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Coleção Práticas Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos Coordenação Ana Lídia Campos Brizola Andrea Vieira Zanella Organizadores Maria Chalfin Coutinho Odair Furtado Tânia Regina Raitz Psicologia Social e Trabalho: perspectivas críticas Psicologia Social e Trabalho: perspectivas críticas

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  • ColeoPrticas Sociais, Polticas Pblicase Direitos Humanos

    CoordenaoAna Ldia Campos BrizolaAndrea Vieira Zanella

    Organizadores Maria Chaln Coutinho

    Odair FurtadoTnia Regina Raitz

    Psicologia Social e Trabalho: perspectivas crticasPsicologia Social e Trabalho: perspectivas crticas

  • ColeoPricas Sociais, Policas Pblicas e Direitos Humanos

    CoordenaoAna Ldia Campos Brizola

    Andrea Vieira Zanella

    Vol. 1

    Psicologia Social e trabalho: perspecivas cricasOrganizao

    Maria Chalin CouinhoOdair Furtado

    Tnia Regina Raitz

    UFSC/CFH/NUPPE

    Florianpolis2015

  • Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina

    P974 Psicologia Social e trabalho [recurso eletrnico]:

    perspectivas crticas / organizadores Maria Chalfin Coutinho, Odair Furtado, Tnia Regina Raitz ; coordenadores da coleo Ana Ldia Campos Brizola, Andrea Vieira Zanella. Florianpolis : ABRAPSO Editora : Edies do Bosque CFH/UFSC, 2015. 292 p.; tabs. - (Coleo Prticas Sociais, Polticas Pblicas e Direitos Humanos; v. 1)

    Rene trabalhos oriundos do XVII Encontro Nacional da Associao Brasileira de Psicologia Social ABRAPSO.

    ISBN: 978-85-60501-16-8 1. Psicologia social. 2. Trabalho Aspectos

    sociais. 3. Poltica pblica. 4. Direitos humanos. I. Coutinho, Maria Chalfin. II. Furtado, Odair. III. Raitz, Tnia Regina. IV. Srie

    CDU: 316.6

  • Diretoria Nacional da ABRAPSO 2014-2015Presidente: Alusio Ferreira de Lima

    Primeiro Secretrio: Marcelo Gustavo Aguilar CalegareSegundo Secretrio: Leandro Roberto Neves

    Primeira Tesoureira: Deborah Chrisina AntunesSegunda Tesoureira: Renata Monteiro Garcia

    Suplente: Carlos Eduardo RamosPrimeira Presidenta: Silvia Taiana Maurer Lane (gesto 1980-1983)

    ABRAPSO EditoraAna Ldia Campos Brizola

    Cleci MaraschinNeuza Maria de Faima Guareschi

    Conselho EditorialAna Maria Jac-Vilela UERJAndrea Vieira Zanella - UFSC

    Benedito Medrado-Dantas - UFPEConceio Nogueira Universidade do Minho - Portugal

    Francisco Portugal UFRJLupicinio iguez-Rueda UAB - Espanha

    Maria Lvia do Nascimento - UFFPedrinho Guareschi UFRGS

    Peter Spink FGV

    Edies do Bosque Gesto 2012-2016Ana Ldia Campos BrizolaPaulo Pinheiro Machado

    Conselho Editorial Arno Wehling - UERJ e UNIRIO

    Edgardo Castro - Universidad Nacional de San Marn, ArgeninaFernando dos Santos Sampaio - UNIOESTE, PR

    Jos Luis Alonso Santos - Universidad de Salamanca, EspanhaJose Murilo de Carvalho - UFRJ

    Leonor Maria Cantera Espinosa - Universidad Autonoma de Barcelona, EspanhaMarco Aurlio Mximo Prado - UFMG

  • IColeo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Sumrio

    A Coleo Ana Ldia Campos Brizola e Andrea Vieira Zanella

    1

    ApresentaoPsicologia Social do Trabalho em dois temposMaria Chalin Couinho 2

    A prxis da Psicologia Social do Trabalho: relexes sobre possibilidades de interveno

    16

    Marcia Hespanhol Bernardo, Caroline Crisiane de Sousa, Johanna Garrido Pinzn e Heloisa Aparecida de SouzaImplicaes da reestruturao da carreira pelo Choque de Gesto na subjeividade de docentes da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais 40Matusalm de Brito Duarte e Joo Leite Ferreira NetoSade do servidor pblico federal: polica, discursos e pricas prescritas

    64

    Jardel Pelissari MachadoPolicas pblicas e o lugar do jovem no mundo rural 92Rosemeire Aparecida ScopinhoTerras, trabalho e panelas coleivas: a produo da vida como polica no coidiano de um assentamento rural do MST em Rondnia 118Juliana da Silva NbregaTodo dia dia de festa: os senidos e os signiicados do trabalho no contexto circense 140Karlinne de Oliveira Souza e Jos Eleonardo Tom Braga Jnior

  • II

    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    Assdio moral no trabalho: compreendendo algumas consequncias 155Suzana da Rosa Tolfo, Joo Cesar Fonseca e Thiago Soares NunesPsicologia Social do Trabalho e Educao: uma discusso a parir da literatura espanhola recente 172Moacir Fernando Viegas

    Autogesto e Gesto de Pessoas: desaios e possibilidades para desenvolvimento de um sistema a parir dos princpios da economia solidria 194Maria das Graas de LimaPsicologia e formao dos/as trabalhadores/as de empreendimentos econmicos solidrios 215Marilene Zazula Beatriz e Maria Luisa CarvalhoA conscincia social dos trabalhadores metalrgicos das empresas de inovao tecnolgica do Grande ABC 231Antnio Fernando Gomes Alves e Salvador Antonio Mireles SandovalImpasses da relao entre trabalho e gesto na contemporaneidade e suas formas de sofrimento capazes de conduzir morte voluntria 254Fernando Gastal de CastroContribuies da Psicologia Organizacional e do Trabalho para a implantao de uma polica pblica de ateno sade do trabalhador 270Joo Csar de Freitas Fonseca, Suzana da Rosa Tollfo, Thales de Bessa Marques dos Santos e Greice Viana Marins

    Sobre os autores, organizadores e coordenadoras 288

  • 1Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    A coleo

    Pricas Sociais, Policas Pblicas e Direitos Humanos rene tra-balhos oriundos do XVII Encontro Nacional da Associao Brasileira de Psicologia Social - ABRAPSO, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina em outubro de 2013. Comemorando 30 anos, ao realizar esse evento que aliou ensino, pesquisa e atuao proissional em Psicologia Social implicada com o debate atual sobre problemas sociais e policos do nosso pas e sobre o coidiano da nossa sociedade, a ABRAPSO reairmou sua resistncia polica cristalizao das insituies humanas.

    A ABRAPSO nasceu compromeida com processos de democraiza-o do pas, a parir de uma anlise crica sobre a produo de conheci-mento e atuao proissional em Psicologia Social e reas ains. O hori-zonte de seus ailiados a construo de uma sociedade fundamentada em princpios de jusia social e de solidariedade, compromeida com a ampliao da democracia, a luta por direitos e o acolhimento diferena. Nossas pesquisas e aes proissionais visam a crica produo e repro-duo de desigualdades, sejam elas econmica, racial, tnica, de gnero, por orientao sexual, por localizao geogrica ou qualquer outro as-pecto que sirva para oprimir indivduos e grupos. Os princpios que orien-tam as pricas sociais dos ailiados ABRAPSO so, portanto, o respeito vida e diversidade, o acolhimento liberdade de expresso democrica, bem como o repdio a toda e qualquer forma de violncia e discrimina-o. A ABRAPSO, como parte da sociedade civil, tem buscado contribuir para que possamos de fato avanar na explicitao e resoluo de violn-cias de diversas ordens que atentam contra a dignidade das pessoas.

    Os Encontros Nacionais de Psicologia Social promovidos pela ABRAP-SO consistem em uma das estratgias para esse im. Foi um dos primeiros eventos nacionais realizados na rea de Psicologia (em 1980) e se caracte-riza atualmente como o 3 maior encontro brasileiro de Psicologia, em nu-mero de paricipantes: nos limos encontros congregou em mdia 3.000 paricipantes e viabilizou a apresentao de mais de 1.500 trabalhos.

  • 2O XVII Encontro Nacional da Associao Brasileira de Psicologia Social foi concebido a parir da compreenso de que convivemos com violncias de diversas ordens, com o aviltamento de direitos humanos e o recrudescimento de pricas de sujeio. Ao mesmo tempo, assisimos presena cada vez maior de psiclogos(as) atuando junto a policas de governo. Ter como foco do Encontro Nacional da ABRAPSO a temica Pricas Sociais, Policas Pblicas e Direitos Humanos possibilitou o debate desses acontecimentos e pricas, das lgicas privaistas e individualizantes que geralmente os caracterizam e os processos de subjeivao da decorrentes. Ao mesmo tempo, oportunizou dar visibilidade s pricas de resistncia que insituem issuras nesse cenrio e contribuem para a reinveno do polico.

    Neste XVII Encontro, alm da conferncia de abertura, simpsios, minicursos, oicinas e diversas aividades culturais, foram realizados 39 Grupos de Trabalho, todos coordenados por pesquisadores/doutores de diferentes insituies e estados brasileiros. Estes coordenadores selecio-naram at cinco trabalhos, entre os apresentados em seus GTs, para com-por a presente coletnea e responsabilizaram-se pelo processo editorial que envolveu desde o convite para apresentao dos trabalhos comple-tos, avaliao por pares, decises editorias e documentao perinente. Como resultado, chegou-se seleo dos textos inais. Organizados, en-to, por ainidades temicas, passaram a compor os oito volumes desta Coleo. Para introduzir as edies temicas, foram convidados pesquisa-dores que esiveram envolvidos na coordenao de GTs e organizao do evento, com reconhecida produo acadmica nas temicas ains.

    Agradecemos a todos os envolvidos neste projeto de divulgao dos trabalhos completos dos paricipantes do XVII Encontro Nacional da ABRAPSO: trata-se de um esforo conjunto no apenas para a divulgao das experincias e do conhecimento que vem sendo produzido na Psico-logia Social brasileira, em paricular no mbito da ABRAPSO, mas para a ampliicao do debate e provocao de ideias e aes transformadoras da realidade social em que vivemos e da qual aivamente paricipamos.

    Ana Ldia BrizolaAndra Vieira Zanella

  • 3Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Apresentao

    Psicologia Social do Trabalho em dois tempos

    Maria Chalin Couinho

    De que modo a Psicologia Social tem dialogado com trabalho? Gos-taria de releir sobre essa questo desde o ponto de vista laino-ameri-cano e, para tanto, situo esse dilogo em dois tempos: origens e pensa-mento contemporneo. Na impossibilidade de fazer um resgate histrico exausivo elegi como representaivo do pensamento de uma Psicologia Social Laino-americana ainda nascente o texto de Igncio Marin-Bar Psicologa Polica del Trabajo en America Laina. Para o segundo tempo retomo outros dois textos sobre a temica do trabalho presentes na co-letnea comemoraiva de 30 anos da Associao Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO): Stecher (2011) e Sato (2011).

