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1 BORNHEIM, Gerd. Introdução ao filosofar. O pensamento filosófico em bases existenciais. Porto Alegre: Globo, 1978. Disponível em: Speculum. http://www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/articles/article.php?id=63 Capítulo I – p.1 Capítulo II – p.9 I Posição do Problema O comportamento originante do filosofar e a possibilidade de esclarecer a problemática que tal comportamento coloca, constituem o objeto do presente estudo. Baseado na convicção de que não se trata de um problema que possa ser descartado como simplesmente secundário ou de menor importância, o autor parte, assim, do pressuposto de que a coloração fundamental de uma filosofia já se determina, em certo sentido, a partir mesmo da atitude inicial assumida por todo filósofo. Trata-se, portanto, da problemática implicada no ponto de partida do filosofar. Referimo-nos ao filosofar, e queremos, desde logo, estabelecer uma distinção preliminar. A atitude inicial do filósofo determina o caráter último de sua filosofia. Mas esta determinação, profundamente enraizada no ato de filosofar, não deve ser confundida com o problema do primeiro princípio filosófico, com a primeira afirmação, a partir da qual um determinado filósofo poderá alicerçar e desdobrar o todo de seu pensamento, obediente à incoercível tendência para a sistematização, que é inerente à natureza mesma da filosofia. Este ponto de partida, primeiro princípio, seja ele de natureza lógica, ontológica, gnosiológica ou de qualquer outro teor, sobressai de uma problemática antecedente e condicionante, que vem a confundir-se com certas exigências existenciais de todo filosofar. Tomemos um exemplo. O fato de um Descartes haver estabelecido o cogito como ponto de partida, asserção primeira de toda a sua metafísica, dá a este cogito uma primazia absoluta dentro de uma certa ordem dedutiva. Mas o estabelecimento desse primeiro princípio metafísico radica e corresponde a todo um itinerário prévio. No caso particular de Descartes, tal itinerário é, ao menos parcialmente, conhecido, pois o próprio filósofo nos transmitiu, em diversas de suas obras, as etapas que o levaram a filosofar. Sabemos, por exemplo, de seu descontentamento em face da situação da ciência de seu tempo (1). Homem dado a viagens, fala-nos da necessidade de percorrer "o grande livro do mundo", a fim de conhecer os costumes de seus contemporâneos, bem como os de povos estrangeiros (2), e termina a primeira parte do Discurso do Método declarando: "Tomei um dia a resolução de estudar também em mim mesmo, e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que deveria seguir ". (Idem. p. 132) Pode-se mesmo afirmar que o itinerário anterior ao cogito, seguido pelo Pai da Filosofia moderna, coincide com o predomínio de um profundo sentimento de insatisfação, insatisfação que se vai traduzir, de maneira mais específica, nas diversas etapas que constituem o processo da dúvida metódica. Assim, se o cogito é o ponto de partida metafísico da filosofia cartesiana, o filósofo Descartes faz arrancar as suas preocupações de uma série de circunstâncias que vão condicionar todo o seu pensamento. O problema que o autor deste trabalho se propõe analisar nas páginas que seguem, não é o do cogito ou de qualquer outro princípio semelhante ou de análoga função. Não é tampouco o da legitimidade de um tal ponto de partida. Mas o problema a que se vai atender aqui é o da atitude inicial do filosofar, ou seja: aquele específico comportamento que leva o homem a ocupar-se de filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa, segundo o sentimento de Sócrates. (4) Ora, desde esta vivência de insatisfação — para nos atermos ao exemplo de Descartes — até "a resolução de estudar", há um caminho mais longo do que à primeira vista possa parecer, há mesmo todo um itinerário coincidente com a biografia do filósofo. Aliás, aqui topamos com a nossa primeira dificuldade, pois quem diz biografia, diz algo de estritamente individual e de inconfundível em sua originalidade: existem tantas biografias quantos homens no mundo. E se assim é, pode parecer, em um primeiro momento ao menos, que tudo o que resta a fazer é a história da vida dos filósofos ilustres, transferindo o problema para a extensão da História, sempre inacabada, da Filosofia,e fragmentando-o em um número indefinido de capítulos exemplares. Contudo, quem se resolve ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa resolução, uma certa responsabilidade, um compromisso que, como todo compromisso, impõe determinadas condições, as quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e irredutível em uma existência individual. (5) O caminho do filósofo é um inelutável compromisso com a natureza da filosofia, o que vale dizer: com o próprio sentido do real e de sua verdade. A autenticidade não só de uma filosofia, mas também a de uma vida

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BORNHEIM, Gerd. Introdução ao filosofar. O pensamento filosófico em bases existenciais. Porto Alegre: Globo, 1978. Disponível em: Speculum. http://www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/articles/article.php?id=63 Capítulo I – p.1 Capítulo II – p.9 I Posição do Problema O comportamento originante do filosofar e a possibilidade de esclarecer a problemática que tal comportamento coloca, constituem o objeto do presente estudo. Baseado na convicção de que não se trata de um problema que possa ser descartado como simplesmente secundário ou de menor importância, o autor parte, assim, do pressuposto de que a coloração fundamental de uma filosofia já se determina, em certo sentido, a partir mesmo da atitude inicial assumida por todo filósofo. Trata-se, portanto, da problemática implicada no ponto de partida do filosofar. Referimo-nos ao filosofar, e queremos, desde logo, estabelecer uma distinção preliminar. A atitude inicial do filósofo determina o caráter último de sua filosofia. Mas esta determinação, profundamente enraizada no ato de filosofar, não deve ser confundida com o problema do primeiro princípio filosófico, com a primeira afirmação, a partir da qual um determinado filósofo poderá alicerçar e desdobrar o todo de seu pensamento, obediente à incoercível tendência para a sistematização, que é inerente à natureza mesma da filosofia. Este ponto de partida, primeiro princípio, seja ele de natureza lógica, ontológica, gnosiológica ou de qualquer outro teor, sobressai de uma problemática antecedente e condicionante, que vem a confundir-se com certas exigências existenciais de todo filosofar. Tomemos um exemplo. O fato de um Descartes haver estabelecido o cogito como ponto de partida, asserção primeira de toda a sua metafísica, dá a este cogito uma primazia absoluta dentro de uma certa ordem dedutiva. Mas o estabelecimento desse primeiro princípio metafísico radica e corresponde a todo um itinerário prévio. No caso particular de Descartes, tal itinerário é, ao menos parcialmente, conhecido, pois o próprio filósofo nos transmitiu, em diversas de suas obras, as etapas que o levaram a filosofar. Sabemos, por exemplo, de seu descontentamento em face da situação da ciência de seu tempo (1). Homem dado a viagens, fala-nos da necessidade de percorrer "o grande livro do mundo", a fim de conhecer os costumes de seus contemporâneos, bem como os de povos estrangeiros (2), e termina a primeira parte do Discurso do Método declarando: "Tomei um dia a resolução de estudar também em mim mesmo, e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que deveria seguir ". (Idem. p. 132) Pode-se mesmo afirmar que o itinerário anterior ao cogito, seguido pelo Pai da Filosofia moderna, coincide com o predomínio de um profundo sentimento de insatisfação, insatisfação que se vai traduzir, de maneira mais específica, nas diversas etapas que constituem o processo da dúvida metódica. Assim, se o cogito é o ponto de partida metafísico da filosofia cartesiana, o filósofo Descartes faz arrancar as suas preocupações de uma série de circunstâncias que vão condicionar todo o seu pensamento. O problema que o autor deste trabalho se propõe analisar nas páginas que seguem, não é o do cogito ou de qualquer outro princípio semelhante ou de análoga função. Não é tampouco o da legitimidade de um tal ponto de partida. Mas o problema a que se vai atender aqui é o da atitude inicial do filosofar, ou seja: aquele específico comportamento que leva o homem a ocupar-se de filosofia, a sentir-se até mesmo um condenado a essa tarefa, segundo o sentimento de Sócrates. (4) Ora, desde esta vivência de insatisfação — para nos atermos ao exemplo de Descartes — até "a resolução de estudar", há um caminho mais longo do que à primeira vista possa parecer, há mesmo todo um itinerário coincidente com a biografia do filósofo. Aliás, aqui topamos com a nossa primeira dificuldade, pois quem diz biografia, diz algo de estritamente individual e de inconfundível em sua originalidade: existem tantas biografias quantos homens no mundo. E se assim é, pode parecer, em um primeiro momento ao menos, que tudo o que resta a fazer é a história da vida dos filósofos ilustres, transferindo o problema para a extensão da História, sempre inacabada, da Filosofia,e fragmentando-o em um número indefinido de capítulos exemplares. Contudo, quem se resolve ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa resolução, uma certa responsabilidade, um compromisso que, como todo compromisso, impõe determinadas condições, as quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e irredutível em uma existência individual. (5) O caminho do filósofo é um inelutável compromisso com a natureza da filosofia, o que vale dizer: com o próprio sentido do real e de sua verdade. A autenticidade não só de uma filosofia, mas também a de uma vida

