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Bourdieu X Schutz: proposta topológica e o interacionalismo simbólico a caminho do nordeste brasileiro.
Afife Salim Sarquis Fazzano1
Universidade do Oeste Paulista – PP/SP
RESUMO
Este artigo tem como objetivo traçar um paralelo entre o pensamento de Bourdieu, a respeito das representações sociais que emanam da dominação da força de poder da classe social privilegiada em uma dada sociedade (quando explica o mercado dos bens simbólicos); com a visão de Schutz sobre a subjetividade presente no sujeito ou grupos sociais. A partir deste paralelo, correlacionar o poder que exerce aquela parcela da sociedade sobre as classes menos privilegiadas, incorrendo como agravante, na elevação do número de analfabetos apontados pelo censo demográfico realizado em 1991 pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE), na região da seca do nordeste brasileiro, mais precisamente na região do município de Ingá/PB2, um dos municípios em que a Unoeste se coloca como parceira no Programa de Alfabetização Solidária. Palavras chaves: 1 - representações sociais, 2 - dominação, 3 - subjetividade
A Cosmovisão sob a ótica de Bourdieu
“Para Bourdieu, a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito constituem uma função lógica necessária que, permite à cultura dominante numa dada formação social, cumprir sua função político-ideológica de legitimar e sancionar um determinado regime de dominação.” (Miceli, 1973, In: Bourdieu, 1985, xvii)
Para Bourdieu, explanado por Rausch (1993), o mundo social é visto como um
espaço com diversas dimensões, baseado nos princípios de diferenciações ou de distribuições que
se constituem através de uma série de propriedades ativas, que lhes conferem força ou poder,
1 Mestre em Educação pela UNOESTE. Especialista em Direção e Chefia na área de Administração Pública pela UNESP e em Magistério do Ensino Superior pela UNOESTE. Prof.a do Departamento de Educação da UNOESTE e Coordenadora Geral do PAS na UNOESTE, Presidente Prudente/SP. [email protected] 2 No censo demográfico de 1991, o Município de Ingá/PB, apresenta um índice de 45,44% de jovens e adultos que são qualificados como analfabetos.
dentro dessas dimensões. Desta maneira, todos os elementos ou grupos são definidos pela
posição que ocupam dentro desse espaço. Bourdieu vê o espaço social como um campo de forças.
Como explica em Rausch (1993, p. 51), espaço social “é um conjunto de relações
de poder, objetivas que se impõem, elas mesmas, a todos que entram no campo e que são
irredutíveis às intenções dos agentes individuais ou mesmo nas suas diretas interações entre os
agentes eles mesmos.”
Bourdieu aponta como representativo de poder do sujeito ou grupo, o capital que
possuem. Vê, esse capital, de maneira objetivada, que pode ser definido como: o capital
simbólico, o econômico, o cultural, e o social. O que determina o lugar de poder do indivíduo ou
grupo é o capital que possui e a composição desse capital. O capital que possui legitima o
indivíduo dando a ele prestígio, renome e reputação.
Quando se refere à composição do capital, Bourdieu explica que os agentes são
distribuídos pela hierarquia que se forma dentro do capital, de acordo com o peso relativo desses
diferentes tipos de bens sociais dentro da totalidade dos ativos. A esse respeito, Rausch (1993, p.
52) coloca que, “a forma tomada em cada momento, em cada campo social, pelo conjunto de
distribuições de diferentes tipos de capital como instrumentos para a apropriação do produto
objetivado da acumulação do trabalho social, define o estado das relações de poder”, sendo que,
essas últimas, são institucionalizadas através do prestígio social. Portanto, a posição que o
indivíduo ocupa em qualquer espaço demonstra informações sobre a suas condições e as suas
posições (as propriedades intrínsecas dos agentes lhes dão a sua condição e suas propriedades
relacionais, a sua posição). As suas relações objetivas de poder tendem a se reproduzirem na
visão do mundo social que é denominada cosmovisão. É desta maneira que se percebe como os
princípios estruturantes da visão do mundo estão enraizados nas estruturas objetivas do mundo
social.