    O texto de Marin-Bar (1989), originalmente uma conferncia pro-ferida em Porto Alegre1 a qual eu ive o privilgio de assisir, quesiona a tradicional imagem de indolente do trabalhador laino-americano. Para compreender a construo histrica dessa imagem estereoipada, o autor caracteriza a situao laboral laino-americana em trs eixos: diviso dis-criminante do trabalho; marginalizao e desemprego macio e dinmica de explorao e represso. A releitura desse quadro elaborado h tanto por Marin-Bar, mas ainda to atual, mostra a importncia de olhar para as peculiaridades dos modos de trabalhar com os quais lidamos em nos-sos fazeres como psiclogos sociais.1 A conferncia de Marin-Bar Psicologa Polica del Trabajo en Amrica Laina foi proferida

    durante o 1 Encontro Nacional de Psicologia do Trabalho organizado pelo Conselho Federal de Psicologia em junho de 1988 e, posteriormente, publicada na Revista de Psicologa de El Salvador.

  • 4Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    A parir de sua compreenso sobre a situao laboral laino-ameri-cana, Marin-Bar (1989) discute dois enfoques psicolgicos do trabalho: individualista e sistmico. Esses enfoques foram tradicionalmente condi-cionados por: secundarizao do mbito do trabalho (anlises centradas na dinmica familiar); adeso perspeciva dos setores no poder (patro, proprietrio etc.) e adoo do modelo mdico (sade laboral concebida como sade mental, enquanto estado individual e quase orgnico). O au-tor analisa como os dois enfoques lidam com a situao laboral laino--americana, considerando os trs eixos acima mencionados. Assim, o enfoque individualista explica os problemas que caracterizam nossas situ-aes de trabalho como decorrentes de diiculdades pessoais. J o enfo-que sistmico, centrado nas organizaes sem considerar suas conexes com a sociedade na qual se inerem, compreende as diiculdades de nosso coidiano de trabalho como consequncias do atraso tecnolgico ou mes-mo de problemas culturais.

    Sem rechaar os conhecimentos oriundos dos enfoques tradicio-nais, porm quesionando suas deicincias, Marin-Bar (1989) prope o enfoque da Psicologia Polica, o qual, quando aplicada ao trabalho, sig-niica um estudo dos comportamentos laborais enquanto ariculaes da ordem social e, portanto, das foras sociais (p. 19). Uma tal psicologia deve, de acordo com o autor, estar atenta aos aspectos cricos de nossa situao laboral, de modo a compreender os setores marginalizados, dis-criminados, explorados, entre outros, no como objetos, mas como su-jeitos sociais. Essa ateno supe a valorizao de formas alternaivas de realizao laboral, tendo em vista o contexto e as caractersicas do povo laino-americano, bem como requer a superao da viso tradicional de sade mental, deslocando-a de um estado individual para uma concepo social, centrada nos vnculos e nas relaes sociais.

    A leitura de Marin-Bar (1989) se colocava como inovadora por propor uma aproximao do olhar e do fazer da psicologia com o trabalho como efeivamente acontece, sem se prender a modelos prontos, oriun-dos de outros contextos, ou mesmo tentar psicologizar a realidade social. Desse modo o autor se aproxima das peculiaridades e diversidades dos modos de trabalhar que nos so prximos. Ao tomar o trabalho como categoria de anlise, Marin-Bar (1989) se situa entre aqueles para quem no possvel compreender os sujeitos e os processos de subjeivao que os consituem sem analisar seus modos de trabalhar.

  • 5Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    A aproximao com as formas laborais concretas das sociedades em que vivemos, acima esboada, presente no que aqui chamei de primeiro tempo, se manteve no dilogo da Psicologia Social com o trabalho nas limas dcadas, sempre em contraposio com psicologias outras que adotavam perspecivas individualistas e/ou adaptaivas no campo do tra-balho. Na impossibilidade de, nesse espao, retomar a diversidade das contribuies da Psicologia Social para compreenso do trabalho, optei por me deslocar para um segundo tempo, a parir de dois textos bem mais recentes, cujas anlises contribuem para uma compreenso mais atuali-zada da situao laboral laino-americana. Esses textos, Stecher (2011) e Sato (2011), foram originalmente apresentados por seus autores no Sim-psio Trabalho do 16 Encontro Nacional da ABRAPSO.

    Na busca por situar as ariculaes entre transformaes do traba-lho e os processos idenitrios, considerando o contexto laino-america-no, Stecher (2011) resgata um conjunto de invesigaes sobre as impli-caes das transformaes produivas ocorridas desde os anos 1980 para as experincias e processos idenitrios dos trabalhadores. Tendo como referncia uma diversidade de estudos, o autor apresenta duas teses ou linhas de argumentaes que orientam grande parte das pesquisas sobre trabalho e idenidades na contemporaneidade.

    A primeira tese o desmoronamento do trabalho como suporte idenitrio: incerteza, volailidade e precarizao dos empregos - ques-iona o lugar de centralidade ocupado pelo trabalho na produo das idenidades contemporneas, tendo em vista mudanas no mercado de trabalho, na organizao e na cultura empresarial. Assim, o trabalho dei-xaria de ser o eixo central a parir do qual se organizaria a vida dos sujeitos.

    A segunda tese - a regulao da idenidade na empresa ps-fordis-ta: o novo ideal de trabalhador lexvel e empreendedor se ancora no novo peril de trabalhador requerido por empresas lexveis. As transfor-maes decorrentes do desenvolvimento capitalista observado nas li-mas dcadas implicaram na emergncia de modelos lexveis de gesto empresarial, os quais estariam preocupados em moldar a idenidade do trabalhador.

    Stecher (2011) se aproxima dessas duas teses a parir de paricula-ridades caractersicas da modernizao capitalista nos pases laino-ame-ricanos no sculo XX e considerando a histrica heterogeneidade entre

  • 6Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    e dentro dos mundos do trabalho na Amrica Laina (p. 222). Assim, o autor pontua os riscos associados a extrapolar essas teses para nossos pases, considerando que, em geral, foram construdas a parir de outros contextos (Europa e Estados Unidos da Amrica) e toma como refern-cia as especiicidades e heterogeneidades laino-americanas para airmar que o trabalho ainda central para a vida dos trabalhadores da regio. Por im, Stecher (2011) considera importante releir criicamente sobre essas teses e, em vez de aceit-las ou recha-las, prope consider-las como hipteses de trabalho, desde que usadas em estudos de caso especicos e com as indispensveis mediaes conceituais que exige o paricular tra-jeto modernidade da Amrica Laina (p. 227).

    Tomando como pano de fundo o trabalho nos espaos urbanos, Sato (2011) focaliza as proisses ignoradas, para destacar formas criaivas de trabalho associadas a esforos por sobrevivncia. A autora refere-se a situaes ignoradas por uma psicologia que tem privilegiado o estudo do trabalho dos setores modernos da aividade econmica sob relao de as-salariamento na mdia e grande empresa, dedicando pouca ateno aos estudos sobre o trabalho criado pelos segmentos pobres da populao (Sato, 2011, p. 234).

    Na direo acima apontada, Sato (2011) menciona situaes de tra-balho observadas por ela na feira livre, bem como outros estudos com de-sempregados, vendedores ambulantes, no mbito da Economia Solidria e todo um conjunto de aividades praicadas por pessoas dos segmentos pobres, que comporiam o chamado setor informal. A parir da a auto-ra problemaiza a dicotomia formal/informal e aponta o debate sobre o tema em outras disciplinas, como a economia e a sociologia, j que a psi-cologia tradicionalmente desconhece o campo das informalidades.

    Sato (2011) visita algumas concepes sobre o trabalho informal e destaca a polissemia do termo. Apesar da diversidade conceitual, situa-es de trabalho informal so sempre associadas a formas negaivas: pre-crias, desprotegidas, ilegais, criminosas etc. Para a autora compreender a informalidade, sem gloriicar ou fazer a apologia dessas situaes labo-rais, contribui para o reconhecimento das diversas modalidades de traba-lho no regulado existentes.

    Focalizar os modos de trabalhar peculiares das sociedades laino--americanas e relaivizar as anlises ancoradas em modelos oriundos de

  • 7Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    pases do norte so elementos importantes nas anlises de Sato e Ste-cher, consituindo-se em uma perspeciva necessria para uma Psicologia Social do Trabalho Laino-americana. Ainda que distantes no tempo, os textos desses dois autores dialogam com Marin-Bar ao se voltarem para as realidades locais, focarem no trabalho tal como acontece e nos sujeitos que trabalham.

    Tambm no XVII Encontro Nacional da ABRAPSO, realizado em Flo-rianpolis em outubro de 2013, o Trabalho consituiu um dos eixos tem-icos, o que abriu espao para a proposio de Grupos de Trabalho (GT) centrados no dilogo entre a Psicologia Social e o Trabalho, entre outras aividades. O presente livro rene textos oriundos das apresentaes acolhidas por dois GTs propostos no eixo trabalho, os quais apresentam relexes e relatos de pesquisa e/ou de interveno, sintonizados com a Psicologia Social do Trabalho apresentada aqui em dois tempos e, desse modo, evidenciam a iliao s perspecivas cricas no campo.

    A proposta do GT Psicologia Social do Trabalho: olhares cricos so-bre o trabalho e os processos organizaivos2 tomou como referncia as transformaes ocorridas nas limas dcadas no regime de acumulao capitalista e pretendeu abrir espaos de relexo sobre os processos de subjeivao engendrados por esses acontecimentos e sobre as contri-buies da Psicologia Social do Trabalho e de disciplinas ains para sua compreenso3. Nessa direo, a proposta do GT buscou dialogar com as pricas coidianas e os processos intersubjeivos presentes nos contextos de trabalho laino-americanos e convidou colegas interessados em contri-buir coleivamente para:

    construo de uma psicologia do trabalho ariculada com propostas poli-cas de superao das desigualdades econmicas e sociais, com o quesio-namento de pricas assentadas em lgicas privaistas e individualizantes e com a promoo de policas pblicas voltadas para a populao trabalha-dora em todas as suas diferentes face4.

    2 A proposta desse GT foi elaborada por: Fbio de Oliveira (Universidade de So Paulo), Anto-nio Stecher (Universidade Diego Portales, Chile), Maria Chalin Couinho (Universidade Fe-deral de Santa Catarina) e Mrcia Hespanhol Bernardo (Ponicia Universidade Catlica de Campinas).

    3 A citao foi reirada da proposta de GT, disponvel no site do evento: htp://www.encon-tro2013.abrapso.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=753

    4 A citao tambm foi reirada da proposta de GT, disponvel no site do evento: htp://www.encontro2013.abrapso.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=753

  • 8Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    A ressonncia do convite acima icou evidenciada pelo grande vo-lume de proposies encaminhadas ao GT. Como forma de acolher um nmero maior de apresentaes o GT foi desdobrado em dois. O primei-ro manteve o nome original Psicologia Social do Trabalho: olhares cri-cos sobre o trabalho e os processos organizaivos e foi coordenado por Mrcia Hespanhol Bernardo (PUCCamp) e Maria Chalin Couinho (UFSC). O segundo GT, denominado Trabalho e subjeividade, aconteceu sob a coordenao de Tnia Regina Raitz (UNIVALI). Fazem parte da presente publicao oito textos escolhidos entre os trabalhos apresentados nesses dois GTs, a seguir resumidos.