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filosófica, dependem de sua fidelidade ao real. O estudo da consciência filosófica, desde a sua etapa ingênua e pré-filosófica até o despertar para o problema do sentido da realidade, acompanhando as etapas básicas e necessárias de seu desenvolvimento, é o que se propõe, mais especificamente, o autor destas páginas. Evidentemente, a história da filosofia oferece um rio> e variado material para este estudo, que não deve nem pode ser rejeitado. Se quisermos saber quais as características do comportamento filosófico e da atitude inicial do filosofar, nada mais correto, concreto e evidente do que perguntar aos próprios filósofos, aqueles que construíram o monumento da filosofia. Este inevitável otimismo inicial, porém, não tarda em resultar frustrado, e a decepção invade o pesquisador, logo ao início do trabalho. De fato, poucos filósofos ocuparam-se do tema ou deixaram transparecer ao menos aspectos de sua biografia espiritual. O que normalmente se observa é que a obra filosófica apresenta-se já pronta, montada nas suas conclusões, deixando completamente de lado, num abandono imponderável para a pesquisa, aquilo que se poderia chamar a pré-história de um determinado sistema filosófico. Encontra-se um desenvolvimento temático, mas, do ponto de vista do comportamento pessoal do filósofo, não se percebe facilmente o que o levou a um tal desdobramento de idéias. Outras vezes, o problema é abordado em umas poucas linhas, quase por acaso, e o tema, longe de ser realmente ventilado, é proposto, já de antemão, como resolvido, levando o leitor a uma série de conjeturas. Ou ainda, vem-nos em socorro uma página de importância secundária, ou um ensaio de juventude ou alguns trechos de correspondência: apenas breves indicações, que permitem vislumbrar, aqui ou ali, um aspecto do problema. Neste desamparo, a compensação pode vir de alguns poucos pensadores, de tipo existencial, cuja obra, muitas vezes, resume-se em uma espécie de diário íntimo. Por outro lado, a atmosfera geral de uma determinada filosofia pode facultar o acesso à atitude do respectivo filósofo diante da realidade. Assim, a leitura de um Schopenhauer termina por revelar-nos uma postura em face do real profundamente diversa da que encontramos em Nietzsche, por exemplo. Mas, tanto estes filósofos existenciais como aqueles em que podemos discernir através das construções filosóficas uma atitude básica, ao invés de aclarar o nosso problema apenas como que nos advertem da importância fundamental do mesmo, acenando às dificuldades que ele oferece. Em suma, ao cabo de algumas perscrutações ao longo da História da Filosofia, o primeiro e mais iminente perigo que surge é o de dissolver a problemática da atitude filosófica inicial em alguma modalidade de relativismo, afogando a questão nas brumas da história. Uma falsificação do problema consistiria em dissolvê-lo na diversidade de Weltanschauungen, quer dizer, em compreender a filosofia como o espelho que dá unidade cultural a uma determinada época. E isto em nome do bem conhecido argumento que diz que a filosofia das concepções do mundo, fazendo soçobrar a problemática filosófica dentro de certos limites do horizonte histórico, só pode fazê-lo em nome de uma filosofia, e esta, por sua vez, coloca, em pé de igualdade com qualquer outra, o problema de sua validez. E, dentro da perspectiva que estamos examinando, este historicismo também não poderia fugir, como qualquer outra modalidade de filosofia, ao problema da atitude inicial do filosofar. Vale dizer que a legitimidade da filosofia não pode obedecer a uma pesquisa reduzida ao estritamente histórico, pois se se trata de legitimidade, o plano meramente histórico, a quaestio facti, revela-se por definição insuficiente e deve ser transcendido. Ou bem a perspectiva historicista, em qualquer de suas modalidades, é correta, e neste caso o nosso problema a rigor não existe, pois se confundiria simplesmente com uma espécie de culturologia ou tipologia, exigindo da filosofia a abdicação de seus foros de ciência: ela não passaria, portanto, de uma espécie de morfologia filosófico-cultural, que jamais seria total e completa, incidindo naquela fragmentação a que nos referimos acima; ou então, contrariamente, devemos admitir o erro em que incide o historicismo, impondo-se a tarefa de julgá-lo — transcendendo-o conseqüentemente — assim como se julga qualquer outra filosofia. Portanto, se quisermos manter de pé o nosso problema, somos obrigados a dar razão a Husserl, quando, em uma de suas obras, distingue filosofia e Weltanschauung: "A história, a ciência empírica do espírito em geral, é incapaz de decidir com seus próprios meios, em um ou outro sentido, se se pode distinguir a religião como forma particular de cultura, da religião como idéia, isto é, como religião válida; se é necessário distinguir da arte, forma da cultura, a arte válida; do direito histórico o direito válido; e finalmente se é necessário distinguir entre a filosofia no sentido histórico e a filosofia válida; se há ou não entre uns e outros a relação da idéia, no sentido platônico da palavra, com a forma velada de sua aparição". (6) Embora não possamos aceitar integralmente o extremo rigorismo desta distinção, típica do "cientificismo" do Pai da Fenomenologia, cabe reconhecer que o próprio Husserl não deixa de acentuar o imenso valor da história para o filósofo. (7)

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De fato, para o problema em discussão, o mérito fundamental do historicismo, além da enorme riqueza de material que possa oferecer a sua modalidade de pesquisa, consiste, malgrado as suas limitações, em ter recolocado o problema da natureza da filosofia, bem como o da atitude inicial do filosofar, que decorre daquele. Pois se tocamos aqui no problema do historicismo, não é para mostrar a incompatibilidade de uma posição imanentista em face da natureza própria da filosofia — que foge ao tema proposto — porém para destacar ainda mais a importância da motivação na atitude inicial do filosofar. E aqui temos um problema que, se mergulha profundamente em condições sócio-culturais,se determina sobretudo a partir do telos que lhe é próprio: a busca da verdade. Não é, à maneira de Husserl, o problema da validez da filosofia que nos vai interessar. Se recusamos legitimidade à tese historicista, é porque nos sentimos mais libertos para acentuar uma característica do problema sobre a qual deveremos insistir ao longo deste trabalho: referimos-nos à densidade existencial que acompanha necessariamente o filosofar; e, como é óbvio, a dimensão existencial do homem não pode ser dissociada de sua profunda e fundamental historicidade. Precisamente em relação à radical historicidade do ser humano, o historicismo desfalece e se revela insuficiente. (8) Mas abordemos o problema sob um outro aspecto: o do surto histórico do pensamento filosófico. A deficiência fundamental deste tipo de análise é a sua objetividade alienadora. Não se respeita nela a distinção entre o comportamento filosófico e o comportamento do historiador da filosofia, ou seja, daquilo que Heidegger chama de Philosophiewissenschaft. (9) Sem dúvida, a análise histórica é imprescindível; é ela que nos permite aceder ao condicionamento possibilitador de certa etapa do desenvolvimento da filosofia. Contudo, embora reconheçamos a necessidade de tal tipo de análise, importa salientar aqui a sua radical insuficiência. O fato forçoso de haver a filosofia surgido em um determinado momento da cultura ocidental não é suficiente para considerar a explicação desse fato como um problema coincidente com o da atitude inicial do filosofar. Na verdade, o problema colocado dentro da moldura da origem histórica da filosofia — mesmo se deixarmos de lado o caráter de particularidade inerente a tal tipo de elucidação — contribui muito menos do que à primeira vista parece para a temática do filosofar. Por mais que se busquem causas históricas para explicar a gênese do pensamento filosófico, por mais ricas que sejam as conclusões alcançadas neste domínio, sempre sobrará um resíduo irredutível e por assim dizer refratário à explicação causal: sempre cairemos na necessidade de aludir a um "milagre grego". Diante da possibilidade dessa investigação histórica, dois parecem ser os caminhos básicos que podem ser seguidos. O problema consiste em buscar as causas históricas da filosofia e da cultura grega, e o primeiro caminho implica em fazer um inventário das influências extra-gregas — egípcias, babilônicas, fenícias, persas, etc. — que tenham contribuído para a formação do mundo grego. Mas na medida em que esse tipo de explicações for coroado de sucesso, o fenômeno mesmo que se quer explicar esvai-se, pois dissolve-se a originalidade da cultura grega, no sentido de que se reduz o grego a elementos pré-gregos. Impõe-se, então, o reconhecimento de que a especificidade da cultura grega permanece inexplicada, e assim, por mais ricas que sejam as análises, subsiste o fato de que esta cultura é diferente das outras culturas da época. O outro caminho, que permanece aberto, é o da tentativa de uma explicação interna, desde dentro da própria Grécia, do original grego, para chegar, assim, à origem da filosofia antiga. As análises aqui se enriquecem e podem ser conduzidas pelos mais diversos pontos de vista: filológico, literário, religioso, artístico, econômico, político, etc. Mas a riqueza dessas análises não consegue, aqui também, elidir aquele resíduo que permanece sempre inexplicado. Realmente, a ciência do individual, do histórico, não tem fundo, daí por que uma análise da cultura grega permanecerá sempre insatisfatória. Não há ciência, não há intuição, não há amor, que possa fazer um indivíduo compreender de maneira absoluta um outro indivíduo, seja pessoa ou fato cultural, histórico. A asserção de Heráclito é rigorosamente válida: "Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu Logos ". (Cf. DIELS. fragm. 45) Se abrimos esse parêntese sobre a perspectiva histórica na consideração da origem do pensamento filosófico, não foi, evidentemente, para roubar a virtude própria desse tipo de análise, mas para mostrar a sua radical insuficiência na abordagem do problema que nos interessa. A nosso ver, o que a história não pode fornecer, podê-lo-á uma análise de ordem antropológico-existencial, radicada, portanto, no comportamento daquele ser que faz e é responsável pela filosofia. Para isto, devemos pagar o preço próprio de todo conhecimento científico, isto é, devemos ficar no plano do geral. Mas é precisamente a possibilidade de permanecer nesse plano do geral que permite pôr a descoberto a extensão universal da atitude originante do filosofar, e deste modo vinculá-la a todos os que penetram no âmbito filosófico, sejam gregos ou não, ressalvadas, evidentemente, as peculiaridades de cada indivíduo, e respeitadas as