Bourdieu acredita que, na luta simbólica da produção do senso comum acontece o
monopólio de nomear legitimamente. Neste sentido, coloca Rausch (1993) que, por um lado, a
verdade do mundo está em disputa entre atores muito desigualmente equipados para atingir o
estado absoluto da visão e de sua previsão. De outro lado, os agentes, especialmente grupos
ocupacionais, utilizam suas positivas retribuições como marcas distintivas.
O mundo social é o que os agentes fazem dele. O que vai demonstrar sua posição
no mundo será o capital simbólico, o econômico, o cultural e o social que o agente ou grupos
sociais possuem.
Em referência ao capital social, os estudos de Bourdieu contribuem para a visão
que se tem do homem na sociedade, tendo-se a mesma reprodução das relações objetivas. Isto vai
contribuir para a permanência dessas relações: os princípios estruturantes da visão do mundo
estão enraizados nas estruturas objetivas do mundo social, onde as relações de poder estão
também presentes nas mentes das pessoas.
Para Bourdieu (1985), o conhecimento, é a certeza de que os fenômenos são reais
e possuem duas características específicas: realidade objetiva e significado subjetivo. Desta
maneira, compreende-se que, a cosmovisão do homem comum consiste em esquemas disponíveis
de interpretações. Se a realidade for analisada do ponto de vista do ator social, estará sendo
contemplado o significado das ações sociais, suas estratégias de interpretação e de tipificações
que o mesmo recorre nos processos interativos. (conforme explica Rausch, 1993, p. 54)
Para melhores explicações a respeito do interacionalismo simbólico, recorre-se a
Schutz na seguinte análise.
Subjetividade sob a ótica de Schutz
Para analisar a subjetividade é necessário que reportar-se aos fundamentos da
Fenomenologia para maior compreensão dos objetivos aqui propostos.
Segundo Wagner (1979), a Fenomenologia é a ciência que vai além da realidade
cognitiva (conhecimentos objetivos como eles se apresentam), estuda os processos de
experiências humanas subjetivas (experiências vivenciadas pelo próprio indivíduo). Preocupa-se
não só com o que se consegue observar, mas também com o que está por trás da aparência, uma
vez que esta pode esconder o que realmente se é.
O método fenomenológico procura descrever e interpretar os fenômenos, os
processos e as coisas a partir de sua essência. Para o mesmo autor, Husserl é considerado o maior
criador das bases da Fenomenologia e considera o método fenomenológico como uma atitude (o
ato de ir ao âmago do objeto analisado).
Segundo Gadotti (1993, p. 160), Husserl dizia ser a Fenomenologia “a atitude de
‘ir à coisa mesma’, sem premeditações, sem ser conduzido por técnicas de manipulação das
coisas” . Isto não significa rejeitar a pré-concepção que se tem, pois toda pré-compreensão de um
fenômeno, toda interpretação é continuamente orientada pela maneira de se colocar a questão
elaborada pelo sujeito a partir de uma Práxis. Isto quer dizer que, embora se estude os fenômenos
pelo que eles realmente são, não se pode desprezar os conhecimentos que já foram passados a
respeito de um fenômeno estudado, pois isso representa uma experiência que já foi vivenciada
anteriormente.
Gadotti lembra que, o único pressuposto que não é estranho à atitude
fenomenológica é aquele em que toda compreensão é uma relação vital do intérprete com a coisa
mesma, “daí a complementaridade necessária entre Fenomenologia e Práxis ” . (1993, p. 160)
Segundo esta concepção, tudo o que é visto e conhecido já foi apresentado anteriormente e
consequentemente são objetos ou situações que já fazem parte da rotina do ser humano, daí o
autor se referir à pré concepção e à elaboração realizada pelo sujeito através de uma Práxis.
Wagner (1979), explica que Schutz estudou todos os conceitos de Husserl e a
partir desses tratou de explicar cuidadosamente os conceitos relevantes para seus próprios
estudos.
O conteúdo de suas idéias e concepções podem ser subdivididos em cinco
capítulos principais; no entanto, três deles são de especial interesse para o desenvolvimento do
presente trabalho, pois demonstram o relacionamento do indivíduo consigo, com o próximo e
com o seu mundo, e serão aqui analisados detalhadamente:
- O Cenário Cognitivo do Mundo da Vida apresenta a estrutura e o funcionamento
da consciência humana e suas ramificações sociais;
- Ação no Mundo da vida mostra a experiência subjetiva do indivíduo no seu dia a
dia;
- O Mundo das Relações Sociais, a estrutura e o funcionamento do mundo social
como um conjunto de construções mentais e suas duplas raízes na experiência individual e nos
padrões preestabelecidos de relacionamentos sociais.
