Boaventura Sousa Santos - Sociologia Das Ausências

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  • BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

    PARA UMA SOCIOLOGIA DAS AUSNCIAS E UMA SOCIOLOGIA DAS EMERGNCIAS*

    Procede-se a uma crtica do modelo de racionalidade ocidental o

    modelo de uma razo indolente propondo-se os prolegmenos de um outro

    modelo, o de uma razo cosmopolita. Procura-se fundar trs procedimentos

    sociolgicos nesta razo cosmopolita: a sociologia das ausncias, a sociologia

    das emergncias e o trabalho de traduo.

    1. Introduo O presente texto resulta de um projecto de investigao com o ttulo A

    reinveno da emancipao social por mim recentemente dirigido. Este

    projecto propunha-se estudar as alternativas globalizao neoliberal e ao

    capitalismo global produzidas pelos movimentos sociais e pelas ONGs, na sua

    luta contra a excluso e a discriminao em diferentes domnios sociais e em

    diferentes pases. O principal objectivo do projecto era determinar em que

    medida a globalizao alternativa est a ser produzida a partir de baixo e quais

    so as suas possibilidades e limites. Escolhi seis pases, cinco dos quais

    semiperifricos, em diferentes continentes.

    A minha hiptese de trabalho era que os conflitos entre a globalizao

    neoliberal hegemnica e a globalizao contra-hegemnica so mais intensos

    nestes pases. Para confirmar esta hiptese, seleccionei tambm um dos

    pases mais pobres do mundo: Moambique. Os seis pases escolhidos, para

    alm de Moambique como pas perifrico, eram a frica do Sul, o Brasil, a

    Colmbia, a ndia e Portugal. Nestes pases, identificaram-se iniciativas,

    movimentos, experincias, em cinco reas temticas: democracia participativa;

    sistemas de produo alternativos; multiculturalismo, direitos colectivos e

    cidadania cultural; alternativas aos direitos de propriedade intelectual e

    biodiversidade capitalista; novo internacionalismo operrio. Como parte do

    * As minhas incurses pela teoria literria devem muito ao dilogo com Maria Irene Ramalho. Estou igualmente grato a Paula Meneses, minha assistente de investigao, pela eficincia do seu trabalho. Agradeo tambm a Joo Arriscado Nunes, Allen Hunter e Csar Rodrguez.

  • projecto, e com a inteno de identificar outros discursos ou narrativas sobre o

    mundo, realizaram-se extensas entrevistas com activistas ou dirigentes dos

    movimentos ou iniciativas sociais analisados.1 O projecto levou a uma

    profunda reflexo epistemolgica de que resultou o presente ensaio.

    So os seguintes os factores e circunstncias que mais contribuiram para

    essa reflexo. Em primeiro lugar, tratava-se de um projecto conduzido fora dos

    centros hegemnicos de produo da cincia social, com o objectivo de criar

    uma comunidade cientfica internacional independente desses centros. Em

    segundo lugar, o projecto implicava o cruzamento, no apenas de diferentes

    tradies tericas e metodolgicas das cincias sociais, mas tambm de

    diferentes culturas e formas de interaco entre a cultura e o conhecimento,

    bem como entre o conhecimento cientfico e o conhecimento no-cientfico. Em

    terceiro lugar, o projecto debruava-se sobre lutas, iniciativas, movimentos

    alternativos, muitos dos quais locais, muitas vezes em lugares remotos do

    mundo e, assim, talvez fceis de desacreditar como irrelevantes, ou demasiado

    frgeis ou localizados para oferecer uma alternativa credvel ao capitalismo.

    Os factores e circunstncias acima descritos levaram-me a trs

    concluses. Em primeiro lugar, a experincia social em todo o mundo muito

    mais ampla e variada do que o que a tradio cientfica ou filosfica ocidental

    conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social est a

    ser desperdiada. deste desperdcio que se nutrem as ideias que proclamam

    que no h alternativa, que a histria chegou ao fim, e outras semelhantes. Em

    terceiro lugar, para combater o desperdcio da experincia, para tornar visveis

    as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de

    pouco serve recorrer cincia social tal como a conhecemos. No fim de

    contas, essa cincia responsvel por esconder ou desacreditar as

    alternativas. Para combater o desperdcio da experincia social, no basta

    propor um outro tipo de cincia social. Mais do que isso, necessrio propor

    um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crtica do modelo de

    racionalidade ocidental dominante pelo menos durante duzentos anos, todas as

    propostas apresentadas pela nova anlise social, por mais alternativas que se

    julguem, tendero a reproduzir o mesmo efeito de ocultao e descrdito.

    1 O projecto pode ser consultado em www.ces.fe.uc.pt/emancipa.

    2

  • Neste ensaio, procedo a uma crtica deste modelo de racionalidade a que,

    seguindo Leibniz, chamo razo indolente e proponho os prolegmenos de um

    outro modelo, que designo como razo cosmopolita.2 Procuro fundar trs

    procedimentos sociolgicos nesta razo cosmopolita: a sociologia das

    ausncias, a sociologia das emergncias e o trabalho de traduo.

    Os pontos de partida so trs. Em primeiro lugar, a compreenso do

    mundo excede em muito a compreenso ocidental do mundo. Em segundo

    lugar, a compreenso do mundo e a forma como ela cria e legitima o poder

    social tem muito que ver com concepes do tempo e da temporalidade. Em

    terceiro lugar, a caracterstica mais fundamental da concepo ocidental de

    racionalidade o facto de, por um lado, contrair o presente e, por outro,

    expandir o futuro. A contraco do presente, ocasionada por uma peculiar

    concepo da totalidade, transformou o presente num instante fugidio,

    entrincheirado entre o passado e o futuro. Do mesmo modo, a concepo linear

    do tempo e a planificao da histria permitiram expandir o futuro

    indefinidamente. Quanto mais amplo o futuro, mais radiosas eram as

    expectativas confrontadas com as experincias do presente. Nos anos

    quarenta, Ernst Bloch (1995: 313) interrogava-se, perplexo: se vivemos apenas

    no presente, por que razo ele to fugaz? a mesma perplexidade que est

    subjacente minha reflexo neste ensaio.

    Proponho uma racionalidade cosmopolita que, nesta fase de transio,

    ter de seguir a trajectria inversa: expandir o presente e contrair o futuro. S

    assim ser possvel criar o espao-tempo necessrio para conhecer e valorizar

    a inesgotvel experincia social que est em curso no mundo de hoje. Por

    outras palavras, s assim ser possvel evitar o gigantesco desperdcio da

    experincia de que sofremos hoje em dia. Para expandir o presente, proponho

    uma sociologia das ausncias; para contrair o futuro, uma sociologia das

    emergncias.

    Dado que vivemos, como mostram Prigogine (1997) e Wallerstein (1999),

    numa situao de bifurcao, a imensa diversidade de experincias sociais

    revelada por estes processos no pode ser explicada adequadamente por uma 2 A designao de Leibniz tem-me servido para situar o trabalho de reflexo terica e epistemolgica que tenho vindo a fazer nos ltimos anos. O ttulo do livro em que dou conta dessa reflexo testemunho disso mesmo: A crtica da razo indolente. Contra o desperdcio

    3

  • teoria geral. Em vez de uma teoria geral, proponho uma teoria ou um processo

    de traduo, capaz de criar uma inteligibilidade mtua entre experincias

    possveis e disponveis.

    A indolncia da razo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas

    diferentes: a razo impotente, aquela que no se exerce porque pensa que

    nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela

    prpria; a razo arrogante, que no sente necessidade de exercer-se porque

    se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de

    demonstrar a sua prpria liberdade; a razo metonmica, que se reivindica

    como a nica forma de racionalidade e, por conseguinte, no se aplica a

    descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, f-lo apenas para as tornar

    em matria-prima;3 e a razo prolptica, que no se aplica a pensar o futuro,

    porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superao

    linear, automtica e infinita do presente.4

    A razo indolente subjaz, nas suas vrias formas, ao conhecimento

    hegemnico, tanto filosfico como cientfico, produzido no Ocidente nos ltimos

    duzentos anos. A consolidao do Estado liberal na Europa e na Amrica do

    Norte, as revolues industriais e o desenvolvimento capitalista, o colonialismo

    e o imperialismo, constituram o contexto scio-poltico em que a razo

    indolente se desenvolveu. As excepes parciais, o romantismo e o marxismo,

    no foram nem suficientemente fortes nem suficientemente diferentes para

    poderem ser uma alternativa razo indolente. Por isso, a razo indolente

    criou o quadro para os grandes debates filosficos e epistemolgicos dos dois

    ltimos sculos e, de facto, presidiu a eles. Por exemplo, a razo impotente e a

    razo arrogante formataram o debate entre determinismo e livre arbtrio e, mais

    tarde, o debate entre realismo e construtivismo e o debate entre estruturalismo

    e existencialismo. No surpreende que estes debates tenham sido

    intelectualmente indolentes. Por sua vez, a razo metonmica apropriou-se de

    debates antigos, como o debate entre o holismo e o atomismo, e constituiu

    outros, como, por exemplo, o Methodenstreit entre as ciencias nomotticas e da experincia (Santos, 2000). No presente trabalho, proponho-me dar mais um passo nessa reflexo. 3 Uso o conceito de metonmia, uma figura do discurso aparentada com a sindoque, para significar a parte pelo todo. 4 Uso o conceito de prolepse, uma tcnica narrativa frequente, para significar o conhecimento do futuro no presente.

    4

  • as cincias idiogrficas, entre a explicao e a compreenso. Nos anos

    sessenta do sculo XX, presidiu ao debate sobre as duas culturas lanadas por

    C. P. Snow (1959, 1964). Neste debate, a razo metonmica ainda se

    considerava a si prpria como uma totalidade, se bem que j no to

    monoltica. O debate aprofundou-se nos anos oitenta e noventa com a

    epistemologia feminista, os estudos culturais e os estudos sociais da cincia.

    Ao analisarem a heterogeneidade das prticas e das narrativas da cincia, as

    novas epistemologias pulverizaram ainda mais essa totalidade e transformaram

    as duas culturas numa pluralidade pouco estvel de culturas. Mas a razo

    metonmica continuou a presidir aos debates mesmo quando se introduziu

    neles o tema do multiculturalismo e a cincia passou a ver-se como

    multicultural. Os outros saberes, no cientficos nem filosficos, e, sobretudo,

    os saberes no ocidentais, continuaram at hoje em grande medida fora do

    debate.