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circunstâncias históricas. Afirmamos acima que, se quisermos saber da atitude inicial do comportamento filosófico, o caminho que se impõe de imediato é consultar os filósofos. Realmente, se desejarmos perceber, de maneira mais concreta, a complexidade do problema, lancemos mão, por um instante, de certos exemplos que nos oferece a História da Filosofia. Olhando sobre o passado da filosofia, deparamos com certas atitudes básicas, predominando diversamente, umas ou outras, em cada filósofo. Karl Jaspers destaca três destas atitudes (Introduction à la philosophie. Trad. Jeanne Hersch. Paris, Pion, 1952, p. 15-18), que talvez não sejam as únicas possíveis, mas que são encontráveis com certa freqüência, resguardadas diferenciações por vezes fundamentais: a) A primeira atitude nos vem da Grécia clássica. Platão e Aristóteles pretendiam ver na admiração o impulso inicial de todo filosofar. No comportamento admirativo o homem toma consciência de sua própria ignorância; tal consciência leva-o a interrogar o que ignora, até atingir a supressão da ignorância, isto é, o conhecimento. b) A segunda atitude Karl Jaspers a encontra na dúvida, podendo-se apontar, Descartes como sendo o seu representante clássico. Neste comportamento, a verdade é atingida através da supressão provisória de todo o conhecimento ou de certas modalidades de conhecimento, que passam a ser consideradas como meramente opinativas. A distinção grega entre doxa e episteme tem a mesma raiz. A dúvida metódica aguça o espírito crítico próprio da vida filosófica, e nisso reside a sua eficácia. c) Finalmente, a terceira atitude implica no sentimento de insatisfação moral. Se em seu comportamento usual encontramos o homem absorvido no mundo que o cerca, a filosofia se impõe como tarefa a partir do momento em que esse homem quotidiano cai em si e pergunta pelo sentido de sua própria existência. O mundo exterior é abandonado em conseqüência de um sentido de insatisfação, levando o homem a tomar consciência de sua própria miséria. Assim Epíteto, por exemplo, quando escreve: "O princípio da filosofia, para aqueles que se dedicam a esta ciência como deve ser (...), é a consciência de sua própria fraqueza e de sua impotência nas coisas necessárias ". (Entretiens. Trad. Joseph Souilhé. Paris, Les Belles Lettres, 1946. t. 2. p. 41) Sem dúvida, nessas três modalidades de atitude há muito de verdade, no sentido de que elas são encontradas em todo filósofo, em um grau maior ou menor, a despeito da possível predominância de uma ou outra sobre as demais. Na admiração encontramos um comportamento de abertura o mais espontâneo e original possível do homem diante da realidade. Sem a dúvida, não chega a se desenvolver o indispensável espírito crítico, que deve acompanhar toda tarefa de ordem filosófica. E pela inquietação moral, fundamenta-se o filosofar em seus aspectos éticos. A síntese dessas três atitudes poder-se-ia. constituir, talvez, no ideal do complexo comportamento inicial do filósofo, desde que se verificasse dentro de um determinado equilíbrio. Este sentido de síntese apresenta-se, ao menos, como primeira e tentadora solução em face da pluralidade de comportamentos. Mas tal equilíbrio dificilmente pode ser verificado, porque as atitudes •— tomadas em si mesmas, enquanto atitudes, e na medida em que uma, como de fato acontece, predomina sobre as demais — reclamam um certo grau de exclusividade, levando-as, em conseqüência, a se repelirem. E a síntese, nesse caso, se possível, já não coincidiria com o impulso inicial, mas seria, muito mais, o fruto de um trabalho de reflexão sobre o problema, incidindo em um dever-ser abstrato; ou então, colocando essa diversidade de atitudes sobre outras bases, teríamos a descrição de múltiplas experiências, constitutivas todas do filosofar. Esta diversidade, contudo, não pode ser posta de lado por nós, mas impõe-se precisamente como o material que deve ser explicitado para a compreensão do problema. Com isto queremos dizer que o impulso inicial do filosofar, longe de constituir um problema de uma peça só, apresenta-se como um todo complexo, cujos aspectos fundamentais devem atender às próprias características básicas da natureza da filosofia. A referência a aspectos e a possibilidade de falarmos no predomínio de uma atitude sobre as demais decorrem do fato de que se empresta a uma atitude maior valor que às outras. Ora, é nessa diferenciação valorativa que reside o cerne do nosso problema, pois podemos e devemos então perguntar qual delas apresenta caráter de maior fundamentalidade, em função da natureza da filosofia, e como deve ser compreendida esta fundamentalidade dentro da diversidade de aspectos. O presente ensaio pretende mostrar que o elemento originante e precípuo do filosofar, não obstante a inalienável complexidade do fenômeno, reside na atitude admirativa. Realmente, tomadas em si mesmas, todas as três atitudes apontadas revelam-se insuficientes e parciais. A dúvida, tal como se apresenta em um Descartes, supõe já um estágio bastante adiantado da filosofia, ou melhor, supõe outras

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filosofias. Apenas a partir de uma saturação de conhecimentos e de pontos de vista existentes, pode a dúvida surgir e impor-se com necessidade. Mas se supõe esse relativo ceticismo frente a outros conhecimentos propagados, diante de uma pluralidade de filosofias ou de concepções de vida que se contradizem, então a dúvida passa a ser uma decorrência daquela saturação; e assim a constituição da filosofia suporia já uma indispensável existência de filosofias, suporia ao menos a vigência de determinadas maneiras de ver o real. A dúvida, conseqüentemente, parece ser sempre secundária, não se justificando, portanto, sem uma fundamentação anterior. Por isso mesmo, a predominância da atitude da dúvida liga-se, facilmente, ao excesso de espírito crítico. O mesmo pode ser dito da insatisfação moral, com a seguinte agravante: se a "consciência da própria fraqueza" consegue aguçar o espírito para o problema do homem, muito freqüentemente leva a circunscrever a problemática filosófica a esse problema, e o sentido de totalidade, próprio da filosofia, é, assim, restringido. Neste caso, a filosofia iria incidir em um moralismo. Quanto à admiração, parece que, embora também insuficiente para explicar a complexidade do impulso inicial do filosofar, atende à exigência precípua de abertura para o real, de primeiro despertar em face de v.ma realidade que deverá ser pensada pelo filósofo. Se razões dessa ordem mostram que a dúvida e a insatisfação moral não estão isentas de parcialidade e até mesmo de algum desvio em relação a certas exigências da filosofia, não há, contudo, como excluí-las deste todo que é o comportamento filosófico, o que, naturalmente, desaconselha a decidir, sem mais, pela prioridade da admiração. A complexidade deste problema da atitude inicial do filosofar nos é revelada mais amplamente se considerarmos alguns dos pontos de vista sobre a matéria expressos por Aristóteles, que foi um dos primeiros a ver na admiração a fonte do filosofar. Não é fácil, diga-se desde já, julgar a posição aristotélica. (13) Assim, logo no início do primeiro livro de sua Metafísica, refere-se a diversos aspectos da origem do filosofar, sem revelar, porém, nessas indicações, a preocupação de unificá-las com organicidade maior, dando mesmo a impressão de que o problema para ele não apresenta maiores dimensões. Vejamos algumas destas indicações presentes no corpus aristotelicum. Já a primeira frase da Metafísica liga todo o conhecimento — e, portanto, também a filosofia — com o desejo: "Todos os homens desejam naturalmente saber ". (Metaphysics. Trad. H. Tredennick. London, Loeb Classical Library, 1947. A, 1, 980a.) E Aristóteles vê uma confirmação disto no "prazer causado pelas sensações", especialmente a visual. Aliás, o ver e o conhecer, na Grécia antiga, estão intimamente ligados, como o mostra a etimologia das palavras que designam o ato de conhecer. (Ver sobre o assunto BRUNO SNELL. La cultura greca e le origini dei pensiero europeo. Trad. V. D. Alberti. Einaudi, 1951. p. 22 e segs) Uma segunda indicação, que se segue imediatamente à primeira, é a exclusão, no filosofar, do comportamento prático, utilitário, interesseiro. A segunda frase da Metafísica assevera: "O que o mostra é o prazer causado pelas sensações; pois, fora mesmo de sua utilidade, elas nos agradam por si próprias, e, mais do que todas as outras, as sensações visuais. Com efeito, não somente para agir, mas mesmo quando não nós propomos nenhuma ação (...)". (Op. cit., Idem) E mais adiante, referindo-se ao primeiro homem que descobriu uma arte, afirma que "não foi somente em razão da utilidade de suas descobertas, mas por sua sabedoria e sua superioridade sobre os outros. Depois as artes novas se multiplicaram, dirigidas, umas para as necessidades da vida, as outras para o seu prazer; e sempre os inventores destas últimas artes foram considerados como mais sábios que os outros, e isto porque as suas ciências não tendem à utilidade. Assim se explica que todas essas diferentes artes já estavam constituídas quando foram descobertas as ciências, que não se aplicam nem ao prazer, nem às necessidades, e nasceram primeiro nos países onde reinava o ócio ". (Op. cit., Idem 981b) Em outras passagens, insiste Aristóteles neste seu ponto de vista, e a sua preocupação fundamental parece ser sempre a mesma: a de não confundir a atitude filosófica com o utilitário, o prático, em qualquer de suas dimensões. E quando fala em ócio, não nos diz propriamente o que entende por esta palavra, ou melhor, ele só a especifica de maneira negativa, como sendo o não-prático, e nada mais. Mais do que ressaltar o ócio, Aristóteles parece estar sobretudo preocupado em excluir do comportamento filosófico enquanto tal, qualquer dimensão utilitarista, pois se refere a este aspecto em quase todas as abordagens do tema. Uma terceira indicação encarece a importância do comportamento admirativo. Num texto muito denso e complexo, escreve Aristóteles: "É, com efeito, a admiração que leva e levou os primeiros homens à especulação filosófica.. No início, sua admiração voltava-se para as primeiras dificuldades que se apresentavam ao espírito; depois, progredindo pouco a pouco, estenderam sua investigação a problemas mais importantes, tais como os fenômenos da lua, os do sol e das estrelas, e enfim à gênese do Universo. Ora, perceber uma dificuldade e admirar-se é reconhecer a própria ignorância (por isto o amante dos mitos é, em certo sentido, amante da sabedoria, pois os mitos são compostos de maravilhas)". (Op. cit., Idem, 982b) Aristóteles não dá margem a dúvidas: a admiração é o elemento fundamental da gênese do filosofar.