    O captulo Mrcia H. Bernardo, Caroline C. de Sousa, Johanna Gar-rido Pinzn e Heloisa A. de Souza discute a prxis da Psicologia Social do Trabalho. A anlise histrica e contextual das pricas proissionais permi-iu s autoras situ-las em duas vertentes: Psicologia Organizacional, que ocorre predominantemente no campo empresarial, e Psicologia Social do Trabalho, com relexes cricas sobre as vivncias dos trabalhadores. A primeira, apesar de transformaes discursivas, mantm seu alinhamen-to perspeciva gerencial, sem quesionar as relaes de trabalho sob a gide do capitalismo. Na direo oposta, os estudos e pricas fundamen-tados na Psicologia Social do Trabalho buscam compreender de forma ampla os mliplos aspectos sociais e subjeivos que compem o mundo do trabalho. Por meio da anlise das pricas proissionais, so contra-postas as limitadas possibilidades de atuao de psiclogos em contextos empresariais com outras pricas do psiclogo social mais promissoras, em diferentes contextos laborais: sade pblica, assistncia social, coope-raivas populares, entre outros.

    Com o propsito de analisar a produo das tecnologias de sub-jeivao de docentes da rede estadual de Minas Gerais, decorrente da implantao de novos modelos de gesto pblica, o texto de Matusalm Duarte e Joo L. Ferreira Neto apresenta parte dos resultados de pesqui-sa realizada em duas escolas estaduais. Os autores analisam estratgias de gesto implantadas nos limos anos, denominadas de Choque de gesto, como tecnologias de subjeivao promotoras de adaptao e conformao dos docentes realidade. A implantao desse modelo de gesto pblica ocorre em um contexto de precariedade legal dos docen-tes, no qual se destaca um forte discurso a favor de minimizao de gas-

  • 9Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    tos pblicos ao lado da responsabilizao dos docentes pela qualidade da educao. Diante do aumento das formas de controle e da deteriorao de suas condies de trabalho, paricularmente em relao carreira e remunerao, os professores desenvolvem estratgias de resistncia que, de acordo com Duarte e Ferreira Neto, se consituem em formas de desis-tncia, reveladas no silenciamento entristecido dos docentes.

    Jardel P. Machado apresenta em seu captulo uma invesigao so-bre as perspecivas e os discursos subjacentes s diretrizes da Polica Na-cional de Ateno ao Servidor, implantada recentemente no servio pbli-co federal. O autor analisa historicamente os trs grandes discursos sobre a relao trabalho-sade/doena, considerados como arenas discursivas que produzem pricas: Medicina do Trabalho, Sade Ocupacional e Sa-de do Trabalhador. A parir desses discursos e tendo em vista o modo como contexto de crises e reestruturaes produivas afetam o servio pblico, cada vez mais pautado na lgica gerencialista, Machado faz uma anlise documental das diretrizes que orientam as pricas de vigilncia e promoo da sade do Subsistema Integrado de Ateno Sade do Servidor Pblico Federal (SIASS). Sua anlise evidencia a presena de ele-mentos discursivos oriundos tanto da Sade Ocupacional como da Sade do Trabalhador, gerando a falsa impresso de pricas de sade capazes de conciliar emancipao dos trabalhadores com gerencialismo.

    Rosemeire A. Scopinho discute o lugar do jovem no mundo rural tendo como referncia as policas pblicas dirigidas para essa juventude, considerando paricularmente como essa questo que afeta o futuro de assentamentos rurais. As relexes da autora fazem parte de um projeto que invesigou as representaes sociais de jovens assentados sobre tra-balho familiar e juventude. No captulo, a parir de uma reviso sobre a questo da ruralidade e da agricultura familiar, so analisadas as policas pblicas focadas na juventude rural no Brasil. Scopinho constatou que a educao com carter proissionalizante o grande alvo dos invesimen-tos pblicos para jovens e adultos, assumindo no caso do jovem rural uma natureza paliaiva, incapaz de fornecer educao de qualidade. Poucos programas oferecem oportunidades de trabalho rural aos jovens, sendo esses limitados concesso de crdito. Assim, a autora constata os limites dos programas governamentais, os quais no garantem aos jovens assen-tados formao necessria e insero laboral autnoma.

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    Fruto de pesquisa etnogrica efeivada junto a um coleivo inse-rido em um assentamento rural, o captulo de Juliana Nbrega analisa a experincia de um grupo de famlias que vivenciavam em seu coidiano um processo de coleivizao da produo. Essas famlias, compostas por militantes de movimentos sociais agrrios com uma histria de lutas pela terra, formavam o grupo, entre os assentados, que havia optado por pro-duzir coleivamente, ainda que o Estado no reconhecesse a propriedade coleiva da terra. Para esse grupo a terra inha um senido coleivo de trabalho e de vida, em um processo de coleivizao que aingia diferentes dimenses da vida coidiana, tornando todos uma s famlia. O trabalho coleivo acontecia na terra, na militncia e em outros espaos, como no caso da cozinha, importante lugar de produo de sociabilidades colei-vas, embora o grupo ainda no conseguisse romper com a tradicional atri-buio dos afazeres domsicos s mulheres. Para a autora a proposta de coleivizao tem o poder de se contrapor racionalidade capitalista do Estado.

    O captulo de Karlinne de Oliveira Souza e Jos Eleonardo Braga J-nior traz os resultados de uma pesquisa cujo objeivo foi analisar o senido e o lugar ocupado pelo trabalho para trabalhadores circenses. A invesiga-o fez uso de abordagem qualitaiva e teve como ferramentas de levan-tamento de informaes a observao paricipante de reunies de uma associao circense do Cear e as entrevistas. Foi efeivado um estudo de caso de um arista que poca atuava como palhao, alm de gerenciar o circo, mas j havia desempenhado diversas ipos de aividades circenses. Os resultados, obidos por meio de anlise de contedo construivo-in-terpretaiva do material levantado, apontam para o forte senimento de coleividade. Em contraparida, a vida no circo caracterizada pela pre-cariedade no trabalho e pela falta de acesso a servios essenciais, como sade e educao; foi evidenciado tambm a forte ligao do entrevistado com o circo e seu interesse em permanecer trabalhando nesse contexto.

    O propsito do texto de Suzana da Rosa Tolfo, Joo Csar Fonseca e Thiago Soares Nunes problemaizar o assdio moral no trabalho, suas consequncias para a subjeividade e a sade do trabalhador e para as organizaes, bem como as repercusses na sociedade. A parir de uma reviso da literatura e de resultados de duas pesquisas realizadas com servidores de uma universidade federal e com trabalhadores que izeram

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    denncias junto a um rgo pblico, os autores destacam elementos para a compreenso do fenmeno em foco, tanto do ponto de vista das con-sequncias para pessoa assediada como para a organizao e ou trabalho da vima. Entre os elementos relaivos vivncia da pessoa assediada esto um sofrimento silencioso e a presena de vrios sintomas sicos e psicolgicos decorrentes do assdio, que caracterizam o mal-estar do trabalhador. De acordo com Tolfo, Fonseca e Nunes o assdio moral no trabalho tambm afeta a organizao, exisindo condies favorecedoras desse ipo de violncia no trabalho, tais como o esmulo compeio, o poder absoluto dos chefes, as reestruturaes e terceirizaes etc. Por im, quesionam caractersicas da sociedade atual, como a hegemonia da racionalidade instrumental, a banalizao da violncia, do sofrimento e da indiferena ao outro.

    Moacir Fernando Viegas busca nas contribuies recentes da litera-tura espanhola no campo da psicologia social do trabalho os fundamentos para a compreenso das pricas educaivas nas relaes de produo. Inicia o texto com o resgate da literatura espanhola em uma perspeciva histrica, desde a tradio funcionalista at adoo de perspecivas que coadunam com a psicologia social crica, que quesionam psicologia orga-nizacional enquanto tecnologia de poder. Para o autor, apesar da adoo de referenciais cricos, ainda permanecem pesquisas com referentes tra-dicionais. Viegas tambm discorre sobre dois campos da psicologia do tra-balho espanhola com importantes contribuies para a educao: o con-trato psicolgico e a psicologia posiiva. Em relao ao primeiro analisa as modiicaes conceituais decorrentes das transformaes contemporne-as. Depois, analisa a psicologia posiiva, que surgiu como um contraponto ao mal estar laboral, mas desde a perspeciva crica pode ser considerada como uma forma de controle de subjeividades. Por im, o texto conclui airmando as contribuies da literatura analisada para os estudos sobre educao e trabalho.

    As sesses do GT Trabalho na perspeciva crica ocorridas duran-te o XVII Encontro Nacional da ABRAPSO foram coordenadas por Odair Furtado, Fernando Gastal de Castro e Marcos Ribeiro Ferreira. A proposta do GT teve foco no modo como a psicologia social trabalha as dimenses objeiva e subjeiva da ao humana coidiana, cuja ariculao propicia que, ao mesmo tempo, o indivduo viva objeivamente e produza signos,

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    atribuindo senidos pessoais s signiicaes coleivas. Nessa direo os proponentes consideram a psicologia social como uma cincia que rela-ciona as condies de produo do indivduo com suas formas sociais e histricas e explicitam seu interesse em:

    ir para alm da consituio do psiquismo, como apresentado por Vigotski e pelos psiclogos russos que o seguiram, e pensar a prpria consituio social como resultante da vida concreta das pessoas nas condies histri-cas determinadas. Como o trabalho se insere neste campo? a pergunta que norteia o que estamos considerando o aporte da consigna Trabalho na perspeciva crica5.

    Tendo como referncia a concepo acima a proposta do GT bus-cou acolher trabalhos que ivessem como norte a discusso crica da so-ciedade nas vrias vertentes possveis. Entre os trabalhos apresentados nesse GT foram escolhidos cinco para comporem a presente publicao, a seguir brevemente resumidos.

    Maria das Graas de Lima apresenta em seu captulo um projeto de pesquisa-interveno, com o objeivo de desenvolver um sistema de gesto de pessoas autogesionrio, ancorado nos princpios, conceitos e pricas da economia solidria. A autora apresenta um histrico do desen-volvimento da Economia Solidria no Brasil e, depois, situa a compreen-so da dimenso subjeiva adotada, desde o referencial scio-histrico. A parir da ariculao desses dois campos tericos, Lima elencou categorias tericas norteadoras de seu projeto, o qual tm como referncia as con-tradies entre a chamada gesto de pessoas, caractersica das empresas capitalistas, mas empregadas em empreendimentos solidrios, que deve-riam estar sintonizados com os valores e princpios autogesionrios. As-sim, a autora conclui apresentando como pretende efeivar sua pesquisa em dois empreendimentos, de modo a contribuir com o desenvolvimento da economia solidria como uma proposta de transformao social.

