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Ano IV • nº 13 • junho de 2005 Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc 13 O direito étnico à terra A Constituição de 1988 contemplou o direito à diferença e enunciou o reconhecimento dos direi- tos étnicos. Além disso, no artigo 68 do Ato das Dis- posições Constitucionais Transitórias, uma nova mo- dalidade de apropriação formal de terras foi desti- nada a grupos sociais como os quilombolas, com base no direito à propriedade definitiva, e não por meio da tutela, como acontece com os povos indígenas. Esses processos de rupturas e de conquistas, que levaram alguns juristas a falar em um “Estado Pluriétnico”, que confere proteção a diferentes ex- Os Quilombolas análise da política étnica do governo mostra o predomínio de ações focalizadas e pontu- ais. Em relação aos quilombolas, constata- se que o Estado ainda não lhes assegurou um recurso básico, ou seja, a territorialidade que garante a sua reprodução física, social e cultural. É extremamente pequeno o núme- ro de titulações realizadas em terras ocupa- das por comunidades remanescentes de quilombos. No governo Lula, ocorreram até agora apenas duas titulações. Se, de um lado, há a mobilização do movi- mento étnico, há também a forte ação de inte- resses contrários ao reconhecimento das comu- nidades quilombolas, que muitas vezes resul- ta em famílias sendo despejadas de suas terras. Os números do orçamento federal em rela- ção à política étnica refletem o aspecto críti- co da situação. O Programa Brasil Quilombola só utilizou 12,17% dos R$ 15 milhões destinados ao Ministério do Desen- volvimento Agrário para o pagamento de indenizações e para o reconhecimento, de- marcação e titulação das terras das comuni- dades em 2004. É grande a preocupação com o desempenho em 2005. Neste artigo, o Inesc e a Fundação Boll bus- cam politizar a questão e apresentar uma análise que contribua para solucionar pro- blemas que, historicamente, deixam o Esta- do brasileiro em dívida com as comunida- des remanescentes de quilombos. E D I T O R I A L A www.inesc.org.br

Boletim Orcamento Socioambiental 13

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Boletim Orcamento Socioambiental 13

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Ano IV • nº 13 • junho de 2005Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc

13

O direito étnico à terraA Constituição de 1988 contemplou o direito à

diferença e enunciou o reconhecimento dos direi-tos étnicos. Além disso, no artigo 68 do Ato das Dis-posições Constitucionais Transitórias, uma nova mo-dalidade de apropriação formal de terras foi desti-nada a grupos sociais como os quilombolas, com baseno direito à propriedade definitiva, e não por meioda tutela, como acontece com os povos indígenas.

Esses processos de rupturas e de conquistas, quelevaram alguns juristas a falar em um “EstadoPluriétnico”, que confere proteção a diferentes ex-

Os Quilombolas

análise da política étnica do governo mostra

o predomínio de ações focalizadas e pontu-

ais. Em relação aos quilombolas, constata-

se que o Estado ainda não lhes assegurou

um recurso básico, ou seja, a territorialidade

que garante a sua reprodução física, social e

cultural. É extremamente pequeno o núme-

ro de titulações realizadas em terras ocupa-

das por comunidades remanescentes de

quilombos. No governo Lula, ocorreram até

agora apenas duas titulações.

Se, de um lado, há a mobilização do movi-

mento étnico, há também a forte ação de inte-

resses contrários ao reconhecimento das comu-

nidades quilombolas, que muitas vezes resul-

ta em famílias sendo despejadas de suas terras.

Os números do orçamento federal em rela-

ção à política étnica refletem o aspecto críti-

co da situação. O Programa Brasil

Quilombola só utilizou 12,17% dos R$ 15

milhões destinados ao Ministério do Desen-

volvimento Agrário para o pagamento de

indenizações e para o reconhecimento, de-

marcação e titulação das terras das comuni-

dades em 2004. É grande a preocupação

com o desempenho em 2005.

Neste artigo, o Inesc e a Fundação Boll bus-

cam politizar a questão e apresentar uma

análise que contribua para solucionar pro-

blemas que, historicamente, deixam o Esta-

do brasileiro em dívida com as comunida-

des remanescentes de quilombos.

E D I T O R I A L

A

www.inesc.org.br

2 junho de 2005

Desde janeiro de2003, só ocorreram

duas titulações deterras de

comunidadesremanescentes de

quilombos.Entretanto, os

interesses contráriosao reconhecimento e

à titulação dascomunidades

quilombolas tiveramuma atuação ágil,

tanto dentro quantofora da burocracia

governamental

pressões étnicas, não resultaram, entretanto, naadoção pelo Estado de uma política étnica etampouco de ações governamentais sistemáticas.Há enormes dificuldades de implementação dedisposições legais dessa ordem, sobretudo em so-ciedades autoritárias e de fundamentos coloni-ais e escravistas como a brasileira. Têm prevale-cido ações pontuais e relativamente dispersas,focalizando fatores étni-cos, mas sob a égide deoutras políticas governa-mentais, tais como a po-lítica agrária e as políti-cas de educação, saúde,habitação e segurançaalimentar.

Inexistindo uma re-forma do Estado, coadu-nada com as novas dispo-sições constitucionais, asolução burocrática foipensada sempre com opropósito de articulá-lascom as estruturas admi-nistrativas preexistentes,acrescentando à sua capa-cidade operacional atributos pretensamente ét-nicos. Se porventura foram instituídos novos ór-gãos públicos pertinentes à questão, sublinhe-seque a competência de operacionalização ficou in-variavelmente a cargo de aparatos já existentes.

Em 20 de novembro de 2003, Dia Nacional daConsciência Negra, o reconhecimento público do

número inexpressivo de titulações realizadas funci-onou como justificativa para uma ação governamen-tal específica. Nesta mesma data, o presidente Lulaassinou o Decreto nº 4.887, regulamentando oprocedimento para identificação, reconhecimento,delimitação, demarcação e titulação das terras ocu-padas por comunidades remanescentes de qui-lombos. Esse ato do Poder Executivo teria cor-respondido, portanto, à necessidade de uma inter-venção governamental mais acelerada e ágil, condi-zente com a gravidade dos conflitos envolvendo ascomunidades remanescentes de quilombos, o queexigia alguma resposta do governo federal.