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Mas o comportamento admirativo enlaça-se com um quarto aspecto: Aristóteles liga a admiração à consciência da ignorância, que brota da percepção de uma dificuldade obviamente de caráter intelectual. A vivência da admiração apresenta-se, portanto, condicionada; além disto, é destituída de ingenuidade. O que Aristóteles faz, em verdade, é afirmar a admiração como a atitude responsável pela gênese da filosofia enquanto desperta no homem a consciência da ignorância através da percepção de uma dificuldade; mas o Estagirita não se detém nesta rede de problemas, deixando de lado, em especial, a análise da natureza da admiração. Pode-se até mesmo dizer que ele dá a impressão de proceder de acordo com uma longa tradição sobre a matéria, cujo ponto de partida já se encontraria no gosto ou no amor ao mito, idéia presente no texto acima citado através de uma inter-relação de palavras, que liga o amante dos mitos ao amante da sabedoria. Deixando de lado o intrincado problema das relações entre o mito e a filosofia (19), é curioso observar, contudo, que o único filósofo anterior a Aristóteles a mencionar o tema da admiração —Platão — também sugere uma relação entre mitologia e filosofia: "A verdadeira marca de um filósofo é o sentimento de admiração que tu experimentas. Realmente, a filosofia não tem outra origem, e aquele que fez de íris a filha de Thaumas, não é, parece-me, um mau genealogista". (PLATÃO. Theeteto, 155d.) Talvez não seja tão» difícil unir o desejo de saber, o desinteresse, a ignorância, a admiração e o mito, tais como aparecem nas primeiras páginas da Metafísica, embora se deva permanecer alerta contra juízos fáceis e apressados em relação a este aspecto da doutrina aristotélica. Mas, em outras passagens de sua obra, Aristóteles nos dá ainda outras indicações sobre o problema, e, de maneira especial, há uma que nos parece inquietante e escapa à serenidade clássica do início da Metafísica. Referimo-nos ao que se lê no volume intitulado Problemas, do corpus aristotelicum, quando fala "sobre a Inteligência, o Espírito e a Sabedoria". (Problems. Trad. W. S. Hett e H. Rackham, London, Loeb Classical Library, 1957. t. 2. cap. XXX, 953a até.957a) Nestas páginas, pergunta Aristóteles por que pertence a melancolia ao ser do filósofo. Entre os melancólicos coloca ele os poetas, os artistas, os guardiães da comunidade humana e sobretudo os filósofos, considerando, entre os de tempos recentes, Empédocles, Platão e Sócrates como melancólicos típicos. (Op. cit., 953a) Distingue a melancolia natural da melancolia doentia, e refere-se aos diversos tipos de caráter daqueles cujo temperamento é melancólico por natureza. (Op. cit., 954a, b) O importante a salientar nestas páginas de Aristóteles é a compreensão da vida filosófica a partir deste seu ethos que é a melancolia. (24) Como se vê, o problema em Aristóteles está longe de ser simples, e talvez seja até mesmo insolúvel. Realmente, não nos diz como relacionar* a admiração com a experiência da melancolia. E os problemas se impõem: porque a melancolia implica em uma espécie de desgosto, um tornar o homem solitário, mas de uma solidão que exige dele a abertura para a compreensão do real. Tal como a descreve Aristóteles, há, na experiência da melancolia, um esforço, ou melhor, ela adquire dimensão filosófica a partir deste esforço. Na admiração, ao contrário, deparamos com um comportamento no qual predomina o passivo, o receptivo. A melancolia, quando desprevenida, está mais voltada para o interior, ao passo que a admiração muito mais para o exterior. Como conciliar estes aspectos? Ou melhor: existe a possibilidade de conciliação, ou se trataria, muito mais, em Aristóteles, de duas posições distintas, assumidas, talvez, em etapas diversas de sua vida? (25) E mais: como se compreende que uma experiência como a da melancolia possa levar o homem a abraçar a tarefa filosófica? Se a melancolia acentua a solidão, ela como que desliga o homem do mundo. A admiração, bem ao contrário, parece caracterizar-se por uma abertura ao mundo, e conseqüentemente por uma ruptura com qualquer tipo de experiência melancólica. Qual destas duas atitudes é a mais fundamental? Se as duas têm as suas razões de ser, qual delas corresponde melhor à índole da filosofia? Ou seriam ambas momentos integrantes do filosofar? Mas neste caso, de que maneira? Como se processa esta integração? Com o que dissemos até aqui, cremos ter conseguido, ao menos, explicitar qual é o nosso problema e indicar certos aspectos que permitem avaliar a sua complexidade. Para responder a todas as questões que colocamos acima, devemos realizar uma série de análises. Iniciaremos com o problema da admiração em sua modalidade mais simples, isto é, a admiração ingênua. Para esta análise não é suficiente distinguirmos diversos tipos de admiração ou de comportamentos que lhe são aproximados, assim como se distingue, tão freqüentemente em manuais de filosofia, uma admiração passiva da admiração ativa. Impõe-se, muito mais,, acompanhar o processo interno da admiração, os elementos que lhe são constitutivos, para procurarmos saber, em seguida, se esta experiência atende ao problema da atitude inicial do filosofar, se deve ou não ceder o seu lugar a alguma outra modalidade de experiência, como a dúvida ou a melancolia, ou se estas outras experiências não se integram, em algum sentido que deve ser verificado, no processo total da consciência filosófica diante do real. NOTAS: (1) "Já há algum tempo percebi que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e que aquilo que depois fundamentei em princípios tão mal assegurados, só poderia ser muito duvidoso e incerto; de

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modo que me era necessário empreender seriamente, uma vez por todas, a tarefa de me desfazer de todas as opiniões que até então recebera em minha crença, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (...) — Agora que meu espírito está livre de todo cuidado, e que consegui um repouso seguro em uma solidão agradável, esforçar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir de um modo geral todas as minhas antigas opiniões." (In Oeuvres et lettres. Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1952. Méditations touchant la première philosophie. p. 267.) E ainda: "Nada direi da filosofia, a não ser que, vendo que foi cultivada pelos mais excelentes espíritos que viveram desde muitos séculos, e que a despeito disto nela nada se encontre que não seja objeto de disputa e. conseqüentemente, que não seja duvidoso (...)" (Idem. Discours de la méthode, p. 130). (2) "(...) dediquei o resto de minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, a freqüentar pessoas de diversos humores e condições, a recolher diversas experiências, a experimentar-me nos encontros que a sorte me propunha, e em tudo fazer tal reflexão sobre as coisas que se apresentavam, que delas pudesse tirar algum proveito. Pois parecia-me poder encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada um faz sobre aquilo que lhe importa, e cuja realização logo o punirá se julgou mal, do que nos raciocínios que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especulações que não produzem efeito algum, e que não trazem talvez outra conseqüência que permitir tanto maior vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum, por suporem maior emprego de espírito e de artifício no esforço de torná-las verossímeis. E tive sempre um extremo desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em minhas ações e caminhar com segurança nesta vida" (Idem. p. 131). (4) Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. 29a e 31d. — Em carta a Niethammer, a esposa de Hegel atribui a seu marido as seguintes palavras: "Ser condenado por Deus a ser um filósofo!" (cit. por HERRMANN GLOCKNER. Hegel. Stuttgart, Fr. Frommanns Verlag, 1954. p. 273. v. 1.) (5) Podemos dizer, com MONTAIGNE, que "cada homem traz em si a forma inteira da condição humana" (Essais. Paris, Bibliothèque de la Plèiade, 1950. p. 900). (6) Veja-se todo o texto de HUSSERL sobre o problema, in La philosophie comme science rigoureuse. Trad. Quentin Lauer. P. U F., 1955. p. 106 até o fim. O texto citado está na p. 102 e segs. Logo em seguida pergunta: "Como poderia, pois, o historiador decidir sobre a verdade dos sistemas filosóficos dados e sobretudo sobre a possibilidade em geral de uma ciência válida em si? (...) Quem nega um sistema determinado não é menos obrigado a dar razões do que quem nega a possibilidade de todo sistema filosófico enquanto tal". E mais adiante acrescenta: "A história como tal não pode sequer provar a afirmação segundo a qual até agora não houve filosofia científica alguma; ela só pode prová-lo por outras fontes de conhecimento, e estas já são filosóficas". E mais: "Toda crítica verdadeira e penetrante já fornece meios de progresso, indica idealmente o caminho para fins e meios verdadeiros e, conseqüentemente, para uma ciência objetivamente válida. Naturalmente, deve-se acrescentar a tudo isto que a impossibilidade histórica de defender uma posição espiritual como um fato nada tem a ver com a impossibilidade de defendê-la do ponto de vista da validez". (7) "Gostaria assim mesmo de insistir expressamente sobre o fato