Borovik,SamiradeSouzaBrandão

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes Mestrado em Artes

GUERREIROS DO ALFABETO ESTELARIniciao em performance e xamanismo na criao do espetculo Ka, de Renato Cohen

SAMIRA DE SOUZA BRANDO BOROVIK

CAMPINAS - 2005

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes Mestrado em Artes

GUERREIROS DO ALFABETO ESTELARIniciao em performance e xamanismo na criao do espetculo Ka, de Renato Cohen

SAMIRA DE SOUZA BRANDO BOROVIK

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Artes do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Artes sob a orientao da Prof Dra. Regina Polo Mller.

CAMPINAS 2005iii

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP Bibliotecrio: Liliane Forner CRB-8 / 6244

B645g

Borovik, Samira de Souza Brando. Guerreiros do Alfabeto Estelar iniciao em performance e xamanismo na criao do espetculo Ka, de Renato Cohen. / Samira de Souza Brando Borovik. Campinas, SP: [s.n.], 2005. Orientador: Regina Aparecida Polo Mller. Dissertao (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.

Ttulo em ingls:Warriors of the Star Alphabet performance and shamanism initiation in the play Ka, by Renato Cohen Palavras-chave em ingls (Keywords): Theatre Shamanism Performance(Art) Training Renato Cohen rea de concentrao: Teatro Titulao: Mestrado em Artes Banca examinadora: Prof Dra Regina Aparecida Polo Mller Prof Dra Vernica Fabrini Machado de Almeida Prof Dra Silvia Fernandes da Silva Telesi Data da defesa: 09 de Agosto de 2005

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memria de Renato Cohen, que se foi E pequena Brigitte, que chegou

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AgradecimentosEm primeiro lugar agradeo aos meus pais, financiadores desta pesquisa e incansveis admiradores de seus filhos. Ao Lynn Mrio, por me ensinar a ver com os olhos do esprito. Aos meus irmos Tamara pelo cuidado e reviso do texto - e Michel, pelo amor. Ao meu querido Rogrio Borovik, artista admirvel, pelo amor de todo dia. Aos meus colegas do grupo K, sem eles nada disso seria possvel. Aos professores e funcionrios do Instituto de Artes, por tornarem a Unicamp uma tima referncia em minha vida. Aos fotgrafos Fernando Petermann e Cssia Dias Aranha, pelo envolvimento com o grupo e por disponibilizarem suas imagens. Marina Reis, artista iluminada. Mariana Meloni, pela diagramao do texto, ajuda e amizade. s professoras Vernica Fabrini e Daniela Kutschat, pelas colocaes precisas e sensveis no Exame de Qualificao. Aos amigos Joo Andr, Lcio Agra e Fbio Fonseca de Melo, companheiros na cena contempornea. orientadora Profa. Dra. Regina Polo Mller, por me receber de braos abertos no meio do percurso e pelo carinho e apoio total pesquisa. Sua guia me deu segurana e me ajudou a completar a jornada. Camila Marx Cohen, pela esperana do novo. A todos aqueles que de algum modo se envolveram no projeto Ka e no grupo MidiaKa. E, finalmente ao mestre e amigo Prof. Dr. Renato Cohen, por acreditar na fora avassaladora da arte e servir de inspirao a todos que com ele estiveram. Meu eterno obrigado!

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ResumoEsta pesquisa a descrio do processo inicitico em performance e xamanismo na criao do espetculo Ka Cena Zaum de Vlimir Khlbnikov, do ponto de vista da atuao. Encenado por Renato Cohen no ano de 1998, como concluso do curso de graduao em Artes Cnicas da Unicamp, o espetculo teve um rico processo de preparao dos atores pela via ritual e performtica. Os workshops de criao, os ensaios do grupo e as apresentaes pblicas so analisados a partir de registros pessoais (caderno de anotaes) e visuais (fotografias e filmagens de ensaios e apresentaes). A reflexo sobre o treinamento ritual feita a partir da descrio dos encontros com o xam Lynn Mrio e das cenas que surgiram sob essa influncia. A conduo do encenador tambm analisada, assim como as cenas e os locais de apresentao. Alguns temas surgiram do envolvimento com a pesquisa como a criao a partir da Body Art, do Treino e do Fluxo na interpretao. A orientao da pesquisa teve incio em 2002 com Renato Cohen, que por ocasio de sua morte passou a ser orientada pela Prof Dra. Regina Polo Mller.

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Abstract

This research is the description of the initiation process in performance and shamanism in the play Ka Cena Zaum de Vlimir Khlbnikov, according to the actor`s point of view. Staged by Renato Cohen in 1998, as conclusion to my graduation course in Drama Studies at Unicamp, the play was rich in the process of actor training in ritual and performance. The group workshops, rehearsals and public shows are analysed from personal and audiovisual records, as well as the ritual experiences and according to the way Cohen used to lead the group. The reflection of the ritual training is done through the description of the encounters with the shaman Lynn Mrio and the scenes that emerged as a consequence of this experience. Some themes came up during this research such as Body Art, Training and Flow in contemporary acting. This academic orientation was started in 2002 by Renato Cohen and after his death was later continued by Regina Mller.

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SumrioFolha de Aprovao................................................................................................... Agradecimentos.......................................................................................................... Resumo........................................................................................................................ Abstract....................................................................................................................... Lista de Figuras.......................................................................................................... Introduo................................................................................................................... Atuao contempornea.............................................................................................. A arte da performance.................................................................................................. PARTE I - O PROCESSO 1. O texto como contexto........................................................................................... 2. A proposta do encenador...................................................................................... Os ensaios com o Renato............................................................................................ 3. Workshops com artistas convidados................................................................... Dana contempornea - pesquisa gestual................................................................... Voz e conexo............................................................................................................. Xamanismo e teatralizao.......................................................................................... Viagem do animal de poder................................................................................ Viagem ao elemento terra................................................................................... Viagem ao elemento ar....................................................................................... Consideraes Parciais......................................................................................... 4. Apresentaes pblicas........................................................................................ Barraco de Artes Cnicas - Unicamp......................................................................... VII COMPS Mostra Arte e Mdia............................................................................. Parque Ecolgico Monsenhor Emlio Jos Salim......................................................... Descrio das cenas do espetculo...................................................................... Museu da Cidade Lidgerwood...................................................................................... Segundo encontro com o xam............................................................................. Descrio do processo e das cenas...................................................................... PARTE II 5. Body art, Treino e Fluxo......................................................................................... 6. Concluso............................................................................................................... 7. Referncias Bibliogrficas..................................................................................... 8. Anexos................................................................................................................... 81 93 101 105 11 13 14 23 23 23 24 28 36 38 38 41 41 43 45 48 66 67 69v ix xi xiii xvii

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Lista de FigurasFig.1 Fig.2 Fig.3 Fig.4 Fig.5 Fig.6 Fig.7 Fig.8 Fig.9 Foto de Khlbnikov, livro Ka............................................................................................... Ensaio com Renato. Foto: Daniel Sda............................................................................. Ensaio com Renato. Foto: Daniel Sda............................................................................. Aplicao de carimbo. Foto: Fernando Petermann............................................................ Ensaio fotogrfico Zaum. Foto: Marina Reis...................................................................... Frames da Animao de Rogrio Borovik e Daniela Kutschat.......................................... Desenhos de viagem xamnica. Caderno de anotaes pessoal................................... Body art: Terra. Atriz: Rita Wirtti. Foto: Marina Reis.......................................................... Aquecimento Parque Ecolgico. Foto: Fernando Petermann............................................ 11 17 17 20 21 21 32 44 47 47 50 53 53 56 58 59 60 61 63 65 70 73 73 75 75 84 96

Fig.10 - Body art: Ka. Ator: Marcial Asevedo. Foto: Marina Reis.................................................... Fig.11 - Cena Mmia. Atores: Joo Andr e Gustavo Arantes. Foto: Cssia Dias Aranha............ Fig.12 - Indumentria Pssaro. Ator: Fbio Santana. Foto: Marina Reis........................................ Fig.13 - Cena Rodas Rituais. Foto: Cssia Dias Aranha................................................................ Fig.14 - Frame da animao 2222 de Rogrio Borovik................................................................... Fig.15 - Cena Huris. Ator: Joo Andr. Foto: Fernando Petermann............................................... Fig.16 - Cena Zanguezi. Foto: Cssia Dias Aranha........................................................................ Fig.17 - Cena Casulo Zaum. Atriz: Renata Airoldi. Fotos: Daniel Sda (esquerda) Fernando Petermann (direita) ............................................................................................................ Fig.18 - Cena Zaum. Atriz: Samira Brando. Foto: Fernando Petermann...................................... Fig.19 - Cena Cabea. Atriz: Rachel Brumana. Foto: Fernando Petermann.................................. Fig.20 - Cena Travessia Terra. Atriz: Rita Wirtti. Foto: Fernando Petermann................................. Fig.21 - Projeto de cenrio, Arnaldo de Melo.................................................................................. Fig.22 - Espacializao do cenrio, Museu da Cidade. Foto: Fernando Petermann...................... Fig.23 - Cena Coro Gurdjieff. Foto: Fernando Petermann.............................................................. Fig.24 - Cena Zaum. Atores: Gustavo Arantes, Elisa Band e Samira Brando. Foto: Fernando Petermann.......................................................................................................................... Fig.25 - Cena Amenfis. Atores: Joo Andr, Macial Asevedo e Gustavo Arantes. Foto: Fernando Petermann................................................................................................ Fig.26- Ator Marcial Asevedo. Foto: Cssia Dias Aranha.............................................................. Fig.27 - Joseph Beuys, Como se explicam quadros a uma lebre morta. Ao realizada em 26 de novembro de 1965 na Galerie Schmela, Dsseldorf. Foto de Ute Klophaus................

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IntroduoNuma sociedade onde os ritos de passagem perderam sua funo de transformar o indivduo e prepar-lo para uma nova etapa de vida, a experincia descrita nesta dissertao surge como uma oportunidade de rever o valor da arte como veculo das transformaes pessoais e coletivas. No meu percurso como atriz, o fato de haver sido iniciada em xamanismo e performance num momento to paradigmtico como o ltimo ano do curso de graduao em Artes Cnicas, norteou minhas escolhas na profisso de forma sistemtica. Quando nos envolvemos no trabalho de concluso de curso de graduao seja ele qual for, uma monografia, uma tcnica de gravura, um projeto-piloto de programa de televiso, um espetculo teatral estamos nos comprometendo a dar um ponto final numa etapa de nossas vidas na qual estvamos protegidos por uma espcie de invlucro. A universidade, o corpo docente, a turma de amigos fazem parte de um perodo demarcado que se iniciou com a entrada atravs do vestibular a das escolhas precoces que se tem que fazer com apenas dezessete anos. Em se tratando dos cursos de Artes, muitas vezes as relaes entre as pessoas so muito estreitas e a profisso que se vai encontrar pela frente, muito incerta, no contexto da Amrica Latina, onde o artista continua vivendo profissionalmente como se fosse na Idade Mdia, ou seja, de forma mambembe. Ser artista ser asceta, pactuar com as incertezas do caminho e colocar a prpria vida em jogo, num doloroso processo de se despir frente ao pblico vido e se transformar a cada trabalho. Sinto que essa pesquisa realmente comeou em 1995, no Teatro de Convivncia de Campinas, quando fui com meu amigo Lin Xu assistir a um espetculo de Denise Stoklos: Denise Stoklos in Mary Stuart. Lancei-me experincia sem ferramentas para analis-la, o que me deixou atnita pela fora de sua expresso cnica. Parecia que ela estava de fato improvisando, e que seu texto estava saindo em fluxo torrencial de forma quase que confessional. Aquilo no s me intrigou depois fui entrevist-la para uma monografia de curso mas me iniciou no registro de interpretao da tal cena contempornea. A linguagem processual, mapeada por Renato Cohen em seus estudos, estava se apresentando para mim. Contaminando-me e regendo meus passos dentro de meu percurso como atriz.