Dez meses depois, em junho de 2004, pode-serelativizar a agilidade dessa iniciativa oficial, umavez que se constata que as discussões burocráticasenredam-se nos meandros de uma instruçãonormativa, aprovada em abril, para operacionalizaros procedimentos de ação agrária.

Desde janeiro de 2003, só ocorreram duastitulações de terras de comunidades remanescentesde quilombos. Acrescente-se que, no dia 13 de maioúltimo, completou dois anos o ato do Poder Execu-tivo que instituiu o Grupo de Trabalho Inter-ministerial – GTI - para propor nova regulamenta-ção ao reconhecimento das comunidades remanes-centes de quilombos, cujo resultado maior é o De-creto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.

Nesse mesmo período, entretanto, os interes-ses contrários ao reconhecimento e à titulação dascomunidades quilombolas tiveram uma atuaçãoágil, tanto dentro quanto fora da burocracia go-vernamental.

Orçamento & Política Socioambiental: uma publicação trimestral do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceriacom a Fundação Heinrich Böll. Tiragem: 1,5 mil exemplares. INESC - End: SCS – Qd, 08, Bl B-50 - Sala 435 Ed. Venâncio 2000 –CEP. 70.333-970 – Brasília/DF – Brasil – Tel: (61) 3212 0200 – Fax: (61) 3212 0216 – E-mail: [email protected] – Site:www.inesc.org.br. Conselho Diretor: Caetano Araújo, Eva Faleiros, Fernando Paulino, Gisela de Alencar, Iliana Canoff, NathalieBeghin, Paulo Calmon, Pe. Virgílio Uchoa, Pr. Ervino Schmidt. Colegiado de Gestão: Iara Pietricovsky, José Antônio Moroni.Assessores: Alessandra Cardoso, Edélcio Vigna, Eliana Graça, Francisco Sadeck, Jair Barbosa Júnior, Luciana Costa, MárcioPontual, Ricardo Verdum, Selene Nunes. Assistentes: Álvaro Gerin, Caio Varela, Lucídio Bicalho. Instituições que apóiam o Inesc:Action Aid, CCFD, Christian Aid, EED, Fastenoffer, Fundação Avina, Fundação Ford, Fundação Heinrich Boll, KNH, NorwegianChurch Aid, Novib, Oxfam e Solidaridad. Editora responsável: Luciana Costa (DRT 258/82)

3junho de 2005

Há um certorevigoramento de

uma antiga idéia deEstado-nação, que

olha comdesconfiança osdireitos étnicos,

como seconstituíssem uma

ameaça à sociedadenacional

Transferiu-se aos órgãos fundiários oficiais (Mi-nistério do Desenvolvimento Agrário - MDA,Incra) a responsabilidade maior e quase exclusi-va na montagem das peças técnicas concernentesaos processos de reconhecimento e titulação dascomunidades remanescentes de quilombos. Opragma-tismo burocrático esbarra, no entanto,nas mesmas dificuldades operacionais de cumpri-mento de metas do Pla-no Nacional de ReformaAgrária.

Em segundo lugar, háum certo revigoramentode uma antiga idéia deEstado-nação, que olhacom desconfiança os di-reitos étnicos, como seconstituíssem uma ame-aça à sociedade nacional.A ampliação do projetoCalha Norte e as posi-ções “nacionalistas” face ao aluguel da Base deLançamento de Alcântara e face à homologa-ção da demarcação da Terra Indígena RaposaSerra do Sol1 bem ilustram isso. Tais formula-ções tornaram-se absolutamente transparentesdurante os debates que marcaram o SeminárioInterministerial “Direitos Territoriais Quilom-bolas e Ambiente, o Patrimônio da União e aSegurança Nacional”, realizado pelo Ministériode Desenvolvimento Agrário, em Brasília, no dia13 de abril de 2004, cujos participantes vincu-lavam-se principalmente ao Ministério da De-fesa, ao Gabinete de Segurança Institucional daPresidência da República, à Secretaria Especialde Políticas de Promoção da Igualdade Racial –Seppir - e à Fundação Cultural Palmares.

Para além desses debates, a Secretaria Execu-tiva do Conselho de Defesa Nacional deverá semanifestar formalmente sobre a decisão oficial

de reconhecimento das comunidades quilom-bolas, consoante os artigos 8º e 11 do Decretonº 4.887. De acordo com o art. 8º, deverá “opi-nar” sobre o relatório técnico relativo aos tra-balhos de identificação e de delimitação, pro-duzido pelo Incra; e, pelo art.11, tomará asmedidas cabíveis caso as terras ocupadas pelascomunidades remanescentes de quilombos es-tejam sobrepostas às áreas de segurança nacio-nal. Por essa via, administradores civis e milita-res, com atividades referidas a tal competência,vêm desenvolvendo um “saber prático” sobre ascomunidades remanescentes de quilombos,como se bastassem uma breve visita a uma situ-ação classificada como “remanescente dequilombo” ou um rápido sobrevôo para depronto se conhecê-la. Esse conhecimentoimpressionístico, burocraticamente construído,mais se fundamenta nos ditames positivistas, quehistoricamente diluíram os fatores étnicos na no-ção de “povo”, do que no conhecimento siste-mático, produzido a partir de demoradas inves-tigações científicas. Em razão disso é que cons-tituem um sério obstáculo à efetivação dos dis-positivos legais que preconizam o reconhecimen-to das comunidades quilombolas.

Pode-se registrar, também, a ação de interes-ses contrários ao reconhecimento das comuni-dades quilombolas em conflito na esfera jurídi-ca ou em casos de contestação das titulações jáefetuadas, com famílias de remanescentes dequilombos sendo despejadas de suas terras, porforça do deferimento de pedidos de liminaresem ações de reintegração de posse movidas porsupostos proprietários.