de que eu reconheço plenamente o imenso valor da história, no sentido mais largo da palavra, para o filósofo" (Idem. p. 106). (8) Numa perspectiva histórica, o problema vem à tona no itinerário que conduz de Dilthey a Heidegger. Leia-se, por exemplo, a lúcida análise de LUDWIG LANDGREBE, in Philosophie der Gegemvart. Bonn, Athenaem-Verlag, 1952. p. 104 e segs. (9) Einfuehrung in die Philosophie. Tuebingen, M. Niemeyer Verlag, 1953. p. 9. Com muita razão escreve GABRIEL MARCEL: "Sem dúvida, um filósofo deve 'saber' a História da Filosofia, mas, segundo o meu ponto de vista, quase exatamente no sentido em que um compositor deve saber harmonia; (...) o filósofo que capitulou diante da História da Filosofia não é, por isto mesmo, um filósofo" (Du refus à l'invocation. Paris, Gallimard, 1940. p. 87). (13) Nas observações que se seguem não pretendemos, a rigor, "julgar" a posição de Aristóteles e muito menos interpretar os diversos elementos que ele aponta como constitutivos do problema que nos ocupa; isto suporia análises mais amplas e um levantamento de toda a obra do Estagirita. Buscamos tão-só chamar a atenção para certas dimensões do problema referidas por Aristóteles, a fim de mostrarmos mais amplamente a densidade da questão. (19) J. Tricot, na sua tradução da Metafísica (Paris, J. Vrin, 1953, p. 17) cita o seguinte raciocínio de Ross: "O mito está cheio de fatos que excitam a admiração; quem admira pensa que. é ignorante; quem se crê ignorante deseja 'a' ciência; portanto, o amante dos mitos é um amante da ciência (um filósofo, no sentido etimológico)". O problema se

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adensa porque o amante dos mitos por excelência é o poeta, sendo o mundo dos mitos o objeto da primeva poesia grega. Por outro lado, Bruno Snell, na p. 60 da obra acima citada, sugere uma relação entre a admiração e o sentimento religioso próprio dos gregos; pois, concluindo a sua análise, diz: "Surpresa, maravilha e admiração são os sentimentos que o aparecer da divindade desperta no homem de Homero". E logo depois, pergunta: "O ato da oração não é acaso também para os gregos dos séculos posteriores um gesto de admiração?" (24) Há um interessante comentário de WILHELM SZILASI a este e outros textos correlatos de Aristóteles, in Macht und Ohnmacht des Geistes, Bem, A. Francke Ag., 1946, p. 229 e segs. A certa altura de seu comentário, escreve Szilasi o seguinte: "A melancolia do filósofo não é doença, mas sua natureza (physis). ou seu hábito (ethos) (955a40; 954a27). A melancolia, enquanto doença, só pode ser compreendida a partir da existência. Pois toda doença é a desmedida de um momento latente do 'ethos', que permanece encoberto no estado de saúde. O que pertence à natureza de um homem pode tornar-se doente, e isto acontece quando a doença dá independência a um determinado elemento da natureza própria, fazendo deste elemento o desmedido. Mas é errado falar em doença quando toda a natureza do homem é por si mesma desmedida, quando é a própria natureza que transborda no desmedido (935a38). Pois a natureza é demoníaca e não divina (463b14). No transbordamento, ela vai além de si. Assim, também a embriaguez torna manifestas certas propriedades do caráter, quando as leva ao excesso (953a32, b25). Mas quem é por natureza desmedido, isto é, quem tem sua existência determinada pelo excesso, para atingi-la não precisa de motivação exterior; sua melancolia e sua embriaguez são originais e permanentes. "Entre aqueles cujo excesso provém de sua natureza — autênticos melancólicos pelo poder de sua natureza — encontramos os filósofos. O que é, então, a melancolia, que funda o heróico e o filósofo, vinculando ambos ao sentimento da noite e à compreensão do sonho?" (refere-se ao ensaio de Aristóteles intitulado Da divinação quanto ao sono, 2, 463b 12 — 464b 18). "À essência do melancólico pertence uma missão, que ele recebe de Deus, para lutar, como Héracles e Belerofão, contra os seres que habitam as trevas ameaçadoras; ou para lutar, como Aias, contra si próprio e o mundo que o cerca, isto é, contra a insensibilidade e a indolência do coração." E mais adiante: "Os filósofos, esses heróis da condição humana, esses melancólicos pela desmedida de sua condição, como Empédocles, Sócrates, Platão, receberam também eles uma missão dos deuses, isto é, do todo do ente — uma missão irrealizável, que os demais nem chegam a compreender (...). Uma missão que só deixa feridas, abertas não pelos outros, mas pela grandeza de sua incumbência, como vingança do mistério em que penetraram e que buscam esclarecer. "É a missão de ir além da condição humana, a fim de que apreenda o ser do todo e o todo do ser, a fim de que — contra a destruição que decorre do destino cotidiano, contra o erro, a loucura e o acanhamento — se prepare para o único fundamental: participar de tal modo do todo, que a participação seja visão do todo, contato com sua unidade, compreensão do ser. Para.isto, a existência deve estar apta a sair de si, a desaparecer para si e para as exigências mundanas; a dissolver .os laços que a ligam aos entes, laços que impedem o perguntar filosófico do ser e que lhe permitem alcançar no máximo a entidade do ente; deve encontrar a solidão que conduz ao encontro fundamental. "(...) O que torna o filósofo melancólico é esta luta em duas frentes: a escuridão da noite, que abriga em si tudo o que ameaça e destrói, mas que é, por outro lado, o regaço do mistério; e a luta deve ser mantida ao mesmo tempo contra o que ameaça e a favor do mistério — a mais heróica de todas as lutas. A melancolia da filosofia une a coragem e a sensibilidade, coragem contra a noite e sensibilidade para a noite (isto é, para o nada) (464a32), a fim de que a condição humana seja preservada e que a mensagem seja recebida. A melancolia dá ao filósofo o poder de enfrentar os perigos da noite; permite-lhe também conhecer, indo além dos claros limites de cada instante, o princípio unificador do todo. Por isto, exercita a sua sensibilidade com o longínquo, como os atiradores que aprendem a atingir alvos distantes. "Assim, educa sua vigilância para salvar da noite e conquistar para o dia (464a12). Vive na luz, para a iluminação do ser; suporta, porém, a noite, talvez pesadamente; conhece-a bem, tanto em suas ameaças quanto em suas possibilidades de revelação. Sua existência reconquista constantemente o limite. A melancolia encontra o seu fundamento num saber: o saber que, facilmente, a posse do ser do todo reverte ao nada. "Foi dentro deste mesmo horizonte aristotélico que o mais grego dos filósofos modernos, Nietzsche, interpretou a sua própria existência: 'Sou um adivinho? Um sonhador? Um ébrio? Um intérprete de sonhos? Um sino da meia-noite?'. São as mesmas palavras de Aristóteles. E ainda estas sobre a noite: 'Nela se revelam coisas que não devem ser ouvidas durante o dia; na fresca brisa, quando se acalmou o barulho de vossos corações — então a noite fala. . .'. Também Aristóteles diz que a noite é o elemento do filósofo, do melancólico (464a)". (P. 301 a 304 do livro de Szilasi.) (25) Sabe-se que a versão que veio até nós dos Problemata não foi escrita, em grande parte ao menos, pelo próprio Aristóteles, mas por discípulos seus. Sabe-se também que Aristóteles escreveu um livro com este mesmo título, e

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pode-se constatar, através dos autores que fazem referência à obra perdida, que o conteúdo de ambas é o mesmo. E especialmente a parte que diz respeito ao temperamento melancólico é considerada aristotélica por Plutarco e por Cícero (cf. o estudo introdutório de W. S. Hett, da edição acima citada). II Análise da Admiração Ingênua Devemos analisar inicialmente o fenômeno da admiração tal como se verifica em sua manifestação primária, em seu primeiro desabrochar, ainda dentro de um horizonte de ingenuidade e espontaneidade, buscando-lhe as características mais fundamentais. Quais são estas características e como compreendê-las? A primeira é o sentido de abertura que a acompanha. E a dimensão desta característica pode ser elucidada a partir de um comportamento antiadmirativo por excelência e em um sentido radical: referimo-nos à atitude pessimista. Pois o pessimismo consiste no fato de que o homem não sente admiração — por não querer ou não poder — diante de nada. Ou melhor: só constitui surpresa, para ele, o fato de que haja pessoas que se admiram. E assim mesmo, esta modalidade de admiração pessimista vem acompanhada de um sentimento de comiseração, de piedade e mesmo de revolta, que solapa a natureza última da postura admirativa. A expressão "admiração pessimista'' implica, pois, um sentimento contraditório. Interessa-nos aqui apenas o pessimismo ingênuo, que surge quase como manifestação instintiva ou como vontade ainda inexplicitada de pessimismo. Nietzsche faz distinção entre o pessimismo da inteligência e o pessimismo da sensibilidade. (Die Unschuld des Werdens, Der Nachlass II Teil. Stuttgart, A. Kroenet Verlag, 1956. p. 399) O primeiro, diríamos nós, vem unido a uma interpretação da realidade, apresentando-se, freqüentemente, explicitado em uma doutrina ingênua mais ou menos desenvolvida, ou expressando-se, agressivamente, em certas fórmulas como "nada há de novo sob o sol", "tudo se repete monotonamente", "melhor