No capítulo O Cenário Cognitivo do Mundo da Vida, Schutz traça uma discussão
sobre a experiência subjetiva na vida diária e a interpretação do mundo que surge a partir dessa
experiência, faz uma análise dos meios de orientação e interpretação dadas pela sociedade de que
dispõe o indivíduo na vida cotidiana e traça ainda uma investigação sobre os fatores responsáveis
pela escolha de aspectos vivenciados do ambiente, das esferas e sistemas de relevância,
principalmente dos processos de tipificações.
No capítulo: Ação no Mundo da Vida, desenvolve uma teoria subjetiva da ação
humana, fazendo esclarecimentos sobre os problemas de volição, escolha, liberdade e
determinismo dentro do contexto da ação humana.
No capítulo: O Mundo das Relações Sociais, analisa os relacionamentos
interativos que resultam de processos intersubjetivos expressos nas “relações do Nós”, e
comunicação “face a face” entre os semelhantes, levando em conta as formas lingüísticas desses
processos.
Maisonneuve (1967) explica que, para Heidegger, a condição fundamental do
homem é o “Mitsein” (estar com). Mas, esta situação de “estar com”, caracteriza apenas um
relacionamento de massa (como por exemplo: adeptos de um clube, um time de futebol,
componentes de uma greve, de uma passeata) que é superficial, sem um envolvimento pessoal
mais profundo. Esse relacionamento é observado por exemplo, nos movimentos coletivos.
Uma das características próprias do homem é a sociabilidade (relacionamento,
interação social) e por viver em sociedade o homem está sujeito às suas ações e às formas de
controle que essa sociedade exerce sobre ele, sobre os grupos e sobre a comunidade. A esse
respeito Maisonneuve (1967, p. 34) salienta que, “experimentar sentimentos, participar da
mesma condição, é próprio da mentalidade comunitária, querer, estar e fazer juntos, assumir
conscientemente a mesma tarefa, o mesmo projeto”. Reside aí a consciência do “nós”. A
assimilação do “nós” só pode ocorrer entre sujeitos que tenham consciência de si e dos outros,
que tenham superado, como diz, “a tentação do egoísmo individual” que são t ão característicos
em um sistema social. Este é o passo que se procura para um desenvolvimento comunitário: o sair
de si.
Nesta relação comunitária, o sujeito não se sente isolado, é parte ativa em sua
comunidade, interage com seus colegas de grupo, aprende a pensar coletivamente. Nela se realiza
um equilíbrio entre a atração espontânea do sujeito pelos outros e a pressão recíproca do grupo
sobre seus membros. O grupo é respeitado enquanto uma unidade e as resoluções aí tomadas são
acatadas como uma regra a ser seguida. Todo envolvimento grupal tem seu alicerce nestas regras
que são estipuladas para sua própria sobrevivência.
Isto não quer dizer que o indivíduo vá se anular em suas atitudes pessoais, quer
dizer que, o que ficar resolvido a nível de grupo, será realizado, mas o indivíduo também é livre
para seguir seu próprio caminho na procura de uma ascensão profissional ou social, enfim,
contextual, paralelamente.
“A ‘a problemática da correlação’, isto é, o conjunto de problemas demonstrados
pela relação de pensamento com seu objeto, uma vez aprofundada, deixa emergir a questão que
constitui o seu núcleo: a subjetividade.” (Lyotard, 1967, p. 18)
De acordo com a teoria de Husserl (em Wagner, 1979), todas as experiências
diretas de seres humanos são experiências de um “mundo da vida”, são dirigidas para o indivíduo
e o constituem, são testadas nele. Esse mundo compreende todas as experiências cotidianas,
através das quais os indivíduos trabalham seus interesses e negócios. Schutz analisa esse mundo
da vida sobre três aspectos.
Primeiro - enfoca a “atitude natural”, com que o homem atua no mundo da vida:
sua ação com fatos objetivos, as ações com os outros, atitudes em relação às imposições de
costumes e proibições de leis (uma postura pragmática).