No plano jurídico-formal são muitas as dis-putas que todavia permanecem. De um lado, osefeitos do Decreto nº 3.912, de 10 de setem-bro de 2001, fragilizaram bastante as reivindi-cações do movimento quilombola, levando a

1 Para um aprofundamento, consultar Pacheco de Oliveira, João - “Roraima: os índios ameaçam a segurança nacional?” O Globo. Prosa e Verso. Rio de Janeiro, 6de março de 2004.

4 junho de 2005

Num sentido inversoao dessa pressão porparte dos interesses

conservadoressimbolizados peloPFL, dispositivos

infraconstitucionaisforam reforçados,

atendendo areivindicações dos

movimentos sociais

Fundação Cultural Palmares a registros de ter-ras de comunidades remanescentes de quilombosque foram prontamente contestados2. De outrolado, tem-se uma Ação Direta de Inconstitu-cionalidade referida ao Decreto nº 4.887, de20 de novembro de 2003, perpetrada pelo Par-tido da Frente Liberal (PFL). O PFL tenta im-pugnar o uso da desapropriação na efetivaçãodo art.68, bem como seopõe ao critério de iden-tificação dos remanes-centes de quilombos pelaauto-atribuição, com oobjetivo de restringir aomáximo o alcance dodispositivo. A Advocacia-Geral da União, atravésde seu titular, ministroÁlvaro Augusto RibeiroCosta, manifestou-se con-trariamente à Adin, em12 de agosto de 2004, classificando a impug-nação de genérica e sem o cotejo analítico entreas normas constitucionais e as atacadas, o queinviabilizaria a ação.

Num sentido inverso ao dessa pressão por par-te dos interesses conservadores simbolizados peloPFL, dispositivos infraconstitucionais foram refor-çados, atendendo a reivindicações dos movimen-tos sociais. Assim, consolidando os direitos étnicose evidenciando a ampliação do significado de “ter-ras tradicionalmente ocupadas”, o Brasil ratificou,em junho de 2002, através do Decreto Legislativonº 143, assinado pelo presidente do Senado Fe-deral, a Convenção 169 da Organização Interna-cional do Trabalho, de junho de 1989. Esta Con-venção reconhece como critério fundamental oselementos de auto-identificação étnica. Nos ter-mos do art. 2º, tem-se: “A consciência de sua iden-tidade indígena ou tribal deverá ser tida como cri-

tério fundamental para determinar os grupos aosquais se aplicam as disposições desta Convenção.”

Para além disso, o art. 14 assevera o seguinteem termos de domínio: “Dever-se-á reconhecer aospovos interessados os direitos de propriedade e deposse sobre as terras que tradicionalmente ocupam.”

Sublinhando o direito de retorno às terras deque foram expulsos, o art.16 aduz que: “sempreque for possível, esses povos deverão ter o direitode voltar a suas terras tradicionais assim que dei-xarem de existir as causas que motivaram seutranslado e reassentamento.”

Esse direito de retorno se estende sobre umsem-número de situações de comunidadesquilombolas no Maranhão, Mato Grosso, Bahia,Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais,que foram compulsoriamente deslocadas de suasterras por projetos agropecuários; projetos deplantio de florestas homogêneas (pinus, euca-lipto); projetos de mineração; projetos de cons-trução de hidrelétricas e de bases militares, eagora descrevem uma trajetória de recuperaçãode terras que foram usurpadas e tidas como per-didas.

De modo concomitante, têm-se tornado com-plexas as modalidades de classificação dos terri-tórios quilombolas, exigindo novos tipos decadastramento e uma redefinição estrito sensoda noção de imóvel rural. Bem ilustra isso a Por-taria nº 06, de 1º de março de 2004, da Fun-dação Cultural Palmares - FCP, que instituiu oCadastro Geral de Remanescentes das Comu-nidades de Quilombos da FCP, nomeando-as de“terras de preto”, “mocambos”, “comunidadesnegras” e “quilombos”. A diversidade de nome-ações chama a atenção para as particularidadesdos processos de territorialização, que estão setornando cada vez mais evidentes com o forta-lecimento do movimento quilombola. Oslocativos em torno do termo “preto” parecem

2 Ver Brito Pereira, Deborah M. D. “Breves considerações sobre o Decreto nº 3.912/01”, in O ’Dwyer, E.C.- Quilombos-identidade étnica e territorialidade. Riode Janeiro, ABA/FGV. 2002. p.281-289

5junho de 2005

Caso seja mantido oatual ritmo, ou seja, 73

áreas tituladas em 16anos, serão

necessários mais dequatro séculos para se

completar oreconhecimento das

2.228 áreas levantadaspelo Centro de

Cartografia Aplicada eInformação Geográfica

da Universidade deBrasília

5

ganhar uma importância afirmativa, num mo-mento em que o próprio termo denota umamaior força de expressão étnica, refletida in-clusive nos resultados do censo demográfico3.

A própria necessidade de um cadastro à parte,ao mesmo tempo que reconhece uma pluralidadede categorias de uso na vida social, que demandamreconhecimento formal, revela uma insuficiênciacadastral do Incra, bemcomo das duas categoriascensitárias oficialmentedisponíveis, quais sejam:“imóvel rural” , acionadapelo Incra, e “estabeleci-mento”, utilizada noscensos agropecuários daFIBGE. Aliás, desde1985 há uma tensão den-tro dos órgãos fundiáriospara o reconhecimentode situações de uso cole-tivo da terra, ditadas res-pectivamente por fatoresétnicos, por tradição ecostumes, por práticas de autonomia produtiva epor mobilizações políticas para afirmação de direi-tos básicos.

Pode-se constatar, a partir dessas iniciativas e da-quelas que lhes opõem, que a aplicação do art. 68do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias- ADCT, que está para completar 17 anos, ocorrede maneira intermitente. Os dispositivos de reco-nhecimento vêm sendo aplicados lenta e gradual-mente, mas com sucessivas interrupções temporári-as ou longos intervalos caracterizados por total ces-sação da aplicação, que evidenciam a inexistênciade qualquer ação sistemática. Tem-se, pois, uma açãodescontínua, eivada de polêmicas e de atos dúbios,factíveis de contestação, e que determina o ritmoda titulação. Aliás, caso seja mantido o atual ritmo,

ou seja, 73 áreas tituladas em 16 anos, serão neces-sários mais de quatro séculos para se completar oreconhecimento das 2.228 áreas levantadas peloCentro de Cartografia Aplicada e Informação Ge-ográfica da Universidade de Brasília (2005).