fora não ter nascido do que suportar a miséria da vida", etc. Recusa-se, portanto, a realidade, buscando-se a sua neutralização, porque nada revela, nem esconde sentido algum, e toda tentativa de compreensão do real incide em um malogro. A modalidade de recusa da segunda forma de pessimismo — à qual, talvez, de um ponto de vista genético, fosse redutível a primeira — mais do que pensar a realidade, sofre-a como um mal, manifestando-se como uma espécie de alergia ou de inconformismo vivido. Ela pode ser considerada ingênua, no sentido de que se processa em um plano pré-crítico, coincidindo com um certo grau de apatia. A marca precípua deste pessimismo ingênuo é um comportamento afetado de uma desconfiança básica e, portanto, profundamente negativo diante da realidade. Ora, na admiração ingênua nós encontramos exatamente o oposto. Se o pessimismo é uma recusa ao real, a admiração é a semente que começa a reconhecer um sentido neste mesmo real, Se o pessimismo é a vontade que teima sobre si própria, na admiração brota o primeiro gesto de abertura do homem para uma realidade que o transcende. Não há ressentimento ou desgosto, mas gosto, afeição, pela realidade, que se revela em uma atitude receptiva, de disponibilidade pura. Na admiração, verifica-se um simpatizar, no sentido etimológico da palavra, um sentir unido ao real, e esta disponibilidade apreende o real como uma presença insofismável, porque,. longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimensão, como plenitude de presença. Já neste sentido podemos compreender as palavras de Heidegger: "Semelhante deixar-ser significa que nós nos expomos ao ente como tal e que nós transportamos ao aberto todo o nosso comportamento" (Vom Wesen der Wahrheit. Frankfurt, Klostermann, 1954. p. 15). Este expor-se faz com que sintonizemos com a realidade, de tal maneira que o ato de expor-se e o deixar-ser o real, o aberto, se entrelaçam, permitindo entender como a admiração ingênua se processa sobre um fundo amoroso, raiz última que em seu silêncio deixa a realidade falar. Es liebt in uns, conforme a feliz expressão utilizada por Peter Wust. (Naivitaet und Pietaet, Tuebingen, J. C. Mohr, 1925. p. 57) O dar-se do homem se combina, assim, com o dar-se do real, e a admiração supõe esta total reciprocidade na confiança. E por real, realidade, se deve entender aqui não apenas o mundo da natureza, mas também a esfera do homem, bem como a sua obra, o mundo da cultura: realidade, portanto, na acepção mais ampla da palavra. Tudo o que tem força de ser é passível de admiração. Na admiração, pois, encontramos a primeira abertura do homem para o real. Convém, contudo, adentrar um pouco mais nossa análise em torno dessa característica do ato admirativo como um abrir-se. Diz ainda Heidegger: "A palavra deixar-ser o ente, necessária aqui, não pensa, porém, em omissão e indiferença, mas em seu contrário". E, no mesmo texto, logo mais adiante: "O deixar-se-entrar no desvelamento do ente não se perde neste, mas desdobra-se em um retorno diante do ente, a fim de que este se manifeste no que é e como é e tome dele a medida de sua adequação". (Op. cit., p. 14-15) Quer dizer, o dar-me ao real e o deixar-ser o real implicam em uma intimidade de participação, de

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tal modo que "le monde est tout au dedans et je suis tout hors de moi", segundo a expressão de Merleau-Ponty. (Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1954. p. 467) Esta presença não pode, porém, ser compreendida como uma espécie de fusão entre o eu admirante e a realidade admirada. Quem admira não se dissolve na realidade que admira, nem esta se desfaz naquele. Pois, bem ao contrário, o que caracteriza a admiração é o reconhecimento do outro como outro, e porque eu o reconheço enquanto tal posso admirar-me. Não se trata de confusão, e sim de um respeito cujas raízes mergulham em uma inocência ingênua e piedosa. Compreende-se, assim, Nietzsche, quando afirma: "O pessimista perfeito seria aquele que compreende a mentira, mas é, ao mesmo tempo, incapaz de desfazer-se de seu ideal: abismo entre querer e conhecer" (Op. cit., idem, p. 400). É precisamente este abismo que não se verifica na admiração ingênua, pois no ato admirativo o ideal e o real como que coincidem, e, por isto mesmo, a realidade se manifesta ao admirante como dotada de plenitude de sentido. E não só se desfaz o abismo entre o querer e o conhecer, mas o pessimismo, como toda e qualquer modalidade de comportamento egocêntrico, é anulado. Assim, a primeira característica da admiração ingênua é a afirmação, compreendida como abertura, do outro como outro, que releva do sentimento de pura disponibilidade, amorosa e desinteressada. Esta disponibilidade, se traz em seu seio o reconhecimento do outro como outro, do diferente como diferente, nos conduz a uma segunda característica da admiração, pressuposto fundante da primeira: a consciência. Num fragmento de Pascal podemos ler: "Os animais não se admiram". (Pensées, fragm. 401, Brunschvieg) A importância e a verdade desta observação de Pascal não podem ser exageradas. O animal vive de tal modo imbricado em seu meio ambiente, que todo o seu comportamento se determina por um imanentismo funcional. Por isto, a adaptação plena do animal ao seu meio ambiente e a sua possibilidade de sobrevivência coincidem com a sua impossibilidade de destacar-se da natureza, de tomar distância do "seio que o gerou", para usar uma expressão de Rilke. (8) O fato de não poder distanciar-se do meio que o cerca, de não poder reconhecê-lo como heterogêneo e de não lhe ser possível, em conseqüência, adotar um comportamento indicativo, constitui precisamente o abismo que separa o animal do homem, abismo que se impõe como um fato irrefutável. O animal apenas age; o homem age e sabe que age. (9) É o mesmo Pascal quem afirma ainda: "O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque ele sabe que morre, e conhece a vantagem que o universo tem sobre ,ele; e disso o universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e da duração, que não saberíamos ocupar". (Op. cit., fragm. 347) Dentro desta perspectiva, a peculiaridade, a distinção, o que torna, propriamente, o homem um ser distinto, reside no fato de ele possuir consciência, e sua importância é tão evidente, que torna ridícula qualquer tentativa de relegá-lo a um segundo plano: "Não é no espaço que devo procurar minha dignidade", diz Pascal. (Op. cit., fragm. 348) Colocada a consciência, nos situamos já no "próprio nervo de todo o fenômeno humano, instalamo-nos no segredo do homem, isto é, em sua interioridade, pois o homem se sabe homem, e este saber-se vai afetar, transformar profundamente toda a sua relação com o mundo exterior à sua consciência. E assim, se a consciência de si, reflexiva, só é, geneticamente falando, segunda, todavia a consciência ingênua ou natural, espontaneamente voltada para fora de si, só pode ser justificada admitindo o pressuposto da subjetividade, da interioridade, ou seja: deste saber-se em sua intimidade. Ora, esta consciência ingênua apresenta-se com duas características básicas, que permitem compreender a sua estrutura. A primeira é a distância. O homem sente-se cu sabe-se separado daquilo que o cerca. Esta distância, contudo, para ser aquilatada, não se deve confundir com a que se verifica entre duas exterioridades. Se o homem pudesse ser considerado como pura exterioridade, dissolver-se-ia a consciência, e ele passaria a ser coisa entre coisas. Se, ao contrário, pudesse ser reduzido à interioridade pura, desapareceria a distância característica da consciência encarnada. Como, porém, a interioridade, o saber-se em sua intimidade, não se processa com uma pureza total, a distância resulta em termos de uma ambigüidade radical. Por um lado, a consciência está toda tendida para fora de si, orientada para as coisas, para o mundo, habitando-o e sentindo-se em casa nele, pactuando, conseqüentemente, com a exterioridade. .Mas, por outro lado, este pactuar jamais implica em um confundir-se com a realidade. A consciência é de tal natureza, que em seu ato não permite a fusão, a penetração completa no mundo; ela permanece sempre consciência, decorrendo daí o irremediável da distância, do' abismo que a separa daquilo que lhe é exterior. E precisamente nesta duplicidade de aspectos reside a