Segundo - faz um estudo sobre os principais fatores determinantes da conduta do
ser humano no mundo da vida. O indivíduo se encontra numa “situação biográfica determinada”,
isto é, as atitudes são tomadas tendo em vista as experiências anteriores acumuladas pelo
indivíduo. Segundo o autor, “subjetivamente duas pessoas jamais poderiam vivenciar a mesma
situação da mesma forma.” (em Wagner, 1979, p. 17)
Terceiro: se refere às experiências armazenadas pelo indivíduo ao longo de sua
vida : “o estoque de conhecimento que te m à mão” . Qualquer decisão a ser tomada estará baseada
em seu próprio estoque de conhecimento (relevantes, marginais e irrelevantes). Isto não quer
dizer que ele esteja livre de contradições. Desta maneira, com esses três aspectos atuando
simultaneamente em sua vida, o indivíduo vai formando a sua concepção de mundo, a
interpretação mais geral do lugar de sua comunidade entre as outras, seu relacionamento com a
natureza, com o cosmo e o sobrenatural, inclusive com as “receitas” de comportamento prático
nos campos sociais e técnicos.
Schutz realça o significado subjetivo da participação da pessoa em sua
comunidade como produto de seus esforços para alcançar uma definição de seu próprio lugar, de
seu papel dentro da comunidade e em especial, dos vários subgrupos a que pertence.
É importante citar nesse contexto, a colocação que Sartre faz em Gadotti (1993, p.
161), “O homem sofre a influência não só da idéia que têm de si, mas também de como pretende
ser” . Essa linha de pensamento encaminha-o para um determinado tipo de existência, pois como
explica, um indivíduo não pode ser outra coisa senão aquilo em que se constitui.
Schutz (em Wagner, 1979) explica que o mundo é anterior ao indivíduo, isto é, ele
nasce em um mundo pré-constituído e pré-organizado, não um mundo simplesmente físico, mas
também um mundo sócio-cultural. Sua estrutura é resultado de um processo histórico e difere em
cada sociedade ou cultura. Apesar destas diferenças, entretanto, as sociedades conservam certos
traços comuns, como é o caso dos grupos de idade, de sexo, das hierarquias de superioridade e
subordinação, da liderança dos que estão no poder e dos que são subjugados.
No que se refere à interação, coloca que, a intersubjetividade no mundo da vida
não constitui um problema: para o indivíduo a existência do outro é algo dado. Nessa experiência
de interação, a percepção e a suposição se confundem. Essa percepção do outro é imbuída de
consciência, de sentimentos. As experiências imediatas surgem num ambiente de comunicação
comum. Embora os pontos de vista sejam diferentes e subjetivos, essa interação é marcada por
objetos e atitudes que são percebidos por ambos. Com este relacionamento surgem a
compreensão e o sentimento mútuos.
Como cita Schutz (Ídem, p. 33) “... a situação é elíptica, tem doi s enfoques
subjetivos. Cada uma das pessoas nela envolvida a vivencia de acordo com a sua própria
experiência da situação, da qual a outra é uma parte.” Desta maneira, o indivíduo tem a sua
vivência e a vivência do outro. Neste aspecto se solidifica a experiência do “nós”. O
relacionamento do “nós” é altamente percebido na consciência mútua da outra pessoa; isto
envolve uma participação simpática nas vidas umas das outras, mesmo que este relacionamento
seja temporário.
O relacionamento entre as pessoas pode surgir também, num ambiente em que não
há essas percepções comuns, ou em que, havendo experiências desiguais, se exige que elas gerem
percepções semelhantes. Isto é bem explicado no que se segue, onde salienta como características
da intersubjetividade da intercomunicação direta as que ocorrem em “presença vivida” nas
relações face a face, como já foi explicado, como as atitudes marcantes em forma de gestos,
expressão visual e a comunicação musical. (Wagner, 1979) Desta maneira entende-se que as
intercomunicações vivenciadas pelos indivíduos, mesmo que não haja uma convivência mútua,
servem como ponto de apoio para suas aproximações.