O desempenho orçamentário do governo federalem 2004 e 2005 é bastante sintomático desse qua-dro. No Programa Brasil Quilombola, dos R$ 15milhões destinados ao Ministério do Desenvolvimen-to Agrário - MDA para o pagamento de indeniza-ções e para o reconhecimento, demarcação e titulaçãodas terras das comunidades em 2004, apenas 12,17%foram efetivamente utilizados. Em 2005, a se man-ter o desempenho verificado na tabela nº 1 (p. 12),o quadro é ainda mais preocupante.

Os quilombos e o mercado de terrasOs obstáculos e entraves à titulação das ter-

ras das comunidades remanescentes de quilom-bos não podem ser reduzidos tão somente a “de-feitos” na engrenagem da máquina administra-tiva estatal. Há várias configurações nesse jogode poder que transcendem a questões deoperacionalidade e a rubricas orçamentárias.Uma delas concerne às relações de poder histo-ricamente apoiadas no monopólio da terra e natutela de indígenas, ex-escravos e posseiros. Comfundamento nelas, interesses latifundiários e ou-tros grupos responsáveis pela concentração deterras rejeitam o reconhecimento de direitos ét-nicos por meio da “propriedade definitiva” dasterras das comunidades quilombolas.

Os argumentos que compõem suas alegaçõesnão são de ordem demográfica, como no tratamen-to que dão às terras indígenas; isso é, não fazemuso da máxima: “muita terra para poucos pretos”.Não são também de ordens geográfica e agronô-mica, como no tratamento que dão às entidadesambientalistas: “estão querendo tomar as terrasférteis (a Amazônia) e ricas em minerais”, mas se

3 O IBGE utiliza comumente o termo “preto” como categoria censitária. Em conformidade com o Censo Demográfico de 2000, os que se declararam “pretos”aumentaram 4,2%, enquanto os designados “pardos”, 0,5%.

6 junho de 2005

A “propriedadedefinitiva”

idealmente tornariatodos “iguais” nas

relações demercado, com os

quilombolas,emancipados de

qualquer tutela, seexpressando através

de uma viacomunitária deacesso à terra

atêm ao princípio da propriedade e à sua história.Advogam uma dicotomia absoluta entre fazendae quilombo, porquanto consideram que este este-ve sempre localizado em lugares remotos e de mata,distante da “civilização” e, portanto, do mundoregido pelas grandes plantações4.

Nas peças técnicas dos processos judiciais, os ad-vogados desses interesses e os peritos por eles fi-nanciados se esmeram eminsistir que os quilombos,além de estarem fora doslimites das fazendas, sãoem número extremamen-te reduzido e se localizari-am tão somente no quehoje constituem os sítioshistóricos. A própria AçãoDireta de Inconstitucio-nalidade movida peloPFL, buscando impugnaro Decreto nº 4.887/03,reproduz de maneira im-plícita semelhante argu-mentação.

Em contraposição a essas formulações, os movi-mentos quilombolas e os levantamentos oficiais in-dicam que o número de comunidades remanes-centes de quilombos permanece ainda relativa-mente desconhecido, mas sempre crescente eabrangendo novas modalidades. Em conformida-de com as estimativas disponíveis, verifica-se umatendência ascensional a cada nova iniciativa decadastramento. O próprio folder do MDA sobre oPrograma de Ação Afirmativa, intitulado “Quilom-bolas”, reitera que os dados oficiais apontam 743áreas de comunidades remanescentes de quilom-bos, com 30 milhões de hectares, e complementaa possível subestimação do seguinte modo: “No en-tanto, estimativas não-oficiais admitem a existên-cia de mais de 2 mil comunidades.”

Ainda que se possa dizer que o procedimentode “cadastrar” envolve todo um conjunto de no-ções que exige análise, cabe frisar que as estimati-vas mencionadas no documento oficial que lançao programa Quilombolas ultrapassam em quasetrês vezes o total usualmente apresentado pelaFundação Cultural Palmares, ou seja, fala-se empelo menos 5% do total de 850 milhões de hec-tares do território brasileiro. Pode-se imaginar osefeitos desse volume de terras de quilombo sobreo estoque geral de terras disponíveis às transaçõesde compra e venda. Isso num momento em quese busca uma reestruturação formal do mercadode terra, e quando o MDA admite que há 200milhões de hectares sobre os quais o cadastro doIncra não possui qualquer informação.

A expressão econômica desses mais de 30 mi-lhões de hectares não pode ser menosprezada,sobretudo se observarmos sua incidência nas re-giões de colonização mais antiga, onde as terrassão mais valorizadas do que naquelas de ocupa-ção recente. Em algumas unidades da federa-ção, como Maranhão e Bahia, a titulação das ter-ras das comunidades quilombolas pode se cons-tituir num destacado instrumento de descon-centração da propriedade fundiária, contrapon-do-se frontalmente à dominação oligárquica.Não é por outra razão que os antagonismos so-ciais têm se acirrado nessas regiões, com comu-nidades quilombolas praticamente cercadas ecom suas vias de acesso interditadas por interes-ses latifundiários. A “propriedade definitiva”idealmente tornaria todos “iguais” nas relaçõesde mercado, com os quilombolas, emancipadosde qualquer tutela, se expressando através deuma via comunitária de acesso à terra.

O fato da propriedade não ser necessariamenteindividualizada e aparecer sempre condicionada aocontrole de associações comunitárias torna-a, entre-tanto, um obstáculo às tentativas de transações co-

4 Para um aprofundamento dessa interpretação, consultar Almeida, Alfredo W.B. “Os quilombos e as novas etnias”, in O’Dwyer, E.C. Quilombos – identidadeétnica e territorialidade. Rio de Janeiro, ABA/FGV.2002. p. 43-81.