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Isso aconteceu no meu primeiro ano do curso de graduao em Artes Cnicas, quando a professora de Teatro Contemporneo Silvia Fernandes me explicou o que era performance, me lembro bem. Foi ela que nos apresentou o encenador Renato Cohen dois anos depois, numa aula convite sobre Robert Wilson, onde deu incio o grupo K.1 Minhas inquietaes sobre atuao contempornea me perseguem desde ento, quando nem para a cena do teste de aptido eu me sentia confortvel em fazer uma personagem linear. Nos cursos em que me formei, me apegava com tanta fora aos treinamentos psicofsicos propostos, que comecei a ser vista como uma atriz do corpo. O que me fascina so os estados de xtase a que podemos chegar atravs do corpo, mote central da presente pesquisa. Fiz estgio no Ncleo LUME de Pesquisas Teatrais por um semestre, aulas com Tiche Vianna e Vernica Fabrini por dois anos, firmando em mim a pesquisa atravs do treino psicofsico. Na concluso do curso, quando convidamos Renato Cohen para conduzir, pude enfim experimentar outros estados de atuao num vertiginoso processo de criao, atravs da performance, das vivncias em body art e na iniciao ao xamanismo. Era como se estivssemos beira de um abismo e o treino era se lanar ao desconhecido. No num vazio, mas para o contato com a morte atravs da alteridade. Trocando de pele e reconhecendo as alteridades dentro de ns, vivenciamos um outro registro de atuao, em que as passagens de morte e as transmigraes da alma permeavam os campos da arte e da vida. Tudo o que significou essa experincia no ser tangvel no papel, sei disso, mas tento de forma apaixonada escrever sobre esse momento to importante de minha vida, onde aprendi o valor da arte e seu poder de transformar a vida das pessoas. A experincia de linguagem processual e o campo de atuao do espetculo Ka continuaram nos trabalhos seguintes do grupo2 e deram incio pesquisa que desenvolvo hoje em dia nos meus cursos e workshops3, instrumentando performers atravs da vivncia do xtase e da viso xamnica como forma de narrativizar contedos psquicos individuais dentro da arte contempornea. A guia do encenador e do xam criou um campo exploratrio

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Ver ficha tcnica ANEXO C. O grupo K continuou suas prticas, realizando em 1999 o espetculo Doutor Faustus Liga a Luz . Depois passou a se chamar MidiaKa, com oficinas desenvolvidas no ECUM 2002, o espetculo Hiperpsique e a performance Transmigrao em 2003, todos sob a coordenao de Renato Cohen. 3 Leciono Performance, Ritual e Autobiografia no curso Comunicao das Artes do Corpo da PUC-SP desde 2002. 2

na arte do ator, como nos mostra a tendncia do sculo XX, nas parcerias de atores e encenadores na busca de novos registros de atuao. Ao se deparar com uma cartografia de sonho e sua traduo para a cena, o atorperformer trabalha com a alteridade interna, no limiar da arte/vida da performance, campo de fronteiras e hibridizaes. O processo de criao na via do ritual e da performao de contedos pessoais de fundamental importncia na atual pesquisa que desenvolvo, cujo incio se d na experincia vivida no processo de criao do espetculo/rito de passagem Ka Cena Zaum de Vlimir Khlbnikov, em 1998, na Unicamp. O objeto de pesquisa dessa dissertao o processo de iniciao em performance e xamanismo na preparao deste espetculo, cujo processo de criao se inscreve no campo da arte contempornea pela via do work in progress, campo de atuao de Renato Cohen na criao de seus trabalhos em teatro e performance. Nomeando os procedimentos da cena contempornea, Renato pesquisou em sua vida acadmica a obra de artistas diversos como Robert Wilson, Joseph Beuys, Otvio Donasci e Gerald Thomas, atravs de um intenso aprofundamento na linguagem que o tornou referncia na arte brasileira contempornea. Introduziu no Brasil os conceitos da arte performance traduzindo o tratado de Glusberg4 e escrevendo sua prpria histria. Munido dos mais importantes tericos da atualidade, escrevia de forma epifnica textos que nos remontam gnese do fazer artstico, figura totmica do performer. Durante a criao do espetculo Ka o encenador teve a oportunidade de ampliar os recursos de atuao e encenao atravs do xamanismo, algo indito em seu percurso artstico. A parceria que se deu com o xamanismo de Lynn Mrio M. de Souza foi pioneira neste sentido, o da iniciao num campo j enunciado em seus escritos como fonte de criao hipertextual. Como atores, fomos conduzidos num complexo e intenso processo de criao, onde as autorias geradas pelas inter-relaes com a performance, potencializaram as atuaes dos atores-nefitos.5

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Renato Cohen traduziu A Arte da Performance em 1987, quando ainda no havia bibliografia disponvel em portugus. 5 Tomo a liberdade de usar, a exemplo de Cohen (2000), trs terminologias para o ator: atorperformer, ator-nefito e performer, quase como sinnimos ao longo do texto, dependendo da nfase que est sendo discutida. Dentro do conceito de performer, como aglutinador de vrias funes do processo artstico criador e atuante, sujeito e objeto em Ka, o trabalho do msico, do artista multimdia era to importante quanto a atuao do ator. 3

O trabalho com os atores-nefitos processual e vai se dar pela construo do duplo. O performer, atravs de laboratrios, vises, toma contato com alteridades (um outro), com seu devir animal (animal de poder), com devires memoriais, com entidades de poder. Desenvolve, dessa forma, uma dolorosa capacidade de ser outrado, para usar uma expresso deleuziana, de revelar e atuar, multiplicidades de seu ser. De certa forma, exterioriza personas, a partir de seu prprio repertrio memorial, inclusive de seu aporte transpessoal (COHEN, 2000, p.129).

A cena contempornea carece de experincias nesse sentido, em que o casamento entre atuao e encenao ala nveis estticos inesperados, prprios da linguagem processual. Segundo Artaud (1993), a linguagem da encenao definida pela expresso dinmica e extrai atravs do teatro a possibilidade de expanso das palavras, desenvolvimento no espao, sensibilidade, entonao, pronncia. No uso de todas as reas o ator no se mostra como elemento principal, mas como um carregador de signos assim como a maquiagem que carrega, redimensionando seu cotidiano e disponibilizando seu corpo por completo, atravs de inmeras tcnicas e vivncias em estados alterados de conscincia. Teatro para os sentidos. Poesia no espao. Metafsica em ao.

Atuao contemporneaMuito da atuao contempornea advm do trabalho de encenadores que trouxeram para o teatro novas abordagens criativas, a partir do movimento das vanguardas histricas e dos novos usos do palco e do corpo do ator como as encenaes de Maiakovski. Separando a questo da psicologia do personagem iniciada por Stanislavski, vemos no sculo XX o surgimento de vrias correntes de interpretao que, ou continuam as pesquisas do ator-diretor russo, ou quebram totalmente os paradigmas pela via das vanguardas, como o teatro sinttico futurista. Na graduao em Artes Cnicas da Unicamp, que cursei de 1995 a 1998, pude experimentar processos de interpretao baseados no mtodo de Stanislavski com Reinaldo Santiago e Antnio Arajo, em duas abordagens distintas, uma mais tradicional e outra mais contempornea. Com Mrcio Aurlio estudei Brecht e fiz um projeto de encenao da Santa Joana dos Matadouros, no meu terceiro ano de graduao. Uma oportunidade de encarar o personagem pela via do gestus e do estranhamento. J havia

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treinado Mscara Neutra com Tiche Vianna nos dois primeiros anos, alm do j citado estgio no LUME. Ou seja, meu corpo j havia passado por determinados registros de atuao oriundos das pesquisas realizadas no sculo XX, dentro de um contexto de escolas brasileiras de interpretao, e sabia que queria mais. S foi possvel ter mergulhado no processo criativo de Ka, na performance e no xamanismo porque essas experincias da graduao j faziam parte do meu repertrio. Renato Cohen, que j havia se consolidado como encenador de vanguarda e como terico da cena contempornea, se deparou com um grupo de jovens artistas aptos a se jogarem no campo irracionalista da cena, a fazerem um mergulho pessoal. Nesse sentido, o processo de Ka foi uma iniciao coletiva, um grande rito de passagem que transformou minha viso de arte e vida.

A Arte da PerformanceAs inovaes no campo da atuao no sobrevm somente das artes cnicas, e sim de suas inmeras referncias nas artes plsticas, na msica e na literatura, como fonte de inspirao e propulsoras de novos procedimentos criativos (na obra de James Joyce, John Cage, Poesia Concreta, Movimento Tropicalista). Podemos dizer que o teatro se renova de tempos em tempos atravs de atores e encenadores que vislumbram possibilidades inesperadas a partir de suas incurses em outras reas o que torna a questo da recepo complicada, pois o espectador no possui muitas vezes os operadores de leitura dessa cena em processo.Certamente, no contemporneo, essas operaes criativas vazam e so atravessadas por outras linguagens exgenas cena teatral. Vivemos o momento do espalhamento da teatralidade e da atitude performtica, estendidos moda, mdia, ao cotidiano, em permeao constante com um mundo espetacularizado, desfronteirizado (COHEN, 1998, p. XXIX).

Renato Cohen era um desses visionrios, apaixonado pelo fazer teatral e muitas vezes incompreendido pelo pblico, que costumava dizer ao trmino das apresentaes achei bonito, mas no entendi muito bem. Tendo seu primrdio na corrente das vanguardas histricas (GOLDBERG, 1979), a arte da performance traz para a cena os elementos que compem a linha de atuao pesquisada no espetculo Ka, em que a vida do ator no se separa da arte movimento da Live Art (COHEN, 1989).5

Sendo um movimento artstico que surgiu na passagem dos anos sessenta para os setenta, a partir do happening, a performance conta com uma breve mas intensa inscrio na histria da arte. Existe uma vasta bibliografia no assunto, sendo as principais correntes para ns a iniciada por Roselee Goldberg nos Estados Unidos e Renato Cohen no Brasil em seus respectivos trabalhos: Performance: live art 1909 to the present (1979) e Performance como linguagem (1989). Os performers como entidades liminares que ritualizam transies sociais e culturais, no so muitas vezes compreendidos pela estrutura vigente, que espera que se comportem dentro de determinados padres. A performer americana Karen Finley, mestra em artes, aborda em seus trabalhos temas tabus para a sociedade como violncia domstica, estupro, suicdio, homofobia, intolerncia racial e AIDS. Suas performances solo chamam a ateno da imprensa e despertam ataques de polticos conservadores, o que resultou em patrocnios cortados e numa ao julgada pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1998, devido ao uso de materiais obscenos.