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sua ambigüidade, o caráter de sua relação com o mundo: uma interioridade exterior e uma exterioridade interior, — presença ausente e ausência presente. Neste sentido, comparada com a vida animal, pode-se mesmo afirmar que a vida humana é como que atingida por uma inadaptação profunda. A segunda característica da consciência ingênua esclarece estes aspectos e permite compreender melhor o seu caráter relacional. Própria da consciência humana é a experiência da heterogeneidade, isto é, a experiência do radicalmente outro, do diferente a si e em si mesmo. Pois na interioridade do próprio ato de tensão da consciência para o exterior, de coincidência com o mundo, este exterior me repele, e me repele na medida exata em que consigo penetrá-lo. Toda penetração, assim, não passa de uma faca de dois gumes, que não tarda em manifestar a separação entre homem e mundo. Compreende-se então, que o mundo se imponha, neste sentido, como heterogeneidade reconhecida como tal,, ao contrário do que acontece na vida infra-humana, onde a heterogeneidade não chega a ser objeto de um ato de reconhecimento. Theodor Litt, referindo-se ao problema (Cf. ref. de JEAN-LOUIS FERRIER, in L'Homme dans le monde, Neuchâtel, ed. à la Baconnière, 1957, p. 75), fala do homem como sendo uma totalidade destotalizante, no sentido de que, se , tende a unir-se ao mundo, este o rejeita, estabelecendo-se um dualismo, uma unidade rompida, que frustra no homem qualquer possível vontade de entrega, no sentido de auto-despossessão. A consciência torna o mundo objeto, pois o reconhecimento da heterogeneidade é precisamente o que faz afirmar o mundo como objeto contraposto a um sujeito. Por isto mesmo, compreende-se que a distância não possa ser considerada como sendo fictícia, mera ilusão ou uma ponte provisória, qualquer coisa que possa vir a ser reparada. Bem ao contrário, a distância reveladora da heterogeneidade pertence à própria estrutura da consciência, pois a rigor nós não somos consciência, mas conscientes, e aqui reside o fundamento de toda comunicação e de todo diálogo. Pretender, em nome de satisfações oníricas, ou de algum mito naturalista de integração plena — passada ou futura — do homem na natureza, é pretender nada mais nada menos que suprimir ou enfraquecer a consciência, e, conseqüentemente, o próprio homem. Voltando agora ao nosso tema, é importante salientar que, já na experiência da admiração ingênua, deparamos com aquelas duas características da consciência espontânea há pouco indicadas. Realmente, a admiração supõe distância, ruptura de toda imanência e entrega ao transcendente. Já a palavra o diz bem: ad-miratio. Eu só me admiro na medida em que meu comportamento implica em um processo de distanciação diante do objeto admirado, em que esta realidade se apresenta, portanto, como objeto. Por isto, compreende-se que não se possa verificar o fenômeno da admiração' onde não existe vida consciente. (13) A consciência revela-se, assim, como o pressuposto fundamental, fundante, de todo ato admirativo. E assim como o sentimento de distância, por outro lado, não menos presente, está o sentido de heterogeneidade, o reconhecimento do outro como outro. E somente a partir desta visão do diferente, pode especificar-se o comportamento admirativo. Pois, se todo ato da consciência apresenta-se comprometido com um objeto, este compromisso se pode verificar em uma gama extremamente variada de possibilidades, que se estendem desde a afirmação absoluta até a recusa, a negação. Peculiar à admiração é, como vimos, a abertura ao real admirado em uma dimensão puramente afirmativa. Na admiração ingênua encontramos, portanto, um ato de confiança, de fidelidade amorosa, que tende a reduzir a distância própria da consciência a um mínimo, no sentido de que a admiração não sofre com a separação entre consciência e objeto, pois, bem ao contrário, entrega-se sem reservas, donde o seu caráter de ingenuidade, de inocência, de degustação desprevenida do real. Donde também o seu caráter dogmático, quase religioso, de piedade, de oração natural, de exteriorização de uma bondade inata, tal como o compreendia Goethe naquele seu conceito de Erbtugend (14), intimamente ligada a um sentimento de respeito. A admiração sempre supõe certo grau de excepcionalidade, de imprevisto, que se destaca de uma familiaridade rotineira. O heterogêneo é vivido como algo de extraordinário, de modo que o excepcional seja sabido como excepcional, incontaminado, resguardado de tudo o que cai fora de sua esfera, nutrindo o sentimento de piedade e respeito que se quer como tal, como fascínio que não admite o desrespeito, que vela o ser admirado de tudo o que possa desmerecê-lo ou desvirtuar a piedade do sentimento. ("A pura forma do sentimento, ..sua forma original, é a beatitude", afirma TH. HAECKER (in Métaphysique du sentiment. Trad. A. Guerne. Paris, ed. Desclée de Brouwer, 1953. p. 44).) A consciência constitui, portanto, a segunda característica da admiração ingênua, e tal característica é que permite compreender aquela primeira dimensão que já caracterizamos, ou seja: aquela modalidade de afirmação do real admirado. Mas, devemos fazer progredir a nossa análise e procurar saber a razão de ser desta presença da consciência, com o fito de aclararmos a dimensão última e o significado humano mais radical da experiência da admiração. Isto nos leva

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ao estudo de sua terceira característica. Dissemos que a consciência distingue o homem, tornando-o outro que um simples animal. Dissemos também que a consciência, por sua vez, atua como um pressuposto básico da admiração ingênua. Com a finalidade de alcançarmos o significado último desta admiração, vamos prosseguir a nossa análise, distinguindo, inicialmente, a admiração de outras atitudes do homem, que lhe são aparentadas. A admiração ingênua não se identifica com a experiência do pasmo. Este é mais primitivo, implicando num certo sentimento de confusão diante do real;, e se há no pasmo certo grau de abertura, este permanecer aberto coincide com um autodescontrole, uma modalidade de perder-se a si próprio, que Ferrater Mora denomina de "embobamiento". E embora este comportamento não deva ser desprezado, "o pasmo" — diz ainda o mesmo autor — "está mais próximo ao puro apetite — que se sacia com a confusão — do que ao respeito — que se contenta com o distanciamento". (MORA, José Ferrater. Cuestiones disputadas. Madrid, ed. Revista de Ocidente, 1955. p. 104) Pode, portanto, haver algo do pasmo na atitude admirativa, mas esta se verifica em plano mais elevado. Outro comportamento que também não deve ser confundido com a admiração é a surpresa, mais elevado, contudo, do que o pasmo. "O pasmo" — explica Ferrater Mora — "nos colocava na presença das coisas, suspendendo nossa decisão de utilizá-las e abolindo por um momento o orgulho de conquistá-las, mas as coisas vistas só eram indistintamente maravilhosas. A surpresa, ao contrário, suprime toda indecisão e toda indistinção; quando as coisas nos são não apenas atraentes, mas também problemáticas, estamos em vias de passar da iminente confusão do desejo à respeitosa distância do amor." (Op. cit., p. 106) Se a surpresa tem a capacidade de-nos desarmar — e isto a aparenta com a admiração — por outro lado ela implica em um certo imprevisto, que, com intensidade maior ou menor, também nos descontrola, embora não de um modo tão indeterminado quanto o pasmo. No mais, tanto o pasmo quanto a surpresa processam-se indiferentemente em relação a um significado afirmativo ou negativo, Um gesto magnânimo ou um assassinato, por exemplo, podem provocar pasmo ou surpresa. A admiração ingênua, ao contrário, refere-se exclusivamente ao que tem uma significação positiva, afirmativa. Se um assassinato pode suscitar admiração, ela se refere, por exemplo, à perícia com que o mesmo foi executado, mas nunca aos aspectos propriamente danosos e imorais, negativos, do assassinato. Neste sentido, .verifica-se, no pasmo e na surpresa, uma modalidade de atitude indiferençada, que não encontramos na admiração. Um comportamento desprezível, para dar mais um exemplo, é inacessível à admiração; mas no fundo do mais desprezível dos homens, ainda há suficiente humanidade para despertar em outrem uma atitude admirativa. Por outro lado, dentro de seu sentido profundamente afirmativo, a admiração pode abranger a amplidão de todo o real, coincidindo com a totalidade das coisas existentes. Se, portanto, pode haver muito do pasmo e da surpresa na admiração ingênua, devemos reconhecer nesta uma dimensão e uma humanidade muito maiores. Mas se fizemos estas breves comparações foi tão-só com o fito de chamarmos a atenção para a exclusividade humana de todos estes comportamentos. Se fosse possível falar em pasmo ou surpresa em um plano puramente animal, não se poderia esquecer uma distinção que nos parece fundamental: a realidade humana possibilita uma entrega a estas experiências, ao passo que no animal, bem ao contrário, mais do que propriamente entrega, desencadeia-se um processo de reação, sempre determinado pela rotina de uma necessidade de sobrevivência, que pode ser compreendida como refúgio imediato na Umwelt. A especificidade humana das três experiências apontadas lhes advém do importantíssimo fato de estarem ligadas ao primeiro despertar da vida consciente do homem. Estamos diante de comportamentos nos quais se verifica o surto original de uma atitude humana espiritual. Integrado o homem inicialmente no "seio que o gerou", suas potencialidades espirituais desabrocham, em toda a sua virgindade, pela primeira vez, de um modo ainda trêmulo e indeciso, na atitude admirativa. Por isto, a consciência natural ou espontânea, em sua primeira manifestação, longe de implicar em um juízo afirmativo ou em uma auto-afirmação clara e definida, processa-se em um território intermediário, nascendo em um claro-escuro, mergulhado, por um lado, nas trevas do inconsciente, e, por outro, na luz que começa a debater-se em busca de seu triunfo. (18) Neste sentido, podemos dizer que a importância da admiração ingênua assume uma densidade metafísica, pois nos defrontamos aqui com o princípio que empresta ao homem a sua humanidade. Se o próprio da animalidade é o seu prolongar-se na natureza, dentro das exigências de uma adaptação plena que lhe são próprias, a partir da experiência da admiração ingênua, porém, o espírito começa a revelar-se como uma realidade sobreposta à natureza em um sentido estrito, impondo-se em uma espécie de aseidade. Podemos penetrar um pouco na natureza desta aseidade, a partir de um fragmento de Frederico Schlegel, que vale