    No que respeita razo prolptica, a planificao da histria por ela

    formulada dominou os debates sobre o idealismo e o materialismo dialcticos,

    sobre o historicismo e o pragmatismo. A partir da dcada de 80, foi contestada

    sobretudo com as teorias da complexidade e as teorias do caos. A razo

    prolptica, que assentava na ideia linear de progresso, viu-se ento

    confrontada com as ideias de entropia e catstrofe, embora do confronto no

    tenha resultado at agora nenhuma alternativa.

    O debate gerado pelas duas culturas e pelas vrias terceiras culturas

    que emergiram dele as cincias sociais (Lepenies, 1988) ou a popularizao

    da cincia (Brockman, 1995)5 no afectou o domnio da razo indolente sob

    qualquer das suas quatro formas: razo impotente (determinismo, realismo),

    razo arrogante (livre arbtrio, construtivismo), razo metonmica (a parte

    tomada pelo todo) e razo prolptica (o domnio do futuro sob a forma do

    planeamento da histria e do domnio da natureza). Por isso no houve

    nenhuma reestruturao do conhecimento. Nem podia haver, em minha

    opinio, porque a indolncia da razo manifesta-se, entre outras formas, no

    modo como resiste mudana das rotinas, e como transforma interesses

    hegemnicos em conhecimentos verdadeiros. Da minha perspectiva, para

    5 Sobre a necessidade de a nova configurao dos saberes ir para alm das duas culturas, cf. Nunes, 1998/99.

    5

  • haver mudanas profundas na estruturao dos conhecimentos necessrio

    comear por mudar a razo que preside tanto aos conhecimentos como

    estruturao deles. Em suma, preciso desafiar a razo indolente.

    Neste trabalho, confronto-me com a razo indolente sob duas das suas

    formas, a razo metonmica e a razo prolptica.6 As duas outras formas so

    aparentemente mais antigas e tm suscitado muito mais debate (o debate

    sobre o determinismo ou livre arbtrio; o debate sobre realismo ou

    construtivismo). Em minha opinio, porm, as duas primeiras so

    verdadeiramente as formas fundacionais e por isso que, no tendo elas sido

    questionadas, os debates referidos se tm revelado indecidveis.

    2. A crtica da razo metonmica A razo metonmica obcecada pela ideia da totalidade sob a forma da

    ordem. No h compreenso nem aco que no seja referida a um todo e o

    todo tem absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compem. Por

    isso, h apenas uma lgica que governa tanto o comportamento do todo como

    o de cada uma das suas partes. H, pois, uma homogeneidade entre o todo e

    as partes e estas no tm existncia fora da relao com a totalidade. As

    possveis variaes do movimento das partes no afectam o todo e so vistas

    como particularidades. A forma mais acabada de totalidade para a razo

    metonmica a dicotomia, porque combina, do modo mais elegante, a simetria

    com a hierarquia. A simetria entre as partes sempre uma relao horizontal

    que oculta uma relao vertical. Isto assim porque, ao contrrio do que

    proclamado pela razo metonmica, o todo menos e no mais do que o

    conjunto das partes. Na verdade, o todo uma das partes transformada em

    termo de referncia para as demais. por isso que todas as dicotomias

    sufragadas pela razo metonmica contm uma hierarquia: cultura

    cientfica/cultura literria; conhecimento cientfico/conhecimento tradicional;

    homem/mulher; cultura/natureza; civilizado/primitivo; capital/trabalho;

    branco/negro; Norte/Sul; Ocidente/Oriente; e assim por diante.

    6 Para uma primeira crtica da razo indolente, cf. a minha busca de um novo senso comum (Santos, 1995, 2000).

    6

  • Tudo isto hoje por de mais conhecido, pelo que irei centrar-me nas

    consequncias.7 So as seguintes as duas consequncias principais. Em

    primeiro lugar, como no existe nada fora da totalidade que seja ou merea ser

    inteligvel, a razo metonmica afirma-se uma razo exaustiva, exclusiva e

    completa, muito embora seja apenas uma das lgicas de racionalidade que

    existem no mundo e seja apenas dominante nos estratos do mundo abrangidos

    pela modernidade ocidental. A razo metonmica no capaz de aceitar que a

    compreenso do mundo muito mais do que a compreenso ocidental do

    mundo. Em segundo lugar, para a razo metonmica nenhuma das partes pode

    ser pensada fora da relao com a totalidade. O Norte no inteligvel fora da

    relao com o Sul, tal como o conhecimento tradicional no inteligvel sem a

    relao com o conhecimento cientfico ou a mulher sem o homem. Assim, no

    admissvel que qualquer das partes tenha vida prpria para alm da que lhe

    conferida pela relao dicotmica e muito menos que possa, alm de parte, ser

    outra totalidade. Por isso, a compreenso do mundo que a razo metonmica

    promove no apenas parcial, internamente muito selectiva. A modernidade

    ocidental, dominada pela razo metonmica, no s tem uma compreenso

    limitada do mundo, como tem uma compreenso limitada de si prpria.

    Antes de me debruar sobre os procedimentos que sustentam a

    compreenso e policiam os seus limites, necessrio explicar como uma

    racionalidade to limitada veio a ter tamanha primazia nos ltimos duzentos

    anos. A razo metonmica , juntamente com a razo prolptica, a resposta do

    Ocidente, apostado na transformao capitalista do mundo, sua

    marginalidade cultural e filosfica em relao ao Oriente. Como Karl Jaspers e

    outros mostraram, o Ocidente constituiu-se como parte trnsfuga de uma

    7 No Ocidente, a crtica tanto da razo metonmica como da razo prolptica tem uma longa tradio. Para me restringir era moderna, ela pode fazer-se remontar ao romantismo e surge, de diferentes formas, em Kierkegaard, Nietzsche, na fenomenologia, no existencialismo e no pragmatismo. A indolncia dos debates est em que eles, em geral, no pem em questo a descontextualizao da razo como alguma coisa separada da realidade e acima dela. por isso que, a meu ver, a crtica mais eloquente vem daqueles para quem as razes metonmica e prolptica no so simplesmente um artefacto intelectual ou um jogo, mas a ideologia subjacente a um brutal sistema de dominao, o sistema colonial. Gandhi (1929/1932, 1938, 1951, 1960, 1972) e Mart (1963) so as duas vozes mais salientes. No contexto colonial, a razo indolente subjaz quilo a que Quijano, Dussel, Mignolo e Lander chamam a colonialidade do poder, uma forma de poder que no terminou com o fim do colonialismo, mas continuou a dominar nas sociedades ps-coloniais (Quijano, 2000; Lander, 2000; Mignolo, 2000; Dussel, 2001).

    7

  • matriz fundadora o Oriente (Jaspers, 1951, 1976; Marramao, 1995:160).8

    Esta matriz fundadora verdadeiramente totalizante porque abrange uma

    multiplicidade de mundos (terrenos e extraterrenos) e uma multiplicidade de

    tempos (passados, presentes, futuros, cclicos, lineares, simultneos). Como

    tal, no tem de reivindicar a totalidade, nem de subordinar a si as partes que a

    constituem. uma matriz anti-dicotmica porque no tem de controlar nem

    policiar limites. Pelo contrrio, o Ocidente, consciente da sua excentricidade

    relativamente a essa matriz, recupera dela apenas o que pode favorecer a

    expanso do capitalismo. Assim, a multiplicidade de mundos reduzida ao

    mundo terreno e a multiplicidade de tempos reduzida ao tempo linear.

    Dois processos presidem a tal reduo. A reduo da multiplicidade dos

    mundos ao mundo terreno realizada atravs do processo de secularizao e

    de laicizao, analisado por Weber (1958, 1963, 1968), Koselleck (1985) e

    Marramao (1995), entre muitos outros. A reduo da multiplicidade dos tempos

    ao tempo linear obtida pelos conceitos que vieram substituir a ideia sotrica

    que ligava a multiplicidade dos mundos, nomeadamente o conceito de

    progresso e o conceito de revoluo em que veio a fundar-se a razo

    prolptica. Esta concepo truncada da totalidade oriental, precisamente

    porque truncada, tem de se afirmar autoritariamente como totalidade e impor

    homogeneidade s partes que a compem. Foi com ela que o Ocidente se

    apropriou produtivamente do mundo e transformou o Oriente num centro

    improdutivo e estagnado. E foi tambm com ela que Weber contraps

    seduo improdutiva do Oriente o desencanto do mundo ocidental.

    Como nota Giacomo Marramao (1995: 160), a supremacia do Ocidente,

    criada a partir das margens, nunca se transformou culturalmente numa

    centralidade alternativa ao Oriente. Por essa razo, a fora da razo

    metonmica ocidental excedeu sempre a fora do seu fundamento. uma fora

    minada por uma fraqueza que, no entanto, , paradoxalmente, a razo da sua

    fora no mundo. Esta dialctica entre fora e fraqueza vem a traduzir-se no

    8 Jaspers considera o perodo entre 800 e 200 a.C. como um perodo axial, que lanou os fundamentos que permitem humanidade subsistir ainda hoje (1951: 98). Neste perodo, a maioria dos extraordinrios acontecimentos que deram forma humanidade tal como a conhecemos ocorreu no Oriente na China, ndia, Prsia, Palestina. O Ocidente representado pela Grcia e, como sabemos hoje, a antiguidade grega deve muito s suas razes africanas e orientais (Bernal, 1987). Ver tambm Schluchter, 1979.

    8

  • desenvolvimento paralelo de duas pulses contraditrias, o Wille zur Macht, de

    Hobbes a Nietzsche, Carl Schmitt e ao nazismo/fascismo e o Wille zur

    Ohnmacht, de Rousseau a Kelsen e democracia e ao primado do direito. Mas

    em qualquer destas pulses est presente a totalidade que, por truncada, tem

    de ignorar o que no cabe nela e impor a sua primazia sobre as partes que,

    para no fugirem ao seu controlo, tm de ser homogeneizadas como partes.

    Porque uma razo insegura dos seus fundamentos, a razo metonmica no

    se insere no mundo pela via da argumentao e da retrica. No d razes de

    si, impe-se pela eficcia da sua imposio. E essa eficcia manifesta-se pela

    dupla via do pensamento produtivo e do pensamento legislativo. Em vez da

    razoabilidade dos argumentos e do consenso que eles tornam possvel, a

    produtividade e a coero legtima.

