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8/20/2019 BOSI, Alfredo. Rumo Ao Concreto http://slidepdf.com/reader/full/bosi-alfredo-rumo-ao-concreto 1/10 Rumo ao concreto: Brás Cubas em três versões Alfredo Bosi Luso-Brazilian Review, Volume 46, Number 1, 2009, pp. 7-15 (Article) Published by University of Wisconsin Press DOI: 10.1353/lbr.0.0062 For additional information about this article  Access provided by Universidade de São Paulo (27 Sep 2013 07:00 GMT) http://muse.jhu.edu/journals/lbr/summary/v046/46.1.bosi.html

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Rumo ao concreto Braacutes Cubas em trecircs versotildees

Alfredo Bosi

Luso-Brazilian Review Volume 46 Number 1 2009 pp 7-15 (Article)

Published by University of Wisconsin Press

DOI 101353lbr00062

For additional information about this article

Access provided by Universidade de SAtildepoundo Paulo (27 Sep 2013 0700 GMT)

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Luso-Brazilian Review 983092983094983089 983095ISSN 983088983088983090983092-983095983092983089983091 copy 983090983088983088983097 by the Board of Regentsof the University of Wisconsin System

Rumo ao concretoBraacutes Cubas em trecircs versotildees

Alfredo Bosi

Tis essay intends to apprehend the 1047297gure of the character-narrator ofMemoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas through the analysis of its three maindeterminations the free style of the deceased author the phenomenology ofthe underground man and the apprehension of the social type Te relation-ship between these different approaches (constructive existential and socio-typological) is not one of mutual exclusion but rather a dialectic one Teresult is intended to be the concrete concept in the Hegelian sense of multipledetermination

Permitam-me comeccedilar pelo comeccedilo dos comeccedilos no caso a epiacutegrafe doensaio ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo Eacute um pensamento de Pascal

Nossos sentidos natildeo percebem nada de extremo Barulho demais nos ensur-dece demasiada luz nos ofusca demasiada distacircncia e demasiada proximi-

dade impedem a vista

Em termos de interpretaccedilatildeo literaacuteria qual eacute para noacutes hoje o ensina-mento de Pascal Que o leitor criacutetico deve ora usar oacuteculos de ver de longeora oacuteculos de ver de perto ora mesmo oacuteculos de meia distacircncia Se vejodo alto e de muito longe sem as necessaacuterias lentes de aumento diviso oconjunto mas natildeo enxergo as partes nem o movimento de cada 1047297gura Seao contraacuterio vejo muito de perto colando meus olhos ao objeto distingobem um detalhe mas natildeo consigo apreender o conjunto Satildeo observaccedilotildees

que valem para nos advertir dos limites da criacutetica sociologizante demasiadoampla ou da criacutetica formalista excessivamente fechada

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Talvez o mais adequado seja trocar de lentes quando necessaacuterio Por ex-emplo comeccedilar pela anaacutelise da forma no caso da construccedilatildeo ou do fraseio

do romance continuar pela leitura e escuta das vozes das personagens comsuas perspectivas e tons existenciais peculiares perseguindo a certa alturaa integraccedilatildeo dos aspectos particulares no contexto maior histoacuterico e socialE 1047297nalmente como postulava Leo Spitzer falando do ciacuterculo hermenecircutico

voltar aos detalhes de forma e estilo para ver se as hipoacuteteses iniciais saemcon1047297rmadas ou in1047297rmadas Spitzer fala de um ir e vir das partes ao todo edo todo agraves partes

O que se propotildee em princiacutepio eacute levar em consideraccedilatildeo trecircs dimensotildeespresentes em toda obra literaacuteria e que a rigor jaacute foram de1047297nidas ao longo

da histoacuteria da Esteacutetica de Aristoacuteteles aos tempos modernos construccedilatildeo ex- pressatildeo representaccedilatildeo

Podemos iniciar a leitura das Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas valendo-nos ora de um ora de outro desses registros analiacuteticos e interpretativos To-dos tecircm algo importante a revelar Mas todos conhecem igualmente limitesque soacute o recurso aos demais registros pode ultrapassar Haacute uma interaccedilatildeoentre os trecircs modos de ler mas indo ao fundo do meacutetodo trata-se de umadialeacutetica inter-dimensional pois cada versatildeo supera (conservando hegelia-namente) o horizonte de cada uma das outras horizonte que se arrisca a

tornar-se fechado e redutor sempre que considerado isoladamenteA muacuteltipla determinaccedilatildeo propicia a formaccedilatildeo do conceito concreto aopasso que a determinaccedilatildeo unilateral tende a 1047297xar uma leitura abstrata

I ndash Dimensatildeo construtiva ou formalizante

As Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas foram escritas em um estilo progra-madamente livre

Machado o romancista maduro (twice born segundo a bela de1047297niccedilatildeode Otto Maria Carpeaux) aquele que escreve a partir dos anos 983089983096983096983088 ou deseus 983092983088 anos de idade escolheu inscrever-se na tradiccedilatildeo de uma prosa sig-ni1047297cativamente diversa dos modelos tradicionais do romance romacircnticoe jaacute agravequela altura do romance naturalista Compare-se o Machado das

Memoacuterias poacutestumas com Alencar ou com Aluiacutesio AzevedoA sua confessada inspiraccedilatildeo vincula-o a Diderot a Sterne a Xavier de

Maistre a Garrett Os eruditos agrave cata de in1047298uecircncias remotas remontamessa dicccedilatildeo ao paroacutedico Luciano de Samoacutesata cujos diaacutelogos se encontra-

ram na biblioteca de Machado Na esteira de Mikhail Bakhtin jaacute houvequem aproximasse as Memoacuterias poacutestumas da saacutetira menipeacuteia que teria emVarratildeo Secircneca Erasmo Burton e 1047297nalmente em Sterne os seus grandes re-presentantes Em conferecircncia proferida em setembro de 983090983088983088983096 na Universi-

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dade de Satildeo Paulo o professor e criacutetico Ronaldes de Melo e Souza formuloua hipoacutetese da vigecircncia de uma ironia aristofacircnica na obra de Machado Seria

portanto uma corrente de prosa 1047297ccional joco-seacuteria com caracteres esti-liacutesticos marcados e que Machado retomaria ao fazer do narrador a 1047297guraaparentemente inverossiacutemil do defunto autor

O ensaiacutesta Sergio Paulo Rouanet formalizou a mesma hipoacutetese cunhandoa expressatildeo ldquoforma shandianardquo que enfeixaria as caracteriacutesticas desse gecircnerode romance tomando por paradigma a prosa do ristram Shandy Machadocomo se sabe cita Sterne como um de seus modelos literaacuterios no prefaacutecio agraveterceira ediccedilatildeo das Memoacuterias poacutestumas

Em seu ensaio Riso e melancolia Rouanet elenca quatro caracteriacutesticas

que vinculam as Memoacuterias ao modelo shandiano a presenccedila enfaacutetica donarrador (o eu onipresente e opiniaacutetico) a teacutecnica da composiccedilatildeo livre in-cluindo digressotildees e fragmentos em zigzags o uso arbitraacuterio do tempo e doespaccedilo a interpenetraccedilatildeo de riso e melancolia