    Outro texto dentro do mesmo campo temico foi produzido por Marilene Zazula Beatriz e Maria Luisa Carvalho, que apresentam o relato de uma experincia de formao de trabalhadores/as de Empreendimen-tos Econmicos Solidrios (EES). A experincia relatada fez parte de um 5 Citao reirada da proposta de GT, disponvel no site do evento: htp://www.encontro2013.

    abrapso.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=757

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    projeto de extenso de um curso de graduao em Psicologia, que ari-culou feiras universitrias de economia solidria com oicinas realizadas com trabalhadores/as dos empreendimentos. Aps um breve resgate das ariculaes entre Economia Solidria e a Psicologia, as autoras apresen-tam a metodologia empregada e, depois, analisam os resultados alcana-dos. Beatriz e Carvalho apontam as potencialidades e limites dos EES, bem como a necessidade de ampliar a formao relacional, tcnica e polica sobre o movimento, apesar disso os/as trabalhadores/as sabem disinguir as diferenas fundamentais entre a Economia Solidria e o sistema eco-nmico capitalista. Tambm foi destacada a importncia de a Psicologia, enquanto cincia e proisso, estar atenta a esse ipo de experincia e as demandas decorrentes.

    O captulo de Antnio Gomes Alves e Salvador Sandoval apresenta o recorte de uma tese de doutorado com objeivo de compreender as ino-vaes na aividade e os desdobramentos psicossociais, tendo em vista o conhecimento elaborado por trabalhadores metalrgicos sobre seu traba-lho e sobre si decorrentes da insero em empresas de um Arranjo Produ-ivo Local (APL) focado na inovao tecnolgica. A opo metodolgica da pesquisa foi por uma abordagem mulimtodo, com uso de ferramentas quanitaivas, por meio de survey com aplicao de quesionrios, e qua-litaiva, com o uso dos grupos focais. Os resultados foram organizados em um modelo que aricula quatro dimenses: ambiente da empresa, rela-es de trabalho, inovao e conscincia. A imagem do modelo apresen-tada evicencia a complexidade da realidade estudada, Entre os elementos analisados esto as implicaes das transformaes tecnolgicas para o coidiano de trabalho, com a degradao da qualidade de vida dos tra-balhadores. Os discursos explicitados nos grupos focais evidenciaram um comparilhamento de valores entre os trabalhadores e a empresa. Para os autores o papel da conscincia dos trabalhadores passou a ser determi-nante na prica inovaiva e se assenta na paricipao polica em movi-mentos sociais, uma vez que a relao sindical j no ocupa mais um papel signiicaivo nesse processo.

    Fernando Gastal de Castro apresenta uma relexo terica, parte de pesquisa em curso, sobre sofrimento decorrente dos modos de gerir con-temporneos capazes de conduzir morte voluntria. O autor destaca o crescente mal estar no trabalho, afetando toda sociedade em qualquer

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    lugar do capitalismo globalizado, e toma como hiptese para explicar tal crescimento o impasse entre as formas atuais de trabalho concreto e abstrato. Ancorado em Marx e outros autores do campo marxista, Cas-tro discorre teoricamente sobre o fundamento ontolgico do trabalho e sobre o carter desumanizante do trabalho abstrato na sociedade capita-lista. A parir da, analisa os paradoxos entre as lgicas gesionrias que preconizam a realizao de si, ao mesmo tempo que fomentam compei-ividade, individualismo e excelncia, e os processos de construo de si oriundos de formas de trabalho concreto. Como decorrncia dos impasses produzidos nesse contexto est a intensiicao do mal estar gerado por formas de sofrimento constantes, fatores potencializadores do suicdio.

    O captulo de Joo Csar Fonseca, Suzana da Rosa Tolfo, Thales Mar-ques dos Santos e Greice Viana Marins tambm tem seu foco na implan-tao do Subsistema Integrado de Ateno Sade do Servidor Pblico Federal (SIASS) e apresenta resultados de pesquisa em curso realizada em de uma unidade regional no estado de Minas Gerais. O texto analisa as contribuies de perspecivas cricas da Psicologia Organizacional e do Trabalho para o campo da sade do trabalhador. A abordagem metodo-lgica empregada priorizou a escuta dos envolvidos na implantao do sistema e se efeivou por meio de instrumentos quanitaivos (anlise dos relatrios informaizados) e qualitaivos (anlise documental, entrevistas, oicinas). Entre os resultados observados esto: prevalncia do adoeci-mento em determinadas categorias proissionais, manuteno da lgica medicalocntrica, diiculdades de comunicao interinsitucionais, ele-mentos das culturas organizacionais afetando a implantao do sistema, entre outros aspectos. Os autores concluem assinalando os desaios para contribuir com policas pblicas de ateno ao trabalhador.

    Os treze captulos que compem essa publicao so tambm re-presentaivos de uma Psicologia Social do Trabalho apresentada em dois tempos na minha escrita. Tal como Marin-Bar, Stecher e Sato focam rea-lidades locais sem deixar de lado as conexes com a sociedade, compondo o que Marin-Bar (1989) considerava como uma Psicologia Polica do Trabalho Laino-americana. Fazem uso de referenciais cricos oriundos da Psicologia Social e de disciplinas ains para compreender variadas situa-es de trabalho, representando a muliplicidade de modos de trabalhar que caracterizam nossa realidade.

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    A grande maioria dos captulos traz resultados de pesquisas efei-vadas com diferentes ipos de trabalhadores: coleivos de assentamen-tos rurais, trabalhadores de empreendimentos solidrios, docentes de escolas pblicas, metalrgicos, servidores federais, aristas de circo, en-tre outros. Tambm esto presentes dois textos focados nas pricas da Psicologia Social do Trabalho, um discorre sobre possibilidades e limites para atuao proissional, enquanto outro relata uma experincia de for-mao para empreendimentos solidrios. Dois textos discutem policas pblicas de ateno sade para servidores pblicos e um terceiro as policas focadas na juventude rural. H ainda dois textos centrados nas consequncias perversas dos modos de trabalhar picos do capitalismo contemporneo, quais sejam: mal estar, sofrimento, assdio moral e, at mesmo, a morte voluntria.

    O conjunto formado pelos captulos que compem esse livro faz lembrar uma imagem espreitada em um caleidoscpio, um conjunto de pequenas peas combinadas de maneira interessante e colorida, repre-sentaivo da muliplicidade presente na vida coidiana. Basta um peque-no movimento para a imediata recombinao das peas formando outra imagem tambm colorida, mas diferente da anterior. Fica aqui o convite aos leitores para as mliplas leituras e combinaes a serem feitas desse conjunto.

    Referncias

    Marin-Bar, I. (1989) Psicologia poliica del trabajo en America Laina. Revis-ta de Psicologa de El Salvador, 8(31), 5-25.

    Sato, L. (2011) Psicologia e trabalho: Focalizando as proisses ignoradas. In B. Medrado & W. Galindo (Orgs.), Psicologia Social e seus movimentos: 30 anos de ABRAPSO (pp. 233-250). Recife: ABRAPSO/Ed. Universitria da UFPE.

    Stecher, A. (2011) Transformaciones del trabajo y procesos idenitarios en el nuevo capitalismo: notas para una discusin em el contexto lainoame-ricano. In B. Medrado & W. Galindo (Orgs.), Psicologia Social e seus movi-mentos: 30 anos de ABRAPSO (pp. 207-232). Recife: ABRAPSO/Ed. Univer-sitria da UFPE.

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    A prxis da Psicologia Social do Trabalho: relexes sobre possibilidades de interveno

    Marcia Hespanhol BernardoCaroline Crisiane de Sousa

    Johanna Garrido PinznHeloisa Aparecida de Souza

    O presente captulo1 tem como objeivo releir sobre as possibili-dades de insero proissional do psiclogo social do trabalho. A neces-sidade de abordar esse assunto foi despertada nas discusses realizadas nos encontros do Grupo de Pesquisa Trabalho no Contexto Atual: estudos cricos em Psicologia Social, da PUC-Campinas. Diante das inmeras dis-cusses que ocorriam no grupo sobre as mazelas do mundo do trabalho, surgiram os quesionamentos sobre pricas de atuao com um enfoque crico que fossem alm das discusses acadmicas. E, ao releirmos so-bre as prprias vivncias dos integrantes do grupo, percebemos que elas j sinalizavam diversas possibilidades de atuao para os psiclogos so-ciais do trabalho. So essas pricas que pretendemos apresentar neste trabalho.

    Parimos da compreenso de que, na Psicologia, h perspecivas bas-tante disintas que se ocupam do mundo do trabalho, no sendo possvel uma unicidade entre essas perspecivas. Desse modo, a ideia predominan-te de que todos os psiclogos que focalizam o trabalho, em pesquisas ou na atuao proissional, incluem-se no enfoque denominado Psicologia Orga-nizacional e do Trabalho pode ser quesionada. Acreditamos que esse ques-ionamento se faz necessrio, pois observam-se grandes diferenas epis-temolgicas, metodolgicas e, por que no dizer, ideolgicas e policas, entre as diversas vertentes da Psicologia que se ocupam com o trabalho. 1 O contedo apresentado uma verso adaptada de Bernardo, M. H., Garrido-Pinzn, & Sou-

    sa, C. C. (2013). Psicologia Social do Trabalho: possibilidades de intervenes. In M. H. Ber-nardo, R. S. L Guzzo, & V. L. T. Souza (Orgs.), Psicologia Social: perspecivas cricas de atuao e pesquisa (pp. 91-114). Campinas, SP: Ed. Alnea.

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Para evidenciar as diferenas entre as vertentes, optamos por des-tacar duas delas, que consideramos terem focos bastante disintos. Uma delas a Psicologia Organizacional2, que entendemos ser mais alinhada aos interesses gerenciais, cuja prica predominante se d no campo em-presarial. A outra perspeciva, a Psicologia Social do Trabalho, se orienta para a compreenso crica3 das relaes sociais de trabalho com foco na vivncia de trabalhadores. Apesar de nenhuma dessas duas perspeci-vas apresentarem uma homogeneidade interna, as diferenas entre elas parecem-nos suicientes para impossibilitar mant-las sob uma mesma denominao, como se consitussem um nico campo de pesquisa e atuao.

    A posio adotada pelas autoras deste captulo pode ser considerada polmica, todavia, propomos apresentar argumentos que demonstrem a necessidade da demarcao de fronteiras, para, ento, pensar as possibilidades de intervenes pela Psicologia Social do Trabalho. O objeivo no defender mais uma ciso dentro da Psicologia e, sim, demarcar diferenas histricas, concepes policas, tericas e pricas entre a Psicologia Organizacional e a Psicologia Social do Trabalho, de forma a possibilitar maior clareza sobre o lugar que cada uma vem ocupando historicamente. Assim, pode ser favorecido o autnico e autnomo desenvolvimento de ambas.

    Vale dizer, ainda, que a Psicologia Social do Trabalho possui uma histria mais recente e carece de maior divulgao de suas aividades. Por isso, antes de apresentar possibilidades de pricas proissionais do psiclogo social do trabalho, faremos uma breve apresentao de algu-mas caractersicas histricas que propiciaram a entrada da Psicologia no campo do trabalho at os dias atuais. Em seguida, apresentamos algumas possibilidades de intervenes psicossociais com o enfoque da Psicologia Social do Trabalho.