    Fundada na razo metonmica, a transformao do mundo no pode ser

    acompanhada por uma adequada compreenso do mundo. Essa inadequao

    significou violncia, destruio e silenciamento para todos quantos fora do

    Ocidente foram sujeitos razo metonmica; e significou alienao, malaise e

    uneasiness no Ocidente. Esse desconforto foi bem sentido por Walter Benjamin

    ao mostrar o paradoxo que ento passou a dominar e domina hoje ainda

    mais a vida no Ocidente: o facto de a riqueza dos acontecimentos se traduzir

    em pobreza da nossa experincia e no em riqueza.9 Este paradoxo veio

    coexistir com um outro: o facto de a vertigem das mudanas se transmutar

    frequentemente numa sensao de estagnao.

    Comea hoje a ser evidente que a razo metonmica diminuiu ou subtraiu

    o mundo tanto quanto o expandiu ou adicionou de acordo com as suas prprias

    regras. Reside aqui a crise da ideia de progresso e, com ela, a crise da ideia de

    totalidade que a funda. A verso abreviada do mundo foi tornada possvel por

    uma concepo do tempo presente que o reduz a um instante fugaz entre o

    que j no o que ainda no . Com isto, o que considerado contemporneo

    9 Benjamin pensava que a Primeira Guerra Mundial tinha privado o mundo das relaes sociais atravs das quais as geraes anteriores transmitiam o seu saber s seguintes (1972: 214). Depois da guerra, segundo ele, emergira um mundo novo, dominado pelo desenvolvimento da tecnologia, um mundo em que mesmo a educao e o conhecimento tinham deixado de se traduzir em experincia. Tinha, assim, emergido uma nova pobreza, um dfice de experincia no meio de uma transformao desenfreada, uma nova forma de barbrie (1972: 215). A concluso do ensaio inicia-se, assim, com as seguintes palavras: Tornmo-nos pobres. Fomos abandonando um pedao da herana da humanidade aps outro, tivemos muitas vezes de o depositar na casa de penhores por um centsimo do seu valor, para receber em troca as moedas sem prstimo da actualidade. (1972: 219).

    9

  • uma parte extremamente reduzida do simultneo. O olhar que v uma

    pessoa cultivar a terra com uma enxada no consegue ver nela seno o

    campons pr-moderno. A isso mesmo se refere Koselleck quando fala da no

    contemporaneidade do contemporneo (1985), sem, no entanto, problematizar

    que nessa assimetria se esconde uma hierarquia, a superioridade de quem

    estabelece o tempo que determina a contemporaneidade. A contraco do

    presente esconde, assim, a maior parte da riqueza inesgotvel das

    experincias sociais no mundo. Benjamin identificou o problema mas no as

    suas causas. A pobreza da experincia no expresso de uma carncia, mas

    antes a expresso de uma arrogncia, a arrogncia de no se querer ver e

    muito menos valorizar a experincia que nos cerca, apenas porque est fora da

    razo com que a podemos identificar e valorizar.

    A crtica da razo metonmica , pois, uma condio necessria para

    recuperar a experincia desperdiada. O que est em causa a ampliao do

    mundo atravs da ampliao do presente. S atravs de um novo espao-

    tempo ser possvel identificar e valorizar a riqueza inesgotvel do mundo e do

    presente. Simplesmente, esse novo espao-tempo pressupe uma outra razo.

    At agora, a aspirao da dilatao do presente tem sido formulada apenas

    pelos criadores literrios. Um exemplo entre muitos a parbola de Franz

    Kafka sobre a precaridade do homem moderno comprimido entre dois fortes

    adversrios, o passado e o futuro.10

    A dilatao do presente aqui proposta assenta em dois procedimentos

    que questionam a razo metonmica nos seus fundamentos. O primeiro

    consiste na proliferao das totalidades. No se trata de ampliar a totalidade

    proposta pela razo metonmica, mas de faz-la coexistir com outras

    totalidades. O segundo consiste em mostrar que qualquer totalidade feita de

    heterogeneidade e que as partes que a compem tm uma vida prpria fora

    dela. Ou seja, a sua pertena a uma dada totalidade sempre precria, quer

    porque as partes, alm do estatuto de partes, tm sempre, pelo menos em 10 Ele tem dois adversrios. O primeiro empurra-o de trs, a partir da origem. O segundo impede-o de seguir para diante. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro apoia-o na luta contra o segundo, porque quer empurr-lo para a frente, e, da mesma forma, o segundo apoia-o na luta contra o primeiro, j que quer for-lo a retroceder. Mas isto s em teoria assim. que no so apenas os dois adversrios que ali esto, tambm ele est ali, e quem que verdadeiramente conhece as suas intenes? De todo o modo, o seu sonho poder, num momento de desateno mas para isso precisa uma noite to escura como nunca houve

    10

  • latncia, o estatuto de totalidade, quer porque as partes emigram de uma

    totalidade para outra. O que proponho um procedimento renegado pela razo

    metonmica: pensar os termos das dicotomias fora das articulaes e relaes

    de poder que os unem, como primeiro passo para os libertar dessas relaes, e

    para revelar outras relaes alternativas que tm estado ofuscadas pelas

    dicotomias hegemnicas. Pensar o Sul como se no houvesse Norte, pensar a

    mulher como se no houvesse o homem, pensar o escravo como se no

    houvesse senhor. O pressuposto deste procedimento que a razo

    metonmica, ao arrastar estas entidades para dentro das dicotomias, no o fez

    com pleno xito, j que fora destas ficaram componentes ou fragmentos no

    socializados pela ordem da totalidade. Esses componentes ou fragmentos tm

    vagueado fora dessa totalidade como meteoritos perdidos no espao da ordem

    e insusceptveis de serem percebidos e controlados por ela.

    Na fase de transio em que nos encontramos, em que a razo

    metonmica, apesar de muito desacreditada, ainda dominante, a ampliao

    do mundo e a dilatao do presente tm de comear por um procedimento que

    designo por sociologia das ausncias. Trata-se de uma investigao que visa

    demonstrar que o que no existe , na verdade, activamente produzido como

    tal, isto , como uma alternativa no-credvel ao que existe. O seu objecto

    emprico considerado impossvel luz das cincias sociais convencionais,

    pelo que a sua simples formulao representa j uma ruptura com elas. O

    objectivo da sociologia das ausncias transformar objectos impossveis em

    possveis e com base neles transformar as ausncias em presenas. F-lo

    centrando-se nos fragmentos da experincia social no socializados pela

    totalidade metonmica. O que que existe no Sul que escapa dicotomia

    Norte/Sul? O que que existe na medicina tradicional que escapa dicotomia

    medicina moderna/medicina tradicional? O que que existe na mulher que

    independente da sua relao com o homem? possvel ver o que subalterno

    sem olhar relao de subalternidade?

    No h uma maneira nica ou unvoca de no existir, porque so vrios

    as lgicas e os processos atravs dos quais a razo metonmica produz a no-

    existncia do que no cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. H

    produo de no-existncia sempre que uma dada entidade desqualificada e nenhuma , saltar para fora da linha de combate e, por causa da sua experincia de luta, ser

    11

  • tornada invisvel, ininteligvel ou descartvel de um modo irreversvel. O que

    une as diferentes lgicas de produo de no-existncia serem todas elas

    manifestaes da mesma monocultura racional. Distingo cinco lgicas ou

    modos de produo da no-existncia.

    A primeira lgica deriva da monocultura do saber e do rigor do saber. o

    modo de produo de no-existncia mais poderoso. Consiste na

    transformao da cincia moderna e da alta cultura em critrios nicos de

    verdade e de qualidade esttica, respectivamente. A cumplicidade que une as

    duas culturas reside no facto de ambas se arrogarem ser, cada uma no seu

    campo, cnones exclusivos de produo de conhecimento ou de criao

    artstica. Tudo o que o cnone no legitima ou reconhece declarado

    inexistente. A no-existncia assume aqui a forma de ignorncia ou de

    incultura.

    A segunda lgica assenta na monocultura do tempo linear, a ideia de que

    a histria tem sentido e direco nicos e conhecidos. Esse sentido e essa

    direco tm sido formulados de diversas formas nos ltimos duzentos anos:

    progresso, revoluo, modernizao, desenvolvimento, crescimento,

    globalizao. Comum a todas estas formulaes a ideia de que o tempo

    linear e que na frente do tempo seguem os pases centrais do sistema mundial

    e, com eles, os conhecimentos, as instituies e as formas de sociabilidade

    que neles dominam. Esta lgica produz no-existncia declarando atrasado

    tudo o que, segundo a norma temporal, assimtrico em relao ao que

    declarado avanado. nos termos desta lgica que a modernidade ocidental

    produz a no-contemporaneidade do contemporneo, a ideia de que a

    simultaneidade esconde as assimetrias dos tempos histricos que nela

    convergem. O encontro entre o campons africano e o funcionrio do Banco

    Mundial em trabalho de campo ilustra esta condio. Neste caso, a no-

    existncia assume a forma da residualizao que, por sua vez, tem, ao longo

    dos ltimos duzentos anos, adoptado vrias designaes, a primeira das quais

    foi o primitivo, seguindo-se outras como o tradicional, o pr-moderno, o

    simples, o obsoleto, o subdesenvolvido.

    A terceira lgica a lgica da classificao social, que assenta na

    monocultura da naturalizao das diferenas. Consiste na distribuio das

    promovido a juiz dos seus adversrios que se batem um contra o outro. (Kafka, 1983: 222).

    12

  • populaes por categorias que naturalizam hierarquias. A classificao racial e

    a classificao sexual so as mais salientes manifestaes desta lgica. Ao

    contrrio do que sucede com a relao capital/trabalho, a classificao social

    assenta em atributos que negam a intencionalidade da hierarquia social. A

    relao de dominao a consequncia e no a causa dessa hierarquia e

    pode ser mesmo considerada como uma obrigao de quem classificado

    como superior (por exemplo, o fardo do homem branco em sua misso

    civilizadora). Embora as duas formas de classificao (raa e sexo) sejam

    decisivas para que a relao capital/trabalho se estabilize e se difunda

    globalmente, a classificao racial foi a mais profundamente reconstruda pelo

    capitalismo, como tm mostrado, entre outros, Wallerstein e Balibar (1991) e,

    de uma maneira mais incisiva, Quijano (2000), Mignolo (2000) e Dussel (2001).

    De acordo com esta lgica, a no-existncia produzida sob a forma de

    inferioridade insupervel porque natural. Quem inferior, porque

    insuperavelmente inferior, no pode ser uma alternativa credvel a quem

    superior.