Detenho-me apenas no primeiro toacutepico a presenccedila enfaacutetica do narradorou a hipertro1047297a da subjetividade Essa caracteriacutestica que eacute formal e psico-loacutegica ao mesmo tempo jaacute foi observada por criacuteticos mediante diferentesperspectivas Augusto Meyer que encontraremos adiante como o maiorconhecedor da dimensatildeo existencial do narrador das Memoacuterias poacutestumas

quali1047297cava-a haacute setenta anos com as expressotildees ldquo perspectiva arbitraacuteriardquo ou ldquocapricho como regra de composiccedilatildeordquo Meio seacuteculo depois o criacutetico RobertoSchwarz retomaria a observaccedilatildeo falando da volubilidade do narrador emtermos de composiccedilatildeo do romance

Tanto Braacutes Cubas como seu ascendente Tristram Shandy parecem brin-car com os objetos de sua narraccedilatildeo com a proacutepria construccedilatildeo do livro epor tabela brincam tambeacutem com as reaccedilotildees hipoteacuteticas do leitor A relaccedilatildeocom o leitor virtual eacute agraves vezes amena e diplomaacutetica agraves vezes satiacuterica o queaproxima de fato as duas obras propiciando re1047298exotildees luacutedicas morais ou

1047297losofantes do narrador

Extensatildeo e limites da tese construtivista

Depois de tomarmos conhecimento da multiplicidade das intervenccedilotildeesdaquele eu onipresente e caprichoso que emparelham o narrador das

Memoacuterias com o narrador de Sterne (e parcialmente com os narradores deDiderot Xavier de Maistre e Garrett) 1047297camos convencidos da vigecircncia deum padratildeo narrativo ou lato sensu literaacuterio que regeu as Memoacuterias poacutestu-

mas dando-lhes aquela feiccedilatildeo inconfundiacutevel que rompeu com o paradigmado romance linear anteriorMas como natildeo pretendemos esquecer aquela 1047297na observaccedilatildeo de Pas-

cal comeccedilamos a descon1047297ar que nossos olhos de leitor se postaram muito

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rente a este ou aquele traccedilo estiliacutestico e que a1047297nal seria preciso captar odesenho e o tom da narrativa inteira ouvir a melodia do comeccedilo ao 1047297m e

natildeo ater-se somente a uma ou outra imagem a uma ou outra nota a uma ououtra frase do texto Ou seja comeccedilamos a nos perguntar o que esses vaacuteriostraccedilos estiliacutesticos exprimem O que a1047297nal quer dizer o desenho que presi-diu agrave construccedilatildeo da obra Entramos assim no cerne da segunda dimensatildeomencionada

II ndash Dimensatildeo expressiva ou existencial do texto ficcional

Abramos o primeiro ensaio de Augusto Meyer sobre Machado de Assis in-

titulado ldquoO homem subterracircneordquo Eacute de 983089983097983091983093 Entatildeo natildeo se celebrava o cen-tenaacuterio do escritor pois ele havia morrido havia menos de trinta anos Oincipit do texto eacute provocador

ldquoQuase toda a obra de Machado de Assis eacute um pretexto para o improvisode borboleteios maliciosos digressotildees e parecircnteses felizes Fez do seucapricho uma regra de composiccedilatildeo E neste ponto se aproxima realmenteda ldquoforma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistrerdquo Mas a analo-gia eacute formal natildeo passa da superfiacutecie sensiacutevel para o fundo permanenteA vivacidade de Sterne eacute uma espontaneidade orgacircnica necessaacuteria a do

homem voluacutevel que atravessa os minutos num fregolismo vivo de atitudesgozando o prazer de sentir-se disponiacutevel Sterne eacute um molto vivace da dis-soluccedilatildeo psicoloacutegica Em Machado a aparecircncia de movimento a pirueta e omalabarismo satildeo disfarces que mal conseguem dissimular uma profundagravidade-deveria dizer uma terriacutevel estabilidade Toda a sua trepidaccedilatildeoacaba marcando passordquo (983089983093)

Os que jaacute tiveram o prazer de ler o ensaio inteiro sabem que a partirdessa observaccedilatildeo Augusto Meyer vai expor em seu estilo inimitaacutevel decriacutetico-poeta a relaccedilatildeo existencial e estrutural entre a forma livre e a 1047297gura

do homem subterracircneo verdadeiro eacutetimo das mutaccedilotildees de superfiacutecie Natildeoeacute apenas o homem epideacutermico espevitado que muda por mudar mas tam-beacutem o auto-analista aquele que vive e se vecirc viver o espectador de si mesmopirandelliano avant la lettre capaz de envolver com a mortalha do defuntoautor a vida ociosa e egoiacutesta do Braacutes vivo

Ora essa percepccedilatildeo de que a forma ou o modelo confessadamente imi-tado natildeo assumia nas Memoacuterias poacutestumas o mesmo signi1047297cado que carac-terizava os caprichos de Tristram Shandy jaacute tinha sido reconhecida e ditacom todas as letras em primeiro lugar pelo proacuteprio autor quando a1047297rmara

que aqueles seus ldquomodelosrdquo natildeo partilhavam do seu ldquosentimento amargo eaacutesperordquo ldquoEacute taccedila que pode ter lavores de igual escola mas leva outro vinhordquoPassa entatildeo a ser uma tarefa hermenecircutica quali1047297car com precisatildeo esse

sentimento fundamental especiacute1047297co que permeia toda a dicccedilatildeo da obra A

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palavra-chave foi cunhada por Alcides Maia que por sua vez inspirou aleitura de Augusto Meyer humor

Comentando o achado criacutetico de ambos pude escreverHumor que oscila entre a moacutevel jocosidade na superfiacutecie das palavras e umsombrio negativismo no cerne dos juiacutezosHumor cuja lsquoaparecircncia de movimentorsquo feita de piruetas e malabarismo maldisfarccedila a certeza monoacutetona do nada que espreita a viagem que cada homemempreende do nascimento agrave hora da morteHumor que decompotildee as atitudes nobres ou apenas convencionais pondo anu as razotildees do insaciaacutevel amor-proacuteprio das quais a vaidade eacute o paradigmae a veleidade o perfeito sinocircnimo

Humor que mistura a convenccedilatildeo e o sarcasmo na forma de maacuteximasparadoxaisHumor en1047297m que parodia as doutrinas do seacuteculo positivismo e evolu-cionismo sob o nome de Humanitismo e as traz na boca de um mendigoaluadordquo (ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo 983090983097ndash983091983088)

Diremos que levando ao extremo a sua caracterizaccedilatildeo expressiva Au-gusto Meyer conclui de modo que natildeo sabemos se justo ou injusto mas sem-pre incisivo e problematizador dos nossos fetichismos ldquoA unidade de tomnos livros da uacuteltima fase chega a ser simples monotoniardquo (983090983090)