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como uma definição da natureza humana: "O homem é um retro-olhar criador da natureza sobre si própria". (19) No fenômeno de consciência encontramos a raiz que possibilita este retro-olhar; e a primeira modalidade deste comportamento radica precisamente na admiração ingênua. Pode-se dizer que o homem é o momento de ruptura da natureza, pois no homem ela como que pára e se contempla, olhando sobre e para si própria, momento decisivo e fundamental, que pode ser caracterizado como respeito. Pois respeito, re-spectus, implica justamente neste olhar para trás. Evidentemente, não se trata de um respeito tal como se encontra em um comportamento altamente diferençado; mas de um respeito todo imbuído de um sentimento de piedade, de agradecimento e de amor, exteriorizado em uma atitude contemplativa, que sobrepõe o homem a toda e qualquer dimensão de uma pragmaticidade exclusivista, necessidade de admirar é a necessidade que tem a inteligência de ajudar o admirado a refletir-se a si próprio, e assim a elevar-se e a libertar-se. Admirar é submeter-se, reconhecer uma autoridade, receber, ser alimentado, receber um fundamento, ser em sua plenitude, ser fecundado afirma Franz von Baader. (Cit. por EUGÈNE SUSINI, Franz von Baader et le romantisme mystique. Paris, J. Vrin, 1942. p. 12. v. 3) Esta nos parece ser a importância fundamental, precípua, da admiração ingênua. Mas com isto, a par da complexa riqueza desta admiração, ainda estamos longe de poder dar por resolvido o nosso problema da atitude inicial do filosofar. Se a admiração ingênua já apresenta certa importância para a possibilidade do surto da filosofia -— e adiante veremos em que sentido —, 'por si só ela não parece poder suscitar a atividade filosófica. E a razão disto reside justamente na ingenuidade com que se processa, presa a um total dogmatismo. A filosofia é impensável sem sentido de problematização, de espírito crítico, daí que outros caminhos, que não a admiração ingênua, deverão ser percorridos, para que se atinja o problema filosófico. Não caminhes artificiais, pensados e estabelecidos pelo filósofo; estes são métodos interiores ao próprio desdobramento da filosofia. Referimo-nos a caminhos pré-filosóficos, existenciais, que transformem em um problema, não apenas a filosofia, mas a minha própria existência e o mundo que me cerca, no qual vivo, que me obriguem a adotar uma atitude interrogativa, a viver o problema do real como meu problema. Este sobrepor-se à pragmaticidade pode ser compreendido em uma dupla perspectiva. Na primeira, afirma, como vimos, o plano humano destacando-o da pura animalidade, como prístina manifestação de uma realidade espiritual. Em um segunda perspectiva, permite entender que todo comportamento ingênuo, quotidiano, do homem, envolvido também ele, embora num plano superior ao animal, em interesses pragmáticos, não pode ser reduzido a esta pragmaticidade; pois se é predominantemente pragmático, já há nele elementos que transcendem o utilitário e justificam, como fato, um comportamento desinteressado. Ora, a grande barreira que impede o sentido da problematização é o dogmatismo da ingenuidade. Precisamos saber quais os caminhos do homem para transpô-la, porém caminhos que se dão no próprio solo em que o homem vive, e que vão condicionar a instauração da filosofia. Para atingirmos este objetivo, devemos, em uma primeira etapa, saber em que consiste este comportamento humano confinado em um horizonte de dogmaticidade. Com isto poderemos conhecer a perspectiva geral dentro da qual surge a admiração ingênua. Mas, por outro lado, analisando este comportamento dogmático, deveremos procurar aquelas experiências humanas que levam a transcendê-lo. O nosso problema seguinte é, portanto, uma análise do comportamento dogmático do homem, comportamento complexíssimo e que deverá ser estudado apenas na medida da projeção que apresente para o nosso tema. NOTAS (8) Este é o tema central da oitava Elegia de Duíno. Do animal diz o poeta: "O livre animal tem sua morte sempre atrás de si e diante de si Deus, e quando caminha, caminha na eternidade, assim como as fontes caminham". Do homem, ao contrário, afirma: "Aqui, tudo é distância, e lá era alento". E mais: 'Nós nunca temos, nem um único dia, o puro espaço diante de nós, no qual as flores desabrocham infinitamente. Sempre é mundo, e nunca o sem lugar sem nada". "Pois já a tenra criança, deslocada por nós e forçada a voltar-se e a ver figuras — não o aberto, que é tão profundo no rosto do animal." O definitivo do homem, segundo o poeta, consiste no seguinte: "E nós: espectadores, sempre, em tudo, a tudo voltados mas nunca para fora". "A isto chama-se destino: estar do outro lado e apenas isto e sempre do outro lado." (9) Veja-se a análise de F. J. J. BUYTENDIJK, in Mensch und Tier (Rowohlts deutsche Enzyklopaedie, Hamburg, 1958). Esclarecendo o problema, o autor afirma, entre outras coisas, o seguinte: "O homem pode resolver a sua ligação a uma situação, pode distanciar-se, perceber a situação objetivamente. E por isto, tem consciência de que um movimento ameaçador orienta-se para ele, e pode esperar o golpe objetivamente; ele não recebe o significado proléptico da ameaça de um modo imediato. A possibilidade de distância em relação a uma situação — e, portanto, a liberdade — falta ao animal. Por isto, mesmo o comportamento de uma criança em face de uma ameaça deve ser distinguido do comportamento de um chipanzé" (p. 49).

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(13) Embora não se deva esquecer o que diz Peter Wust: "Parece-nos que a ingenuidade e a piedade prendem-se a uma certa esfera intermediária entre a inconsciência absoluta e a consciência absoluta; aqui também — como nos sentimentos de admiração e respeito — um certo momento de apatia está presente, momento este que não existe na natureza cega". O mesmo autor, contudo, afirma também que "a atividade do eu é sempre o momento essencial da personalidade; sem esta atividade pessoal, o conhecimento, o amor, o respeito e tudo aquilo que distingue o eu como um ser espiritual, nem podem ser pensados" (in op. cit., respectivamente às p. 20 e 131). (14) Erbtugend: virtude original, herdada. Escreve Goethe: "Um nobre antepassado (Cícero) diz que a piedade é uma palavra muito grave e muito santa', e reconhece nela o 'fundamento de todas as virtudes' (...). Se, consideradas do ponto de vista dos costumes, certas manifestações da natureza humana nos forçam a ver nela uma espécie de mal radical, de pecado original, outras manifestações há, nesta mesma natureza, que permitem falar em virtude original, em bondade inata, em honestidade, e especialmente certa inclinação ao respeito. Quando esta disposição original, cultivada no homem, chega a se manifestar na atividade da vida, chamamo-la de piedade, como os antigos". E mais adiante, acrescenta: "Apenas a piedade mantém-se como contrapeso ao egoísmo" (in Goethe Taschen-Lexikon, ed. A. Kroener, 1955. p. 266-267). (18) Veja-se a citação de Peter Wust na nota 13 deste capítulo. Em outra obra, Dialektik des Geistes (ed. Benno Filser, Augsburg, 1928), escreve o mesmo autor: "Com o problema do primeiro momento de transição da potencialidade de nosso eu à sua autopossessão ativa, encontramo-nos diante de uma dificuldade toda especial. Uma vez iniciado o processo de atividade espiritual, o eu encontra o seu início quando acorda para si próprio, tendendo persistentemente a transcender-se. Mas se o eu consegue alçar-se da região do inconsciente para a consciência de sua atualidade e atividade, deve então ocorrer, ao menos nas profundidades da alma, um impulso inicial que permita tal transição. Em algum instante deve ocorrer a ruptura real entre a neutralidade do princípio natural e o eu que começa a despertar espiritualmente. Este milagre da ruptura espiritual da alma se realiza através de um sentimento original, que apresenta, aliás, um duplo aspecto. Queremos nos referir ao enigmático ato fundamental da pessoa, ou melhor, à admiração e ao respeito. Este ato pode ser designado como sentimento original, porque através dele o eu atual desprende-se do eu potencial" (p. 202). E nessa mesma obra, mais adiante, acrescenta: "O eu colocou-se em atividade; ainda não se pode falar contudo de uma divisão interna desse eu. O sentimento original deve ser compreendido como auto-solicitação, natural e sadia do eu, e como primeira reação ao não-eu" (p. 205). E ainda: "É na admiração infantil que o nosso espírito desperta Inicialmente para si próprio. Neste ato de ruptura do espírito se rasga a escuridão absoluta do sono natural" (p. 206). (19) in Kritische Schriften. Muenchen, ed. Hanser, s.d. p. 89. Em outro fragmento diz: "A consciência, o eu, mesmo o saber, é uma ruptura (...)" (in Schriften uni Fragmente. Stuttgart, ed. A. Kroener, 1956. p. 174.