7junho de 2005

Mantidas comoeternas posseiras oucom terras tituladas

sem formal departilha, as

comunidadesquilombolas sempresão mais factíveis de

serem usurpadas.Negar o fator étnico,além de despolitizara questão, facilitaria,

pois, os atosilegítimos de

usurpação

merciais e praticamente as imobiliza enquanto mer-cadoria. As terras das comunidades quilombolas cum-prem sua função social essencial quando o grupo ét-nico, manifesto pelo poder da organização comuni-tária, gerencia os recursos no sentido de sua repro-dução física e cultural, recusando-se a dispô-los àstransações comerciais. Representada como forma ide-ológica de imobilização que favorece a família, a co-munidade ou uma etniadeterminada em detrimen-to de sua significação mer-cantil, tal forma de propri-edade impede que imensosdomínios venham a sertransacionados no merca-do de terras. Contraria,portanto, as agências imo-biliárias de comerciali-zação, vinculadas a bancose entidades financeiras, domesmo modo que contra-ria os interesses latifundiá-rios, os especuladores, os“grileiros” e os que detêm omonopólio dos recursos na-turais.

Mediante obstáculos dessa ordem, a titulaçãose mostra mais que essencial, posto que, histori-camente, as famílias dessas comunidades têm sidomantidas como posseiras. E é dessa forma queaqueles interesses contrários ao reconhecimentodas comunidades remanescentes de quilombosparecem pretender mantê-las. Mantidas comoeternas posseiras ou com terras tituladas sem for-mal de partilha, como no caso das chamadas “ter-ras de preto” que foram doadas a famílias de ex-escravos ou que foram adquiridas por elas, sem-pre são mais factíveis de serem usurpadas. Negaro fator étnico, além de despolitizar a questão, fa-cilitaria, pois, os atos ilegítimos de usurpação.

Algumas indagações decorrentes: Por que a ex-cessiva burocratização do processo de reconheci-mento das comunidades remanescentes dequilombos?5 Por que o governo não tem aventa-do a possibilidade de uma política étnica com ins-trumentos, quadros técnicos e instituições volta-dos para esta finalidade?

Os riscos da estratégia governamentalA questão quilombola atualmente aparece em

destaque como objeto da ação do Poder Executi-vo. Os debates no Legislativo arrefeceram ou qua-se cessaram no decorrer de 2003 e 2004 e prati-camente não se registra mais uma ação parlamen-tar continuada. A capacidade de intervir na ques-tão concentra-se nos centros de poder quegravitam em torno da Presidência da República.

A unidade do discurso e dos procedimentosburocrático-administrativos, além de ser deslo-cada pela força dos obstáculos antepostos àtitulação das terras das comunidades quilom-bolas, tem sido recortada ou fragmentada emações descontínuas e algo dispersas, criando di-ficuldades para o propósito de rede e de articu-lação. Além do número de titulações serinexpressivo nesses 15 anos, conforme já foi dito,há dois anos o Estado não procede a qualquertitulação. A titulação, finalidade fundamental,tem sido gradativamente relativizada.

Numa tentativa de descrever a estratégia ofi-cial, pode-se dizer o seguinte:

1- O eixo da ação governamental, de um lado,em termos de retórica e de elaboração de novosmecanismos jurídicos, tem deslocado a dimensãoétnica para os instrumentos de ação agrária, dei-xando aos órgãos fundiários oficiais as atividadesfundamentais de reconhecimento das terras dascomunidades quilombolas. Discursivamente, in-

5 O texto do Decreto nº 4.887/03 sublinha a “autodefinição” (art. 2º), mas a Fundação Cultural Palmares tem retardado em demasia a emissão de certidões, mesmoquando as comunidades, se reconhecendo como quilombolas, tenham enviado há meses a solicitação , como no caso daquelas de Alcântara.

8 junho de 2005

Os poucos recursosorçamentários para

executar as açõesdesapropriatóriasrequeridas pelas

titulações, querepresentam a

garantia efetiva daterra e a

consolidação jurídicados territórios, ou

são contingenciadosou não são utilizados

para o objetivo-fimadequadamente

duz a pensar que os órgãos fundiários reuniriamcondições para executar com presteza uma políti-ca étnica, “fazendo o que a Fundação CulturalPalmares anteriormente não teria feito ou não con-seguiu fazer”. Entretanto, conforme já foi discuti-do, as titulações não têm ocorrido e há obstáculospolíticos de difícil transposição. Além disso, ospoucos recursos orçamentários para executar asações desapropriatórias requeridas pelas titulações,que representam a garan-tia efetiva da terra e a con-solidação jurídica dos ter-ritórios, ou sãocontingenciados ou nãosão utilizados para o obje-tivo-fim adequadamente.

Tratar os direitos co-letivos tão somente comodireito agrário poderáacarretar novos proble-mas na esfera jurídica,forçando as comunida-des quilombolas a seremvistas como de “trabalha-dores rurais” e “possei-ros”, isso é, reeditando as categorias classifi-catórias externas e as condições como eram for-malmente nomeadas antes do advento da iden-tidade quilombola e dos direitos que lhescorrespondem, com o risco de renovar e gerarconflitos étnicos.

2- De outro lado, em termos operacionais oude ações efetivas, o eixo da ação governamentaltem se deslocado, concentrando-se principal-mente na prestação de serviços básicos às co-munidades quilombolas.

Sob esse prisma, a estratégia governamentalapresenta certa operacionalidade e pode ser des-crita segundo três planos de ação, que seentrecruzam:

• O primeiro organiza os instrumentos de in-tervenção, produzindo-os, notadamenteatravés de Grupos de Trabalho Interminis-teriais, articulando-os e dotando-os dalegitimação jurídica elementar (decretos,instrução normativa e demais medidas ad-ministrativas). Um dos exemplos seria oGrupo de Trabalho Interministerial de Po-líticas para os Quilombos, que possui vári-os sub-grupos, sendo um deles o sub-gru-po do desenvolvimento que produziu uma“Proposta de Etnodesenvolvimento para asComunidades Quilombolas”, centrada emnecessidades consideradas básicas. Essaspráticas administrativas de criação de GTsproduzem uma nova divisão do trabalhoburocrático-administrativo. Assim, para al-gumas Secretarias e Fundações, agir signi-fica solicitar a outras instituições que pas-sem a agir ou que procedam à intervenção.Um dos exemplos seria o Conselho Nacio-nal de Combate à Discriminação, da Se-cretaria Especial dos Direitos Humanos daPresidência da República, que acolhe de-núncias e, de acordo com suas própriasResoluções, “exorta” outras secretarias e mi-nistérios a tomarem medidas “urgentes eimediatas”6. Há órgãos, portanto, que têmcomo função animar os demais a tomaremas providências cabíveis.