Um novo horizonte se abriu de todo modo envolvendo o anterior e con-ferindo-lhe novo sentido Estaacutevamos convencidos de que havia de fato uma vontade-de-estilo na feitura das Memoacuterias poacutestumas que resultara na formalivre e arbitraacuteria do defunto autor Mas agora estamos igualmente persuadi-dos de que apesar da vigecircncia expliacutecita desses padrotildees dos quais Sterne eacute omais relevante o tom a expressatildeo numa palavra o processo existencial quese formulou naquelas cadecircncias de estilo natildeo reproduzia passivamente osseus paradigmas na medida em que era peculiar ao novo projeto 1047297ccionaldo narrador machadiano

O humor de Machado tem uma forccedila destrutiva e dissolvente amargae aacutespera que natildeo se reconhece na tradiccedilatildeo menipeacuteia nem tampouco nasestrepolias de Tristram Shandy Eacute machadiano natildeo tem antecedentes nemdescendentes proacuteximos diretos Trata-se de um narrador que se dobra so-bre si mesmo re1047298etindo agrave luz fria da morte o que 1047297zera e dissera quan-do vivo

Mas a universalidade que se capta a partir de uma leitura existencialradical como a de Augusto Meyer (que soube comparar o homem subter-racircneo de Machado ao Dostoieacutevski das Memoacuterias do subsolo e aproximar o

analista de si mesmo da personagem pirandelliana) atinge outra dimensatildeoquando atentamos para a particularidade dos estiacutemulos sociais locais Ouseja o horizonte existencial ganha em concretude histoacuterica quando o inte-gramos no registro representativo ou mimeacutetico do texto narrativo

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III ndash Dimensatildeo representativa ou reflexa

Depois de sondar o homem subterracircneo e o analista de si mesmo 1047297gurasmodeladas pela criacutetica de Augusto Meyer ainda nos cabe perguntar masquem eacute este homem quais satildeo as suas coordenadas de tempo e espaccedilo Oua que estiacutemulos histoacutericos especiacute1047297cos ele reagiu e aplicou o seu humor cor-rosivo nadi1047297cante As respostas a essas perguntas exigem uma contextuali-zaccedilatildeo das memoacuterias de Braacutes

A contextualizaccedilatildeo do narrador e das personagens pode ser feita ou comos instrumentos da sociologia positivista cuja expressatildeo mais alta e re1047297-nada se encontra na sociologia de Max Weber ou com os instrumentos da

doutrina marxista particularmente com a categoria da arte como re1047298exo dasociedadeQual o meio social e econocircmico em que vivem Braacutes e as personagens

circundantes Qual o seu modus vivendi A que campo ideoloacutegico se pode1047297liar a sua personalidade ou a sua ldquomentalidaderdquo Em que medida seus pen-samentos palavras e obras satildeo determinados pela classe social a que per-tence no caso pelo fato de ser um rentista ocioso na sociedade escravistabrasileira do seacuteculo 983089983097

Nessa busca dos fatores sociais determinantes pode-se dizer que a so-

ciologia da literatura foi apertando os seus parafusos desde a geneacuterica abor-dagem plekhanoviana de Astrojildo Pereira em ldquoMachado de Assis roman-cista do Segundo Impeacuteriordquo ateacute o enfoque lukaacutecsiano de Roberto Schwarzem Um mestre na periferia do capitalismo passando pelo weberiano Ray-mundo Faoro em A piracircmide e o trapeacutezio

A teoria do re1047298exo desenvolvida por Lukaacutecs a partir da sua conversatildeoao marxismo ortodoxo baseia-se no postulado do ldquoexterno que se tornainternordquo ou seja dos componentes sociais que satildeo introjetados pelo escri-tor formando o cerne da sua obra Um dos seus procedimentos baacutesicos eacute a

construccedilatildeo do tipo social que se materializa na personagem ou no narradorTrata-se de um procedimento objetivante que parte do exterior para o co-nhecimento do nuacutecleo interno da personagem

Certas caracteriacutesticas vistas literariamente como forma livre ou vistasexistencialmente em termos de humor aacutecido e dissolvente passam a ser ex-plicadas de modo causal pela condiccedilatildeo econocircmica do narrador-personagemisto eacute pelo fato de Braacutes Cubas ser proprietaacuterio no contexto do BrasilImpeacuterio

A representaccedilatildeo de um tipo ou de uma situaccedilatildeo social localizada e da-

tada acresce nova dimensatildeo ao trabalho narrativo das Memoacuterias poacutestumasEacute a dimensatildeo do observador que se posta no lugar do psicoacutelogo social epassa a discriminar certos traccedilos de comportamento de uma determinadaclasse ou estrato social

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Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

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Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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Bosi 983089983093

mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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Rumo ao concretoBraacutes Cubas em trecircs versotildees

Alfredo Bosi

Tis essay intends to apprehend the 1047297gure of the character-narrator ofMemoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas through the analysis of its three maindeterminations the free style of the deceased author the phenomenology ofthe underground man and the apprehension of the social type Te relation-ship between these different approaches (constructive existential and socio-typological) is not one of mutual exclusion but rather a dialectic one Teresult is intended to be the concrete concept in the Hegelian sense of multipledetermination

Permitam-me comeccedilar pelo comeccedilo dos comeccedilos no caso a epiacutegrafe doensaio ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo Eacute um pensamento de Pascal

Nossos sentidos natildeo percebem nada de extremo Barulho demais nos ensur-dece demasiada luz nos ofusca demasiada distacircncia e demasiada proximi-

dade impedem a vista

Em termos de interpretaccedilatildeo literaacuteria qual eacute para noacutes hoje o ensina-mento de Pascal Que o leitor criacutetico deve ora usar oacuteculos de ver de longeora oacuteculos de ver de perto ora mesmo oacuteculos de meia distacircncia Se vejodo alto e de muito longe sem as necessaacuterias lentes de aumento diviso oconjunto mas natildeo enxergo as partes nem o movimento de cada 1047297gura Seao contraacuterio vejo muito de perto colando meus olhos ao objeto distingobem um detalhe mas natildeo consigo apreender o conjunto Satildeo observaccedilotildees

que valem para nos advertir dos limites da criacutetica sociologizante demasiadoampla ou da criacutetica formalista excessivamente fechada

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Talvez o mais adequado seja trocar de lentes quando necessaacuterio Por ex-emplo comeccedilar pela anaacutelise da forma no caso da construccedilatildeo ou do fraseio

do romance continuar pela leitura e escuta das vozes das personagens comsuas perspectivas e tons existenciais peculiares perseguindo a certa alturaa integraccedilatildeo dos aspectos particulares no contexto maior histoacuterico e socialE 1047297nalmente como postulava Leo Spitzer falando do ciacuterculo hermenecircutico

voltar aos detalhes de forma e estilo para ver se as hipoacuteteses iniciais saemcon1047297rmadas ou in1047297rmadas Spitzer fala de um ir e vir das partes ao todo edo todo agraves partes

O que se propotildee em princiacutepio eacute levar em consideraccedilatildeo trecircs dimensotildeespresentes em toda obra literaacuteria e que a rigor jaacute foram de1047297nidas ao longo

da histoacuteria da Esteacutetica de Aristoacuteteles aos tempos modernos construccedilatildeo ex- pressatildeo representaccedilatildeo