Dentro do conceito geral de sociedade como um grande sistema de interações, é
necessário analisar os subgrupos que são unidades sociais menores. Nesses subgrupos, cada
elemento tem sua esfera de vida pessoal, o que ele compartilha é a parte do “mundo ao alcance
comum” do grupo. Esse mundo é uma zona de relevância que une seus componentes, ele
transcende os interesses particulares dos indivíduos fazendo prevalecer uma espécie de senso-
comum; já o alcance comum é o que delimita o mínimo de acordo.
Esse sistema de costumes estabelece um padrão frente ao qual o grupo interno
define a sua situação.
Levando em conta que o mundo já pré existe ao indivíduo, chega-se à concepção
do mundo como pressuposto, inquestionável, onde as experiências vivenciadas vão continuar
sendo as mesmas e as atitudes tomadas sempre terão resultados já conseguidos anteriormente.
Então, os costumes dos grupos internos, vão ser aceitos como formas boas e corretas de se
confrontar coisas e pessoas, pois se mostraram eficientes em outras ocasiões semelhantes. É um
conhecimento de “receitas prontas” e incontestáveis. Os mesmos problemas requerem as mesmas
soluções.
Segundo Schutz (Ídem, p. 82), “O significado subjetivo, que o grupo tem para seus
membros, consiste em seu conhecimento de uma situação comum e com ela, de um sistema
comum de tipificações e relevâncias”. Nele os indivíduos se sentem à vontade, pois são gui ados
por hábitos, costumes, normas que os auxiliam nas relações com pessoas que compartilham a
mesma significação. Esse sistema de tipificações e relevâncias compartilhados é que vão definir
os papéis, as posições e o status de cada um.
Essa aceitação de um sistema comum de relevâncias leva os membros do grupo a
uma autotipificação homogênea. Qualquer nome inclui uma tipificação. Quando se nomeia
objetos vivenciados esta se relacionando-os, através de sua tipificidade, a coisas já vivenciadas
anteriormente, com estrutura típica, semelhante.
A esse respeito Husserl citado em Wagner (1979, p. 117), esclarece:
“Na verdade, cada experiência é única, e até a recorrência da mesma experiência não é a mesma, porque é recorrência. É uma identidade recorrente e, como tal, é vivenciada num contexto diferente e com coloridos diferentes. Se identifico esta cerejeira em particular do meu jardim com a mesma árvore que vi ontem, embora sob outra luz e com outro colorido, isso só é possível porque conheço o estilo típico desse objeto único aparecer entre as coisas que o cercam. E o tipo ‘esta cerejeira em particular’ se refere aos tipos pré-vivenciados ‘cerejeiras em geral’, ‘árvores’, ‘plantas’, ‘objetos do mundo exterior’. Cada um desses tipos tem seu modo típico de ser vivenciado, e o próprio conhecimento desse modo típico é um elemento de nosso estoque de conhecimento à mão. O mesmo vale para as relações dos objetos uns com os outros, para eventos e ocorrências em relações mútuas, e assim por diante”.
O que vai tornar algo relevante, não é a sua simples tipificação, não são as
características comuns, mas sim as que levam à construção de um novo sub-tipo. É o sistema de
relevância que vai dar ênfase maior à situação pré-vivenciada que interessa no momento presente.
Em relação às tipificações na vida social, os papéis, os status, as instituições, estes
são vivenciados pelo indivíduo diferentemente e se constituem em conceitos formados de acordo
com a sua situação social. São tipificações que já foram formadas por seus predecessores ou
contemporâneos e que são aceitos como apropriados pelo grupo ao qual pertencem e que acabam
por determinar, seus padrões de conduta, seus objetivos.
Por outro lado, existem as autotipificações que são as elaboradas pelo próprio
indivíduo e que o auxiliam a se situar dentro do mundo social, e a manter as várias relações com
seus semelhantes e objetos culturais.