    2 Com relao s denominaes, Prilleltensky e Nelson (2002) airmam que, dependendo do pas e coninente, psiclogos empregados por organizaes tm sido chamados de psiclogo industrial/organizacional, ocupacional ou do trabalho (p. 133).

    3 Essa compreenso crica do trabalho considera que vivemos em uma sociedade caracte-rizada pela assimetria de poder, a qual, por princpio, coloca os indivduos em condies desiguais de trabalho e de acesso s necessidades bsicas e aos bens de consumo. Por isso, essa perspeciva tambm pode ser denominada Psicologia Social Crica do Trabalho.

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    Algumas consideraes sobre a relao histrica da Psicologia com o trabalho

    Para compreender o histrico do interesse da Psicologia pelas ques-tes relacionadas ao trabalho, necessrio entender as transformaes do mundo do trabalho ao longo do limo sculo, sobretudo, com relao s formas de organizao dos processos de trabalho. necessrio consi-derar que a Psicologia no focaliza questes tcnicas e operacionais (por exemplo, o funcionamento de uma mquina) e, sim, as pessoas que tra-balham.

    Apesar de o trabalho acompanhar a vida do homem em socieda-de desde seus primrdios, foi com o surgimento do capitalismo que sua organizao passou a ser alvo de maior interesse. Mais especiicamente, no inal do sculo XIX, com o crescimento das grandes indstrias, a ne-cessidade de as empresas gerenciarem o trabalho de um grande nmero de pessoas passa a ser primordial para sua produividade e, consequen-temente, para seu lucro4. Assim, no por acaso que nessa poca surgi-ram as proposies de Frederick Taylor sobre a Organizao Cienica do Trabalho.

    De forma resumida, podemos dizer que os princpios gerais de Taylor eram (a) a separao entre a concepo do trabalho (que caberia a um departamento de planejamento) e sua execuo (que caberia ao trabalhador a parir de instrues prvias) e (b) o parcelamento das aividades de produo, de modo que cada indivduo se especializa em uma tarefa simples (determinada pela gerncia), tendo responsabilidade por apenas uma pequena parte do produto e no mais pelo todo. Para encontrar o mtodo mais rpido para desenvolver as tarefas, os responsveis pelo setor de planejamento buscavam padronizar os movimentos com base em um estudo de tempos e mtodos (que, em geral, tomava como modelo os trabalhadores mais rpidos). Assim, de acordo com Braverman (1987), 4 Esse contexto essencialmente conlituoso, pois os interesses dos empregadores e dos tra-

    balhadores so opostos. De acordo com Marx (1867/1985), sob o capitalismo, o trabalho se torna uma mercadoria, ou seja, algo que vendido no mercado por um valor determinado (que, no caso dos empregados, ser seu salrio). Desse modo, quem contrata busca reduzir esse valor e ampliar o rendimento do trabalhador ao mximo. De seu lado, o trabalhador quer aumentar seu ganho reduzindo a quanidade de trabalho. o chamado conlito capital--trabalho, que ser retomado diversas vezes neste captulo.

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    Taylor elevou a ideia de controle no trabalho a um novo patamar. Se antes esse controle no se dava sobre a forma como o trabalhador executava suas aividades, a parir dele, a gerncia passa a impor, com absoluto rigor, o modo como as tarefas devem ser executadas. Apesar de as propostas de Taylor parecerem essencialmente tcnicas, era necessrio, como ele prprio enfaizava, encontrar o homem certo para cada posto de trabalho, fazendo uma seleo cienica do operrio e essa tarefa logo assumida pela Psicologia.

    Parece exisir um consenso entre diversos autores (e.g., Braverman, 1987; Malvezzi, 1999; Spink, 1996; Zanelli & Bastos, 2004), de que o pri-meiro a escrever sistemaicamente sobre a relao da Psicologia com o trabalho foi Hugo Mnstenberg, sendo seu livro initulado Psicologia e eicincia industrial considerado o primeiro esboo sistemico da Psico-logia Industrial (Braverman, 1987, p. 126). Nele, o autor airma que seu objeivo era traar os esboos de uma nova cincia que fosse interme-diria entre o moderno laboratrio de Psicologia e os problemas da Eco-nomia e argumenta que a experimentao psicolgica deve ser sistema-icamente colocada a servio do comrcio e da indstria (Mnstenberg, citado por Braverman, 1987, grifo nosso). Bem ao esprito que imperava em sua poca, Mnstenberg paria do princpio de que a industrializao seria a alavanca de desenvolvimento econmico e social e, assim, no levava em conta as consequncias que esse desenvolvimento poderia tra-zer para a sociedade e, tampouco, quesionava as relaes sociais que produzia (Spink, 1996, p. 178).

    As primeiras publicaes de Mnstenberg focalizavam justamente a seleo de pessoal e indicavam, com clareza, qual era o propsito dessa nova aividade da Psicologia (aividade que, vale dizer, ainda nos tempos atuais um dos principais focos de atuao dessa proisso em empresas). Na citao a seguir, possvel observar a conluncia das ideias desse psiclogo com aquelas defendidas pelo engenheiro Taylor. Diz ele:

    escolhemos trs principais propsitos da vida dos negcios, propsitos que so importantes no comrcio e na indstria e qualquer empresa econ-mica. Indagamos como podemos encontrar os homens cujas qualidades mentais os tornam mais apropriados para o trabalho que tm de fazer; em segundo lugar, em que condies psicolgicas podemos obter a maior e mais saisfatria produo de trabalho de cada homem; e, inalmente, como podemos produzir mais completamente a inluncia nas mentes hu-

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    manas desejadas nos interesses dos negcios. (Mnstenberg, citado por Braverman, 1987, p. 127)

    Segundo Spink (1996), no se colocavam problemas icos para esse ipo de atuao, pois qualquer possvel tenso entre os valores do psic-logo e o novo campo em expanso foi aliviada por uma ideologia prois-sional e gerencial voltada importncia da saisfao pessoal para o indi-vduo num posto de trabalho que seria o melhor para suas habilidades (Spink, 1996, p. 179).

    Em resumo, pode-se dizer que o argumento era (e coninua sendo) que o psiclogo deveria encontrar o lugar mais adequado s capacidades de cada trabalhador e que isso seria interessante tanto para a empresa como para o trabalhador. No entanto, no se colocava em questo que, atuando dessa forma, a Psicologia contribui para a alienao do trabalha-dor com relao sua condio social de subordinao ao poder econ-mico e s possibilidades de mudana dessa condio. Mesmo os autores atuais da Psicologia Organizacional reconhecem que sua histria revela uma trajetria de interdependncia com as necessidades, valores e ex-pectaivas do processo de industrializao (Malvezzi, 1999). A insero da Psicologia no mundo do trabalho se deu, assim, desde o perodo inicial da expanso da industrializao e j com o propsito de atender aos inte-resses capitalistas.

    Mas, alm da seleo dos trabalhadores mais aptos para cada posto de trabalho, tambm era necessrio que as empresas ivessem contro-le sobre os trabalhadores contratados por ela, de modo que aceitassem como natural suas condies de trabalho. Por isso, alm de se responsa-bilizar pela seleo daqueles que correspondessem aos peris adequados para a maior produividade, a Psicologia ocupou-se, tambm, da gesto coidiana do desempenho e das relaes humanas no trabalho.

    Dessa forma, no inal da dcada de 1920, surgem as primeiras ideias da chamada Escola de Relaes Humanas, com a divulgao dos experi-mentos do psiclogo Elton Mayo (Huczynski, 1993). A parir de ento, a Psicologia do Trabalho passa a focalizar no apenas a relao do trabalha-dor com seu posto de trabalho, mas tambm as relaes interpessoais. interessante destacar que o discurso de Mayo era o de quem buscava recuperar o lado humano e social do trabalho, perdido com o tecnicismo

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    e o individualismo das propostas de Taylor. Assim, ele salientava a impor-tncia dos senimentos e das relaes humanas entre os trabalhadores e deles com os gerentes.

    Mas essa aparente humanizao dos locais de trabalho, na verda-de, tambm nega o antagonismo entre os interesses do empregador e os dos trabalhadores, mantendo a atuao do psiclogo alinhada aos inte-resses da gerncia e favorecendo a alienao dos trabalhadores com re-lao sua condio de explorado. Spink (1996) cita o fato de que, na sua primeira e mais famosa pesquisa, Mayo excluiu do seu grupo de sujeitos duas trabalhadoras que reivindicavam melhores condies de trabalho, por consider-las neuricas. Desse modo, tal como Mnstenberg, ele tambm traou cuidadosamente uma linha entre o social que lhe interes-sava e um social mais amplo (Spink, 1996, p. 181).

    Prilleltensky (1994) categrico ao airmar que Mayo inha a con-vico de que relaes humanas cooperaivas entre trabalhadores e em-presrios eram a chave para a produividade e a tranquilidade industrial. Seguindo esse princpio de cooperao, ele promoveu a tcnica atravs da qual os administradores seriam capazes de conquistar a coniana dos trabalhadores e prevenir os conlitos nas indstrias (p. 132). Huczynski (1993) tambm airma que seria incorreto ver a Escola de Relaes Hu-manas como uma reao gerncia cienica (de Taylor) ou descrev-la como o redescobrimento dos aspectos sociais do trabalho que o gerencia-mento cienico ignorou, pois, na verdade, o que ela representa uma mudana nas ticas gerenciais em vez de qualquer transformao funda-mental nos objeivos (p. 16). Podemos sinteizar as cricas a essa escola com a seguinte airmao de Seligmann-Silva (2011):

    Os objeivos da Escola de Relaes Humanas sempre foram formalmente airmados como humansicos e emanados de uma viso crica do taylo-rismo. Entretanto, na prica, conforme reconhecido pelos que analisaram criicamente as ideias de Mayo, os adeptos da Escola de Relaes Humanas tm estado empenhados, mais frequentemente, em garanir que a aplica-o do taylorismo no seja perturbada pelas manifestaes de insaisfa-o e de inadaptao dos assalariados. (p. 164)

    Assim, se Mnstenberg teve grande inluncia no desenvolvimento inicial do campo da Psicologia que, at os dias atuais, se ocupa da seleo

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    de pessoal, as ideias de Mayo fundamentaram vrias correntes da Psico-logia Organizacional que se desenvolveram posteriormente, com foco de atuao nos locais de trabalho. Huczynski (1993) cita como exemplos al-guns autores inluentes, como Maslow, Likert e Argyris, e os inclui em uma mesma corrente descendente das ideias de Mayo, que denomina Neo--Human Relaions (nova Escola de Relaes Humanas). Segundo ele, essa escola ainda inluencia fortemente o meio gerencial e, podemos dizer, tambm a Psicologia.

    Sendo assim, da mesma forma que izemos com referncia ao pro-cesso histrico da aproximao da Psicologia ao mundo do trabalho, a se-guir, apresentamos algumas caractersicas da histria recente e os mode-los de organizao do trabalho predominantes nesse incio do sculo XXI, para entender o papel ocupado pela Psicologia no contexto atual.