Podemos iniciar a leitura das Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas valendo-nos ora de um ora de outro desses registros analiacuteticos e interpretativos To-dos tecircm algo importante a revelar Mas todos conhecem igualmente limitesque soacute o recurso aos demais registros pode ultrapassar Haacute uma interaccedilatildeoentre os trecircs modos de ler mas indo ao fundo do meacutetodo trata-se de umadialeacutetica inter-dimensional pois cada versatildeo supera (conservando hegelia-namente) o horizonte de cada uma das outras horizonte que se arrisca a

tornar-se fechado e redutor sempre que considerado isoladamenteA muacuteltipla determinaccedilatildeo propicia a formaccedilatildeo do conceito concreto aopasso que a determinaccedilatildeo unilateral tende a 1047297xar uma leitura abstrata

I ndash Dimensatildeo construtiva ou formalizante

As Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas foram escritas em um estilo progra-madamente livre

Machado o romancista maduro (twice born segundo a bela de1047297niccedilatildeode Otto Maria Carpeaux) aquele que escreve a partir dos anos 983089983096983096983088 ou deseus 983092983088 anos de idade escolheu inscrever-se na tradiccedilatildeo de uma prosa sig-ni1047297cativamente diversa dos modelos tradicionais do romance romacircnticoe jaacute agravequela altura do romance naturalista Compare-se o Machado das

Memoacuterias poacutestumas com Alencar ou com Aluiacutesio AzevedoA sua confessada inspiraccedilatildeo vincula-o a Diderot a Sterne a Xavier de

Maistre a Garrett Os eruditos agrave cata de in1047298uecircncias remotas remontamessa dicccedilatildeo ao paroacutedico Luciano de Samoacutesata cujos diaacutelogos se encontra-

ram na biblioteca de Machado Na esteira de Mikhail Bakhtin jaacute houvequem aproximasse as Memoacuterias poacutestumas da saacutetira menipeacuteia que teria emVarratildeo Secircneca Erasmo Burton e 1047297nalmente em Sterne os seus grandes re-presentantes Em conferecircncia proferida em setembro de 983090983088983088983096 na Universi-

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dade de Satildeo Paulo o professor e criacutetico Ronaldes de Melo e Souza formuloua hipoacutetese da vigecircncia de uma ironia aristofacircnica na obra de Machado Seria

portanto uma corrente de prosa 1047297ccional joco-seacuteria com caracteres esti-liacutesticos marcados e que Machado retomaria ao fazer do narrador a 1047297guraaparentemente inverossiacutemil do defunto autor

O ensaiacutesta Sergio Paulo Rouanet formalizou a mesma hipoacutetese cunhandoa expressatildeo ldquoforma shandianardquo que enfeixaria as caracteriacutesticas desse gecircnerode romance tomando por paradigma a prosa do ristram Shandy Machadocomo se sabe cita Sterne como um de seus modelos literaacuterios no prefaacutecio agraveterceira ediccedilatildeo das Memoacuterias poacutestumas

Em seu ensaio Riso e melancolia Rouanet elenca quatro caracteriacutesticas

que vinculam as Memoacuterias ao modelo shandiano a presenccedila enfaacutetica donarrador (o eu onipresente e opiniaacutetico) a teacutecnica da composiccedilatildeo livre in-cluindo digressotildees e fragmentos em zigzags o uso arbitraacuterio do tempo e doespaccedilo a interpenetraccedilatildeo de riso e melancolia

Detenho-me apenas no primeiro toacutepico a presenccedila enfaacutetica do narradorou a hipertro1047297a da subjetividade Essa caracteriacutestica que eacute formal e psico-loacutegica ao mesmo tempo jaacute foi observada por criacuteticos mediante diferentesperspectivas Augusto Meyer que encontraremos adiante como o maiorconhecedor da dimensatildeo existencial do narrador das Memoacuterias poacutestumas

quali1047297cava-a haacute setenta anos com as expressotildees ldquo perspectiva arbitraacuteriardquo ou ldquocapricho como regra de composiccedilatildeordquo Meio seacuteculo depois o criacutetico RobertoSchwarz retomaria a observaccedilatildeo falando da volubilidade do narrador emtermos de composiccedilatildeo do romance

Tanto Braacutes Cubas como seu ascendente Tristram Shandy parecem brin-car com os objetos de sua narraccedilatildeo com a proacutepria construccedilatildeo do livro epor tabela brincam tambeacutem com as reaccedilotildees hipoteacuteticas do leitor A relaccedilatildeocom o leitor virtual eacute agraves vezes amena e diplomaacutetica agraves vezes satiacuterica o queaproxima de fato as duas obras propiciando re1047298exotildees luacutedicas morais ou

1047297losofantes do narrador

Extensatildeo e limites da tese construtivista

Depois de tomarmos conhecimento da multiplicidade das intervenccedilotildeesdaquele eu onipresente e caprichoso que emparelham o narrador das

Memoacuterias com o narrador de Sterne (e parcialmente com os narradores deDiderot Xavier de Maistre e Garrett) 1047297camos convencidos da vigecircncia deum padratildeo narrativo ou lato sensu literaacuterio que regeu as Memoacuterias poacutestu-

mas dando-lhes aquela feiccedilatildeo inconfundiacutevel que rompeu com o paradigmado romance linear anteriorMas como natildeo pretendemos esquecer aquela 1047297na observaccedilatildeo de Pas-

cal comeccedilamos a descon1047297ar que nossos olhos de leitor se postaram muito

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rente a este ou aquele traccedilo estiliacutestico e que a1047297nal seria preciso captar odesenho e o tom da narrativa inteira ouvir a melodia do comeccedilo ao 1047297m e

natildeo ater-se somente a uma ou outra imagem a uma ou outra nota a uma ououtra frase do texto Ou seja comeccedilamos a nos perguntar o que esses vaacuteriostraccedilos estiliacutesticos exprimem O que a1047297nal quer dizer o desenho que presi-diu agrave construccedilatildeo da obra Entramos assim no cerne da segunda dimensatildeomencionada

II ndash Dimensatildeo expressiva ou existencial do texto ficcional

Abramos o primeiro ensaio de Augusto Meyer sobre Machado de Assis in-

titulado ldquoO homem subterracircneordquo Eacute de 983089983097983091983093 Entatildeo natildeo se celebrava o cen-tenaacuterio do escritor pois ele havia morrido havia menos de trinta anos Oincipit do texto eacute provocador

ldquoQuase toda a obra de Machado de Assis eacute um pretexto para o improvisode borboleteios maliciosos digressotildees e parecircnteses felizes Fez do seucapricho uma regra de composiccedilatildeo E neste ponto se aproxima realmenteda ldquoforma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistrerdquo Mas a analo-gia eacute formal natildeo passa da superfiacutecie sensiacutevel para o fundo permanenteA vivacidade de Sterne eacute uma espontaneidade orgacircnica necessaacuteria a do

homem voluacutevel que atravessa os minutos num fregolismo vivo de atitudesgozando o prazer de sentir-se disponiacutevel Sterne eacute um molto vivace da dis-soluccedilatildeo psicoloacutegica Em Machado a aparecircncia de movimento a pirueta e omalabarismo satildeo disfarces que mal conseguem dissimular uma profundagravidade-deveria dizer uma terriacutevel estabilidade Toda a sua trepidaccedilatildeoacaba marcando passordquo (983089983093)