No Scream, um clube de Los Angeles, eles me cancelaram uma semana antes de eu entrar em cartaz, em agosto. Lydia Lunch ficou em cartaz l, eles tinham medo do que eu ia fazer. Disseram-me que o esquadro contra o vcio tinha ameaado cassar-lhes a licena se apresentassem algum como eu (...) Acho que eu incito as pessoas a serem responsveis pelo que acontece em suas prprias vidas ntimas, em suas relaes com o outro, entrelaando tudo isso com a corrupo da sociedade como um todo. bastante perturbador (Entrevista de Richard Schechner com a

performer Karen Finley, 1988). Desse modo a performance uma expresso artstica que cria situaes repletas de significao e comunho com o pblico, pois os indivduos liberam energias de sua prpria experincia de vida, muitas vezes de forte carter emocional, causando reaes inesperadas tanto em quem v/participa quanto em quem realiza o ato. Esse campo de atuao se d por uma via sensvel, vivencial, onde as imagens afloram e permitem, atravs do envolvimento na linguagem do work in progress, expor o ator a temas mticos que auxiliam na criao de personas arquetpicas, um momento em que mitologia pessoal e primitiva se encontram.Quando performo, pego a energia das pessoas, chego a entrar psicanaliticamente dentro delas, porque quero que elas sintam que estou realmente sentindo aquilo. Talvez no seja sequer minhas palavras, mas apenas aquela energia. Dou tudo o que tenho para fazer daquilo uma

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experincia. No se pode experimentar isso em filme ou discos. a experincia viva, e isso realmente importante (Entrevista de Richard

Schechner com a performer Karen Finley, 1988). Os contedos e vises que aparecem durante a preparao psicofsica da performance e com o envolvimento ritual da via xamnica, servem de material de criao para a cena performtica e para a construo das personas desenvolvidas pelos atores. Os conceitos de live art, liminaridade, ritos de passagem e mitologia pessoal so explorados no que se refere ao espetculo Ka, em conformidade com as principais tendncias que envolvem o corpo e suas performances a partir da dcada de 80. Usamos como referncia trabalhos de Karen Finley e Joseph Beuys, no que se refere s experincias limtrofes com o corpo e criao a partir de lendas pessoais, parte importante da pesquisa. O objetivo da pesquisa a descrio do processo inicitico em performance e xamanismo na criao do espetculo Ka Cena Zaum de Vlimir Khlbnikov, a partir da vivncia pessoal e dos registros da experincia. A tcnica de observao foi sistematizada atravs de registros documentais em dirio (caderno de anotaes pessoal) e dos registros visuais de apresentaes pblicas (vdeo e foto). J a tcnica de entrevista foi utilizada a fim de esclarecer tpicos referentes preparao do espetculo e foi realizada no incio de 2005 de forma semi-estruturada6

com Lynn Mrio M. de Souza. A pesquisa qualitativa pretende

utilizar com inteligncia o que encontra no decorrer do processo investigativo. A teorizao dos conceitos feita de forma aplicada ao longo do texto, priorizando a descrio dos processos iniciticos na preparao e apresentaes pblicas do espetculo Ka.

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A entrevista semi-estruturada consiste no planejamento atravs da preparao de um roteiro prvio de perguntas (tpico-guia), mas que podem ser modificadas durante a entrevista. Essa tcnica permite tambm que atravs do dilogo entrevistador entrevistado, novas perguntas possam surgir. Tambm chamada de entrevista qualitativa individual ou de profundidade (GASKELL, 2002).

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Parte I O Processo

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1. O texto como contextoKa a sombra da alma, o sol dos sacerdotes do Egito, o mar dos Eddas escandinavos, a terra e o ar do Japo mitolgico, so os falsos profetas do Isl, o Bem e Mal do Cristianismo, so a China antiga, a Grcia de Pricles, os citas de Adi Saka (...) o Amor do homem de todos os tempos.

(BERNARDINI, tradutora de Ka, programa do espetculo, 1998).

O conto-canto K a (1916) oferece uma estrutura vertiginosa, na qual o leitor no se fixa a uma imagem s, mas a uma sucesso de metamorfoses e viagens espao-tempo. Vlimir Vladimirovitch Khlbnikov nasceu em 28 de outubro de 1885 na Rssia Asitica, sendo de uma famlia abastada, que possibilitou seus estudos e de seus irmos com os melhores preceptores de sua cidade (fig.1). Aprendeu russo e francs e se interessou desde cedo por literatura e matemtica. Aos poucos comeou a escrever, no se encaixando nem na literatura nem na cincia, formou as bases de uma escrita em que a matemtica importava tanto quanto a lngua: A lngua a fonte eterna do conhecimento (Ka, cap. II, p. 15). A escolha da prosa-poema Ka foi um grande desafio: Khlbnikov um autor de difcil compreenso, at mesmo na Rssia atual. Fez parteFig.1 - Foto de Khlbnikov, livro Ka.

do movimento cubo-futurista russo e excursionou pelas terras glidas da Rssia e Sibria, aps

adoecer algumas vezes na poca da revoluo, morrendo em 1922. Sua obra fonte de inspirao e seus escritos so labirnticos, trans-temporais. A leitura de Ka entremeada pelas consultas s notas, que merecem um grande destaque pela clareza da tradutora Aurora Bernardini. impossvel compreender o percurso de Ka sem l-las. Mesmo assim o texto todo cifrado e criado em linguagem hipertextual.

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A contemporaneidade da sua potica d-se na sua estrutura hipertextual, matriz de vrias narrativas seqenciadas de forma no linear. Khlbnikov prope, na sua escritura, estruturas picas multilineares, que tecem uma rede. Uma grande rede memorial, resgate cifrado de um hipertexto das culturas e das mitopoticas onde surgem aluses aos eddas escandinavos, s lnguas citas, s mitologias muulmanas e egpcias. Rssia dos cones ortodoxos dos anos 10. Tudo isso varrido por uma vertigem espaotemporal (COHEN, 2000, p. 130).

A ns cabia a tarefa de traduzir para a cena os universos referenciais trazidos por Cohen com nossas prprias vises e sonhos, num doloroso processo de colocar a prpria vida na arte. Na anlise mais pormenorizada do processo criativo de Ka, surpreendo-me ao me deparar com essa proposta de estrutura permeando todo o espetculo, que no seno a idia do encenador de criao em hipertexto, sobrepondo camadas e tendo uma espcie de anti-estrutura aparente. Velimir Khlbnikov e Renato Cohen foram a vanguarda de seu tempo. Muitas vezes incompreendidos, buscavam a todo custo a epifania do fenmeno atravs da linguagem, mapeando territrios e cartografias pouco exploradas, trazendo para a arte a dimenso mtica. Se Khlbnikov falava para o homem do futuro, Renato atingia o espectador contemporneo.

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2. A proposta do encenador em torno da encenao, considerada no como o simples grau de refrao de um texto sobre a cena, mas como o ponto de partida de toda a criao teatral, que ser constituda a linguagem-tipo do teatro. E na utilizao e no manejo dessa linguagem que se dissolver a velha dualidade entre autor e diretor, substitudos por uma espcie de Criador nico a quem caber a dupla responsabilidade pelo espetculo e pela ao

(ARTAUD,1993, p.89-90). Em Ka o encenador valorizava o processo Work in Progress a fase de criao: no queria um espetculo de alunos, mas algo que sasse fora dos limites. Dava vazo fuso das artes, querendo dissolver os conceitos teatrais e trabalhar com os impulsos, o irracional, na criao de um campo hipertextual no qual os elementos se sobrepem em diferentes camadas (palimpsesto). Renato dizia que no chegava a ser uma criao coletiva, mas sim uma criao conduzida. Ele desejava que a pea tivesse um continuum, um fluxus, acredito que tanto na atuao quanto na encenao como um todo. Queria que a polifonia se estabelecesse na linguagem e nas questes da mediao atravs da tecnologia (multimdia).

O que distingue o encenador, novo artista da cena, de seus antecessores o prprio dramaturgo, o ensaiador ou o primeiro ator da companhia o fato de que sua obra no pretende ser a simples disposio cnica de um conjunto, a marcao de entradas e sadas de elenco, a orientao de uma entonao de voz ou mesmo a rememorao e atualizao de truques e convenes que persistem, atravs da histria, como elementos de enformao (sic) do teatro. O encenador organiza o sentido do que se apresenta no palco, na medida em que no se limita mais a ordenar elementos, mas sistematiza concepes que do um carter ao projeto de encenao. Ele se transforma em autor do espetculo (FERNANDES,

1996, p.271). No encontro em dezembro ele j havia sugerido o trabalho do russo Velimir Khlbnikov como dramaturgia e reforado o estudo de Joseph Beuys e das vanguardas. Deu um nome inicial de Projeto Zeitgeist, que significa Esprito de poca, e havia sido nome de uma obra de Beuys, depois projeto Ka. O projeto Ka compreendia o espetculo, exposies de fotos e instalaes no espao de apresentao, palestras e debates sobre os temas pesquisados e a criao de um site na Internet. Esse site est no ar dentro da pgina da Unicamp e foi feito pelo ento aluno de

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Artes Plsticas Daniel Sda, com a ajuda do ator do grupo Fbio Santana: http://www.iar.unicamp.br/~projka. Levantamos uma lista do material a ser utilizado no incio dos ensaios: microfones, computador, spots de luz, caixa de som, figurino bsico (vestido e terno), aparelho de som potente, etc. Ficamos muito animados pelo fato de Renato colocar esse projeto como prioridade em sua vida, junto com seu trabalho na PUC-SP, o que de fato aconteceu, tamanha foi sua dedicao e empenho para que Ka fosse algo surpreendentemente instigante e inovador. A preparao dos atores-performers para a cena potica era orquestrada pelo encenador na forma de workshops de criao. Num primeiro momento trabalhvamos com os universos referenciais trazidos por Cohen e as imagens criadas pelo cengrafo Arnaldo de Melo, seu companheiro de outras cenas. Arnaldo freqentava os ensaios de forma sistemtica e produzia muitos desenhos de cenrios e mapas cartogrficos. A cada ensaio o cengrafo aparecia com novos desenhos, que continham uma certa grandiosidade em suas propores e davam ambincia para o universo da pea, ainda muito processual na percepo dos atores. Esses desenhos arquitetnicos nos inspiravam e mostravam uma espacializao para as personas dos performers. O pesquisador de vanguardas russas Lcio Agra nos auxiliava no campo terico e potico de Vlimir Khlbnikov, dando palestras sobre o tema. Fbio Fonseca de Melo, que havia ingressado conosco em 1995 no curso de Artes Cnicas, mas estava cursando Letras, acompanhou toda a montagem e traduziu vrios textos sobre o autor russo. Tambm fizemos workshops de Preparao do personagem atravs do ritual, com Andria Copeliovitch, Voz e Conexo com Madalena Bernardes, Dana Contempornea com Holly Cravell e Lara Pinheiro e Xamanismo e teatralizao com Lynn Mrio M. de Souza.