    A relao da Psicologia com o trabalho no contexto atual

    Devemos esclarecer que os modelos de organizao do trabalho predominantes na atualidade so, na verdade, um aperfeioamento do taylorismo-fordismo5. Segundo Antunes (1999), o capitalismo sofreu pro-fundas mudanas em decorrncia de uma grave crise enfrentada a parir da dcada de 1970. A essa crise se somam a expanso da globalizao da economia de cunho neoliberal e a introduo de novas tecnologias nos processos produivos, especialmente aquelas relacionadas microele-trnica, que caracterizam as limas dcadas. Na maior parte dos ramos produivos, h pouco espao para a produo em massa de produtos pa-dronizados, o que caracteriza o perodo em que o modelo taylorista-for-dista teve seu auge. Desse modo, as empresas passaram a buscar maior lexibilidade, para atender a uma demanda mais diversiicada em meno-res quanidades. E, para conseguir isso, foi necessrio adaptar as formas de gesto do trabalho, tornando-as, tambm, mais lexveis (Bernardo, 2009). Entre os vrios modelos que surgiram, um se destaca pela inlun-5 Os princpios de Taylor, citados anteriormente, foram aprimorados com a introduo das

    linhas de montagem idealizadas por Henry Ford, implantadas na produo de automveis a parir de 1913. Devido ao sucesso obido por Ford, essa proposta no tardou a ser incorpo-rada em escala mundial em todos os processos de produo possveis. A somatria das pro-postas de Taylor e Ford passou a ser conhecida posteriormente como taylorismo-fordismo. O clssico ilme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, mostra as caractersicas desse modelo de forma bastante expressiva.

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    cia que teve em todos os meios de trabalho. Trata-se do chamado modelo japons de produo, tambm conhecido como toyoismo6.

    Uma das caractersicas mais marcantes que diferencia o toyoismo do taylorismo-fordismo o aproveitamento da capacidade cogniiva dos trabalhadores no processo de trabalho. Ohno (1997), o engenheiro da Toyota nos anos 1950, idealizador desse modelo, avaliava que no inha senido desperdiar a apido intelectual do trabalhador, colocando--o para realizar apenas trabalho braal em um posto isolado na linha de produo, como izera Ford. Desse modo, alm das tarefas manuais, ele preconizava que o trabalhador tambm deveria apresentar sugestes de melhorias do processo de produo e dos produtos (o que deveria ser realizado enquanto exercia suas tarefas manuais!).

    As tcnicas do toyoismo so legiimadas por discurso gerencial que, entre outras coisas, destaca que o trabalhador poderia desenvolver suas competncias. No entanto, a possibilidade de paricipar de decises que envolviam seu interesse (como reduo do ritmo de trabalho, por exem-plo) e a competncia de criicar as regras impostas coninuavam vedadas (Bernardo, 2009). Assim, podemos dizer que a opresso e explorao que caracterizam os modelos de gesto predominantes na atualidade ocorrem de forma mais camulada, capturando a subjeividade do trabalhador (Alves, 2011) e mantendo-o sob um controle suil por meio de aes ma-nipulatrias que o levam a dedicar-se ao extremo sua funo (Antunes, 1999; Boltanski & Chiapello, 1999; Bernardo, 2009).

    Nesse contexto, o enfoque da Psicologia que derivou da Escola de Relaes Humanas passou a ter um papel fundamental para que as empresas ainjam seus objeivos, pois, no contexto atual, ainda mais importante que o trabalhador esteja subjeivamente envolvido com sua aividade e com seu empregador. possvel dizer que a atuao da Psico-logia aliada aos interesses gerenciais ampliou seu campo de ao e, sem dvida, tambm se soisicou, sobretudo na retrica, que se aproxima do discurso gerencial hegemnico. Assim, no se observam mais declaraes to diretas de psiclogos em defesa dos interesses econmicos, como aquelas de Mnstenberg. Ao contrrio, nota-se que o tom humanista e aparentemente conciliador de Mayo est ainda mais enfaizado. 6 Para mais informaes sobre esse modelo de organizao do trabalho, ver Antunes, 1995;

    Bernardo, 2009; Linhart, 2000, entre outros.

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    No se pode negar que os autores da Psicologia Organizacional incorporaram, no seu discurso, aspectos mais gerais da sociedade, que incluem as desigualdades sociais, as mudanas do mundo do trabalho, etc. Seu campo de atuao tambm se tornou mais abrangente, incluindo temas como clima organizacional, qualidade de vida no trabalho, etc. No entanto, parece-nos que essas mudanas tm um evidente alinhamen-to com as mutaes gerenciais, que, como dissemos, concentram-se em uma lexibilizao muito maior do discurso do que da prica (Bernardo, 2009). Apesar de autores da Psicologia Organizacional buscarem incorpo-rar a ideia proposta por Spink (1996) de que seu foco deve estar sobre os processos psicossociais, o que se nota que sua prica coninua aliada gerncia. Embora de modo mais soisicado, e apoiados na crena de que esto fazendo o melhor por todos, sua ateno, em geral, se mantm na adaptao do trabalhador s regras impostas pelo empregador.

    Spink (1996) ressalta que ideologias proissionais e gerenciais tm a tarefa de representao posiiva da autoridade de mando frente a quem manda e a quem obedece, de tornar natural aquilo que no natural e de faz-lo de forma convincente (p. 179). Parece, assim, que, apesar de toda a transformao discursiva, a ideologia proissional da Psicologia Organizacional coninua a mesma, como se no coubesse ao psiclogo colocar em questo a ordem estabelecida, mas apenas atuar de forma supostamente neutra, com referenciais humanistas de modo a melhorar a qualidade de vida e o bem-estar das pessoas.

    A parir dessas breves consideraes, possvel observar que a Psi-cologia Organizacional nasceu e se consolidou enquanto uma cincia de aplicao prica, vinculada aos interesses postos pelo corpo gerencial e pelo capital, ariculando-se, por exemplo, com a administrao e com a engenharia (Sato, 2003, p. 167). No parece haver, portanto, por parte dos representantes dessa rea, muitas possibilidades de que sua atuao mude signiicaivamente a situao dos trabalhadores, especialmente no que diz respeito s relaes de trabalho estabelecidas ao longo da histria do capitalismo.

    No entanto, tal ideologia proissional no aceita por pesquisadores e proissionais que se inserem na perspeciva que, neste trabalho, est sendo chamada de Psicologia Social do Trabalho. Os estudos e as pricas realizados com esse enfoque se fundamentam na ideia de que o trabalho

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    na sociedade ocidental contempornea pode ter assumido novas coni-guraes, mas a relao assimtrica de poder entre quem emprega e os trabalhadores coninua. Desse modo, buscam compreender de forma am-pla os mliplos aspectos sociais e subjeivos que compem o mundo do trabalho.

    Em contraposio leitura naturalizante e homogeneizante que tem prevalecido em grande parte das aes e dos estudos em Psicologia Or-ganizacional, os psiclogos que se inscrevem na Psicologia Social do Tra-balho tomam como base o carter histrico, heterogneo, contraditrio e conlituoso dessa relao, compreendendo que o trabalho sofre mudan-as e desvios ao ritmo das diversas transformaes econmicas, policas e culturais. As abordagens que se incluem nessa perspeciva so bastante amplas do ponto de vista terico e metodolgico, mas, em geral, tomam referenciais da Psicologia Social crica em dilogo com as Cincias Sociais.

    Uma das principais caractersicas dos estudos desse enfoque que eles no se alinham ao discurso e aos interesses gerenciais. Em muitos casos, inclusive, se contrapem diretamente a ele, buscando evidenciar aspectos presentes nos modelos de organizao do trabalho que so he-gemnicos e suas repercusses para os trabalhadores. Tambm incluem pesquisas que buscam compreender as ticas coidianas e as estratgias (Certeau, 1996) dos trabalhadores para se oporem ao modelo vigente ou para se defenderem de seus aspectos negaivos.

    Pode-se dizer, ento, que os pressupostos que conformam a Psico-logia Social do Trabalho incluem os aspectos subjeivos relacionados ao trabalho a parir da perspeciva dos prprios trabalhadores, entendendo que o trabalho consitudo por espaos de socializao, de construo de idenidades, experincias e signiicados, possibilitados por pricas co-idianas e interaes (Sato, 2003; Sato, Bernardo, & Oliveira, 2008), que ocorrem em um contexto social permeado pelo conlito de interesses.

    Assim, se possvel dizer que a origem da Psicologia Organizacional se deu, sobretudo, na prica vinculada aos interesses gerenciais, a Psico-logia Social do Trabalho, por seu lado, se conigura a parir da pesquisa em Psicologia Social e da aproximao de psiclogos a movimentos sociais de trabalhadores que caracterizaram o perodo de abertura polica posterior ditadura militar. Conforme lembra Sato (2003), desde a dcada de 1970,

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    temos, no Brasil, estudos importantes, no mbito da Psicologia, que focalizam o universo social, os valores, as trajetrias e aspiraes de trabalhadores e trabalhadoras das classes populares, como os de Rodrigues (1978), de Mello (1988) e de Fonseca (2000) que focalizam a vivncia de trabalho e a condio de trabalhadores e trabalhadoras na sociedade hierarquizada. (p. 170)

    Os estudos citados por Sato se situavam genericamente na Psicolo-gia Social, mas pode-se dizer que so precursores da Psicologia Social do Trabalho, a qual, na atualidade, tem ganhado um nmero expressivo de pesquisas e publicaes.

    Nesse contexto, muito comum que se quesione se esse enfoque permite algum ipo de interveno prica. Em resposta a essa indagao, no se pode dizer que exista um campo de atuao especico da Psi-cologia Social do Trabalho, mas o que ela traz de novo para o quefazer (Marin-Bar, 1996) do psiclogo um olhar crico para os processos e relaes de trabalho nas suas mais diversas expresses, sem oferecer receitas ou modelos predeinidos para a prica. Isso no quer dizer, contudo, que psiclogos no possam realizar intervenes a parir dessa perspeciva terico-metodolgica.

    Nesse senido, a seguir, vamos exempliicar algumas possibilidades de atuao com o enfoque da Psicologia Social do Trabalho.

    Possibilidades de atuao da Psicologia Social do Trabalho

    Entendemos que, para pensar a atuao a parir da perspeciva da Psicologia Social do Trabalho, necessrio que o psiclogo compreenda os aspectos mais amplos do contexto em que vive. Quando esses prois-sionais passam a conceber os fenmenos sociais a parir de uma perspec-iva histrica e crica, se tornam capazes de releir sobre essa estrutura e transformar sua prica.

    Para isso, o proissional da Psicologia deve se perguntar perma-nentemente: sob que condies estou realizando meu trabalho? Quais so as orientaes que me inspiram? Para quem e para que serve mi-nha aividade? Quais so as caractersicas do contexto em que estou atuando? Estes quesionamentos possibilitam uma direo de pensa-

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    mentos e posies para serem deinidas (ou redeinidas) na aividade proissional.