• Um outro plano, fundamentado no chamado“planejamento participativo”, busca assegurara participação de representantes quilombolasem instâncias consultivas. No Ministério doDesenvolvimento Agrário - MDA, por exem-plo, foram incluídos representantes dosquilombolas nos fóruns de consulta do PlanoPlurianual 2004-2007 e no Conselho de De-senvolvimento Rural Sustentável, além de seisintegrantes da Comissão Nacional de Articu-lação das Comunidades Negras Rurais

6 Conferir Resoluções do CNCD/SEDH/PR nº 01 e nº 03, de 25 de junho de 2003

9junho de 2005

A ênfase da açãogovernamental nos

serviços básicos,mediante a dificuldadede garantir os direitosétnicos à terra, podeestar se constituindo

numa medidacompensatória,

traduzida pelaconsigna de “fazer o

que é possível”?

Quilombolas – CONAQ - terem participa-do de reuniões em Brasília junto a membrosdo GTI e do Programa de Ações Afirmativasdo MDA.

• O terceiro plano organizativo busca imple-mentar ações de “política social” para as co-munidades remanescentes de quilombos, con-firmando que operacionalmente o eixo daação sofre um des-locamento da ques-tão da terra para ade prover serviçosbásicos às comuni-dades quilombolas.

Assim, no que se re-fere à política de segu-rança alimentar, tem-sea informação de distri-buição de cestas de ali-mentos pelo ProjetoFome Zero, que alcan-çou em 2004 pelo menos 86 comunidades em55 municípios de 18 unidades da federação. Onúmero de famílias atendidas por essa ação é su-perior a 13 mil.

No que se refere a garantir às comunidadesquilombolas energia elétrica, sistema de sanea-mento básico e ambiental (água tratada, redesde esgoto, coleta de lixo) e habitação adequada(substituindo as moradias de barro e pau-a-pi-que por casas de alvenaria com banheiros e sis-temas hidráulicos), tem-se o “acordo de coope-ração técnica entre a Fundação Nacional de Saú-de – Funasa - e a Fundação Cultural Palmares”,bem como a implementação do Projeto deEstruturação do Sistema Nacional de Vigilân-cia e Saúde - Vigisus II, com recursos do BancoMundial.

Em relação às escolas profissionalizantes emcomunidades quilombolas, tem-se a parceriaentre a Funasa, do Ministério da Saúde, e o Pro-grama de Expansão da Educação Profissional -

Proep, do Ministério da Educação, que é res-ponsável pela construção de escolas, disponi-bilização de materiais didáticos e capacitação deprofessores.

Quanto à linha de crédito para a piscicultu-ra, registra-se a atuação do Programa Nacionalde Apoio à Agricultura Familiar – Pronaf - jun-to a 20 comunidades quilombolas que há dezanos cultivam peixes no Quilombo de Itacoã,no município de Acará, no Pará.

Depreende-se, desses planos organizativos,um certo descompasso entre a principal finali-dade do art.68, que permanece postergada, e oritmo de cumprimento da obrigação do Estadode assegurar os direitos básicos a toda a popula-ção. Eis algumas indagações: a ênfase da açãogovernamental nos serviços básicos, mediante adificuldade de garantir os direitos étnicos à ter-ra, pode estar se constituindo numa medidacompensatória, traduzida pela consigna de “fa-zer o que é possível”? Quais as implicações de se“deixar para depois” a titulação definitiva dasterras das comunidades quilombolas?

Sob o ponto de vista da ênfase nas políticassociais, as comunidades quilombolas estariam setornando “beneficiárias” de programas, proje-tos e planos governamentais e passando a serclassificadas como “público alvo” (conforme ofolder “Quilombolas”, do MDA), englobadas porclassificações mais abrangentes, que designam osrespectivos programas e projetos, quais sejam:“pobres”, “população carente”, “excluídos”, “po-pulação de baixa renda”, “população vulnerá-vel” e “desassistidos”.

Nesse quadro, os quilombolas correm o riscode serem submetidos aos mecanismos gerais des-sas políticas que privilegiam a iniciativa indivi-dual em detrimento do grupo ou da etnia. Essaestratégia poderia ser aproximada daquela doPrograma das Nações Unidas para o Desenvol-vimento – PNUD, para quem a pobreza mundi-al deve ser combatida com o multiculturalismo,expresso por políticas afirmativas.

10 junho de 2005

Pode-se destacar queos quilombolas, pelo

critério político-organizativo, têmassegurado uma

distinção em termosétnicos e suas

demandastranscendem às

necessidades físicas

Quilombola torna-se, assim, um atributo quefunciona como agravante da condição de “pobre”.Ser “pobre” numa sociedade autoritária e de fun-damentos escravistas como a brasileira implica emser privado do controle sobre sua representação esua identidade coletiva. Ser considerado “pobre”é ser destituído de identidade coletiva. Além dis-so, na figura do “pobre necessitado”, definido comonecessitando mais urgen-temente de serviços bási-cos, o quilombola fica in-serido no problema geralda saúde das “populaçõestrabalhadoras” e, sutil-mente, são deslocados oscritérios étnicos e de iden-tidade que alicerçam as so-lidariedades e que estru-turam sua ação coletivaobjetivada em movimen-to social. Isso ocorre mesmo quando se observa queas associações de quilombolas e os próprios movi-mentos também estão envolvidos na distribuiçãode cestas básicas, o que aparentemente poderia es-tar fortalecendo-os.