Os ensaios com RenatoComeamos os ensaios em nove de janeiro de 1998, mas a primeira experincia prtica que tivemos com o encenador foi em dezembro de 1997, aps a aula sobre Robert Wilson na matria Teatro Contemporneo, quando o convidamos para um workshop no intuito de conhecermos um pouco de seu trabalho.

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Nesse dia trabalhamos usos inusitados de espao na cena (banheiro, janela, corredor), criao de performances a partir de textos poticos, sendo que o tempo de preparao no excedia dez minutos. Ficvamos perplexos com esses procedimentos medida que a excitao crescia em experimentar um novo processo criativo. O material que surge traz um carter vivo e elementos inesperados, prprios da linguagem performtica.Deve-se ter em mente que o elemento inesperado na performance inesperado no s para o espectador, um dos vrtices da relao comunicacional, mas tambm e primeiramente ao artista de performance, cujo trabalho sempre tem um aspecto de inesperado (GLUSBERG, 1987,

p.83). Quando comeamos de fato o projeto Ka, Renato nos orientava a ler os textos poticos e de suporte de forma transversal, no importando em que ponto se comea ou termina a leitura. Nessa fase comecei a ler vrias coisas ao mesmo tempo, numa experimentao em hipertexto. Os primeiros ensaios foram marcados por experimentaes em body art 7 (passando no corpo diversos materiais e buscando outras formas de percepo), buscando referncia no trabalho dos artistas Joseph Beuys e Marina Abramovic, alm das propostas do repertrio de Cohen, aliando meditaes ativas, tcnicas de giro dos sufis, os animais do kenp e os treinos de atracamentos em dupla, como o exerccio dos bfalos. Esse ltimo consiste em duas pessoas ficarem em frente uma a outra a quase dois metros de distncia, armarem a posio do bfalo, levantando os braos e uma perna, criando um estado de tenso em elevao at que se realiza o ataque: um atracamento frontal, onde os braos encaixam nos ombros do companheiro e o objetivo manter o equilbrio e tentar derrubar o outro. Na mesma linha os exerccios de pegar o pescoo do parceiro num ataque, enquanto o outro se defende, e o de empurrar um ao outro, formando uma coreografia dinmica de cair, empurrar e levantar. Fomos pegos de surpresa, por esses exerccios no fazerem parte de nosso repertrio de tcnicas de interpretao, e incitarem tenso pelo conflito e uma espcie de violncia, que particularmente no havamos experimentado em nossa graduao. Por outro lado, trabalhar as tenses contidas numa proposta psicofsica amplia o campo de

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O conceito de body art aqui usado no sentido de experimentaes de diversos materiais sobre o corpo como terra, gordura, tinta, urucum, farinha, etc, semelhana de Beuys e Abramovic, performers contemporneos, num movimento artstico que tem o corpo do artista como suporte. 15

preparao e atuao na cena performtica, que exige um novo registro de interpretao, que inclui o fluxo (flow). Para tal, alm das prticas rituais que descreveremos, Renato aplicava o exerccio de cmera lenta com referncia nos procedimentos de Robert Wilson. Esse exerccio consiste em caminhar o mais lento possvel, prestando ateno no que acontece ao redor, e depois repetindo toda a caminhada, que pode durar de meia hora a mais de uma hora. O condutor d as instrues durante o exerccio, que pode ou no ter msica em alguns momentos, mas deve-se valorizar os sons ambientes. Movimentos espontneos podem surgir, buscando uma no-racionalidade e esteticidade. Resulta numa ampliao do campo de viso, saindo de seu registro perifrico e alcanando uma viso de coruja, a 360. Tambm nessa linha experimentamos a no-viso, a partir de uma vivncia que saa dos limites dos ensaios em grupo: no dia-a-dia, um ator conduzia o outro pelo campus, no trajeto para casa, enquanto este estava de olhos tapados. As duplas que estavam se formando nas cenas costumavam realizar essas vivncias extra-sala, dentro da idia de live art, a arte no cotidiano e o cotidiano na arte.

Treino: Intensidade Risco / Precipitao Ampliao dos Sentidos Giros / Meditaes Gestualismo Icnico Body Art

Sobre a questo da duplicidade, sentamos que as energias geradas muitas vezes eram conflitantes e s vezes complementares, conceito depois esclarecido pelo xam Lynn Mrio. A energia conflitante necessria para essa linguagem cnica, no devendo ser abafada e sim canalizada na criao das cenas e das personas; o xam enfatiza a idia do complemento e do conflito entre os eixos vertical e horizontal como mantenedores da ordem que se pretende trabalhar e criar.

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Fig.2 Ensaio com Renato. Foto: Daniel Sda.

Fig.3 - Ensaio com Renato. Foto: Daniel Sda.

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Os ensaios tinham muitas vezes um forte carter ritual (fig.2), tendo na figura de Renato uma guia forte e precisa. Trabalhvamos com os elementais da natureza, com renascimentos e passagens por tneis e ritualizaes a partir da body art. Ensaivamos com Renato toda quinta e sexta-feira, nos outros dias tnhamos aulas de teoria e prtica que davam suporte ao projeto de formatura, com os professores do curso: Hel Cardoso, Mrcio Tadeu e Srgio de Carvalho. Nosso assistente de direo era o ex-aluno Cssio Diniz, que ensaiava conosco quase todos os dias da semana. O ritmo do processo que se estabeleceu foi muito intenso, sendo fundamental uma prtica do curso de disponibilizar uma grande sala de ensaio para a turma de formandos o ano inteiro, sendo um espao de criao onde podamos deixar os materiais de cena e indumentrias (fig.3). Nos meses de janeiro e fevereiro as referncias mais marcantes foram os textos Madame Lhnin e Ka, os ensaios Zaum, Zanguezi de Khlbnikov; as imagens de Joseph Beuys e Marina Abramovic; do Egito os poemas do livro Rebel in the soul8

e os treinos e

experincias em body art. O texto Madame Lhnin era bastante usado nessa primeira fase do trabalho. Pea escrita por Khlbnikov entre 1909 e 1912, e publicada em 1913 no manifesto futurista A Lua Arrombada, cujos personagens eram a Voz da Vista, a Voz do Ouvido, da Razo, da Memria, entre outras. Formamos um substrato sonoro a partir deste texto, tanto para essa apresentao quanto para a seguinte, no COMPS. Em relao s referncias textuais, citamos Renato Cohen:

O texto se guia pela prosa-poema Ka, os poemas-peas Zanguezi e Madame Lhnin e por excertos terico-poticos da obra de Khlbnikov. So tambm referenciais montagem a obra matrica e performtica dos artistas contemporneos Joseph Beuys, Marina Abramovic, a encenao hipertextual de Richard Foreman e Robert Wilson, a dana das tenses de Marta Graham e as iconografias egpcias (COHEN, programa do

espetculo Ka, 1998).

Uma das principais referncias era a poesia transmental Zaum, criada por Khlbnikov e Alexei Krutchonik, pertencentes vanguarda cubo-futurista russa. Essa lngua

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Renato levou aos ensaios o livro de poemas Rebel in the Soul: an ancient egyptian dialogue between a man and his destiny de Bika Reed, que serviu de inspirao para muitas cenas, traduzido por Andr Benevides.

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foi chamada por Khlbnikov de lngua transracional, por estar alm dos limites da razo. Ele chegou a dois postulados sobre essa lngua:1. A primeira consoante de uma palavra simples orienta a palavra toda e a leva sobre todo o resto. 2. As palavras que comeam pela mesma consoante, so ligadas entre si por uma noo que lhes comum; como se, vindas de horizontes 9 diferentes, elas se juntam no mesmo setor de nosso julgamento.

Nos ensaios da cena Zaum, Renato nos pedia uma nova abordagem do texto. Queria fazer emergir um som encantatrio, mtico, sem ncora no campo da realidade, o que para ns era muito difcil de se realizar. A seguir, exemplos de poesia transmental Zaum:Vuy nuar ne po si dyabl Sentere zhe se kukh pon betsima tsiturname tsiturname tsitama 1. Virarika. Vito seruvaru, sidyabrina Kyu-yu-yu... letrintala.. 2. Dari. Shepeshka Topcha-poncha Pineviche

E aquele que ficou mais marcado nos ensaios e apresentaes:dir bul chtchil ubechchtchur skum vi so bu r l z

Tinha ainda o dos pssaros:Perdiz: Pit pait tuichan! Pit pait tuschan Coucou: cou-cou! cou-cou (balana ao redor) A rolinha: Piou! Piou! Piak, piak, piak Pomba verde: Pruigne, ptzirep Ptzirep! Ptzirep tzssere Eros: Mara-roma Biba-boul Ouks, kouks, el! R daididi, dididi Piri pepi pa-pa-p Kiyu iyu iyu Letrintala9 10

KHLBNIKOV, V. Des nombres e Des Lettres. Edition LAge DHomme, traduo de Edith Epstein. Renato nos levou o xerox do texto sem a referncia bibliogrfica completa. 19

Estvamos na cena eu e a performer Elisa Band, parceiras em outras duas cenas, duplos da mesma persona. Ele me sugeriu o estudo de alquimia e bruxaria, no tocante cena, pois o texto deveria ser imantado de forma encantatria. Como se estivssemos evocando outras entidades que eram necessrias para estabelecer o fluxo do espetculo. O empenho na gestao da cena Zaum foi muito intenso, em alguns ensaios o diretor e seu assistente pediam que eu e Elisa inundssemos as outras cenas e personas com nosso Zaum, tomando conta de todas as paisagens. Digo gestao porque o processo de interpretao muito doloroso, o material pessoal e depende muito de sua energia vital. Por isso que nossa dana se diferenciava e tambm nossas entonaes do texto.

A ausncia de um fio narrativo que ligue os eventos cnicos outro mecanismo de travar a passagem do mundo imaginrio. Em lugar de o texto servir de meio de conduo imediata do significado, oferecendo-se ao pblico como discurso ficcional e realidade simblica, um texto onde as palavras tm o valor de coisas e, portanto, de significantes. Esse resultado acentuado pela fragmentao do texto em molculas de sons, que o transformam, de material semntico, em matria concreta manipulvel por processos de ready-made, collage, citaes ou experimentaes de estrutura rtmica ou de padres sonoros

(FERNANDES, 1996, p.290).

Foi a primeira vez que trabalhei o nu na cena, e a idia de pintar hierglifos egpcios partiu da parceria com a artista plstica Marina Reis. Ela fez vrios carimbos em E.V.A. e comeamos a usar guache preto (fig.4), o que resultou num ensaio fotogrfico, e deu forma e fora cena que estava surgindo (fig.5). Esse processo criativo de difcil aceitao, por tratar temas pessoais no mbito da encenao. Eu no estava representando uma sacerdotisa, eu era uma atriz fazendo uma cena encantatria, interpretando pedaos de mim mesma, buscando referncias na minha trajetria pessoal, dos meus antepassados e das danas que meu corpo sugeria10

Fig.4 - Aplicao de carimbo. Foto:Fernando Petermann.