    Conforme j foi destacado anteriormente, a Psicologia Social do Tra-balho estuda e promove discusses sobre as implicaes policas e sociais da relao indivduo-trabalho no contexto social (Sato, Bernardo, & Olivei-ra, 2008), tendo como premissa que as relaes de trabalho so perme-adas por assimetrias de poder. A prica do psiclogo, nessa perspeciva, pressupe que sua interveno deve se iniciar com uma anlise integral das contradies do trabalho dentro das condies dadas por seus pro-cessos de produo pariculares. Essa ao da Psicologia parte da ideia de que as idenidades das pessoas no so ixas, pelo contrrio, correspon-dem a posies especicas dadas pelo contexto social e insitucional, no qual se constri, dia a dia, a coidianidade do trabalho (Sato, 2003; Sato, Bernardo, & Oliveira, 2008).

    Tal postura implica a necessidade de pensar outras formas de fazer Psicologia com o propsito de estabelecer novas coniguraes que pos-sam responder aos problemas reais e atuais. Nessa perspeciva, um dos principais desaios do psiclogo consiste em deixar de lado a ideia de se pensar como autoridade nica, dona de um conhecimento mico sobre o outro. Cabe a esse proissional superar os esquemas alienados, que, muitas vezes, esto presentes na sua formao, abandonando posturas cmodas que prevalecem em seu exerccio e desmontando discursos le-giimadores de pricas focadas nos interesses dos mais privilegiados.

    Para Prilleltensky (1994), se os psiclogos no se quesionam acer-ca da dimenso ico-polica de sua atuao, inevitavelmente, acabam trabalhando a favor dos que tm mais poder. O autor airma que fun-damental que a Psicologia que atua no campo do trabalho resolva o dile-ma ico abandonando a falsa neutralidade, ou seja, deixando de lado a premissa de que as intervenes psicolgicas favorecem igualmente aos empresrios e aos trabalhadores. O posicionamento ico-polico que se espera do psiclogo social do trabalho encontra eco nas airmaes de Marn-Bar (1996), que, apoiado em Paulo Freire, airma que o papel do psiclogo no mundo do trabalho, como em qualquer outro mbito, pro-mover a conscienizao. Segundo ele:

    Prope-se como horizonte do seu quefazer a conscienizao, isto , ele deve ajudar as pessoas a superarem sua idenidade alienada, pessoal e

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    social, ao transformar as condies opressivas do seu contexto. Aceitar a conscienizao como horizonte no exige tanto mudar o campo de traba-lho, mas a perspeciva terica e prica a parir da qual se trabalha. (p. 7, grifo nosso)

    Assim, apesar das diiculdades encontradas nesse contexto, ao bus-car assumir uma postura ica e libertria, o psiclogo direcionar suas aes em favor dos trabalhadores, entendendo que suas intervenes po-dem ter repercusses policas signiicaivas, sendo uma poderosa ferra-menta para a transformao do poder na sociedade. Em resumo, o convite para aceitar a existncia do conlito capital-trabalho em suas mliplas coniguraes e afront-lo com diversas estratgias para, assim, conseguir um efeito emancipatrio, ainda que possa ser um processo extremamen-te lento, lembrando que, s quando alcanamos uma compreenso pol-ica e psicolgica integrada do poder, do bem-estar e da jusia, podemos mudar o mundo a nosso redor (Prilleltensky, 2004).

    Considerando esses argumentos, uma indagao que surge frequen-temente quando se apresenta a perspeciva da Psicologia Social do Traba-lho a seguinte: possvel a atuao do psiclogo social do trabalho no contexto da empresa? Por isso, optamos por apresentar o posicionamento das autoras com relao a esse quesionamento antes de discuir outros contextos em que a atuao, de acordo com os princpios apresentados neste trabalho, parece ser mais exequvel.

    O que pode fazer a Psicologia Social do Trabalho em empresas?

    O argumento mais uilizado por psiclogos que atuam em empresas o de que buscam promover o bem estar ou a qualidade de vida dos trabalhadores e que seria possvel conciliar esse objeivo com os interes-ses das empresas. Todavia, conforme foi discuido na primeira parte deste captulo, essa postura proissional, ainda que bem intencionada, ser in-gnua, pois, se iver sucesso, o psiclogo ir apenas amenizar os efeitos da explorao sobre o trabalhador e favorecer o empregador, evitando que os conlitos apaream.

    Assim, considerando a perspeciva defendida de que o psiclogo tem, entre seus focos, o propsito de promover a conscienizao dos tra-

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    balhadores com relao sua posio na relao capital-trabalho, parece dicil pensar em alguma possibilidade de atuao no cenrio empresarial privado. Por outro lado, conforme ser apresentado no prximo tpico, o psiclogo pode ter um papel importante em diversos contextos de traba-lho, desde que estes no tenham como inalidade o lucro de alguns sobre o trabalho de outros.

    Assim, o mundo do trabalho apoiado pelos valores capitalistas coloca o psiclogo que trabalha em empresas privadas em uma condio de tenso, cercada por vrias limitaes para realizar um trabalho de emancipao, j que ele mesmo tambm se encontra diretamente subordinado ao poder do capital. Em princpio, dicil considerar que o psiclogo que tenha conscincia das contradies deste contexto possa ter uma atuao crica em uma empresa na qual ele mesmo empregado ou contratado como prestador de servios autnomos. Evidentemente, em sua condio de trabalhador, ele tambm vivencia um conlito, do qual emergem suas prprias tenses, que abrange, por um lado, a ameaa de perda do emprego ou do contrato e, por outro, a possibilidade de mudana na assimetria de poder nas relaes de trabalho. Assim, a questo est na condio que tem para perceb-lo, afront-lo e resolv-lo.

    Tendo em vista tudo o que foi discuido, pode-se deduzir que, formalmente, no possvel para um psiclogo atuar em uma empresa com base na perspeciva que entendemos estar na base da Psicologia Social do Trabalho, j que ela adota preceitos que vo na direo contrria do que buscado pelo setor privado. Como se pode promover conscincia da explorao do capital sobre o trabalho atuando de forma subordinada ao primeiro? Poder-se-ia responder a essa indagao dizendo que, no contexto atual, a nica forma de fazer isso seria clandesinamente, ou seja, sem o consenimento do empregador.

    A parir desse pressuposto, seria o caso de airmar que todo psiclogo que atua em empresas com ins lucraivos ocupar necessariamente um lugar pr-capital? Trata-se de uma airmao radical que no cabe neste trabalho. Pode-se dizer que, apesar de no ter condies para um quefazer direcionado para a conscienizao dos trabalhadores, um psiclogo que trabalhe em empresas privadas e tenha uma postura crica ter como desaio buscar manter, pelo menos, uma postura ica. Desse

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    modo, se no possvel promover mudanas, o respeito dignidade e integridade dos trabalhadores dever ser o principal elemento a guiar sua atuao coidiana, alm de pautar suas pricas na anlise crica do entorno polico, social e laboral. Este trabalho deve realizar-se sob as premissas da recuperao, revalorizao e atualizao de sua misso frente ao compromisso crico e social deinido pelo Cdigo de ica Proissional, mas no possvel dizer que se trate de uma prica embasada na Psicologia Social do Trabalho.

    Em resumo, tendo em vista os pressupostos defendidos, considera-mos que as possibilidades de atuaes cricas no ambiente empresarial icam bastante limitadas para o psiclogo. O que um proissional que com-pactue com os pressupostos da Psicologia Social do Trabalho pode buscar so pequenas intervenes coidianas, que possam passar despercebidas, mas que se conigurem como ticas (Certeau, 1996), que possam con-verter o saber psicolgico em um conhecimento crico das situaes que permeiam os ambientes de trabalho, transformando-o em agente facilita-dor de modiicaes sociais ainda que limitadas e voltadas para o longo prazo.

    Entretanto, existem outros contextos nos quais o psiclogo social do trabalho pode ter uma interveno promissora. Vejamos alguns exemplos.

    Exemplos de contextos em que a atuao do psiclogo social do trabalho possvel

    Compreendemos que a atuao em espaos que possibilitem uma relexo crica, ou mesmo uma paricipao mais efeiva no processo de deciso, mais fril para a atuao do psiclogo social do trabalho, que pode paricipar mais aivamente da organizao do processo de trabalho e contribuir para a transformao do contexto social. Entretanto, locais que oferecem essa possibilidade de atuao no so comuns, pois a paricipa-o dos proissionais na organizao do trabalho no uma prica com-pavel com o modelo de produividade imposto pela ordem dominante.

    Assim, importante ressaltar que a ideologia subjacente ao modelo capitalista se expande para os mais diversos mbitos sociais, chegando aos setores pblicos (Blanch & Cantera, 2011) e at mesmo s instncias

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    de organizao dos prprios trabalhadores, como alguns sindicatos, que passam a orientar-se pelas policas neoliberais e princpios do setor pri-vado. comum observar-se que formas organizaivas que no tm ins lu-craivos tambm acabem limitando a autonomia dos trabalhadores, bem como as possibilidades de uma prica compromeida com a transforma-o das relaes de produo.

    Apesar dessa importante ressalva, com base nas nossas prprias vi-vncias proissionais, podemos airmar que os espaos de trabalho que no tm por inalidade a busca do lucro como o setor pblico, rgos de representao dos trabalhadores (sindicatos), cooperaivas (ou outros empreendimentos autogesionrios) e associaes diversas oferecem mais possibilidades de atuao compavel com os pressupostos da Psico-logia Social do Trabalho do que as empresas privadas.

    Nesses contextos, os proissionais podem encontrar melhores con-dies para manter uma postura crica, pois eles no consituem (ou no deveriam consituir) o foco direto de tenso da contradio capital-traba-lho, como o caso de empresas privadas. Considerando esse pressuposto e tomando por base a experincia concreta das autoras, apresentamos alguns exemplos de contextos nos quais possvel realizar intervenes compaveis com a perspeciva da Psicologia Social do Trabalho.

    Na sade pblica, os psiclogos sociais do trabalho so convidados a atuar na preveno, promoo e interveno na sade integral do tra-balhador, buscando uma paricipao aiva na elaborao e execuo de Policas Pblicas que favoream as condies de trabalho.

    Podemos apontar a Sade do Trabalhador7 como o principal cam-po da sade pblica no qual pode atuar o psiclogo social do trabalho. Alm do atendimento direto a trabalhadores que adoeceram no trabalho, so realizados estudos e vigilncia em ambientes de trabalho, buscando formas de preveno aos agravos na sade em decorrncia da aividade laboral.

    A atuao dos psiclogos no campo da Sade do Trabalhador deve ser orientada no senido de preservar a sade sica e metal dos trabalhadores e fomentar a discusso sobre a dimenso psicolgica e a compreenso 7 Para uma discusso mais aprofundada sobre a insero da Psicologia na Sade do Trabalha-

    dor, ver Bernardo et al., 2013.

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    do sofrimento psquico relacionados ao processo de adoecimento decorrente do trabalho (CREPOP, 2008, p. 32). As intervenes desse ipo costumam ser realizadas em aividades grupais, que podem ter objeivos e caractersicas diversas mas que, em geral, tm inalidade terapuica e informaiva, fornecendo informaes e problemaizando a relao entre o adoecimento do trabalhador e sua aividade laboral, de modo a promover sua conscienizao sobre as relaes de trabalho s quais esto submeidos.