    A quarta lgica da produo da inexistncia a lgica da escala

    dominante. Nos termos desta lgica, a escala adoptada como primordial

    determina a irrelevncia de todas as outras possveis escalas. Na modernidade

    ocidental, a escala dominante aparece sob duas formas principais: o universal

    e o global. O universalismo a escala das entidades ou realidades que

    vigoram independentemente de contextos especficos. Tm, por isso,

    precedncia sobre todas as outras realidades que dependem de contextos e

    que por essa razo so consideradas particulares ou vernculas. A

    globalizao a escala que nos ltimos vinte anos adquiriu uma importncia

    sem precedentes nos mais diversos campos sociais. Trata-se da escala que

    privilegia as entidades ou realidades que alargam o seu mbito a todo o globo

    e que, ao faz-lo, adquirem a prerrogativa de designar entidades ou realidades

    rivais como locais.11 No mbito desta lgica, a no-existncia produzida sob a

    forma do particular e do local. As entidades ou realidades definidas como

    particulares ou locais esto aprisionadas em escalas que as incapacitam de

    serem alternativas credveis ao que existe de modo universal ou global.

    11 Sobre os modos de produo da globalizao, ver Santos, 2001c, 56-57.

    13

  • Finalmente, a quinta lgica de no-existncia a lgica produtivista e

    assenta na monocultura dos critrios de produtividade capitalista. Nos termos

    desta lgica, o crescimento econmico um objectivo racional inquestionvel

    e, como tal, inquestionvel o critrio de produtividade que mais bem serve

    esse objectivo. Esse critrio aplica-se tanto natureza como ao trabalho

    humano. A natureza produtiva a natureza maximamente frtil num dado ciclo

    de produo, enquanto o trabalho produtivo o trabalho que maximiza a

    gerao de lucros igualmente num dado ciclo de produo. Segundo esta

    lgica, a no-existncia produzida sobre a forma do improdutivo que,

    aplicada natureza, esterilidade e, aplicada ao trabalho, preguia ou

    desqualificao profissional.

    So, assim, cinco as principais formas sociais de no-existncia

    produzidas ou legitimadas pela razo metonmica: o ignorante, o residual, o

    inferior, o local e o improdutivo. Trata-se de formas sociais de inexistncia

    porque as realidades que elas conformam esto apenas presentes como

    obstculos em relao s realidades que contam como importantes, sejam elas

    realidades cientficas, avanadas, superiores, globais ou produtivas. So, pois,

    partes desqualificadas de totalidades homogneas que, como tal, apenas

    confirmam o que existe e tal como existe. So o que existe sob formas

    irreversivelmente desqualificadas de existir.

    A produo social destas ausncias resulta na subtraco do mundo e na

    contraco do presente e, portanto, no desperdcio da experincia. A sociologia

    das ausncias visa identificar o mbito dessa subtraco e dessa contraco

    de modo a que as experincias produzidas como ausentes sejam libertadas

    dessas relaes de produo e, por essa via, se tornem presentes. Tornar-se

    presentes significa serem consideradas alternativas s experincias

    hegemnicas, a sua credibilidade poder ser discutida e argumentada e as suas

    relaes com as experincias hegemnicas poderem ser objecto de disputa

    poltica.12 A sociologia das ausncias visa, assim, criar uma carncia e

    transformar a falta da experincia social em desperdcio da experincia social.

    Com isso, cria as condies para ampliar o campo das experincias credveis 12 A sociologia das ausncias no pretende acabar com as categorias de ignorante, residual, inferior, local ou improdutivo. Pretende apenas que elas deixem de ser atribudas em funo de um s critrio que no admite ser questionado por qualquer outro critrio alternativo. Este

    14

  • neste mundo e neste tempo e, por essa razo, contribui para ampliar o mundo

    e dilatar o presente. A ampliao do mundo ocorre no s porque aumenta o

    campo das experincias credveis existentes, como tambm porque, com elas,

    aumentam as possibilidades de experimentao social no futuro. A dilatao do

    presente ocorre pela expanso do que considerado contemporneo, pelo

    achatamento do tempo presente de modo a que, tendencialmente, todas as

    experincias e prticas que ocorrem simultaneamente possam ser

    consideradas contemporneas, ainda que cada uma sua maneira.

    Como proceder sociologia das ausncias? A sociologia das ausncias

    parte de duas indagaes. A primeira respeita s razes por que uma

    concepo to estranha e to excludente de totalidade obteve to grande

    primazia nos ltimos duzentos anos. A segunda indagao visa identificar os

    modos de confrontar e superar essa concepo de totalidade e a razo

    metonmica que a sustenta. A primeira indagao, mais convencional, tem sido

    abordada por vrias vertentes da sociologia crtica, dos estudos sociais e

    culturais da cincia, da crtica feminista, da desconstruo, dos estudos ps-

    coloniais, etc.13 Neste texto, concentro-me na segunda indagao, a menos

    percorrida at agora.

    A superao das totalidades homogneas e excludentes e da razo

    metonmica que as sustenta obtm-se pondo em questo cada uma das

    lgicas ou modos de produo de ausncia acima referidos. Como a razo

    metonmica formou as cincias sociais convencionais, a sociologia das

    ausncias necessariamente transgressiva. Neste sentido, ela prpria uma

    alternativa epistemolgica partida descredibilizada. O inconformismo com

    esse descrdito e a luta pela credibilidade tornam possvel que a sociologia das

    ausncias no permanea uma sociologia ausente.

    A ecologia de saberes. A primeira lgica, a lgica da monocultura do

    saber e do rigor cientficos, tem de ser questionada pela identificao de outros

    saberes e de outros critrios de rigor que operam credivelmente em contextos

    e prticas sociais declarados no-existentes pela razo metonmica. Essa

    credibilidade contextual deve ser considerada suficiente para que o saber em

    causa tenha legitimidade para participar de debates epistemolgicos com monoplio no resultado de um trabalho de razoabilidade argumentativa. antes o resultado de uma imposio que se no justifica seno pela supremacia de quem tem poder para o fazer. 13 A esta primeira indagao dediquei vrios trabalhos (cf. Santos, 1987; 1989; 2000).

    15

  • outros saberes, nomeadamente com o saber cientfico. A ideia central da

    sociologia das ausncias neste domnio que no h ignorncia em geral nem

    saber em geral. Toda a ignorncia ignorante de um certo saber e todo o

    saber a superao de uma ignorncia particular (Santos, 1995: 25). Deste

    princpio de incompletude de todos os saberes decorre a possibilidade de

    dilogo e de disputa epistemolgica entre os diferentes saberes. O que cada

    saber contribui para esse dilogo o modo como orienta uma dada prtica na

    superao de uma certa ignorncia. O confronto e o dilogo entre os saberes

    um confronto e dilogo entre diferentes processos atravs dos quais prticas

    diferentemente ignorantes se transformam em prticas diferentemente sbias.

    Neste domnio, a sociologia das ausncias visa substituir a monocultura

    do saber cientfico por uma ecologia de saberes. Esta ecologia de saberes

    permite, no s superar a monocultura do saber cientfico, como a ideia de que

    os saberes no cientficos so alternativos ao saber cientfico. A ideia de

    alternativa pressupe a ideia de normalidade e esta, a ideia de norma, pelo

    que, sem mais especificaes, a designao de algo como alternativo tem uma

    conotao latente de subalternidade. Se tomarmos como exemplo a

    biomedicina e a medicina tradicional em frica, no faz sentido considerar esta

    ltima, de longe prevalecente, como alternativa primeira. O importante

    identificar os contextos e as prticas em que cada uma opera e o modo como

    concebem sade e doena e como superam a ignorncia (sob a forma de

    doena no diagnosticada) em saber aplicado (sob a forma de cura).

    A ecologia das temporalidades. A segunda lgica, a lgica da

    monocultura do tempo linear, deve ser confrontada com a ideia de que o tempo

    linear uma entre muitas concepes do tempo e de que, se tomarmos o

    mundo como nossa unidade de anlise, no sequer a concepo mais

    praticada. O domnio do tempo linear no resulta da sua primazia enquanto

    concepo temporal, mas da primazia da modernidade ocidental que o adoptou

    como seu. Foi a concepo adoptada pela modernidade ocidental a partir da

    secularizao da escatologia judaico-crist, mas nunca eliminou, nem mesmo

    no Ocidente, outras concepes como o tempo circular, a doutrina do eterno

    retorno e outras concepes que no se deixam captar adequadamente nem

    pela imagem de linha nem pela imagem de crculo.

    16

  • A necessidade de tomar em conta estas diferentes concepes de tempo

    deriva do facto, salientado por Koselleck (1985) e por Marramao (1995), de que

    as sociedades entendem o poder a partir das concepes de temporalidade

    que nelas circulam. As relaes de dominao mais resistentes so as que

    assentam nas hierarquias entre temporalidades e essas continuam hoje a ser

    constitutivas do sistema mundial. So essas hierarquias que reduzem tanta

    experincia social condio de resduo. As experincias so consideradas

    residuais porque so contemporneas de maneiras que a temporalidade

    dominante, o tempo linear, no capaz de reconhecer.

    Neste domnio, a sociologia das ausncias visa libertar as prticas sociais

    do seu estatuto de resduo, restituindo-lhes a sua temporalidade prpria e,

    assim, a possibilidade de desenvolvimento autnomo. Uma vez libertada do

    tempo linear e entregue sua temporalidade prpria, a actividade do

    campons africano ou asitico deixa de ser residual para ser contempornea

    da actividade do agricultor hi-tech dos EUA ou do executivo do Banco Mundial.

    Do mesmo modo, a presena ou relevncia dos antepassados em diferentes

    culturas deixa de ser uma manifestao anacrnica de primitivismo religioso ou

    de magia para se tornar uma outra forma de viver a contemporaneidade.

    Ao libertar as realidades alternativas do estatuto de resduo, a sociologia

    das ausncias substitui a monocultura do tempo linear pela ecologia das

    temporalidades, a ideia de que as sociedades so constitudas por vrias

    temporalidades e de que a desqualificao, supresso ou ininteligibilidade de

    muitas prticas resulta de se pautarem por temporalidades que extravasam do

    cnone temporal da modernidade ocidental capitalista. Uma vez recuperadas e

    conhecidas essas temporalidades, as prticas e as sociabilidades que se

    pautam por elas tornam-se inteligveis e objectos credveis de argumentao e

    de disputa poltica. A dilatao do presente ocorre, neste caso, pela

    relativizao do tempo linear e pela valorizao das outras temporalidades que

    com ele se articulam ou com ele conflituam.