A função da mediação de lideranças, que sefirmaram nas lutas pelos territórios étnicos, esta-ria passando por uma transformação, na qual oEstado passa a ser objeto de demandas pontuaispara o atendimento de necessidades. Comoatendê-las sem proceder a uma hierarquização dascomunidades quilombolas com critérios explíci-tos, que assinalem quais delas encontram-se emsituação mais crítica e conflitiva? Como definir aprioridade da ação governamental, que atualmen-te aparece concentrada no atendimento de umaspoucas comunidades? Tais indagações são perti-nentes à efetivação de políticas governamentais.

Na interpretação da antropóloga I lkaBoaventura, os quilombolas constituem umanova “clientela” de políticas sociais e assim pas-sam a ser vistos e classificados pelos quadros daburocracia.

Analisando a trajetória dos quilombolas nas duasúltimas décadas, pode-se ressaltar, entretanto, quenão há correlação direta entre crise econômica, en-tendida como “empobrecimento de populaçõestrabalhadoras”, e o advento da identidade coleti-va e da consciência étnica. Não podem ser aplica-das mecanicamente aos quilombolas as interpre-tações correntes, que asseveram a tendência doagravamento da pobreza em países com Índice deDesenvolvimento Humano – IDH - já reduzido eo aumento da vulnerabilidade dos grupos sociaisdiscriminados, ou mesmo que afirmam que as po-líticas de inspiração neoliberal enfraqueceram asentidades representativas de trabalhadores, sindi-catos e associações.

A situação concreta exige uma leitura maiscuidadosa ao se tentar encaixar tais agentes so-ciais nas resultantes das políticas neoliberais,implementadas desde 1989-90, quais sejam:“mais pobres, mais desorganizados, mais vulne-ráveis e em descenso político”. Ao contrário, temsido nos últimos 16 anos que os quilombolas têmobjetivado sua ação em movimento social, con-solidando o advento de sua própria identidadecomo sujeito de direito. Em verdade, tornaram-se menos vulneráveis, mais organizados e encon-tram-se em assenso político ou num processo defortalecimento de sua existência coletiva, commobilizações apoiadas em laços de coesão e soli-dariedade. A trajetória dos movimentos sociaismostra-se bem distinta daquela dos sindicatos.

Pode-se destacar que os quilombolas, pelo cri-tério político-organizativo, têm assegurado umadistinção em termos étnicos e suas demandastranscendem às necessidades físicas. Em inúme-ras situações controlam efetivamente o acesso aosrecursos naturais imprescindíveis, preservando-os e mantendo uma sustentabilidade constante,além de deterem um patrimônio intangível,como por exemplo o conhecimento de espéciesvegetais com propriedades medicinais e doecossistema de referência. Os próprios confli-tos, de certo modo, evidenciam isso. Os antago-

11junho de 2005

Como se não bastassea morosidade do

Estado brasileiro noreconhecimento e na

proteção das terrasindígenas, foi divulgado

que existem cerca de55 casos de unidadesde conservação que

incidem sobre terrasocupadas ou

reivindicadas porcomunidades e povos

indígenas

nistas tentam usurpar suas terras porque são asmais preservadas, guardando uma semelhançacom terras indígenas.

Os quilombolas não podem ser reduzidos me-canicamente à categoria “pobres” e tratados comos automatismos de linguagem que os classifi-cam como “carentes”, de “baixa renda” ou na“linha de indigência”7. Insistir nisso significauma despolitização ab-soluta. Afinal, as comu-nidades remanescentesde quilombos não são o“reinado da necessida-de” nem tampouco umconjunto de “miserá-veis”, já que os quilom-bolas se constituíramenquanto sujeitos, do-minando essa necessi-dade e instituindo um“reinado de autonomiae liberdade.” Tal relati-vização nos leva a umaleitura mais crítica dotermo “necessidade” e certamente menoseconomicista. Está em jogo um dado de consci-ência dos agentes sociais, que concorre para oadvento da identidade coletiva quilombola. Nes-se sentido, há uma falsa polêmica em pauta quedeve ser submetida a uma análise crítica, capazde evidenciar um consenso, mesmo na divergên-cia. Se para uns “não adianta titular sem propi-ciar condições de desenvolvimento”, para outros“não adiantam obras de infra-estrutura sem atitulação definitiva”. Em comum, está o fato deque as medidas assistenciais e humanitárias sóalcançarão sua plenitude se forem efetivados osdireitos étnicos à terra.

Para além desses jogos de poder, cabe reite-rar que, como a territorialidade não lhes é asse-

gurada de maneira definitiva, os elementosidentitários e os fatores étnicos correm o riscode se diluírem nas chamadas “políticas de de-senvolvimento local sustentável”, tal como for-muladas pelas agências multilaterais8. Com isso,desloca-se a questão do art.68 das origens e finsda política étnica para suas bordas, ficando ascomunidades remanescentes de quilombosimprensadas entre duas ordens de iniciativas:planos “desenvolvimentistas” e medidas de po-lítica social.

A despolitização do fator étnico concorrepara diluir a identidade coletiva e para eliminaro que é considerado como significante pelas pró-prias comunidades quilombolas. São menospre-zadas suas condições reais de existência e seu sis-tema de representação dos recursos naturais eda vida social. O único contraponto a essahomogeneização seriam as mobilizações étnicas,que continuam afirmando um critério político-organizativo próprio e distintivo, com deman-das específicas que apontam para a impres-cindibilidade dos fins e para o imperativo de sesair das bordas e ir ao âmago do problema, comoa lembrar permanentemente que o Estado nãolhes tem assegurado o recurso básico essencial,isso é, a territorialidade que garante a sua re-produção física e cultural.

Alfredo Wagner Berno de AlmeidaAntropólogo

7 As agências multilaterais utilizam internacionalmente o padrão de um dólar por dia para a classificação de “indigência” e de dois dólares/ dia para a classificaçãode “pobreza”. Com a adoção dessas “linhas”, enfatizando a renda, são realizadas as comparações devidas e avaliada a intensidade da intervenção.

8 Ver Almeida, Alfredo W.B. “Distinguir e mobilizar: duplo desafio face às políticas governamentais”. Revista Tipiti. São Luís, julho de 2002. p.6-7.