Os que jaacute tiveram o prazer de ler o ensaio inteiro sabem que a partirdessa observaccedilatildeo Augusto Meyer vai expor em seu estilo inimitaacutevel decriacutetico-poeta a relaccedilatildeo existencial e estrutural entre a forma livre e a 1047297gura

do homem subterracircneo verdadeiro eacutetimo das mutaccedilotildees de superfiacutecie Natildeoeacute apenas o homem epideacutermico espevitado que muda por mudar mas tam-beacutem o auto-analista aquele que vive e se vecirc viver o espectador de si mesmopirandelliano avant la lettre capaz de envolver com a mortalha do defuntoautor a vida ociosa e egoiacutesta do Braacutes vivo

Ora essa percepccedilatildeo de que a forma ou o modelo confessadamente imi-tado natildeo assumia nas Memoacuterias poacutestumas o mesmo signi1047297cado que carac-terizava os caprichos de Tristram Shandy jaacute tinha sido reconhecida e ditacom todas as letras em primeiro lugar pelo proacuteprio autor quando a1047297rmara

que aqueles seus ldquomodelosrdquo natildeo partilhavam do seu ldquosentimento amargo eaacutesperordquo ldquoEacute taccedila que pode ter lavores de igual escola mas leva outro vinhordquoPassa entatildeo a ser uma tarefa hermenecircutica quali1047297car com precisatildeo esse

sentimento fundamental especiacute1047297co que permeia toda a dicccedilatildeo da obra A

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palavra-chave foi cunhada por Alcides Maia que por sua vez inspirou aleitura de Augusto Meyer humor

Comentando o achado criacutetico de ambos pude escreverHumor que oscila entre a moacutevel jocosidade na superfiacutecie das palavras e umsombrio negativismo no cerne dos juiacutezosHumor cuja lsquoaparecircncia de movimentorsquo feita de piruetas e malabarismo maldisfarccedila a certeza monoacutetona do nada que espreita a viagem que cada homemempreende do nascimento agrave hora da morteHumor que decompotildee as atitudes nobres ou apenas convencionais pondo anu as razotildees do insaciaacutevel amor-proacuteprio das quais a vaidade eacute o paradigmae a veleidade o perfeito sinocircnimo

Humor que mistura a convenccedilatildeo e o sarcasmo na forma de maacuteximasparadoxaisHumor en1047297m que parodia as doutrinas do seacuteculo positivismo e evolu-cionismo sob o nome de Humanitismo e as traz na boca de um mendigoaluadordquo (ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo 983090983097ndash983091983088)

Diremos que levando ao extremo a sua caracterizaccedilatildeo expressiva Au-gusto Meyer conclui de modo que natildeo sabemos se justo ou injusto mas sem-pre incisivo e problematizador dos nossos fetichismos ldquoA unidade de tomnos livros da uacuteltima fase chega a ser simples monotoniardquo (983090983090)

Um novo horizonte se abriu de todo modo envolvendo o anterior e con-ferindo-lhe novo sentido Estaacutevamos convencidos de que havia de fato uma vontade-de-estilo na feitura das Memoacuterias poacutestumas que resultara na formalivre e arbitraacuteria do defunto autor Mas agora estamos igualmente persuadi-dos de que apesar da vigecircncia expliacutecita desses padrotildees dos quais Sterne eacute omais relevante o tom a expressatildeo numa palavra o processo existencial quese formulou naquelas cadecircncias de estilo natildeo reproduzia passivamente osseus paradigmas na medida em que era peculiar ao novo projeto 1047297ccionaldo narrador machadiano

O humor de Machado tem uma forccedila destrutiva e dissolvente amargae aacutespera que natildeo se reconhece na tradiccedilatildeo menipeacuteia nem tampouco nasestrepolias de Tristram Shandy Eacute machadiano natildeo tem antecedentes nemdescendentes proacuteximos diretos Trata-se de um narrador que se dobra so-bre si mesmo re1047298etindo agrave luz fria da morte o que 1047297zera e dissera quan-do vivo

Mas a universalidade que se capta a partir de uma leitura existencialradical como a de Augusto Meyer (que soube comparar o homem subter-racircneo de Machado ao Dostoieacutevski das Memoacuterias do subsolo e aproximar o

analista de si mesmo da personagem pirandelliana) atinge outra dimensatildeoquando atentamos para a particularidade dos estiacutemulos sociais locais Ouseja o horizonte existencial ganha em concretude histoacuterica quando o inte-gramos no registro representativo ou mimeacutetico do texto narrativo

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III ndash Dimensatildeo representativa ou reflexa

Depois de sondar o homem subterracircneo e o analista de si mesmo 1047297gurasmodeladas pela criacutetica de Augusto Meyer ainda nos cabe perguntar masquem eacute este homem quais satildeo as suas coordenadas de tempo e espaccedilo Oua que estiacutemulos histoacutericos especiacute1047297cos ele reagiu e aplicou o seu humor cor-rosivo nadi1047297cante As respostas a essas perguntas exigem uma contextuali-zaccedilatildeo das memoacuterias de Braacutes

A contextualizaccedilatildeo do narrador e das personagens pode ser feita ou comos instrumentos da sociologia positivista cuja expressatildeo mais alta e re1047297-nada se encontra na sociologia de Max Weber ou com os instrumentos da

doutrina marxista particularmente com a categoria da arte como re1047298exo dasociedadeQual o meio social e econocircmico em que vivem Braacutes e as personagens

circundantes Qual o seu modus vivendi A que campo ideoloacutegico se pode1047297liar a sua personalidade ou a sua ldquomentalidaderdquo Em que medida seus pen-samentos palavras e obras satildeo determinados pela classe social a que per-tence no caso pelo fato de ser um rentista ocioso na sociedade escravistabrasileira do seacuteculo 983089983097

Nessa busca dos fatores sociais determinantes pode-se dizer que a so-

ciologia da literatura foi apertando os seus parafusos desde a geneacuterica abor-dagem plekhanoviana de Astrojildo Pereira em ldquoMachado de Assis roman-cista do Segundo Impeacuteriordquo ateacute o enfoque lukaacutecsiano de Roberto Schwarzem Um mestre na periferia do capitalismo passando pelo weberiano Ray-mundo Faoro em A piracircmide e o trapeacutezio

A teoria do re1047298exo desenvolvida por Lukaacutecs a partir da sua conversatildeoao marxismo ortodoxo baseia-se no postulado do ldquoexterno que se tornainternordquo ou seja dos componentes sociais que satildeo introjetados pelo escri-tor formando o cerne da sua obra Um dos seus procedimentos baacutesicos eacute a

construccedilatildeo do tipo social que se materializa na personagem ou no narradorTrata-se de um procedimento objetivante que parte do exterior para o co-nhecimento do nuacutecleo interno da personagem