Khlbnikov / Krutchonik. Fonte: http://www.iar.unicamp.br/~projka.

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Fig.5 - Ensaio fotogrfico Zaum. Foto: Marina Reis.

nos estados alterados de conscincia surgidos nos ensaios. o que Cohen chamou de mscara ritual (1989, p.58). O ator uma espcie de totem, compondo a partir de formas externas e alteridades internas. Dessas fotografias Rogrio Borovik e Daniela Kutschat criaram a animao mais emblemtica do espetculo, em que s imagens se sobrepem vrias camadas, cones egpcios e texturas (fig.6). No dia doze de maro ele comentou que ns nos jogvamos bastante nas cenas, e isso era bom, pois seu intuito era que a intensidade e o risco se tornassem o treino para o espetculo (caderno de anotaes, 1998). Em meados de maro j tnhamos algumas cenas em processo e uma espcie de roteiro que a cada ensaio assumia novas configuraes. Esse treinamento, ao invs de buscar a harmonizao das energias, potencializa-as, trabalhando num grau deFig. 6 - Frames da Animao de Rogrio Borovik e Daniela Kutschat.

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tenso e violncia, criando o chamado corpo de risco, na expresso do performer Joo Andr. Um corpo atento s demandas da cena contempornea, dos acontecimentos inesperados e dos possveis riscos a que os atores se expem. Procedimentos trazidos pela arte da performance e pelas experimentaes do teatro dos anos 1970-80, como a cena de risco do grupo Living Theatre, e o Teatro Oficina do Z Celso, vivncias cnicas que tiram o espectador de sua passividade habitual, e o coloca no tempo mtico proposto pela cena. A questo do inesperado intrnseca ao surgimento dos happenings dos anos 1960, tanto no Brasil, como na Europa e nos Estados Unidos.

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3. Workshops com artistas convidados

Dana contempornea pesquisa gestualNo ms de maio fizemos pesquisa gestual num workshop com a coregrafa e performer Lara Pinheiro, onde trabalhamos a dana coletivamente numa abordagem muscular e articular, sendo a primeira a distribuio do peso no espao e a segunda supe uma maior dimenso do prprio esqueleto. Trabalhamos seqncias de movimentos propostas por Lara que originaram as cenas de coro do espetculo, junto cena de Amenfis. Nessa fase j havamos criado bastante e delineado um corpo para o espetculo, mas que ainda no estava orgnico, bem realizado tecnicamente. Percebamos que o domnio tcnico extremamente necessrio para o fluxo interpretativo do ator, e que as intensidades conquistadas nos ensaios precisavam ser moldadas nesta passagem para a esttica da cena. A cena Zaum era composta por dois momentos, primeiro com a persona do Zanguezi, feita pelo ator Gustavo Arantes, e o duplo formado por mim e Elisa Band. Nossa parte era uma coreografia baseada num filme de Peter Greenaway que Renato nos pediu para assistir. Lara percebeu que estvamos tentando danar como bailarinas, e no era o caso, ento trabalhou para tornar a seqncia mais prxima de nosso universo de intrpretes, atravs de seus exerccios, o que de fato aconteceu. Orientou para que nos apoissemos com mais afinco nas referncias do trabalho, que eram bem fortes e um campo muito rico de inspirao e criao (caderno de anotaes).

Voz e ConexoTambm fizemos em maro um workshop com a performer Madalena Bernardes sobre Voz e Conexo, na tentativa de apurar nossas percepes do movimento da voz no corpo. Como ela mesma j havia trabalhado com alguns xams, trouxe ao grupo a conexo com os sons encantatrios e a fora icnica das palavras que Renato desejava para o espetculo. Nos ensinou uma seqncia de vocalizaes que acessavam a energia sutil de cada um, entrando num estado alterado do corpo atravs da voz. Principalmente a respirao e as pausas, pois ns, atores, temos uma ansiedade em tratar o texto de uma forma corrida e com mais fora do que o necessrio. Pedia para pensarmos no movimento e nas imagens em espiral, e na localizao do som no corpo, dando espao para a caixa torcica.

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Resultando numa maior percepo do espao e das pessoas, alm de uma maior presena cnica, ampliando a abordagem que fazamos das palavras no texto-guia. Sua ajuda foi fundamental na manuteno da cena Zaum, pois exigia de ns uma presentificao e um esforo aparentemente difcil de repetir. Parecia que aquele estado a que chegamos em alguns ensaios com Renato estava mais prximo do transe. O que aprendemos desta vivncia com Madalena nos acompanhou em todo o histrico do grupo, no s na montagem de Ka. O aquecimento da voz e as imagens do corpo e do tamanho da aura potencializaram o trabalho vocal os atores, dando vida e tcnica s expresses que j estavam em andamento.

Carregadora Em si para os outros interesso-me em rever os momentos, um a um, a confundir as idias de Arte com as de Natureza, aceitar o desejo criativo de estar em ao. Lana-chamas de altiva simplicidade. Loucura personalizada Carregadora de signos da humanidade. Desfacelo-me amanh. Retorno depois de amanh vivendo a realidade nos espaos de sono. E no entanto me permitido passar por um instante nico de lucidez/loucura onde no distinguo o teatro da vida. Como iniciada sinto todo o peso de minha existncia. Acredito na fora que de mim se apodera acompanhada de fraqueza de cabea de avestruz em dias de frio intenso. Rasgo o cobertor e salto na geleira. A pintura do corpo se desfaz em fogo do fundo dos olhos. Olhos de seres separados por conveno. Fico Permaneo.

(escrito pessoal caderno de anotaes - dia 04.05.98)

Xamanismo e teatralizaoO polimorfismo, proposto pelo xamanismo, vai exigir do ator metamorfoses de corpo e psique num delicado exerccio de iniciao (COHEN, 2000,

p.130). Podemos perceber o percurso que Renato nos fez trilhar em Ka para chegarmos ao fluxo interpretativo que queria para o espetculo, o que culminou nos encontros com o xam Lynn Mrio, algo indito no s para ns, como para o prprio Renato. Ele conhecera Lynn Mrio atravs de um parente em comum, e sabia do trabalho teraputico que realizava, sem

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saber exatamente do que se tratava. Em seus escritos anunciava a via xamnica como propulsora de processos criativos (COHEN, 1998), mas essa parceria s se efetivou por ocasio do espetculo Ka, o que caracterizou iniciaes por ambos os lados, criando um campo de linguagem que perdurou at o ano de 2003, com a morte do encenador.

Nas primeiras conversas que tive com Renato ele falava muito sobre construo de personagens a partir do contato com alteridades. Da descoberta de outros nveis de realidade alm do ego, que possibilitassem aos atores a criao de seus personagens de uma forma no-racional, ou seja, de outras formas de racionalidade no trato aqui do irracional

(SOUZA, 2005, ANEXO A). E assim, no final de maio, tivemos nosso primeiro encontro com o xam Lynn Mrio M. de Souza. O xam nos introduziu a viagens iniciticas, ao contato com nveis de alteridade e identidade, operando como processador do texto e do contexto da montagem, pela via xamnica indiana. As caractersticas deste xamanismo contemplam fatores comuns encontrados em outras manifestaes correlatas como cura atravs do transe no nosso caso o transe consciente , o contato com espritos de diversas linhagens, viagens de ascenso aos cus e descida aos infernos. Assim como na maioria dos processos iniciticos, ns fomos submetidos a um cuidadoso preparo por via artstica e espiritual.

No incio achamos que era muito parecido com o processo teraputico que eu j fazia no havia trabalhado com artistas at ento , o intuito de levar as pessoas a sair das percepes que esto habituadas, de seu grupo social. Desenvolvemos um trabalho de criao e preparao do ator na busca de informaes que compem sua prpria personalidade alm de seu ego (SOUZA, 2005 ANEXO A).

O Xamanismo est presente em contextos nos quais o sagrado e o profano no so separados da vida cotidiana, que est profundamente impregnada de experincias religiosas.Para mim o xamanismo uma viso de mundo, como uma postura, uma prtica cultural. Parte de crenas, ritos, rituais, enfim, tudo o que caracteriza uma prtica cultural. Evito a abordagem de prtica espiritual, pois esta terminologia separa uma viso espiritual de prticas cotidianas, e para mim no h essa separao. Xamanismo uma maneira de ser, que tem a ver com aquilo que voc come, aquilo que voc faz, com tudo. No algo como a viso ocidental de espiritualidade, aquilo que voc s faz numa igreja em

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determinados dias da semana, no vejo o meu xamanismo como uma prtica espiritual nesse sentido (SOUZA, 2005 ANEXO A).

Nosso primeiro encontro foi na casa de praia de um dos atores de Ka, Fbio Santana, litoral norte do Estado de So Paulo, no que resta da Mata Atlntica brasileira. Teve durao de dois dias (fim-de-semana) e participao no s dos atores e do encenador, como do assistente de direo Cssio Diniz, do cengrafo Arnaldo de Melo, da figurinista Marina Reis, e do artista plstico Daniel Sda. Fomos orientados sobre o que levar para as atividades e o tipo de comida que seria preparada. Estvamos ansiosos para o encontro, numa euforia coletiva que foi devidamente compensada pela intensidade e riqueza da experincia. Para o encontro com o xam, foi solicitado por Cohen os seguintes materiais:

Argila Fantasia (no figurino) Fogo, madeiras, tambores Coisas pessoais Cola, tesoura, jornal (para mscara) Galhos, cordas, folhas Comida.

Chegamos sexta-feira noite, dia 27 de maio de 1998, menos de um ms antes da pr-estria no Parque Ecolgico. Dormimos e comeamos os rituais no sbado de manh, com a chegada do xam. O xam dava as coordenadas para o grupo de como se instalar no espao: usamos o maior cmodo da casa, que era a sala, e cada um se instalou confortavelmente em roda. Era importante estar bem instalado, deitado sobre uma esteira ou um tapete e bem agasalhado. Todos se posicionaram na roda e o xam, que j havia preparado seus objetos pessoais, colocou um pote com gua, acendeu um incenso e pegou o seu tambor. Ele nos falou com poucas palavras sobre o trabalho ritual que estvamos comeando, e sobre a linha de xamanismo utilizada, alm de explicar rapidamente qual era a base do xamanismo em geral.Meu xamanismo vem do hindusmo, do tantrismo e tambm de todos os meus contatos com vrias formas de xamanismo brasileiro. Como no uma instituio religiosa, que tem um determinado conjunto fechado de

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crenas a nica definio de xamanismo pode ser essa, que no uma religio , so prticas que surgem em culturas diferentes em momentos diferentes. No meu caso, o tantrismo que surgiu como uma reao ao hindusmo bramnico na minha famlia era praticado de uma forma cotidiana e no-oficial. O que se faz no dia-a-dia uma negao das ortodoxias, oficialmente somos catlicos. Essas so as bases do meu xamanismo, o xamanismo no qual eu fui criado: Negao de ortodoxias e hierarquias; valorizao da polarizao de tudo, em termos de masculino e feminino; no-duplicidade, apesar de haver uma polarizao no h uma duplicidade; h dois lados de uma totalidade complementares e s vezes conflitantes (SOUZA, 2005, ANEXO A).