“O mundo, físico e sócio -cultural, é vivenciado desde o início em termos de tipos: existem montanhas, árvores, pássaros, peixes, cães, e entre eles perdigueiros irlandeses; existem objetos culturais, tais como casas, mesas, cadeiras, livros, instrumentos, e entre eles martelos; e existem papéis sociais e relacionamentos típicos, tais como pais, filhos, parentes, estrangeiros, soldados, caçadores, padres, etc. Assim, as tipificações ao nível do senso comum - em oposição às tipificações feitas pelo cientista e, especialmente, o cientista social - emergem, na experiência cotidiana do mundo, como pressupostos, sem qualquer formulação de julgamentos ou proposições claras, com sujeitos e predicados lógicos. Elas pertencem, usando um termo fenomenológico, ao pensamento pré-predicativo. O vocabulário e a sintaxe da língua cotidiana representam o epítome das tipificações socialmente aprovadas pelo grupo lingüístico.” (Schutz citado em Wagner, 1979, p. 118)
O pretendido com esta análise da ótica de Schutz sobre a subjetividade, é deixar
claro como o indivíduo vê o mundo que está à sua volta, como se situa dentro dele, como é seu
relacionamento enquanto membro de um grupo e enquanto um ser independente do grupo,
tipificar, ou seja, caracterizar o grupo como um segmento em sua comunidade, com seus
costumes, atitudes e habilidades.
Encontros e Desencontros.
Relacionando as teorias de Bourdieu e Schutz a respeito do mundo social, observa-
se pontos comuns e pontos divergentes.
Bourdieu se prende à objetividade da legitimidade do poder que o indivíduo, ou
grupo exerce dentro da sociedade, em decorrência da força de poder que emana das suas
condições e posições sociais. Já, Schutz, aborda a subjetividade de cada indivíduo, de cada grupo
e salienta a força do relacionamento que levam à compreensão e sentimentos mútuos, a partir da
percepção comum entre os indivíduos, objetos e atitudes que são percebidos por ambos.
Como pode ser observado na colocação, o mundo é anterior ao indivíduo, pré-
constituído e organizado sócio-culturalmente, que, apesar das diferenças, as sociedades
conservam traços comuns, como é o caso das hierarquias de superioridade e subordinação e a
liderança dos que estão no poder e dos que são subjugados. Neste ponto sobre o poder, cabe
lembrar a visão de Bourdieu que situa o espaço social como um campo de forças. No mundo
social onde persistem as diferenças citadas, as dimensões do mundo social lhes conferem força ou
poder.
Para Bourdieu, a situação de poder do homem é demonstrada pela posse de capital
simbólico, econômico, cultural e social que ele possui. Nesta sua colocação percebe-se a força de
poder que vem dos antigos coronéis ou grandes proprietários rurais do nordeste3 e sua força de
3 O coronel, segundo Magalhães (citado por Lima Sobrinho, em Leal, 1978, p. 19), é uma patente instituída pela Guarda Nacional, criada em 1831, para substituir as milícias e ordenanças do período colonial. A patente de coronel correspondia a um comando municipal ou regional que de início era concedido a um comando efetivo reconhecido pela Regência. Aos poucos, essa patente passou a ser concedida a quem se dispusesse a pagar o preço exigido ou
poder sobre a parcela menos privilegiada economicamente, aqui chamada por povo. Não o
“ mitsein” abordado por Maisonneuve em Wagner, já citado neste artigo, mas de pessoas que
tentam se colocar em capitais melhores, como o social ou cultural, mas são barrados pela
submissão, opressão, pelos subempregos, desemprego e se unificam pela mão-de-obra
desocupada.
Como pontos de encontros observa-se a cosmovisão de Bourdieu e a consciência
do “nós” de Schutz na construç ão do senso comum, quando analisa, por sua vez, o mundo social.
Ao analisar a situação de conformismo do povo nordestino em relação à seca, ao
desemprego, à ignorância das letras (o analfabetismo)4, observa-se que, esse conformismo,
termina por ser uma forma ativa à ação de poder que sofrem e que emana dos poderosos ou dos
coronéis. Em campo já foi observado a consciência do “nós” desse povo que a si mesmo se
caracterizam “nós os nordestinos”, “nós o povo da seca”, “nós os analfabetos”, nós os
conformados com a sina dada pela vida “severina”.