Certas caracteriacutesticas vistas literariamente como forma livre ou vistasexistencialmente em termos de humor aacutecido e dissolvente passam a ser ex-plicadas de modo causal pela condiccedilatildeo econocircmica do narrador-personagemisto eacute pelo fato de Braacutes Cubas ser proprietaacuterio no contexto do BrasilImpeacuterio

A representaccedilatildeo de um tipo ou de uma situaccedilatildeo social localizada e da-

tada acresce nova dimensatildeo ao trabalho narrativo das Memoacuterias poacutestumasEacute a dimensatildeo do observador que se posta no lugar do psicoacutelogo social epassa a discriminar certos traccedilos de comportamento de uma determinadaclasse ou estrato social

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Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

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Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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Talvez o mais adequado seja trocar de lentes quando necessaacuterio Por ex-emplo comeccedilar pela anaacutelise da forma no caso da construccedilatildeo ou do fraseio

do romance continuar pela leitura e escuta das vozes das personagens comsuas perspectivas e tons existenciais peculiares perseguindo a certa alturaa integraccedilatildeo dos aspectos particulares no contexto maior histoacuterico e socialE 1047297nalmente como postulava Leo Spitzer falando do ciacuterculo hermenecircutico

voltar aos detalhes de forma e estilo para ver se as hipoacuteteses iniciais saemcon1047297rmadas ou in1047297rmadas Spitzer fala de um ir e vir das partes ao todo edo todo agraves partes

O que se propotildee em princiacutepio eacute levar em consideraccedilatildeo trecircs dimensotildeespresentes em toda obra literaacuteria e que a rigor jaacute foram de1047297nidas ao longo

da histoacuteria da Esteacutetica de Aristoacuteteles aos tempos modernos construccedilatildeo ex- pressatildeo representaccedilatildeo

Podemos iniciar a leitura das Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas valendo-nos ora de um ora de outro desses registros analiacuteticos e interpretativos To-dos tecircm algo importante a revelar Mas todos conhecem igualmente limitesque soacute o recurso aos demais registros pode ultrapassar Haacute uma interaccedilatildeoentre os trecircs modos de ler mas indo ao fundo do meacutetodo trata-se de umadialeacutetica inter-dimensional pois cada versatildeo supera (conservando hegelia-namente) o horizonte de cada uma das outras horizonte que se arrisca a

tornar-se fechado e redutor sempre que considerado isoladamenteA muacuteltipla determinaccedilatildeo propicia a formaccedilatildeo do conceito concreto aopasso que a determinaccedilatildeo unilateral tende a 1047297xar uma leitura abstrata

I ndash Dimensatildeo construtiva ou formalizante

As Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas foram escritas em um estilo progra-madamente livre

Machado o romancista maduro (twice born segundo a bela de1047297niccedilatildeode Otto Maria Carpeaux) aquele que escreve a partir dos anos 983089983096983096983088 ou deseus 983092983088 anos de idade escolheu inscrever-se na tradiccedilatildeo de uma prosa sig-ni1047297cativamente diversa dos modelos tradicionais do romance romacircnticoe jaacute agravequela altura do romance naturalista Compare-se o Machado das

Memoacuterias poacutestumas com Alencar ou com Aluiacutesio AzevedoA sua confessada inspiraccedilatildeo vincula-o a Diderot a Sterne a Xavier de

Maistre a Garrett Os eruditos agrave cata de in1047298uecircncias remotas remontamessa dicccedilatildeo ao paroacutedico Luciano de Samoacutesata cujos diaacutelogos se encontra-

ram na biblioteca de Machado Na esteira de Mikhail Bakhtin jaacute houvequem aproximasse as Memoacuterias poacutestumas da saacutetira menipeacuteia que teria emVarratildeo Secircneca Erasmo Burton e 1047297nalmente em Sterne os seus grandes re-presentantes Em conferecircncia proferida em setembro de 983090983088983088983096 na Universi-

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dade de Satildeo Paulo o professor e criacutetico Ronaldes de Melo e Souza formuloua hipoacutetese da vigecircncia de uma ironia aristofacircnica na obra de Machado Seria

portanto uma corrente de prosa 1047297ccional joco-seacuteria com caracteres esti-liacutesticos marcados e que Machado retomaria ao fazer do narrador a 1047297guraaparentemente inverossiacutemil do defunto autor

O ensaiacutesta Sergio Paulo Rouanet formalizou a mesma hipoacutetese cunhandoa expressatildeo ldquoforma shandianardquo que enfeixaria as caracteriacutesticas desse gecircnerode romance tomando por paradigma a prosa do ristram Shandy Machadocomo se sabe cita Sterne como um de seus modelos literaacuterios no prefaacutecio agraveterceira ediccedilatildeo das Memoacuterias poacutestumas

Em seu ensaio Riso e melancolia Rouanet elenca quatro caracteriacutesticas

que vinculam as Memoacuterias ao modelo shandiano a presenccedila enfaacutetica donarrador (o eu onipresente e opiniaacutetico) a teacutecnica da composiccedilatildeo livre in-cluindo digressotildees e fragmentos em zigzags o uso arbitraacuterio do tempo e doespaccedilo a interpenetraccedilatildeo de riso e melancolia

Detenho-me apenas no primeiro toacutepico a presenccedila enfaacutetica do narradorou a hipertro1047297a da subjetividade Essa caracteriacutestica que eacute formal e psico-loacutegica ao mesmo tempo jaacute foi observada por criacuteticos mediante diferentesperspectivas Augusto Meyer que encontraremos adiante como o maiorconhecedor da dimensatildeo existencial do narrador das Memoacuterias poacutestumas

quali1047297cava-a haacute setenta anos com as expressotildees ldquo perspectiva arbitraacuteriardquo ou ldquocapricho como regra de composiccedilatildeordquo Meio seacuteculo depois o criacutetico RobertoSchwarz retomaria a observaccedilatildeo falando da volubilidade do narrador emtermos de composiccedilatildeo do romance

Tanto Braacutes Cubas como seu ascendente Tristram Shandy parecem brin-car com os objetos de sua narraccedilatildeo com a proacutepria construccedilatildeo do livro epor tabela brincam tambeacutem com as reaccedilotildees hipoteacuteticas do leitor A relaccedilatildeocom o leitor virtual eacute agraves vezes amena e diplomaacutetica agraves vezes satiacuterica o queaproxima de fato as duas obras propiciando re1047298exotildees luacutedicas morais ou

1047297losofantes do narrador

Extensatildeo e limites da tese construtivista

Depois de tomarmos conhecimento da multiplicidade das intervenccedilotildeesdaquele eu onipresente e caprichoso que emparelham o narrador das

Memoacuterias com o narrador de Sterne (e parcialmente com os narradores deDiderot Xavier de Maistre e Garrett) 1047297camos convencidos da vigecircncia deum padratildeo narrativo ou lato sensu literaacuterio que regeu as Memoacuterias poacutestu-

mas dando-lhes aquela feiccedilatildeo inconfundiacutevel que rompeu com o paradigmado romance linear anteriorMas como natildeo pretendemos esquecer aquela 1047297na observaccedilatildeo de Pas-

cal comeccedilamos a descon1047297ar que nossos olhos de leitor se postaram muito