12 junho de 2005

GESTÃO DA POLÍTICA DE PROMOÇÃO IGUALDADE RACIAL 14.845.486 12.457.380 83,91% 12.222.664 1.744.293 14,27%

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA - SEPPIR 13.693.486 11.305.380 82,56% 12.222.664 1.744.293 14,27%

Apoio a Iniciativas para a Promoção da Igualdade Racial 2.050.000 1.350.000 65,85% 2.900.000 0 0,00%

Gestão e Administração do Programa 7.164.886 6.376.780 89,00% 5.842.664 1.744.293 29,85%

Publicidade de Utilidade Pública 1.174.600 574.600 48,92% 1.174.600 0 0,00%

Capacitação de Agentes Públicos em Temas Transversais - 0 175.400 0 0,00%

Fomento à Edição, Publicação e Distribuição

de Material Bibliográfico e audiovisual sobre Igualdade Racial - 0 800.000 0 0,00%

Fomento à Qualificação de Afro-Descendentes em Gestão Pública 1.000.000 700.000 70,00% 1.000.000 0 0,00%

Apoio a Cons. e Org. Gov. de Promoção da Igualdade Racial - 0 330.000 0 0,00%

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL 1.152.000 1.152.000100,00% - 0 0,00%

Atendimento às Comunidades Quilombolas 1.152.000 1.152.000 100,00% - 0 0,00%

CULTURA AFRO-BRASILEIRA 16.426.549 7.520.892 45,78% 15.739.757 1.452.496 9,23%

MINISTÉRIO DA CULTURA 16.426.549 7.520.892 45,78% 15.739.757 1.452.496 9,23%

Gestão e Administração do Programa 3.387.730 3.169.729 93,56% 3.485.938 884.208 25,36%

Promoção e Intercâmbio de Eventos Culturais Afro-Brasileiros 305.000 249.699 81,87% 450.000 205.787 45,73%

Construção Centro Nac. Informação de Referência da Cultura Negra 20.000 0 0,00% 200.000 0 0,00%

Implantação da Rede de Comunicação 966.278 965.210 99,89% 866.278 4.697 0,54%

Implantação de Unidades do Centro Nacional de Cidadania Negra 8.000.000 0 0,00% 5.940.000 0 0,00%

Capacitação Recursos Humanos em Cultura e Patrimônio Afro-Brasileiro 150.000 149.615 99,74% 550.000 1.289 0,23%

Etnodesenvolvimento das Comunidades Remanescentes de Quilombos 1.013.428 885.985 87,42% 763.428 68.968 9,03%

Fomento a Projetos da Cultura Afro-Brasileira 1.070.685 888.991 83,03% 2.070.685 268.931 12,99%

Pesquisas sobre Cultura e Patrimônio Afro-Brasileiro 497.428 381.618 76,72% 397.428 0 0,00%

Preservação de Bens Culturais Materiais e Imateriais

do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico Afro-Brasileiro 1.016.000 830.045 81,70% 1.016.000 18.616 1,83%

BRASIL QUILOMBOLA 19.419.868 4.857.480 25,01% 30.462.763 328.188 1,08%

MINISTÉRIO DA SAÚDE - 0 293.200 0 0,00%

Atenção à Saúde das Populações Quilombolas - 0 293.200 0 0,00%

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA 3.000.000 2.175.005 72,50% 7.029.000 180.000 2,56%

Capacitação de Agentes Representativos

das Comunidades Remanescentes de Quilombolas - 0 1.000.000 0 0,00%

Fomento ao Desenvolvimento Local para

Comunidades Remanescentes de Quilombolas 3.000.000 2.175.005 72,50% 6.029.000 180.000 2,99%

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO 1.410.000 855.071 60,64% 2.275.000 0 0,00%

Apoio à Ampliação e Melhoria da Rede Física Escolar 710.000 432.817 1.243.000 0 0,00%

Apoio à Capacitação de Professores do Ensino Fundamental

para Atuação nas Comunidades Remanescentes de Quilombolas 300.000 237.098 79,03% 632.000 0 0,00%

Apoio à Distribuição de Material Didático e Paradidático para o

Ensino Fundamental em Comunidades Remanescentes de Quilombolas 400.000 185.156 400.000 0 0,00%

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO 15.009.868 1.827.404 12,17% 20.865.563 148.188 0,71%

Apoio ao Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Quilombolas 1.000.000 366.856 36,69% 1.000.000 0 0,00%

Pagamento de Idenizações aos Ocupantes

das Terras Demarcadas e Tituladas aos Remanescentes de Quilombos 11.664.124 0 0,00% 14.440.347 0 0,00%

Reconhecimento, Demarcação e Titulação de Áreas remanescentes de Quilombos 2.345.744 1.460.548 62,26% 5.425.216 148.188 2,73%

GESTÃO DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO 1.000.000 1.000.000100,00% 1.000.000 12.001 1,20%

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO 1.000.000 1.000.000100,00% 1.000.000 12.001 1,20%

Promoção da Igualdade de Raça, Gênero e Etnia no Desenvolvimento Rural 1.000.000 999.999100,00% 1.000.000 12.001 1,20%

COMUNIDADES TRADICIONAIS 86.370 74.370 86,11% 767.686 12.037 1,57%

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE 86.370 74.370 86,11% 767.686 12.037 1,57%

Gestão Ambiental em Terras Quilombolas 86.370 74.370 86,11% 767.686 12.037 1,57%

TOTAL 51.778.273 25.910.122 50,04% 60.192.870 3.549.015 5,90%Fonte: SIAFI/STN - Base de Dados: Consultoria de Orçamento/ CD e ProdasenElaboração: INESCNotação das colunas: % Execução - Obtido através da divisão da despesa autorizada pela despesa liquidada.Nota: A liquidação da despesa constitui a verificação do direito adquirido pelo credor, tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.

2004 2005

Autorizado Liquidado %Exec. Autorizado Liquidado %Exec.

PROGRAMAS E AÇÕES 2004 10/03/2005 2005 20/05/2005

Orçamento Quilombola 2004/2005T abela 1