen, IX.1968 The system of geography, in Universitas, n. 2, pp. 173-84.

    Tricart, J., e Killian, J.1979 L Eco-gographie et lamnagement du milieu naturel, Maspero, Paris.

    Vidal de la Blache, P.1903 Tableau de la gographie de la France, in E. Lavisse (org.), Histoire de

    France, depuis les origines jusqu la Rvolution, vol. I, Hachette, Paris.

    Da paisagem como anlise de tudo quanto visvel observao, paisagem como mecanismo complexo de mltiplas variveis: esta a evoluo duma cincia que, tendo comeado pela simples descrio do ambiente que envolve o homem, veio no nosso tempo debruar-se com maior ateno sobre a rede de relaes que ligam e ligaram os homens ao territrio desde que, com as primeiras formas de domesticao animal e vegetal, a sua aco transformou a natureza. noo da funo esttica da paisagem (cf. artes) veio juntar-se depois a sintetizao no mesmo termo de um conjunto de elementos que fizeram sentir o seu efeito no apenas no espao mas tambm no tempo (cf. histria). As funes de adaptao ligadas agricultura e ao mundo rural (cf. camponeses), as modalidades da fixao humana no tempo e no espao, a natureza especfica do solo, a prpria criao das cidades (cf. cidade e ainda instituies, cidade/campo), os processos de cultivo e, em pocas mais recentes, a criao da fbrica, os sistemas de utilizao dos recursos duma regio (cf. tambm gua, materiais), o trabalho e os valores que se lhe atribuem: estes e outros factores fazem pressentir que a paisagem, mais do que um estado, ela prpria uma histria que, embora concretizada numa associao de homens e objectos, todavia um sistema de signos (cf. signo) cujo

  • PAISAGEM 160

    significado descodificado (cf. cdigo) e se reencontra na combinao sempre dinmica das suas vrias componentes. A complexa relao entre o homem (cf. anthropos) e a natureza (cf. natureza/cultura) articula-se tambm ao nvel da paisagem nas suas dimenses de passado/presente e futuro e na dupla actuao de foras que reciprocamente se exercem entre o homem e o ambiente, tendo em ateno a capacidade de a natureza, global e localmente (cf. local/global), suportar ou ajudar certas transformaes, e os conhecimentos tcnicos (cf. tcnica) e cientficos (cf. cincia) da sociedade cujos ritmos podem ou no coincidir ou ser compatveis. este desfasamento dos respectivos ritmos que pode provocar crises ou catstrofes (cf. tambm qualidade/ quantidade) e propor dramaticamente (cf. angstia/culpa) a alienao dos homens perante um ambiente que tende a escapar-se em vrias outras dimenses.