    A ecologia dos reconhecimentos. A terceira lgica da produo de

    ausncias a lgica da classificao social. Embora em todas as lgicas de

    produo de ausncia a desqualificao das prticas v de par com a

    desqualificao dos agentes, nesta lgica que a desqualificao incide

    prioritariamente sobre os agentes, e s derivadamente sobre a experincia

    17

  • social (prticas e saberes) de que eles so protagonistas. A colonialidade do

    poder capitalista moderno e ocidental, a que se referem Quijano (2000),

    Mignolo (2000) e Dussel (2001), consiste em identificar diferena com

    desigualdade, ao mesmo tempo que se arroga o privilgio de determinar quem

    igual e quem diferente. A sociologia das ausncias confronta-se com a

    colonialidade, procurando uma nova articulao entre o princpio da igualdade

    e o princpio da diferena e abrindo espao para a possibilidade de diferenas

    iguais uma ecologia de diferenas feita de reconhecimentos recprocos. F-lo

    submetendo a hierarquia etnografia crtica (Santos, 2001b). Isto consiste na

    desconstruo tanto da diferena (em que medida a diferena um produto da

    hierarquia?) como da hierarquia (em que medida a hierarquia um produto da

    diferena?). As diferenas que subsistem quando desaparece a hierarquia

    tornam-se uma denncia poderosa das diferenas que a hierarquia exige para

    no desaparecer.

    A ecologia das trans-escalas. A quarta lgica, a lgica da escala global,

    confrontada pela sociologia das ausncias atravs da recuperao do que no

    local no efeito da globalizao hegemnica. Exige, por um lado, que o local

    seja conceptualmente desglobalizado a fim de identificar o que nele no foi

    integrado na globalizao hegemnica. O que foi integrado o que designo por

    globalismo localizado, ou seja, o impacto especfico da globalizao

    hegemnica no local (Santos, 1998b; 2000). Ao desglobalizar o local

    relativamente globalizao hegemnica, a sociologia das ausncias explora

    tambm a possibilidade de uma globalizao contra-hegemnica. Em suma, a

    desglobalizao do local e a sua eventual reglobalizao contra-hegemnica

    ampliam a diversidade das prticas sociais ao oferecer alternativas ao

    globalismo localizado. A sociologia das ausncias exige neste domnio o

    exerccio da imaginao cartogrfica, quer para ver em cada escala de

    representao no s o que ela mostra mas tambm o que ela oculta, quer

    para lidar com mapas cognitivos que operam simultaneamente com diferentes

    escalas, nomeadamente para detectar as articulaes locais/globais (Santos,

    1995: 456-473; Santos, 2001a).

    A ecologia de produtividade. Finalmente, no domnio da quinta lgica, a

    lgica produtivista, a sociologia das ausncias consiste na recuperao e

    valorizao dos sistemas alternativos de produo, das organizaes

    18

  • econmicas populares, das cooperativas operrias, das empresas autogeridas,

    da economia solidria, etc., que a ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou

    descredibilizou. Este talvez o domnio mais controverso da sociologia das

    ausncias, uma vez que pe directamente em questo o paradigma do

    desenvolvimento e do crescimento econmico infinito e a lgica da primazia

    dos objectivos de acumulao sobre os objectivos de distribuio que

    sustentam o capitalismo global. , no entanto, hoje evidente que este

    paradigma e esta lgica nunca dispensaram outras formas de produo e

    apenas as desqualificaram para as manter na relao de subalternidade. A

    sociologia das ausncias visa reconstruir o que so essas formas para alm da

    relao de subalternidade.

    Em cada um dos cinco domnios, o objectivo da sociologia das ausncias

    revelar a diversidade e multiplicidade das prticas sociais e credibilizar esse

    conjunto por contraposio credibilidade exclusivista das prticas

    hegemnicas. A ideia de multiplicidade e de relaes no destrutivas entre os

    agentes que a compem dada pelo conceito de ecologia: ecologia de

    saberes, ecologia de temporalidades, ecologia de reconhecimentos e ecologia

    de produes e distribuies sociais. Comum a todas estas ecologias a ideia

    de que a realidade no pode ser reduzida ao que existe. Trata-se de uma

    verso ampla de realismo, que inclui as realidades ausentes por via do silenciamento, da supresso e da marginalizao, isto , as realidades que so

    activamente produzidas como no existentes.

    Em concluso, o exerccio da sociologia das ausncias contra-factual e

    tem lugar atravs de uma confrontao com o senso comum cientfico

    tradicional. Para ser levado a cabo, exige imaginao sociolgica. Distingo dois

    tipos de imaginao: a imaginao epistemolgica e a imaginao democrtica.

    A imaginao epistemolgica permite diversificar os saberes, as perspectivas e

    as escalas de identificao, anlise e avaliao das prticas. A imaginao

    democrtica permite o reconhecimento de diferentes prticas e actores sociais.

    Tanto a imaginao epistemolgica como a imaginao democrtica tm uma

    dimenso desconstrutiva e uma dimenso reconstrutiva. A desconstruo

    assume cinco formas, correspondentes crtica das cinco lgicas da razo

    metonmica, ou seja, despensar, desresidualizar, desracializar, deslocalizar e

    19

  • desproduzir. A reconstruo constituda pelas cinco ecologias acima

    referidas.

    3. A crtica da razo prolptica A razo prolptica a face da razo indolente quando concebe o futuro a

    partir da monocultura do tempo linear. Esta monocultura do tempo linear, ao

    mesmo tempo que contraiu o presente, como vimos atrs ao analisar a razo

    metonmica, dilatou enormemente o futuro. Porque a histria tem o sentido e a

    direco que lhe so conferidos pelo progresso, e o progresso no tem limites,

    o futuro infinito. Mas porque o futuro est projectado numa direco

    irreversvel ele , como bem identifica Benjamim, um tempo homogneo e

    vazio (Benjamin, 1969: 261, 264). O futuro , assim, infinitamente abundante e

    infinitamente igual, um futuro que, como salienta Marramao (1995: 126), s

    existe para se tornar passado. Um futuro assim concebido no tem de ser

    pensado, e nisto que se fundamenta a indolncia da razo prolptica.

    Enquanto a crtica da razo metonmica tem por objectivo dilatar o

    presente, a crtica da razo prolptica tem por objectivo contrair o futuro.

    Contrair o futuro significa torn-lo escasso e, como tal, objecto de cuidado. O

    futuro no tem outro sentido nem outra direco seno os que resultam desse

    cuidado. Contrair o futuro consiste em eliminar ou, pelo menos, atenuar a

    discrepncia entre a concepo do futuro da sociedade e a concepo do

    futuro dos indivduos. Ao contrrio do futuro da sociedade, o futuro dos

    indivduos est limitado pela durao da sua vida ou das vidas em que pode

    reincarnar, nas culturas que aceitam a metempsicose. Em qualquer dos casos,

    o carcter limitado do futuro e o facto de ele depender da gesto e cuidado dos

    indivduos faz com que, em vez de estar condenado a ser passado, ele se

    transforme num factor de ampliao do presente. Ou seja, a contraco do

    futuro contribui para a dilatao do presente.

    Enquanto a dilatao do presente obtida atravs da sociologia das

    ausncias, a contraco do futuro obtida atravs da sociologia das

    emergncias. A sociologia das emergncias consiste em substituir o vazio do

    futuro segundo o tempo linear (um vazio que tanto tudo como nada) por um

    futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utpicas e

    20

  • realistas, que se vo construindo no presente atravs das actividades de

    cuidado.

    O conceito que preside sociologia das emergncias o conceito de

    Ainda-No (Noch Nicht) proposto por Ernst Bloch (1995). Bloch insurge-se

    contra o facto de a filosofia ocidental ter sido dominada pelos conceitos de

    Tudo (Alles) e Nada (Nichts), nos quais tudo parece estar contido como

    latncia, mas donde nada novo pode surgir. Da que a filosofia ocidental seja

    um pensamento esttico. Para Bloch, o possvel o mais incerto, o mais ignorado conceito da filosofia ocidental (1995: 241). E, no entanto, s o

    possvel permite revelar a totalidade inesgotvel do mundo. Bloch introduz,

    assim, dois novos conceitos, o No (Nicht) e o Ainda-No (Noch Nicht). O No

    a falta de algo e a expresso da vontade de superar essa falta. por isso

    que o No se distingue do Nada (1995: 306). Dizer no dizer sim a algo

    diferente. O Ainda-No a categoria mais complexa, porque exprime o que

    existe apenas como tendncia, um movimento latente no processo de se

    manifestar. O Ainda-No o modo como o futuro se inscreve no presente e o

    dilata. No um futuro indeterminado nem infinito. uma possibilidade e uma

    capacidade concretas que nem existem no vcuo, nem esto completamente

    determinadas. De facto, elas redeterminam activamente tudo aquilo em que

    tocam e por isso questionam as determinaes que existem num dado

    momento. Subjectivamente, o Ainda-No a conscincia antecipatria, uma

    conscincia que, apesar de ser to importante na vida das pessoas, foi, por

    exemplo, totalmente negligenciada por Freud (Bloch, 1995: 286-315).

    Objectivamente, o Ainda-No , por um lado, capacidade (potncia) e, por

    outro, possibilidade (potencialidade). Esta possibilidade tem uma componente

    de escurido que reside na origem dessa possibilidade no momento vivido, que

    nunca inteiramente visvel para si prprio, e tem tambm uma componente de

    incerteza que resulta de uma dupla carncia: o conhecimento apenas parcial

    das condies que podem concretizar a possibilidade; o facto de essas

    condies s existirem parcialmente. Para Bloch (1995: 241), fundamental

    distinguir entre estas duas carncias, dado que so autnomas: possvel ter

    um conhecimento pouco parcial de condies s muito parcialmente existentes

    e vice-versa.