Sugeriu como abertura dos trabalhos daquele dia a reverncia aos espritos protetores de cada ponto cardeal. Dentro do xamanismo muito importante a simbologia dos pontos cardeais, a sabedoria dos povos do Leste, Sul, Norte e Oeste, o povo amarelo (asitico), o povo negro, o povo branco, e povo vermelho (indgena). Tambm cada ponto tem seus animais de poder, conforme as regies do globo terrestre, o que cria o campo dos espritos ancestrais de cada ponto cardeal. Esse rito de abertura feito se voltando para o lado que se vai reverenciar, e o xam profere as palavras: Reverenciamos os espritos protetores do Leste! e toca o tambor ritual. Ao que todos repetem: Shanti, que uma saudao hindu de paz. Invoca-se a sabedoria que inerente ancestralidade de cada povo, e em seguida se pede permisso aos espritos protetores do lugar, ou seja, da casa e da floresta em que estvamos iniciando nosso ritual coletivo. No xamanismo acredita-se que todos os lugares so habitados por espritos, e se torna necessria a comunicao com eles para o xito da travessia xamnica, numa atitude de reconhecimento e respeito s entidades que habitam cada plano csmico. Feita essa primeira etapa de abertura do espao ritual e reconhecimento dos procedimentos xamnicos, fizemos um exerccio de respirao e abertura dos chacras, que so os vrtices de energia que temos no nosso corpo. Sentamos em posio de meditao mos repousadas sobre os joelhos e coluna ereta e vocalizamos uma letra para cada chacra, inspirando profundamente e expirando at acabar o ar do pulmo:

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E na garganta A no corao O no plexo solar U na base da coluna I na testa e na cabea

Durante a vocalizao de cada letra o xam tambm tocava o tambor. Essa meditao ajuda na harmonizao das energias do corpo, tornando-o mais presente, abrindo caminho para o trabalho que vem a seguir. Nos ritos xamnicos por ns utilizados, o estado alterado de conscincia acessado atravs do toque do tambor, que o condutor dessa busca imaginativa. O tambor ritual de uso pessoal do xam, assim como seus objetos de poder.

O tambor pode gerar sons que transformam a forma e alteram a conscincia. A medida o resultado que percebo no ritual. Voc controla as mudanas controlando a cadncia do tambor. Pode ficar mais intenso, menos intenso, regular, irregular, dependendo das mudanas que voc pretende gerar (SOUZA, 2005, ANEXO A).

Viagem do animal de poderNesse contexto de trabalho inicial tivemos contato com nosso animal de poder, um dos motes centrais do Xamanismo, o de que todas as pessoas possuem um animal de poder, ou potncia anmica ligada energia vital do indivduo. Como j estvamos sentados na roda e o corpo com a energia mais sutil, o xam comeou a explicar qual era o tema da viso xamnica que iramos experimentar. Explicou calmamente sobre o tipo de trabalho que iramos realizar, sobre o fato de ver com os olhos fechados e deixar as imagens acontecerem sem juzo de valor. Ele iria conduzir atravs do toque do tambor e chamar de volta quando se completasse o tempo. Isso significa que o tempo da viso conduzido por ele e que, ao voltar, se deve fazer todo o percurso de volta. Explicou tambm que era muito importante o cuidado com entrar e sair do ritual, pois o estado vivenciado na viso xamnica se d no campo das almas e dos

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espritos, portanto no se deve ficar por l, no apelo de no voltar ao nvel consensual de conscincia. Narrou o percurso a ser feito da seguinte maneira:

Cada um vai em busca de um portal, que simboliza a entrada no outro nvel de conscincia, e vai procurar seu animal de poder. Pode ser que entre em contato com vrios animais, mas para se concentrar no que estiver mais chamando ateno. Quando estabelecer um contato maior com um animal para perguntar: Voc meu animal de poder? Esperar a resposta e realizar o caminho de volta, pelo mesmo lugar, passando pelo mesmo portal

(caderno de anotaes, 1998). Aps dar as coordenadas da jornada, pediu ento que deitssemos de barriga para cima, cabea voltada para o centro da roda, braos ao longo do corpo e palmas das mos voltadas para cima. Fechamos os olhos e respiramos profundamente trs vezes.

Eu estava deitada de olhos fechados, barriga pra cima, palmas das mos voltadas para o alto. No meu entorno, a natureza. Atravs do toque do tambor, seguido de alguns procedimentos rituais, respirei profundamente por trs vezes e sa em busca de meu portal. Ele era uma folhinha de rvore, bem verde; entrei e logo me encontrei com uma serpente. Uma espcie de naja, que me mostrou seus olhos atravs dos meus. Nos estranhamos um pouco, quando finalmente lhe perguntei: - Voc o meu animal de poder? Depois da resposta afirmativa, caminhamos juntas pelo meio da mata e, ao ouvir o chamado do condutor, fizemos o caminho de volta

(caderno de anotaes, 1998).

A experincia se mostrou muito intensa por dar a sensao de realmente ter acontecido. O estado parecido com o do sonho, mas a conscincia se mantm alerta por todo o percurso. No meu caso, no tive vises dos lugares pelos quais passava, mas sentia tudo atravs do meu corpo: a cobra apareceu de um movimento da bacia, se estendendo da base at o topo da coluna, alterando minha respirao. A sensao de verde do portal e do animal invadia os meus sentidos e me sugeria cada passagem. O meu corpo se movimentou durante toda a viagem xamnica, sem que eu conduzisse, o tambor era o condutor. O entrar e sair pelo portal na viso xamnica simboliza a entrada num outro estado de conscincia, que Lynn Mrio chamou de transe consciente. Ao entrar pelo portal as regras se tornam outras, o corpo experimenta sensaes novas e um despertar de regies a que se tinha acesso somente em sonhos ou alucinaes por drogas ou febres. A dvida sobre a

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veracidade daquilo que se v/experimenta, se a mente est conduzindo ou no. Muito natural em se tratando de iniciantes que esto acostumados com viagens sem controle. No xtase xamnico que vivenciamos no se perde a conscincia em nenhum momento, portanto, difere profundamente do transe de possesso. como se pudssemos controlar os nossos sonhos como ensina Castaeda em seus livros, mergulhando nas imagens que nem temos dimenso que existem, mas seguindo um percurso definido pelo xam.A diferena entre transe e viagem xamnica que no transe voc perde a conscincia, se ausenta do corpo, enquanto que nessa viagem xamnica voc no perde a conscincia. Voc tem acesso a um outro nvel de percepo, sem sair do seu lugar fsico, do seu corpo fsico, ento se tem uma dupla viso: est no corpo, mas percebendo outras coisas. Ver de olhos fechados (SOUZA, 2005, ANEXO A).

A passagem pelo portal tomou uma grande dimenso em nosso trabalho. Na minha primeira experincia o portal era uma folha de rvore bem verde e pequena, pela qual eu passei com todo o corpo como uma Alice que aumenta e diminui e s ento fui em busca do animal de poder. A transio ntida e muito importante para o xito do trabalho. O objetivo deve ser claro o suficiente para no se perder com as vises e sensaes que so muito intensas. Lynn Mrio enfatiza a importncia do objetivo que todo ritual deve ter. Todo ritual deve ter um tema e um objetivo muito claros, tanto para quem conduz como para quem conduzido. Pois sua funo de modificar a energia, e Lynn Mrio diz se o objetivo do ritual permitir uma mudana na estrutura fsica de algo, ou se quisermos que algo acontea para algum, o fazemos acessando as energias csmicas entrando no ritmo delas (SOUZA, 2005, ANEXO A). A questo do ritmo dada pelo tambor xamnico e tambm pelo marac no caso de muitas tribos indgenas brasileiras. Assim como os objetos de poder que cada xam tem, como colares, penas, sua indumentria, artefatos que simbolizam os quatro elementos, o tambor possui sua histria pessoal, seus prprios espritos que so reverenciados antes e depois de cada sesso. Cada tambor nico e a ele se atribui caractersticas do tipo de ritual que o condutor realiza.O tambor desempenha papel de primeira ordem nas cerimnias xamnicas. Seu simbolismo complexo, suas funes mgicas so mltiplas. indispensvel ao desenrolar da sesso, seja por levar o xam para o Centro do Mundo, por permitir que ele voe pelos ares, por chamar e

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aprisionar os espritos, seja, enfim, porque a tamborilada permite que o xam se concentre e restabelea o contato com o mundo espiritual que est prestes a percorrer (Eliade, 1998, p.193-194).

No nosso caso o xam usava um tambor pessoal, com desenho de pssaro no seu couro, o toque acompanhava o tema e a intensidade da viagem xamnica. Como indumentria usava uma camiseta e uma espcie de sri, creio que s nessas ocasies. Seus objetos de poder ficavam sua frente na roda, em cima de um tecido e ele tambm sentava sobre uma almofada ou algo parecido, nunca sentava direto no cho. Conforme sua descrio posterior ele acompanhava a viso de cada um. O xam tambm se prepara ao se conectar com as energias que sero transformadas atravs do ritual; seu trabalho comea bem antes do incio da sesso. Ao sair do estado alterado deve-se tomar os mesmos cuidados do que quando se entra, porque se esse estado permanecer aberto, perde-se a noo da realidade, que uma forma consensual de percepo, em oposio a uma forma individual de percepo. Para se evitar problemas fazamos ritual de entrada e ritual de sada (SOUZA, 2005, ANEXO A). Ao voltar do xtase, respiramos fundo trs vezes e mexemos devagar os dedos das mos e dos ps, com o objetivo de trazer a percepo de volta ao corpo e a esse nvel de realidade. Os olhos se abrem devagar e, aos poucos nos sentamos. O prximo passo era fazer a traduo das imagens que surgiram para o papel, escrevendo ou desenhando. A indicao era para no nos preocuparmos com uma escrita linear, deixando livre o fluxo de imagens. Aps cada sesso, desenhamos imagens e realizamos uma espcie de cartografia de sonho, o que se tornou uma prtica dentro do grupo, material que serviu de anlise para a presente pesquisa (fig.7). Aps os desenhos, cada um contava como havia sido a experincia e o que havia visto. Ficamos surpresos ao perceber a riqueza da descrio das imagens e a narrativa que cada um percorreu: cachoeiras gigantes, mergulhos ao fundo do mar, desertos sem fim e florestas espessas eram cenrio do encontro com a potncia animal.

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Fig. 7- Desenhos de viagem xamnica. Caderno de anotaes pessoal.