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rente a este ou aquele traccedilo estiliacutestico e que a1047297nal seria preciso captar odesenho e o tom da narrativa inteira ouvir a melodia do comeccedilo ao 1047297m e

natildeo ater-se somente a uma ou outra imagem a uma ou outra nota a uma ououtra frase do texto Ou seja comeccedilamos a nos perguntar o que esses vaacuteriostraccedilos estiliacutesticos exprimem O que a1047297nal quer dizer o desenho que presi-diu agrave construccedilatildeo da obra Entramos assim no cerne da segunda dimensatildeomencionada

II ndash Dimensatildeo expressiva ou existencial do texto ficcional

Abramos o primeiro ensaio de Augusto Meyer sobre Machado de Assis in-

titulado ldquoO homem subterracircneordquo Eacute de 983089983097983091983093 Entatildeo natildeo se celebrava o cen-tenaacuterio do escritor pois ele havia morrido havia menos de trinta anos Oincipit do texto eacute provocador

ldquoQuase toda a obra de Machado de Assis eacute um pretexto para o improvisode borboleteios maliciosos digressotildees e parecircnteses felizes Fez do seucapricho uma regra de composiccedilatildeo E neste ponto se aproxima realmenteda ldquoforma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistrerdquo Mas a analo-gia eacute formal natildeo passa da superfiacutecie sensiacutevel para o fundo permanenteA vivacidade de Sterne eacute uma espontaneidade orgacircnica necessaacuteria a do

homem voluacutevel que atravessa os minutos num fregolismo vivo de atitudesgozando o prazer de sentir-se disponiacutevel Sterne eacute um molto vivace da dis-soluccedilatildeo psicoloacutegica Em Machado a aparecircncia de movimento a pirueta e omalabarismo satildeo disfarces que mal conseguem dissimular uma profundagravidade-deveria dizer uma terriacutevel estabilidade Toda a sua trepidaccedilatildeoacaba marcando passordquo (983089983093)

Os que jaacute tiveram o prazer de ler o ensaio inteiro sabem que a partirdessa observaccedilatildeo Augusto Meyer vai expor em seu estilo inimitaacutevel decriacutetico-poeta a relaccedilatildeo existencial e estrutural entre a forma livre e a 1047297gura

do homem subterracircneo verdadeiro eacutetimo das mutaccedilotildees de superfiacutecie Natildeoeacute apenas o homem epideacutermico espevitado que muda por mudar mas tam-beacutem o auto-analista aquele que vive e se vecirc viver o espectador de si mesmopirandelliano avant la lettre capaz de envolver com a mortalha do defuntoautor a vida ociosa e egoiacutesta do Braacutes vivo

Ora essa percepccedilatildeo de que a forma ou o modelo confessadamente imi-tado natildeo assumia nas Memoacuterias poacutestumas o mesmo signi1047297cado que carac-terizava os caprichos de Tristram Shandy jaacute tinha sido reconhecida e ditacom todas as letras em primeiro lugar pelo proacuteprio autor quando a1047297rmara

que aqueles seus ldquomodelosrdquo natildeo partilhavam do seu ldquosentimento amargo eaacutesperordquo ldquoEacute taccedila que pode ter lavores de igual escola mas leva outro vinhordquoPassa entatildeo a ser uma tarefa hermenecircutica quali1047297car com precisatildeo esse

sentimento fundamental especiacute1047297co que permeia toda a dicccedilatildeo da obra A

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palavra-chave foi cunhada por Alcides Maia que por sua vez inspirou aleitura de Augusto Meyer humor

Comentando o achado criacutetico de ambos pude escreverHumor que oscila entre a moacutevel jocosidade na superfiacutecie das palavras e umsombrio negativismo no cerne dos juiacutezosHumor cuja lsquoaparecircncia de movimentorsquo feita de piruetas e malabarismo maldisfarccedila a certeza monoacutetona do nada que espreita a viagem que cada homemempreende do nascimento agrave hora da morteHumor que decompotildee as atitudes nobres ou apenas convencionais pondo anu as razotildees do insaciaacutevel amor-proacuteprio das quais a vaidade eacute o paradigmae a veleidade o perfeito sinocircnimo

Humor que mistura a convenccedilatildeo e o sarcasmo na forma de maacuteximasparadoxaisHumor en1047297m que parodia as doutrinas do seacuteculo positivismo e evolu-cionismo sob o nome de Humanitismo e as traz na boca de um mendigoaluadordquo (ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo 983090983097ndash983091983088)

Diremos que levando ao extremo a sua caracterizaccedilatildeo expressiva Au-gusto Meyer conclui de modo que natildeo sabemos se justo ou injusto mas sem-pre incisivo e problematizador dos nossos fetichismos ldquoA unidade de tomnos livros da uacuteltima fase chega a ser simples monotoniardquo (983090983090)

Um novo horizonte se abriu de todo modo envolvendo o anterior e con-ferindo-lhe novo sentido Estaacutevamos convencidos de que havia de fato uma vontade-de-estilo na feitura das Memoacuterias poacutestumas que resultara na formalivre e arbitraacuteria do defunto autor Mas agora estamos igualmente persuadi-dos de que apesar da vigecircncia expliacutecita desses padrotildees dos quais Sterne eacute omais relevante o tom a expressatildeo numa palavra o processo existencial quese formulou naquelas cadecircncias de estilo natildeo reproduzia passivamente osseus paradigmas na medida em que era peculiar ao novo projeto 1047297ccionaldo narrador machadiano

O humor de Machado tem uma forccedila destrutiva e dissolvente amargae aacutespera que natildeo se reconhece na tradiccedilatildeo menipeacuteia nem tampouco nasestrepolias de Tristram Shandy Eacute machadiano natildeo tem antecedentes nemdescendentes proacuteximos diretos Trata-se de um narrador que se dobra so-bre si mesmo re1047298etindo agrave luz fria da morte o que 1047297zera e dissera quan-do vivo

Mas a universalidade que se capta a partir de uma leitura existencialradical como a de Augusto Meyer (que soube comparar o homem subter-racircneo de Machado ao Dostoieacutevski das Memoacuterias do subsolo e aproximar o

analista de si mesmo da personagem pirandelliana) atinge outra dimensatildeoquando atentamos para a particularidade dos estiacutemulos sociais locais Ouseja o horizonte existencial ganha em concretude histoacuterica quando o inte-gramos no registro representativo ou mimeacutetico do texto narrativo

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III ndash Dimensatildeo representativa ou reflexa

Depois de sondar o homem subterracircneo e o analista de si mesmo 1047297gurasmodeladas pela criacutetica de Augusto Meyer ainda nos cabe perguntar masquem eacute este homem quais satildeo as suas coordenadas de tempo e espaccedilo Oua que estiacutemulos histoacutericos especiacute1047297cos ele reagiu e aplicou o seu humor cor-rosivo nadi1047297cante As respostas a essas perguntas exigem uma contextuali-zaccedilatildeo das memoacuterias de Braacutes