    21

  • O Ainda-No inscreve no presente uma possibilidade incerta, mas nunca

    neutra; pode ser a possibilidade da utopia ou da salvao (Heil) ou a

    possibilidade do desastre ou perdio (Unheil). Esta incerteza faz com que toda

    a mudana tenha um elemento de acaso, de perigo. esta incerteza que, em

    meu entender, ao mesmo tempo que dilata o presente, contrai o futuro,

    tornando-o escasso e objecto de cuidado. Em cada momento, h um horizonte

    limitado de possibilidades e por isso importante no desperdiar a

    oportunidade nica de uma transformao especfica que o presente oferece:

    carpe diem. Fiel ao marxismo que, alis, interpretou de modo muito criativo,

    Bloch entende que a sucesso dos horizontes conduz ou tende a conduzir para

    um estado final. Penso, contudo, que no concordar com Bloch a este respeito

    no coisa de monta. A nfase de Bloch est na crtica da concepo

    mecnica da matria, por um lado, e na afirmao da nossa capacidade para

    pensar e agir produtivamente sobre o mundo, por outro. Das trs categorias

    modais da existncia a realidade, a necessidade, a possibilidade (Bloch,

    1995: 244, 245) , a razo indolente centrou-se nas duas primeiras e descurou

    totalmente a terceira. Para Bloch, Hegel o grande responsvel pelo descurar filosfico do possvel. Para Hegel, o possvel ou no existe ou no diferente

    do que existe porque est contido no real e, por isso, em qualquer dos casos,

    no merece ser pensado. A realidade e a necessidade no precisam da

    possibilidade para dar conta do presente ou do futuro. A cincia moderna foi o

    veculo privilegiado desta concepo e, por isso, Bloch convida-nos a

    centrarmo-nos na categoria modal mais negligenciada pela cincia moderna, a

    possibilidade. Ser humano ter muito diante de si (Bloch, 1995: 246).

    A possibilidade o movimento do mundo. Os momentos dessa

    possibilidade so a carncia (manifestao de algo que falta), a tendncia

    (processo e sentido), e a latncia (o que est na frente desse processo). A

    carncia o domnio do No, a tendncia o domnio do Ainda-No e a

    latncia domnio do Nada e do Tudo, dado que esta latncia tanto pode

    redundar em frustrao como em esperana.

    A sociologia das emergncias a investigao das alternativas que

    cabem no horizonte das possibilidades concretas. Enquanto a sociologia das

    ausncias amplia o presente, juntando ao real existente o que dele foi

    subtrado pela razo metonmica, a sociologia das emergncias amplia o

    22

  • presente, juntando ao real amplo as possibilidades e expectativas futuras que

    ele comporta. Neste ltimo caso, a ampliao do presente implica a contraco

    do futuro, na medida em que o Ainda-No, longe de ser um futuro vazio e

    infinito, um futuro concreto, sempre incerto e sempre em perigo. Como diz

    Bloch, junto de cada esperana est um caixo espera (1995: 311). Cuidar

    do futuro imperativo porque impossvel blindar a esperana contra a

    frustrao, o advento contra o niilismo, a redeno contra o desastre, em suma,

    porque impossvel a esperana sem a eventualidade do caixo.

    A sociologia das emergncias consiste em proceder a uma ampliao

    simblica dos saberes, prticas e agentes de modo a identificar neles as

    tendncias de futuro (o Ainda-No) sobre as quais possvel actuar para

    maximizar a probabilidade de esperana em relao probabilidade da

    frustrao. Tal ampliao simblica , no fundo, uma forma de imaginao

    sociolgica que visa um duplo objectivo: por um lado, conhecer melhor as

    condies de possibilidade da esperana; por outro, definir princpios de aco

    que promovam a realizao dessas condies.

    A sociologia das emergncias actua tanto sobre as possibilidades

    (potencialidade) como sobre as capacidades (potncia). O Ainda-No tem

    sentido (enquanto possibilidade), mas no tem direco, j que tanto pode

    terminar em esperana como em desastre. Por isso, a sociologia das

    emergncias substitui a ideia de determinao pela ideia axiolgica do cuidado.

    A axiologia do progresso , assim, substituda pela axiologia do cuidado.

    Enquanto na sociologia das ausncias a axiologia do cuidado exercida em

    relao s alternativas disponveis, na sociologia das emergncias exercida

    em relao s alternativas possveis. Esta dimenso tica faz com que nem a

    sociologia das ausncias nem a sociologia das emergncias sejam sociologias

    convencionais. H, no entanto, uma outra razo para a sua no

    convencionalidade: a sua objectividade est dependente da qualidade da sua

    dimenso subjectiva. O elemento subjectivo da sociologia das ausncias a

    conscincia cosmopolita e o inconformismo ante o desperdcio da experincia.

    O elemento subjectivo da sociologia das emergncias a conscincia

    antecipatria e o inconformismo ante uma carncia cuja satisfao est no

    horizonte de possibilidades. Como diz Bloch, os conceitos fundamentais no

    so acessveis sem uma teoria das emoes (1995: 306). O No, o Nada e o

    23

  • Tudo iluminam emoes bsicas como fome ou carncia, desespero ou

    aniquilao, confiana ou resgate. De uma forma ou de outra, estas emoes

    esto presentes no inconformismo que move tanto a sociologia das ausncias,

    como a sociologia das emergncias.

    Enquanto a sociologia das ausncias se move no campo das experincias

    sociais, a sociologia das emergncias move-se no campo das expectativas

    sociais. A discrepncia entre experincias e expectativas constitutiva da

    modernidade ocidental. Atravs do conceito de progresso, a razo prolptica

    polarizou esta discrepncia de tal modo que fez desaparecer toda a relao

    efectiva entre as experincias e as expectativas: por mais miserveis que

    possam ser as experincias presentes, isso no impede a iluso de

    expectativas radiosas. A sociologia das emergncias mantm esta

    discrepncia, mas pensa-a independentemente da ideia do progresso, vendo-a

    antes como concreta e moderada. Enquanto a razo prolptica ampliou

    enormemente as expectativas e com isso reduziu o campo das experincias e,

    portanto, contraiu o presente, a sociologia das emergncias busca uma relao

    mais equilibrada entre experincia e expectativa, o que, nas actuais

    circunstncias, implica dilatar o presente e encurtar o futuro. No se trata de

    minimizar as expectativas, trata-se antes de radicalizar as expectativas

    assentes em possibilidades e capacidades reais, aqui e agora. Nisto consistem

    as utopias reais cujo estudo Wallerstein (1998) designa por utopstica.

    As expectativas modernas eram grandiosas em abstracto, falsamente

    infinitas e universais. Justificaram, assim, e continuam a justificar, a morte a

    destruio e o desastre em nome de uma redeno vindoura. Contra este

    niilismo, que to vazio como o triunfalismo das foras hegemnicas, a

    sociologia das emergncias prope uma nova semntica das expectativas. As

    expectativas legitimadas pela sociologia das emergncias so contextuais

    porque medidas por possibilidades e capacidades concretas e radicais, e

    porque, no mbito dessas possibilidades e capacidades, reivindicam uma

    realizao forte que as defenda da frustrao. So essas expectativas que

    apontam para os novos caminhos da emancipao social, ou melhor, das

    emancipaes sociais.

    Como veremos adiante, ao dilatarem o presente e contrairem o futuro, a

    sociologia das ausncias e a sociologia das emergncias, cada uma sua

    24

  • maneira, contribuem para desacelerar o presente, dando-lhe um contedo mais

    denso e substantivo do que o instante fugaz entre o passado e o futuro a que a

    razo prolptica o condenou. Em vez de estado final, propem uma vigilncia

    tica constante sobre o desenrolar das possibilidades, servida por emoes

    bsicas como o espanto negativo que suscita a ansiedade e o espanto positivo

    que alimenta a esperana.

    A amplificao simblica operada pela sociologia das emergncias visa

    analisar numa dada prtica, experincia ou forma de saber o que nela existe

    apenas como tendncia ou possibilidade futura. Ela age tanto sobre as

    possibilidades como sobre as capacidades. Identifica sinais, pistas ou traos de

    possibilidades futuros em tudo o que existe. Tambm aqui se trata de investigar

    uma ausncia, mas enquanto na sociologia das ausncias o que activamente

    produzido como no existente est disponvel aqui e agora, ainda que

    silenciado, marginalizado ou desqualificado, na sociologia das emergncias a

    ausncia de uma possibilidade futura ainda por identificar e uma capacidade

    ainda no plenamente formada para a levar a cabo. Para combater a

    negligncia a que tm sido votadas as dimenses da sociedade enquanto

    sinais ou pistas, a sociologia das emergncias d a estas uma ateno

    excessiva. nesse excesso de ateno que reside a amplificao simblica.

    Trata-se de uma investigao prospectiva que opera atravs de dois

    procedimentos: tornar menos parcial o nosso conhecimento das condies do

    possvel; tornar menos parciais as condies do possvel. O primeiro

    procedimento visa conhecer melhor o que nas realidades investigadas faz

    delas pistas ou sinais; o segundo visa fortalecer essas pistas ou sinais. Tal

    como o conhecimento que subjaz sociologia das ausncias, trata-se de um

    conhecimento argumentativo que, em vez de demonstrar, convence, que, em

    vez de se querer racional, se quer razovel. um conhecimento que avana na

    medida em que identifica credivelmente saberes emergentes, ou prticas

    emergentes.

    4. O campo da sociologia das ausncias e da sociologia das emergncias

    Enquanto a sociologia das ausncias expande o domnio das

    experincias sociais j disponveis, a sociologia das emergncias expande o

    25

  • domnio das experincias sociais possveis. As duas sociologias esto

    estreitamente associadas, visto que quanto mais experincias estiverem hoje

    disponveis no mundo mais experincias so possveis no futuro. Quanto mais

    ampla for a realidade credvel, mais vasto o campo dos sinais ou pistas

    credveis e dos futuros possveis e concretos. Quanto maior for a multiplicidade

    e diversidade das experincias disponveis e possveis (conhecimentos e

    agentes), maior ser a expanso do presente e a contraco do futuro. Na

    sociologia das ausncias, essa multiplicao e diversificao ocorre pela via da

    ecologia dos saberes, dos tempos, das diferenas, das escalas e das

    produes, ao passo que a sociologia das emergncias as revela por via da

    amplificao simblica das pistas ou sinais. Os campos sociais mais

    importantes onde a multiplicidade e diversidade mais provavelmente se

    revelaro so os seguintes.

    Experincias de conhecimentos. Trata-se de conflitos e dilogos possveis

    entre diferentes formas de conhecimento. As experincias mais ricas neste

    domnio ocorrem na biodiversidade (entre a biotecnologia e os conhecimentos

    indgenas ou tradicionais), na medicina (entre medicina moderna e medicina

    tradicional), na justia (entre jurisdies indgenas ou autoridades tradicionais e

    jurisdies modernas, nacionais), na agricultura (entre a agricultura industrial e

    a agricultura camponesa ou sustentvel), nos estudos de impacto ambiental e

    tecnolgico (entre o conhecimento tcnico e os conhecimentos leigos, entre

    peritos e cidados comuns).14

    Experincias de desenvolvimento, trabalho e produo. Trata-se de

    dilogos e conflitos possveis entre formas e modos de produo diferentes.