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O xam havia fornecido os dados iniciais como a passagem pelo portal, a procura do animal e a volta pelo mesmo portal, alm dos procedimentos de entrar e sair da vivncia. Mas como seria esse portal, sua forma e tamanho, as paisagens a serem percorridas e os pormenores das relaes que se estabeleceram entre o nefito e seu devir animal era do mbito pessoal. Cada viso tinha sua particularidade, e a descrio trazia muito da individualidade dos participantes. Mesmo se duas pessoas encontrassem o mesmo animal, as caractersticas poderiam variar de acordo com a energia vital de cada um campo da leitura do xam. Por energia vital compreendemos algo mais que a personalidade do indivduo, seus processos de percepo da realidade e de se relacionar com ela. Tambm sugere as energias sutis o campo da alma e o contato com os planos superiores e inferiores.

Dentro da perspectiva indiana de constituio energtica, o mais importante a energia vital prpria, faz-se tudo com ela. (...) Como a energia vital uma manifestao da energia csmica, da grande fonte, se quisermos modificar o universo, a melhor maneira de fazer isso usando a prpria energia csmica que cria todas as coisas. E se essa energia csmica se manifesta atravs de ns, podemos fazer isso usando nossa prpria energia vital. como se fosse uma linha vertical ligando a nossa energia vital com a fonte csmica de tudo. Nas nossas prticas xamnicas usamos nossa energia vital para modificar os elementos do nosso dia-a-dia, puxando o eixo vertical para o eixo horizontal. (...) Para mim, esse um princpio bsico xamnico (SOUZA, 2005, ANEXO A).

No podemos precisar o tempo da experincia, que varia conforme o tema a ser trabalhado e a conduo do xam o toque do seu tambor , mas a descrio da viso por parte de cada participante do ritual extensa, pelos detalhes e o envolvimento de cada um com seu estado de xtase. Por isso, a segunda fase de relatos costuma ser mais demorada que a viagem em si. Ao ouvir atenciosamente as narrativas, o xam depois comentava um a um, relacionando o animal de poder encontrado com a energia vital do indivduo. Explicando que a relao com o animal vai te sugerindo as caractersticas da sua energia vital de uma forma sensvel e no-racional, muito mais do que com o objeto (SOUZA, 2005, ANEXO A). Os animais que apareceram foram lobo, urso, felinos, cobras, bfalo, cavalos, falco e enguia. To diversos como as personalidades dos indivduos dentro do grupo! E a viso xamnica muitas vezes se dava no habitat do animal, como mar profundo, floresta, campo e cu, fazendo o participante percorrer esses lugares se locomovendo como o animal seja33

voando, nadando, correndo como o cavalo ou rastejando como a cobra. A sensao que voc se torna o animal, se movimenta como ele e se relaciona com a natureza a partir de suas caractersticas.Ao preparar-se para o xtase, e durante o xtase, o xam suprime a condio humana atual e reencontra provisoriamente a situao inicial. A amizade com os animais, o conhecimento de sua lngua, a transformao em animal so todos sinais de que o xam recobrou a situao paradisaca perdida na aurora dos tempos (ELIADE, 1998, p.118-119).

Por se tratar de aspectos de sua energia vital, o animal no deve ser tomado por uma conscincia, mas sim um mecanismo de leitura pessoal, que se relaciona mais com o pensamento ocidental pela proximidade com as simbologias dos animais animais do horscopo, por exemplo. O que Lynn Mrio conclui: Para mim, entrar em contato com sua energia vital tomar posse de seu prprio ser (SOUZA, 2005, ANEXO A). Uma grande preocupao do guia era que ns no passssemos o limiar da conscincia, entrando no transe de possesso, pois no era seu campo de atuao. Os jovens, assim como os artistas tm mais facilidade de entrar em estados alterados de percepo da realidade, muitas vezes de forma descontrolada. Por isso a preocupao em demarcar o incio e o fim de cada ritual. No incio eu falava para vocs no trazerem o animal de volta, para se despedir dele. A nica razo para isso que a energia vital deve ser respeitada, se mantendo a imagem de que naquele local ela se torna acessvel (SOUZA, 2005, ANEXO A). A descoberta do animal de poder foi uma grande revelao, dotando a todos com uma euforia e uma maior compreenso dos processos pessoais dentro do grupo. Os nove atores j se conheciam desde o ingresso no curso de Artes Cnicas, e esse ritual serviu para que nos aprofundssemos mais nas metamorfoses que estavam em andamento atravs das vivncias nos ensaios com Renato Cohen e na formao da egregra do grupo. As pessoas devem permanecem na roda ritual enquanto o xam comenta a viso de cada um, no podendo interromper o trabalho. Ouvindo os relatos e os comentrios sobre cada pessoa na formao de uma tessitura do campo individual, da mitologia pessoal. Observar a si mesmo e ao outro num contexto ritual reconhecer aspectos pouco evidenciados nas prticas cotidianas. A observao sempre a maior arma do ator, sem ela perde sua capacidade de outrar e ser outrado.

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Ficvamos em roda at o fim dos comentrios do xam, e fechvamos o trabalho com o toque do tambor, parando para as refeies. Aps o almoo do sbado, retomamos as atividades fazendo uma segunda vivncia. Conforme indicaes de Lynn Mrio e com o tema do animal de poder, confeccionamos mscaras com materiais orgnicos folhas, casca de rvore, galhos e papis, usando cola e tesoura. Cada um fez sua mscara de acordo com as sensaes e as cores e texturas que apreendeu do encontro com o animal. Num processo intuitivo e ritual, o envolvimento com as mscaras culminou numa espcie de dana pessoal, onde saudamos todos os bichos. A disposio para essa performao foi uma semi-arena na sala. O xam apresentava o animal e tocava o tambor enquanto ele se apresentava a todos. O grupo batia palmas e saudava o bicho que ora se apresentava, num rito de renascimento coletivo. Fechamos o primeiro dia de trabalho com essa dana do animal de poder. O segundo dia de trabalho foi marcado pelos rituais com os elementos terra e ar, e o aprendizado das rodas indgenas Mariri e Nomes de Poder. Essas rodas foram aprendidas com o xam e usadas na abertura do espetculo Ka, evidenciando a formao da egrgora do grupo, uma grande preocupao de Cohen. O Mariri uma roda indgena brasileira, cujo nome uma planta de poder. Consiste em girar todos juntos no sentido anti-horrio, braos entrelaados e falando Mariri, conforme a marcao dos passos no cho, p direito frente, marcando o ma e p esquerdo atrs, no riri. Tambm fazamos a roda de Nome de Poder, evocando o nome de poder as vogais do primeiro nome sem girar, de mos dadas e roda bem aberta. Alternando uma pessoa frente e outra mais para trs, numa mesma roda, salta-se para a frente e para trs gritando seu nome de poder. Por exemplo, o nome Patrcia, a pessoa vai gritar AIIA! enquanto salta de mos dadas com seus parceiros. importante alternar homem e mulher em ambas as rodas, energias feminina e masculina. A energia que se cria importante para a abertura do trabalho ritual, procedimento utilizado por Lynn Mrio assim como as meditaes e as reverncias aos quatro pontos cardeais. Ligando a energia vital individual com a do grupo, e a do grupo com a energia csmica amplia-se a intensidade da experincia e a insere no tempo-espao do mito, tendo no rito seu lugar de recriao.No ritual acessamos a energia csmica atravs de nossa prpria energia vital, que carrega nossas memrias e histrias, no d pra separar. Havia uma interao da energia individual que criava uma energia grupal, e essa

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acessando a energia csmica. Havia vrios nveis de interseco, de encontro, de interatividade. Pessoal com pessoal, pessoal com grupo, grupo com cosmos. Algumas pessoas operando mais no eixo vertical, outras mais no horizontal (SOUZA, 2005, ANEXO A).

Viagem ao elemento TerraA segunda viagem de olhos fechados foi com o tema do elemento terra. Lynn Mrio, ao explicar o que seria este novo percurso, nos deu o seguinte roteiro:

Vocs vo novamente procurar o portal e se encontrar com o animal de poder. Vo seguir em busca do elemento terra e, se encontrarem um guardio que impea a passagem, oferea em troca alguma coisa de vocs, por exemplo, um pouco da sua bondade. Nunca oferea partes de seu corpo e nem tudo de uma qualidade sua, pois pode trazer problemas! Se alguma energia baixa atrapalhar o percurso, como aranhas e escorpies, para lanar bolas de luz que cada um tem numa algibeira pendurada ao lado do corpo. Vo seguir, ento, procura do mestre do elemento terra, que vai lhes dar um objeto de presente. Agradeam e faam o caminho de volta, pelo mesmo lugar (caderno de anotaes, 1998).

Nos deitamos como descrito na primeira viagem e respiramos profundamente no aguardo ao toque do tambor xamnico, dando incio nova experincia que se apresentava. Em seguida, descrio de minha viagem ao elemento Terra:Fizemos a abertura e saudamos nosso animal de poder. Vejo desde o incio pelos olhos da cobra. Contraes que se espalham pelo corpo. Verde. Tudo verde. Portal verde. Difcil para entrar, ando no cho. No to fcil, mas gostoso. Sinto muito o corpo fsico. Mos sobem. Saudei meu bicho. Me disse oi. Passei por algo que identifiquei como o guardio do elemento terra, antes tinha algo me impedindo, uns olhos. Joguei uma bola de luz (que estava dentro do saquinho) a coisa se transformou num morcego e me sobrevoou. O caminho se tornou claro e ofereci minha alegria ao guardio. Passei a rastejar pela terra, cheia de folhas, fria, fiquei um tempo andando e quando estava no momento de terminar, sem saber se havia encontrado o mestre do elemento terra, pedi-lhe um objeto. Foi-me dado uma lana ou uma seta. A j fiz o caminho de volta, que bastante prazeroso

(caderno de anotaes, 1998) As anotaes so seguidas de desenhos, evocando as sensaes do percurso, numa experincia de carter psicofsico. Aqui as interpretaes foram em relao aos objetos que o mestre do elemento terra presenteou a cada um. Devemos salientar que todos obtinham

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xito em suas viagens, seguindo o caminho sugerido pelo guia-xam e encontrando os smbolos que serviriam de leitura da vivncia. Alguns objetos que foram descritos pelos participantes: osso de ouro, flauta, espada incandescente, machado e estrela de cinco pontas. O processo de interpretao dos smbolos das viagens xamnicas complexo, sendo o campo da experincia do xam e resultado de sua iniciao como curador e tcnico em xtase. A iniciao ajuda o nefito a ter vises, a enxergar com os olhos do esprito e a ser reconhecido e respeitado nos outros planos csmicos. Portanto, ter vises, empreender viagens de ascenso aos cus e descida aos infernos faz parte do iderio xamnico.No Xamanismo tudo visto como simblico, nada o que parece ser esse um conceito bsico do Tantrismo tambm. Tudo pode significar outra coisa, mas no uma coisa qualquer. Portanto o significado se ancora num contexto presente, porm efmero. A significao um processo dinmico em constante transformao (SOUZA, 2005, ANEXO A).