    O psiclogo social do trabalho tambm pode paricipar de aivida-des relacionadas vigilncia em sade do trabalhador, que compreendem a ideniicao, o controle e a eliminao dos riscos nos locais de traba-lho (CREPOP, 2008, p. 33). As intervenes devem sempre priorizar a vi-vncia coidiana dos trabalhadores e o conhecimento acumulado por eles sobre o processo de trabalho e, nesse senido, o psiclogo pode favorecer a paricipao dos trabalhadores no processo de ideniicao de fatores presentes no seu trabalho que podem prejudicar sua sade ou, mesmo, sua integridade sica.

    Devemos lembrar que a interveno em sade do trabalhador no deve ocorrer apenas em unidades especializadas, como so os Centros de Referncia em Sade do Trabalhador (CERESTs), mas em qualquer ipo de servio de sade e, especialmente, da sade pblica. Deve-se desta-car que a ideniicao e preveno de agravos sade dos trabalhadores iniciam-se no atendimento bsico. Assim, importante que os proissio-nais da rede bsica de sade tenham condies de ideniicar os casos em que o adoecimento sico ou o sofrimento psquico so decorrentes das relaes de trabalho nas quais as pessoas se inserem.

    A contribuio do olhar da Psicologia Social do Trabalho, portanto, seria importante para fundamentar o quesionamento e a desnaturali-zao da forma como se organiza o trabalho no contexto capitalista, im-pondo coidianamente a superao dos limites sicos e psquicos para os trabalhadores.

    Alm do campo da Sade do Trabalhador, um espao dentro das po-licas pblicas no qual o psiclogo social do trabalho pode ter uma atu-ao destacada o da Assistncia Social, especialmente nos Centros de Referncia de Assistncia Social (CRAS). Nesse contexto, alm do trabalho de ariculao com outros servios, o psiclogo est em contato direto

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    com populaes em situao de vulnerabilidade social8 e que, portanto, enfrentam coidianamente a falta de acesso a aspectos bsicos para sua sobrevivncia, como alimentao, moradia, saneamento bsico, sade, educao e, tambm, a falta de trabalho.

    Apesar de se tratar de uma rea voltada para o atendimento scio assistencial, a atuao do psiclogo com o olhar crico para as questes do trabalho pode se dar no senido de ampliar as relexes dessa po-pulao sobre o fenmeno que a ainge. Mais do que realizar reunies socioeducaivas de carter disciplinar, orientando a populao a seguir as condicionalidades dos programas oferecidos pelo governo, poss-vel realizar aividades com foco na questo do acesso ao trabalho e na problemaizao do formato das relaes de trabalho, em propostas de criao de novas alternaivas de produo, bem como nas inluncias de fenmenos como a reestruturao produiva e a globalizao da econo-mia no agravo dessa problemica.

    Outra possibilidade de atuao com o olhar da Psicologia Social do Trabalho pode ser encontrada junto s instncias de representao de trabalhadores, como associaes e sindicatos. Apesar de ser um campo ainda restrito (especialmente porque a imagem que muitos sindicatos tm do psiclogo a do clnico e do proissional de RH, aliado das em-presas), apresenta possibilidade de atuao compavel com os preceitos de uma Psicologia compromeida com os interesses dos trabalhadores. Uma das funes do psiclogo social do trabalho seria prestar assessoria em avaliao de condies de trabalho (Sato, Lacaz, & Bernardo, 2006), juntamente com os trabalhadores e outros proissionais, contribuindo no processo de formao de trabalhadores e sindicalistas. A atuao do psi-clogo social do trabalho nesse campo tambm pode se dar no senido de efeivar pricas que contribuam para a promoo da autonomia dos trabalhadores, no senido em que pode apontar para a formao de uma conscincia crica sobre as condies socioeconmicas a parir das quais constroem sua trajetria de trabalho.8 De acordo com a Polica Nacional de Assistncia Social PNAS, o conceito de vulnerabil-

    idade social deine o pblico alvo da Assistncia Social. Nessa polica, considera-se que a vulnerabilidade social pode se decorrente da pobreza, privao (ausncia de renda, pre-crio ou nulo acesso aos servios pblicos, dentre outros) e, ou, fragilizao de vnculos afe-ivos-relacionais e de pertencimento social (discriminaes etrias, tnicas, de gnero ou por deicincias outras) (Resoluo n. 145/2004, p. 33).

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    A prxis dos psiclogos nos sindicatos e associaes de proissionais pode incluir, ainda, a interveno sobre as aividades que provoquem ado-ecimento, bem como a ideniicao de alternaivas para prevenir os im-pactos prejudiciais do processo produivo para a sade do trabalhador. A realizao de pesquisas que visam sistemaizao do saber acumulado pelos trabalhadores se conigura como mais uma possibilidade de atuao no mbito sindical. Devemos lembrar que, na dcada de 1960, a organi-zao dos trabalhadores italianos para reivindicaes relaivas sade no trabalho que acabaram por inluenciar o movimento de trabalhadores do Brasil e o prprio campo da Sade do Trabalhador teve importante cola-borao de um grupo de psiclogos9.

    As cooperaivas populares10 tambm apresentam uma conigura-o interessante para a atuao do psiclogo social do trabalho, pois se caracterizam por apresentar uma organizao de trabalho diferenciada. O grande desaio dessas formas de organizao o de fomentar a auto-nomia e a paricipao efeiva nos processos de deciso de trabalhadores que nasceram e construram sua trajetria proissional em uma posio de subordinao a uma estrutura econmica e social pautada na explora-o. Assim, as contribuies da Psicologia Social do Trabalho se colocam no mbito da relexo sobre esse processo de transio, no fomento paricipao democrica em espaos que antes eram inacessveis aos tra-balhadores. As aividades nesse contexto podem se deinir basicamente pela paricipao e pelo envolvimento efeivo do psiclogo nos empreen-dimentos, ariculando espaos de discusso e contribuies do coleivo no senido de organizar e no meramente executar as tarefas do processo produivo.

    Para inalizar, destacamos tambm a prica acadmica, que repre-senta um mbito importante de atuao para o psiclogo social do traba-lho. Como discuiremos nas consideraes inais desse captulo, por meio do ensino e da pesquisa, possvel contribuir para a elaborao e propaga-o de conhecimentos sobre as condies de trabalho na atualidade e so-bre suas consequncias para a sade sica e psquica dos trabalhadores. A 9 Para mais detalhes sobre esse processo, ver Oddone et al. (1986).10 O uso do termo cooperaivas populares se faz necessrio a im de determinar a que ipo

    de cooperaiva se refere. Pretendemos esclarecer que no trataremos de cooperaivas que so consitudas somente para concorrer com empresas de terceirizao de mo de obra, sublocando seus cooperados por valores muito inferiores aos que seriam pagos atravs de contratos de trabalho via Consolidao das Leis do Trabalho CLT.

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    Coleo Pricas sociais, policas pblicas e direitos humanos

    atuao na formao de novos proissionais pode proporcionar o quesio-namento das pricas hegemnicas da relao entre a Psicologia e o mun-do do trabalho e oferecer aos futuros proissionais uma formao crica e voltada para o atendimento das reais necessidades dos trabalhadores.

    Os contextos apresentados so apenas alguns exemplos da ampla gama de possibilidades de atuao do psiclogo social do trabalho. Mas no se pode esquecer que essa atuao tambm sofre a imposio de limites diversos. Uma das principais diiculdades encontradas a falta de ariculao entre os proissionais que comparilham um olhar crico e a burocraizao das insituies, ou seja, visveis consequncias da diviso social do trabalho.

    A atuao do psiclogo social do trabalho tambm limitada pelas diiculdades que enfrentam as pessoas para as quais seu trabalho se di-reciona, seja no plano concreto (por exemplo, a submisso a condies precrias de trabalho para suprir necessidades bsicas) ou no nvel ide-olgico (aceitao do iderio capitalista como natural e no passvel de mudanas). Assim, frequentemente o trabalho dos proissionais compro-meidos com a emancipao social dos trabalhadores consiste em cons-truir uma relexo sobre as possibilidades de transformao cultural ne-cessria para a construo de novas relaes de trabalho nos contextos acima apresentados.

    Outra questo relevante que no se pode esquecer a terceiriza-o do trabalho do psiclogo e a consequente precarizao do vnculo empregacio desse proissional, seja no setor pblico ou em insituies sem ins lucraivos, fator que constrange sua atuao crica tanto quanto ocorre nas empresas privadas. Observa-se, assim, que a atuao a par-ir da perspeciva da Psicologia Social do Trabalho enfrenta limites como em qualquer outro campo. Mas, tendo em vista que se trata de pricas contra hegemnicas e com poucas experincias anteriores que balizem as aividades, as diiculdades enfrentadas pelo proissional que adota esse enfoque so ainda maiores. Apesar disso, as autoras deste captulo atestam que tambm podem ser bastante prazerosas, especialmente, por possibilitar uma ao com vistas transformao de uma sociedade hie-rarquizada e injusta.

    Para resumir, podemos destacar que alguns dos principais desaios para a atuao crica do psiclogo no campo do trabalho so (a) a lgica

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    Psicologia social e trabalho: perspecivas cricas

    capitalista que ainge todos os setores de atuao, inclusive o setor pbli-co e alguns rgos de representao de trabalhadores; (b) a falta de inte-resses e/ou condies para a contratao de psiclogos nesses segmen-tos, uma vez que os concursos para preenchimento de vagas de psiclogos no setor pblico so raros e as outras insituies citadas, em sua maioria, ainda no privilegiam a contratao desse proissional e (c) a precarizao dos vnculos empregacios e das condies de trabalho oferecidas para os psiclogos.

    Consideraes inais

    No h como negar que o trabalho ainda central na sociedade em que vivemos e que exerce um impacto muito grande na subjeividade de todos os indivduos. Por isso, acreditamos que uma viso crica sobre as condies e organizaes do trabalho na atualidade deve permear a atua-o do psiclogo, indiferentemente da sua rea de atuao. Desse modo, inalizamos este captulo com uma breve relexo sobre a formao ofere-cida pelos cursos de Psicologia para que possamos ter proissionais mais atentos e compromeidos com as questes relacionadas ao trabalho.

    Infelizmente, grande parte das universidades brasileiras ainda orga-niza seus projetos pedaggicos como se a Psicologia que focaliza o trabalho fosse unicamente aquela que se ocupa de aspectos gerenciais, privilegian-do, assim, um contedo terico e prico voltado para o gerenciamento de pessoas em organizaes diversas, especialmente empresas privadas. Desse modo, oferecem poucas possibilidades de estgios em campos que propiciem aes a parir da perspeciva da Psicologia Social do Trabalho.

    Entretanto, devemos lembrar que, mais do que formar proissionais para o mercado, a universidade tem importante papel na formao de sujeitos sociais icos (Soares & Cunha, 2010). Desse modo, defendemos que se deve incluir, nos cursos de Psicologia, o contato com uma pers-peciva crica sobre as relaes de trabalho, como aquela apresentada neste trab