Conforme já colocou Schutz, e que aqui se enfatiza, “... a situação é elíptica, tem
dois enfoques subjetivos. Cada uma das pessoas nela envolvida a vivencia de acordo com a sua
própria experiência da situação, da qual a outra é uma parte.”
estipulado pelo poder público. As patentes traduziam prestígio real, intercaladas numa estrutura profundamente hierarquizada. Para Queiroz (1975, p. 155), os coronéis tinham a função de auxiliar na manutenção da ordem prevenindo as revoltas, promovendo o policiamento regional e local. De acordo com a mesma autora, todos os habitantes livres se integravam nos diversos escalões da Guarda Nacional. Na escala local os chefes mais poderosos ocupavam o cargo de coronel. Com a extinção da Guarda Nacional, esse cargo persistiu, sendo que, o coronel era representado por aquele que mantinha em suas mãos grandes parcelas do poder econômico e político. De acordo com Queiroz (Ídem, p. 155), o Coronelismo tem sido entendido como uma forma de poder político brasileiro, que teve seu auge durante a Primeira República. O direito ao voto estendido a todo cidadão brasileiro ou naturalizado, que fosse alfabetizado, pela Constituição Brasileira de 1891, apenas veio aumentar o número de eleitores, quer fossem citadinos ou rurais, de continuarem a obedecer aos “mandões” políticos já existentes. Os chefes políti cos se mantiveram os mesmos. A política coronelista era a mesma, quer dizer, nos cargos eletivos e representativos, a saber, os membros das Câmaras, as Presidências de Estados, o Senado, eram constituídas pelos apadrinhados, os protegidos dos coronéis. 4 Dimenstein (1995, p. 148) considera polêmica a definição que se dá ao analfabetismo, e de fato assim ela se mostra, pois ao se analisar o que é ou não um analfabeto, depara-se com diversas colocações como as que se seguem. Conforme coloca Soares (citado por Moura et al., 1999, p.7), até a década de 40, o formulário do censo definiu o analfabeto ou alfabetizado perguntando às pessoas se sabia assinar o nome; a partir dos anos 40, o formulário do censo passou a usar a pergunta: sabe ler e escrever bilhete simples? Esta nova forma já demonstra uma preocupação com critérios para definição de quem é analfabeto e de quem é alfabetizado, quando faz uma ligação com o uso social da escrita. Existe aí uma expectativa em relação ao ser alfabetizado – ou letrado.
Injeção de vida
A ação de interferência na cosmovisão ou no senso comum que pode-se realizar
enquanto educadores do Programa de Alfabetização Solidária5, é da instalação dos princípios de
auto-estima, da elevação do espírito crítico e do incentivo à participação na obra do bem comum
do povo nordestino. Se pensar-se com amplitude, pode-se ser mais modesto, interferindo na
mente do aluno do Programa de Alfabetização Solidária. As mudanças que ocorrem na sociedade
exigem que o homem atinja graus cada vez mais elevados de conhecimentos. Parte-se do
pressuposto que quanto mais o homem sabe, mais independência tem em seus atos, melhor será a
maneira de trabalhar a sua criatividade. Como um analfabeto terá condições de avaliar as
plataformas de governos se não sabe ler o que está em suas mãos? Poda-se no homem o direito de
decidir, de se expressar através do voto consciente em uma eleição. Analfabetismo é sinônimo de
falta de cidadania o que vai se refletir na falta de liberdade do ser humano.
Através dessa inferência, estará sendo reconstruído o pensar crítico de uma boa
parcela da população em questão, pois como sempre é salientado aos nossos professores
alfabetizadores: - atrás de cada aluno há sempre um filho, um irmão, uma mãe, um pai, enfim
uma família que, por sua vez, se multiplica, conseqüentemente ampliando o campo de ação na
construção do bem comum.
5 O Programa de Alfabetização Solidária (PAS) faz parte de um projeto do Governo Federal, ligado ao Ministério da Educação, que recebe o nome de Comunidade Solidária. Esta Comunidade foi instituída pela Prof.a Dra. Ruth Cardoso, atual primeira dama do país, que a preside. O Projeto visa dar assistência às regiões de carência sócio-econômica. O modelo do Programa de Alfabetização Solidária propõe a ativa participação da sociedade, que é um elo essencial para o combate ao analfabetismo. Para tanto, o Conselho da Comunidade Solidária mobilizou parcerias, no âmbito do Governo e da sociedade civil. As parcerias estão distribuídas entre o Governo Federal, por meio do Ministério da Educação e do Desporto (MEC); o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB); as universidades; empresas privadas; prefeituras e comunidades dos municípios onde o programa atua; e a Comunidade Solidária. Os parceiros contribuem através de recursos humanos, técnicos ou financeiros, conforme sua área de atuação.
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