Percebemos que dentro dessa viso xamnica, o conhecimento para se fazer leitura e interpretao tanto do animal de poder como do objeto ferramentas de leitura da energia vital do indivduo no se encontra nos manuais nem nos dicionrios de smbolos, e sim da experincia pessoal do iniciado, e sua viso do momento presente. Pois nesse encontro aqui descrito, duas pessoas tinham o mesmo animal de poder e as caractersticas levantadas por Lynn Mrio para cada uma delas era diferente em sua origem. Ou seja, depende de inmeros fatores que o xam observa e agencia em sua leitura. Outra coisa que devemos salientar a semelhana que se percebe entre a pessoa e seu animal de poder. No s em termos fsicos tamanho do olho e aspecto do olhar, porte fsico, tamanho de partes do corpo como em seu comportamento social e a qualidade de seus movimentos e hbitos cotidianos. Por exemplo, se o animal a coruja, imediatamente percebemos a perspiccia e a velocidade do raciocnio da pessoa, assim como seu olhar e sua capacidade de ver o que os outros no vem a coruja consegue ver no escuro! Fica evidente que esse conhecimento apreendido da experincia inicitica estreitou os laos dos indivduos do grupo K, e se deu no perodo liminar do rito de passagem.

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Viagem elemento ArNos deslocamos at beira da praia para fazer a viagem xamnica do elemento ar. Novamente o xam nos deu as instrues e o percurso a seguir: entraramos pelo portal e buscaramos o mestre do elemento ar. Se houvesse guardio ofereceramos algo em troca da entrada no elemento. Pedir o objeto e voltar pelo mesmo caminho. No tocante experincia com o elemento ar, o fato de estarmos a cu aberto propiciou uma maior percepo corporal, e os relatos foram marcados por vos e cores intensas, alm da alterao da respirao pela ascenso ao cu. O tambor tambm foi tocado e os procedimentos de abertura e fechamento realizados. Dependendo do elemento trabalhado, o objeto vai ter um significado prprio, de acordo com a energia vital da pessoa e da energia do elemento na natureza.

Consideraes ParciaisEsse processo, de cunho psicofsico, ampliou o carter ritual da montagem e da atuao ampliando o cunho da pesquisa, alando a experincia esttica ao status de rito de passagem coletivo. Foram operados outros nveis de realidade e de conscincia, do contexto xamnico, como as vivncias de amplificao e os nveis simblicos de morte e restaurao. Sendo que todas as vivncias passam pela oralidade, na descrio pessoal das narrativas imagticas. Essa forma de construo da narrativa marcou profundamente o processo criativo do grupo K, sendo utilizada no s na criao das personas, como na roteirizao do espetculo e na espacializao cenogrfica. O contato com o xamanismo legitimou processos de metamorfose que j estavam sendo vivenciados pelo grupo desde o incio dos ensaios com Renato Cohen em janeiro. O xam transita por outros nveis ou camadas de realidade assim como o Ka do conto de Khlbnikov, que passa de tempos em tempos e se transmuta em diversos animais. A legitimao dos procedimentos da performance e da body art que traz o corpo e o processo de criao como objeto/obra de arte , encontrou ecos na viso xamnica, de simultaneidades de planos e percepo ampliada da conscincia e do corpo. Na verdade,

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um grande processo de auto-conhecimento e de alteridade, consigo mesmo e com o outro, no campo da atuao na cena contempornea.Esse o caminho que Beuys procura e aponta com o seu cajado de pastor, sua bengala revestida de feltro, o grande basto da Eursia, seu basto de cobre, com o objetivo de que a tendncia seja compreendida: ou seja, a nossa habilidade de modificar a vida cotidiana (catica, instvel, quente, material, atual) em espiritualidade (perfeita, estvel, fria, cristalina, celestial, futura), em conformidade com uma polarizao que complementa a das energias vitais, e tambm a nossa habilidade de trazer os corpos de volta s almas (BORER, 2001, p.21).

Depois desse encontro, continuamos o trabalho e apresentamos nossa pr-estria no Parque Ecolgico em Campinas, tendo maior conscincia dos processos metamrficos em andamento e incorporando vrias passagens desse ritual literalmente na cena. Descreveremos de que forma os aspectos rituais evidenciados pelo xam fizeram parte do roteiro de Ka, nas primeiras apresentaes pblicas e na temporada do segundo semestre no Museu da Cidade, tambm em Campinas. O primeiro encontro com o xam foi um rito de passagem para o grupo K. Ns nos afastamos de nosso cotidiano de ensaios ao viajar para o litoral e nos preparamos para o ritual conforme orientao de Cohen, que j havia combinado com Lynn Mrio o tema e os objetivos deste encontro. Foi fundamental ter acontecido nesse momento da criao e prximo Natureza.

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4. Apresentaes PblicasKa era meu amigo; eu o amei por seu gnio de pssaro, despreocupao, esprito. Ele era cmodo como uma capa impermevel. Ele ensinava que h palavras, com as quais possvel ver, palavras-olhos e palavras-mos, com as quais possvel fazer (KHLBNIKOV, 1977, p.14).

Para entender o percurso do espetculo, vamos analisar as primeiras apresentaes feitas no primeiro semestre de 1998, quando a escritura cnica comeou a tomar forma, e a temporada que ocorreu no Museu da Cidade de Campinas, de agosto a outubro. Tambm descrevemos o segundo encontro com o xam Lynn Mrio, no intervalo das duas etapas do trabalho, a fim de amadurecer os processos evidenciados nas primeiras apresentaes pblicas. Renato tinha bastante pressa em apresentar, queria abrir o trabalho para o pblico o quanto antes, um procedimento muito eficaz em se tratando de trabalhos de graduao quanto mais o aluno se apresenta, mais intensamente atravessa seu rito de passagem de sair da faculdade para o mundo da profisso. O fato de abrir o processo e assimilar questes levantadas pelo pblico a recepo do espetculo prprio da linguagem in process, valorizando a cena em construo mais do que o produto final. Fizemos ento uma apresentao para alguns professores do Departamento de Artes Cnicas que estavam auxiliando o processo, como Mrcio Tadeu e Hel Cardoso e uma tribo xavante que estava visitando a Unicamp. Depois participamos da Mostra Arte e Mdia do Programa de Comunicao e Semitica da PUC-SP, onde Renato lecionava e, fechando as atividades do primeiro semestre, realizamos nossa pr-estria no Parque Ecolgico da Cidade de Campinas. Nessas trs experincias pudemos sentir o fluxo na interpretao sugerido por Renato e a intensidade das metamorfoses da persona, na passagem de cada cena.

Barraco de Artes Cnicas, UnicampMaio de 1998

Como estvamos trabalhando desde o incio de janeiro, nesta apresentao o roteiro pareceu bastante processual, porm, com vrios leitmotiv j demarcados o campo de ao

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de cada persona e seu percurso. A iniciao com o xam nos deu a dimenso que faltava para o mergulho e compreenso do universo da pea e, os colaboradores msicos, tradutores, tericos, artistas grficos e de body art estavam totalmente envolvidos com o projeto Ka. A experincia de apresentar para alguns representantes de uma tribo xavante e para os professores que estavam nos auxiliando foi de suma importncia para a vida do espetculo. E tambm o fato de estarmos na nossa prpria sala de trabalho dentro do Barraco de Artes Cnicas nos deu mais segurana. No roteiro, textos de Khlbnikov:Ka (cap. II ) - Rachel e Joo Ka (cap. III) - Samira e Elisa Madame Lhnin - Marcial, Gustavo, Renata, Samira e Elisa Zaum - Elisa, Samira e Rita Zanguezi Gustavo e Rita Poeta futurista (mmia) - Fbio (caderno de anotaes, 1998)

O retorno que tivemos dos xavantes foi muito enriquecedor, perceberam o carter ritualstico de algumas passagens e fizeram relaes com mitologias de sua tradio. Tambm os professores Hel Cardoso e Mrcio Tadeu, que nos acompanhavam desde o primeiro ano de faculdade, apontaram cenas em que o clima ficava muito denso, devendo ter algo mais leve em alguns momentos (caderno de anotaes, 1998). O environment do trabalho se situava no campo das transmigraes da alma, da morte. Estvamos aprendendo como nefitos a morrer em vida para viver na morte (Lynn Mrio, caderno de anotaes, 1998). Todas as vivncias propostas por Cohen aproximavam nossa vida pessoal do fazer artstico, numa retro-alimentao constante e, nesse momento de comear a abrir o processo para os outros, j havamos passado por inmeras provaes nos ensaios e workshops. O nu em cena tambm era resultado dessas vivncias, tecendo o campo de preparao e criao. Nessa altura, cinco dos nove atores haviam raspado a cabea: Rita Wirtti, Marcial Asevedo, Joo Andr da Rocha, Gustavo Arantes e Fbio Santana. A body art que se criou tomava o corpo como suporte das metamorfoses pessoais, dos processos de troca de pele surgidos nos ritos xamnicos.

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VII COMPS - Mostra Arte e MdiaPrograma de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica PUC-SP, 2 de junho de 1998, TUSP Maria Antnia, So Paulo - SP.

Para anlise desse evento, serviu de ajuda uma gravao de cinco minutos de nosso trabalho em formato digital, que nos foi cedido pelo Laboratrio de Linguagens Visuais do Programa, que fez a cobertura de toda a mostra. A apresentao ao vivo durou cerca de vinte e cinco minutos, dividindo espao com os outros grupos e artistas, o que exigiu de Cohen uma edio do material bruto. O grupo K participou como convidado da Mostra e o nome dado

Espetculo/Performance Ka - A sombra da alma, foi o primeiro de nosso trabalho. Cohen era professor de Arte e Tecnologia do Programa e um dos curadores do evento. Tivemos a oportunidade de experimentar algumas cenas novas em body art, como a performance da atriz Rita Wirtti com o corpo todo coberto de terra, com gelo nas mos e na boca e andando num caminho de gelo. Rita era a nica mulher da equipe que havia raspado o cabelo at ento na temporada do Museu da Cidade Rachel Brumana tambm o fez , e estava se delineando como um duplo feminino das passagens de Ka. Nessa criao em body art, que foi levada cena sem o conhecimento do encenador, a artista plstica Marina Reis inventou um grude para fixar a terra no corpo da atriz, base de polvilho cozido com gua. Havia um ponto especfico de cozimento para ento se misturar gua e emplastrar o corpo, sem cair os pedaos da terra, dando uma consistncia de lama. A mistura foi passada no corpo inteiro da atriz, deixando s o rosto de fora (fig.8). Rita entrou com cubos de gelo na boca e nas mos, realizando uma travessia de muita potncia, depois aplaudida por Cohen. Eu e Elisa fizemos a cena Zaum com o corpo carimbado de hierglifos, nuas, nas suas duas partes: a coreografia na cena do Zanguezi, e o Zaum, propriamente dito, com as sonoridades de Khlbnikov que estvamos pesquisando. Durante quase toda a cena as vozes do texto Madame Lhnin foram usadas, funcionando como uma narrativa de fundo s passagens das personas, que ainda estavam numa fase de gestao.

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Fig.8 - Body art: Terra. Atriz: Rita Wirtti. Foto: Marina Reis.

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Alm de Marina Reis, a equipe estava forma