    Nas margens ou nos subterrneos das formas e modos dominantes o modo

    de produo capitalista e o modelo de desenvolvimento como crescimento

    infinito existem, como disponveis ou como possveis, formas e modos de

    economia solidria, alternativa, do desenvolvimento alternativo s alternativas

    ao desenvolvimento: formas de produo eco-feministas ou gandhianas

    (swadeshi); organizaes econmicas populares (cooperativas, mutualidades, 14 A literatura sobre todos estes tpicos imensa. Veja-se, por exemplo, Brush e Stablinsky, 1996; Balick et al., 1996; Shiva, 1997; Visvanathan, 1997. Brush, 1999; Escobar, 1999; Posey, 1999. No projecto A reinveno da emancipao social, acima mencionado, podem ler-se vrios estudos de caso sobre conflitos e dilogos possveis entre saberes em todas estas reas (ver os temas do multiculturalismo e cidadania cultural e biodiversidade, conhecimentos rivais e

    26

  • empresas autogeridas, associaes de micro-crdito);15 formas de

    redistribuio social assentes na cidadania e no na produtividade;16

    experincias de comrcio justo contrapostas ao comrcio livre;17 lutas pelos

    parmetros de trabalho (labor standards);18 o movimento anti-sweatshop19 e o

    novo internacionalismo operrio.20

    Experincias de reconhecimento. Trata-se de dilogos e conflitos

    possveis entre sistemas de classificao social. Nas margens ou nos

    subterrneos dos sistemas dominantes natureza capitalista, racismo, sexismo

    e xenofobia existem como disponveis ou possveis experincias de natureza

    anticapitalista ecologia anticapitalista, multiculturalismo progressista,

    constitucionalismo multicultural, discriminao positiva sob a forma de direitos

    colectivos e cidadania ps-nacional e cultural.21

    Experincias de democracia. Trata-se de dilogos e conflitos possveis

    entre o modelo hegemnico de democracia (democracia representativa liberal)

    e a democracia participativa.22 Exemplos salientes so o oramento

    participativo da cidade de Porto Alegre, hoje tambm em vigor, sob diferentes

    formas, em muitas outras cidades brasileiras e latino-americanas;23 os

    panchayats eleitos em Kerala ou Bengala Ocidental, na ndia, e as formas de

    planeamento participativo e descentralizado a que tm dado azo;24 formas de

    deliberao comunitria nas comunidades indgenas, ou rurais em geral,

    direitos de propriedade intelectual). Estes estudos podem ler-se tambm em Santos 2002c and 2002d. 15 Sobre as organizaes econmicas populares e os sistemas alternativos de produo, vejam-se os estudos de caso includos no projecto de investigao A reinveno da emancipao social. Estes estudos podem ler-se tambm em Santos, 2002b. 16 Sobre o rendimento mnimo garantido, ver, nomeadamente, van Parijis (1992) and Purdy (1994). 17 Cf., nomeadamente, Blowfield, 1999; Renard, 1999; Simpson e Rapone, 2000. 18 Cf. Compa e Diamond, 1996; Trubek et al., 2000. 19 Cf., nomeadamente, Ross, 1997; Schoenberger, 2000; Bonacich e Appelbaum, 2000. 20 Cf. o tema do novo internacionalismo operrio no projecto de investigao A reinveno da emancipao social. Estes estudos podem ler-se tambm em Santos, 2002e. 21 Sobre a poltica de reconhecimento, cf. a nota 7. 22 No projecto A reinveno da emancipao social pode ler-se um conjunto de estudos de caso sobre a democracia participativa. Estes estudos podem ler-se tambm em Santos, 2002a. 23 Cf. Fedozzi, 1997; Santos, 1998; Abers, 1998; Baiocchi, 2001, Baierle, 2001. 24 Cf. Heller, 2000; Desai, 2001.

    27

  • sobretudo na Amrica Latina e na frica;25 a participao cidad nas decises

    sobre impactos cientficos ou tecnolgicos.26

    Experincias de comunicao e de informao. Trata-se de dilogos e

    conflitos possveis, derivados da revoluo das tecnologias de comunicao e

    de informao, entre os fluxos globais de informao e os meios de

    comunicao social globais, por um lado, e, por outro, as redes de

    comunicao independente transnacionais e os media independentes

    alternativos.27

    5. Das ausncias e das emergncias teoria da traduo A multiplicao e diversificao das experincias disponveis e possveis

    levantam dois problemas complexos: o problema da extrema fragmentao ou

    atomizao do real e o problema, derivado do primeiro, da impossibilidade de

    conferir sentido transformao social. Estes problemas foram resolvidos,

    como vimos, pela razo metonmica e pela razo prolptica atravs do conceito

    de totalidade e da concepo de que a histria tem um sentido e uma direco.

    Estas solues, como tambm vimos, conduziram a um excessivo desperdcio

    da experincia e esto, por isso, hoje desacreditadas. O descrdito das

    solues no acarreta consigo descrdito dos problemas e por isso h que dar

    resposta a estes ltimos. certo que, para certas correntes, que designo por

    ps-modernismo celebratrio (Santos, 1998b), so os problemas em si que

    esto desacreditados. Para estas correntes, a fragmentao e a atomizao

    sociais no so um problema, so antes uma soluo, e o prprio conceito de

    sociedade susceptvel de fornecer o cimento capaz de dar coerncia a essa

    fragmentao de pouca utilidade. Por outro lado, segundo as mesmas

    correntes, a transformao social no tem nem sentido nem direco, uma vez

    que ou ocorre caoticamente ou que o que se transforma no a sociedade,

    mas o nosso discurso sobre ela.

    Penso que estas posies esto mais vinculadas razo metonmica e

    razo prolptica do que imaginam, uma vez que partilham com elas a ideia de

    25 Cf. Stavenhagen, 1996; Mamdani, 1996; van Cott, 1996, 2000; Gentili, 1998. 26 See Gonalves, 2000; Fischer, 2000; Jamison, 2001; Callon et al., 2001. 27 Cf. Ryan, 1991; Bagdikian, 1992; Hamelink, 1994; Herman e McChesney, 1997; McChesney

    et al., 1998; McChesney, 1999; Shaw, 2001.

    28

  • que fornecem respostas universais a questes universais. Do ponto de vista da

    razo cosmopolita que aqui proponho, a tarefa diante de ns no tanto a de

    identificar novas totalidades, ou de adoptar outros sentidos para a

    transformao social, como de propor novas formas de pensar essas

    totalidades e de conceber esses sentidos.

    Trata-se de uma tarefa que contm duas tarefas autnomas mas

    intrinsecamente ligadas. A primeira consiste em responder seguinte questo.

    Se o mundo uma totalidade inesgotvel, como pretende Bloch e eu concordo,

    cabem nele muitas totalidades, todas necessariamente parciais, o que significa

    que todas as totalidades podem ser vistas como partes e todas as partes como

    totalidades. Isto significa que os termos de uma qualquer dicotomia tm uma

    vida (pelo menos) para alm da vida dicotmica. Do ponto de vista desta

    concepo do mundo, faz pouco sentido tentar captar este por uma grande

    teoria, uma teoria geral, porque esta pressupe sempre a monocultura de uma

    dada totalidade e a homogeneidade das suas partes. A pergunta , pois, qual

    a alternativa grande teoria?

    A segunda tarefa consiste em responder seguinte questo. Se o sentido

    e muito menos a direco da transformao social no esto pr-definidos, se,

    por outras palavras, no sabemos ao certo se um mundo melhor possvel, o

    que nos legitima e motiva a agir como se soubssemos? E se estamos

    legitimados e motivados, como definir esse mundo melhor e como lutar por

    ele? Por outras palavras, qual o sentido das lutas pela emancipao social?

    Comeo por responder primeira pergunta. Em minha opinio, a

    alternativa teoria geral o trabalho da traduo. A traduo o procedimento

    que permite criar inteligibilidade recproca entre as experincias do mundo,

    tanto as disponveis como as possveis, reveladas pela sociologia das

    ausncias e a sociologia das emergncias. Trata-se de um procedimento que

    no atribui a nenhum conjunto de experincias nem o estatuto de totalidade

    exclusiva nem o estatuto de parte homognea. As experincias do mundo so

    vistas em momentos diferentes do trabalho de traduo como totalidades Ou

    partes e como realidades que se no esgotam nessas totalidades ou partes.

    Por exemplo, ver o subalterno tanto dentro como fora da relao de

    subalternidade.

    29

  • Como afirma Banuri, o que mais negativamente afectou o Sul a partir do

    incio do colonialismo foi ter de concentrar as suas energias na adaptao e

    resistncia s imposies do Norte.28 Com a mesma preocupao,

    Serequeberham (1991: 22) identifica os dois desafios hoje propostos filosofia

    africana. O primeiro, um desafio desconstrutivo, consiste em identificar os

    resduos eurocntricos herdados do colonialismo e presentes nos mais

    diversos sectores da vida colectiva, da educao poltica, do direito s

    culturas. O segundo desafio, um desafio reconstrutivo, consiste em revitalizar

    as possibilidades histrico-culturais da herana africana interrompida pelo

    colonialismo e pelo neocolonialismo. O trabalho de traduo procura captar

    estes dois momentos: a relao hegemnica entre as experincias e o que

    nestas est para alm dessa relao. neste duplo movimento que as

    experincias sociais, reveladas pela sociologia das ausncias e pela sociologia

    das emergncias, se oferecem a relaes de inteligibilidade recproca que no

    redundem na canibalizao de umas por outras.

    O trabalho de traduo incide tanto sobre os saberes como sobre as

    prticas (e os seus agentes). A traduo entre saberes assume a forma de uma

    hermenutica diatpica. Consiste no trabalho de interpretao entre duas ou

    mais culturas com vista a identificar preocupaes isomrficas entre elas e as

    diferentes respostas que fornecem para elas. Tenho vindo a propor um

    exerccio de hermenutica diatpica a propsito da preocupao isomrfica

    com a dignidade humana entre o conceito ocidental de direitos humanos, o

    conceito islmico de umma e o conceito hindu de dharma (Santos 1995: 340).29

    Dois outros exerccios de hermenutica diatpica me parecem importantes. O

    primeiro incide sobre a preocupao com a vida produtiva nas concepes de

    desenvolvimento capitalistas e na concepo do swadeshi proposta por

    28 Banuri argumenta que o desenvolvimento do Sul se processou de modo desfavorvel, no por causa de mau aconselhamento ou de uma inteno malvola dos conselheiros, e tambm no por no ser tida em considerao a sabedoria neo-clssica, mas sim porque o projecto forou continuamente o povo indgena a afastar as suas energias da busca positiva de uma transformao social definida por si prprio para o objectivo negativo de resistir ao domnio cultural, poltico e econmico do Ocidente (sublinhados no original) (Banuri 1990: 66). 29 Sobre o conceito de umma, cf., nomeadamente, Faruki, 1979; An-Naim, 1995, 2000; Hassan,

    1996; sobre o conceito hindu de dharma, cf. Gandhi, 1929/32; Zaehner, 1982.

    30

  • Gandhi.30 As concepes de desenvolvimento capitalista tm sido reproduzidas

    pela cincia econmica convencional e pela razo metonmica e a razo

    prolptica que lhe subjazem. Essas concepes assentam na ideia de

    crescimento infinito obtido atravs da sujeio progressiva das prticas e

    saberes lgica mercantil. Por sua vez, o swadeshi assenta na ideia de

    sustentabilidade e de reciprocidade que Gandhi definiu em 1916 do seguinte

    modo:

    Swadeshi aquele esprito em ns que nos restringe ao uso

    e servio do que nos cerca directamente, com excluso do que

    est mais distante. Assim, no que toca religio, para satisfazer

    os requisitos da definio eu devo limitar-me minha religio

    ancestral. Se lhe encontrar imperfeies, devo servi-la

    expurgando-a dos seus defeitos. No domnio da poltica, eu devo

    fazer uso das instituies indgenas e servi-las resgatando- as

    dos seus defeitos patentes. No da economia, devo usar apenas

    coisas produzidas pelos meus vizinhos directos e servir essas

    indstrias tornando-as mais eficientes e completas naquilo em

    que possam revelar-se em falta. (Gandhi, 1941: 4-5)

    O segundo exerccio de hermenutica diatpica que considero importante

    centra-se na preocupao com a sabedoria e com o possibilitar de vises do

    mundo. Tem lugar entre a filosofia ocidental e o conceito africano de

    sagacidade filosfica. Este uma contribuio inovadora da filosofia africana

    proposta por Odera Oruka (1990, 1998), entre outros.31 Assenta numa reflexo

    crtica sobre o mundo protagonizada pelos que Odera Oruka designa por

    sages, sejam eles poetas, mdicos tradicionais contadores de histrias,

    msicos ou autoridades tradicionais. Segundo Odera Oruka, a filosofia da

    sageza consiste nos pensamentos expressos por homens e mulheres de

    sabedoria numa comunidade determinada e um modo de pensar e de

    explicar o mundo que oscila entre a sabedoria popular (mximas correntes na

    comunidade, aforismos e verdades gerais do senso comum) e a sabedoria

    30 Cf. Gandhi, 1941, 1967. Sobre o swadeshi, cf. tambm, entre outros, Bipinchandra, 1954; Nandy, 1987; Krishna, 1994.

    31 Sobre a filosofia da sageza, cf. tambm Oseghare, 1992; Presbey, 1997.

    31

  • didctica, uma sabedoria explanada e um pensamento racional de

    determinados indivduos dentro de uma comunidade. Enquanto a sabedoria

    popular frequentemente conformista, a sabedoria didctica , por vezes,

    crtica relativamente ao quadro colectivo e sabedoria popular. Os

    pensamentos podem exprimir-se atravs da escrita ou como ditos e

    argumentaes associados a certos indivduos. Na frica tradicional, muito do

    que poderia considerar-se filosofia da sageza no est escrito, por razes que

    devem presentemente ser bvias para todos. Algumas destas pessoas talvez

    tenham sido influenciadas em parte pela inevitvel cultura moral e tecnolgica

    do ocidente, todavia, a sua aparncia exterior e a sua forma cultural de estar

    permanecem basicamente as da frica rural tradicional. Exceptuando um

    punhado deles, a maioria analfabeta ou semi-analfabeta. (Oruka, 1990:

    28).

    A hermenutica diatpica parte da ideia de que todas as culturas so

    incompletas e, portanto, podem ser enriquecidas pelo dilogo e pelo confronto

    com outras culturas. Admitir a relatividade das culturas no implica adoptar

    sem mais o relativismo como atitude filosfica. Implica, sim, conceber o

    universalismo como uma particularidade ocidental cuja supremacia como ideia

    no reside em si mesma, mas antes na supremacia dos interesses que a

    sustentam. A crtica do universalismo decorre da crtica da possibilidade da

    teoria geral. A hermenutica diatpica pressupe, pelo contrrio, o que designo

    por universalismo negativo, a ideia da impossibilidade da completude cultural.

    No perodo de transio que atravessamos, ainda dominado pela razo

    metonmica e pela razo prolptica, a melhor formulao para o universalismo

    negativo talvez seja design-lo como uma teoria geral residual: uma teoria

    geral sobre a impossibilidade de uma teoria geral.

    A ideia e sensao da carncia e da incompletude criam a motivao para

    o trabalho de traduo, a qual, para frutificar, tem de ser o cruzamento de

    motivaes convergentes originadas em diferentes culturas. O socilogo

    indiano Shiv Vishvanathan formulou de uma maneira incisiva a noo de

    carncia e a motivao que eu aqui designo como motivao para o trabalho

    de traduo: o meu problema como ir buscar o melhor que tem a civilizao

    indiana e, ao mesmo tempo, manter viva a minha imaginao moderna e

    democrtica (Vishvanathan, 2000: 12). Se, imaginariamente, um exerccio de

    32

  • hermenutica diatpica fosse conduzido entre Vishvananthan e um cientista

    europeu ou norte-americano possvel imaginar que a motivao para o

    dilogo, por parte deste ltimo, fosse formulada assim: como posso manter

    vivo em mim o melhor da cultura ocidental moderna e democrtica e, ao

    mesmo tempo, reconhecer o valor da diversidade do mundo que ela designou

    autoritariamente como no-civilizado, ignorante, residual, inferior ou

    improdutivo?.

    O trabalho de traduo tanto pode ocorrer entre saberes hegemnicos e

    saberes no-hegemnicos como pode ocorrer entre diferentes saberes no-

    hegemnicos. A importncia deste ltimo trabalho de traduo reside em que

    s atravs da inteligibilidade recproca e consequente possibilidade de

    agregao entre saberes no-hegemnicos possvel construir a contra-

    hegemonia.

    O segundo tipo de trabalho de traduo tem lugar entre prticas sociais e

    seus agentes. evidente que todas as prticas sociais envolvem

    conhecimentos e, nesse sentido, so tambm prticas de saber. Quando incide

    sobre as prticas, contudo, o trabalho de traduo visa criar inteligibilidade

    recproca entre formas de organizao e entre objectivos de aco. Por outras

    palavras, neste caso, o trabalho de traduo incide sobre os saberes enquanto

    saberes aplicados, transformados em prticas e materialidades. O trabalho de

    traduo entre a biomedicina moderna e a medicina tradicional ilustra bem o

    modo como a traduo deve incidir simultaneamente sobre os saberes e sobre

    as prticas em que eles se traduzem. Os dois tipos de trabalho de traduo

    distinguem-se, no fundo, pela perspectiva que os informa. A especificidade do

    trabalho de traduo entre prticas e seus agentes torna-se mais evidente nas

    situaes em que os saberes que informam diferentes prticas so menos

    distintos do que as prticas em si mesmas. , sobretudo, o que acontece

    quando as prticas ocorrem no interior do mesmo universo cultural, como

    quando se tenta traduzir as formas de organizao e os objectivos de aco de

    dois movimentos sociais, por exemplo, o movimento feminista e o movimento

    operrio num pas europeu ou norteamericano.

    A importncia do trabalho de traduo entre prticas decorre de uma

    dupla circunstncia. Por um lado, a sociologia das ausncias e a sociologia das

    emergncias permitem aumentar enormemente o stock disponvel e o stock

    33

  • possvel de experincias sociais. Por outro lado, como no h um princpio

    nico de transformao social, no possvel determinar em abstracto

    articulaes e hierarquias entre as diferentes experincias sociais e as suas

    concepes de transformao social. S atravs da inteligibilidade recproca

    das prticas possvel avali-las e definir possveis alianas entre elas. Tal

    como sucede com o trabalho de traduo de saberes, o trabalho de traduo

    das prticas particularmente importante entre prticas no-hegemnicas,

    uma vez que a inteligibilidade entre elas uma condio da sua articulao

    recproca. Esta , por sua vez, uma condio da converso das prticas no-

    hegemnicas em prticas contra-hegemnicas. O potencial anti-sistmico ou

    contra-hegemnico de qualquer movimento social reside na sua capacidade de

    articulao com outros movimentos, com as suas formas de organizao e os

    seus objectivos. Para que essa articulao seja possvel, necessrio que os

    movimentos sejam reciprocamente inteligveis.

    O trabalho de traduo visa esclarecer o que une e o que separa os

    diferentes movimentos e as diferentes prticas de modo a determinar as

    possibilidades e os limites da articulao ou agregao entre eles. Dado que

    no h uma prtica social ou um sujeito colectivo privilegiado em abstracto

    para conferir sentido e direco histria, o trabalho de traduo decisivo

    para definir, em concreto, em cada momento e contexto histrico, quais as

    constelaes de prticas com maior potencial contra-hegemnico. Para dar um

    exemplo recente, em Maro de 2001, no Mxico, o movimento indgena

    zapatista foi uma prtica contra-hegemnica privilegiada e foi-o tanto mais

    quanto soube realizar trabalho de traduo entre os seus objectivos e prticas

    e os objectivos e prticas de outros movimentos sociais mexicanos, do

    movimento cvico e do movimento operrio autnomo ao movimento feminista.

    Desse trabalho de traduo resultou, por exemplo, que o comandante zapatista

    escolhido para se dirigir ao Congresso mexicano tenha sido a comandante

    Esther. Os zapatistas pretenderam com essa escolha significar a articulao

    entre o movimento indgena e o movimento de libertao das mulheres e, por

    essa via, aprofundar o potencial contra-hegemnico de ambos.

    O trabalho de traduo tornou-se, em tempos recentes, ainda mais

    importante, medida que se foi configurando um novo movimento contra-

    hegemnico, ou anti-sistmico. Este movimento, erradamente designado como

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  • movimento anti-globalizao, tem vindo a propor uma globalizao alternativa

    globalizao neoliberal a partir de redes transnacionais de movimentos locais.

    Tendo chamado a ateno dos media em Novembro de 1999 e