A contextualizaccedilatildeo do narrador e das personagens pode ser feita ou comos instrumentos da sociologia positivista cuja expressatildeo mais alta e re1047297-nada se encontra na sociologia de Max Weber ou com os instrumentos da

doutrina marxista particularmente com a categoria da arte como re1047298exo dasociedadeQual o meio social e econocircmico em que vivem Braacutes e as personagens

circundantes Qual o seu modus vivendi A que campo ideoloacutegico se pode1047297liar a sua personalidade ou a sua ldquomentalidaderdquo Em que medida seus pen-samentos palavras e obras satildeo determinados pela classe social a que per-tence no caso pelo fato de ser um rentista ocioso na sociedade escravistabrasileira do seacuteculo 983089983097

Nessa busca dos fatores sociais determinantes pode-se dizer que a so-

ciologia da literatura foi apertando os seus parafusos desde a geneacuterica abor-dagem plekhanoviana de Astrojildo Pereira em ldquoMachado de Assis roman-cista do Segundo Impeacuteriordquo ateacute o enfoque lukaacutecsiano de Roberto Schwarzem Um mestre na periferia do capitalismo passando pelo weberiano Ray-mundo Faoro em A piracircmide e o trapeacutezio

A teoria do re1047298exo desenvolvida por Lukaacutecs a partir da sua conversatildeoao marxismo ortodoxo baseia-se no postulado do ldquoexterno que se tornainternordquo ou seja dos componentes sociais que satildeo introjetados pelo escri-tor formando o cerne da sua obra Um dos seus procedimentos baacutesicos eacute a

construccedilatildeo do tipo social que se materializa na personagem ou no narradorTrata-se de um procedimento objetivante que parte do exterior para o co-nhecimento do nuacutecleo interno da personagem

Certas caracteriacutesticas vistas literariamente como forma livre ou vistasexistencialmente em termos de humor aacutecido e dissolvente passam a ser ex-plicadas de modo causal pela condiccedilatildeo econocircmica do narrador-personagemisto eacute pelo fato de Braacutes Cubas ser proprietaacuterio no contexto do BrasilImpeacuterio

A representaccedilatildeo de um tipo ou de uma situaccedilatildeo social localizada e da-

tada acresce nova dimensatildeo ao trabalho narrativo das Memoacuterias poacutestumasEacute a dimensatildeo do observador que se posta no lugar do psicoacutelogo social epassa a discriminar certos traccedilos de comportamento de uma determinadaclasse ou estrato social

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Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

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Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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dade de Satildeo Paulo o professor e criacutetico Ronaldes de Melo e Souza formuloua hipoacutetese da vigecircncia de uma ironia aristofacircnica na obra de Machado Seria

portanto uma corrente de prosa 1047297ccional joco-seacuteria com caracteres esti-liacutesticos marcados e que Machado retomaria ao fazer do narrador a 1047297guraaparentemente inverossiacutemil do defunto autor

O ensaiacutesta Sergio Paulo Rouanet formalizou a mesma hipoacutetese cunhandoa expressatildeo ldquoforma shandianardquo que enfeixaria as caracteriacutesticas desse gecircnerode romance tomando por paradigma a prosa do ristram Shandy Machadocomo se sabe cita Sterne como um de seus modelos literaacuterios no prefaacutecio agraveterceira ediccedilatildeo das Memoacuterias poacutestumas

Em seu ensaio Riso e melancolia Rouanet elenca quatro caracteriacutesticas

que vinculam as Memoacuterias ao modelo shandiano a presenccedila enfaacutetica donarrador (o eu onipresente e opiniaacutetico) a teacutecnica da composiccedilatildeo livre in-cluindo digressotildees e fragmentos em zigzags o uso arbitraacuterio do tempo e doespaccedilo a interpenetraccedilatildeo de riso e melancolia

Detenho-me apenas no primeiro toacutepico a presenccedila enfaacutetica do narradorou a hipertro1047297a da subjetividade Essa caracteriacutestica que eacute formal e psico-loacutegica ao mesmo tempo jaacute foi observada por criacuteticos mediante diferentesperspectivas Augusto Meyer que encontraremos adiante como o maiorconhecedor da dimensatildeo existencial do narrador das Memoacuterias poacutestumas

quali1047297cava-a haacute setenta anos com as expressotildees ldquo perspectiva arbitraacuteriardquo ou ldquocapricho como regra de composiccedilatildeordquo Meio seacuteculo depois o criacutetico RobertoSchwarz retomaria a observaccedilatildeo falando da volubilidade do narrador emtermos de composiccedilatildeo do romance

Tanto Braacutes Cubas como seu ascendente Tristram Shandy parecem brin-car com os objetos de sua narraccedilatildeo com a proacutepria construccedilatildeo do livro epor tabela brincam tambeacutem com as reaccedilotildees hipoteacuteticas do leitor A relaccedilatildeocom o leitor virtual eacute agraves vezes amena e diplomaacutetica agraves vezes satiacuterica o queaproxima de fato as duas obras propiciando re1047298exotildees luacutedicas morais ou

1047297losofantes do narrador

Extensatildeo e limites da tese construtivista

Depois de tomarmos conhecimento da multiplicidade das intervenccedilotildeesdaquele eu onipresente e caprichoso que emparelham o narrador das

Memoacuterias com o narrador de Sterne (e parcialmente com os narradores deDiderot Xavier de Maistre e Garrett) 1047297camos convencidos da vigecircncia deum padratildeo narrativo ou lato sensu literaacuterio que regeu as Memoacuterias poacutestu-

mas dando-lhes aquela feiccedilatildeo inconfundiacutevel que rompeu com o paradigmado romance linear anteriorMas como natildeo pretendemos esquecer aquela 1047297na observaccedilatildeo de Pas-

cal comeccedilamos a descon1047297ar que nossos olhos de leitor se postaram muito

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rente a este ou aquele traccedilo estiliacutestico e que a1047297nal seria preciso captar odesenho e o tom da narrativa inteira ouvir a melodia do comeccedilo ao 1047297m e

natildeo ater-se somente a uma ou outra imagem a uma ou outra nota a uma ououtra frase do texto Ou seja comeccedilamos a nos perguntar o que esses vaacuteriostraccedilos estiliacutesticos exprimem O que a1047297nal quer dizer o desenho que presi-diu agrave construccedilatildeo da obra Entramos assim no cerne da segunda dimensatildeomencionada

II ndash Dimensatildeo expressiva ou existencial do texto ficcional

Abramos o primeiro ensaio de Augusto Meyer sobre Machado de Assis in-

titulado ldquoO homem subterracircneordquo Eacute de 983089983097983091983093 Entatildeo natildeo se celebrava o cen-tenaacuterio do escritor pois ele havia morrido havia menos de trinta anos Oincipit do texto eacute provocador

ldquoQuase toda a obra de Machado de Assis eacute um pretexto para o improvisode borboleteios maliciosos digressotildees e parecircnteses felizes Fez do seucapricho uma regra de composiccedilatildeo E neste ponto se aproxima realmenteda ldquoforma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistrerdquo Mas a analo-gia eacute formal natildeo passa da superfiacutecie sensiacutevel para o fundo permanenteA vivacidade de Sterne eacute uma espontaneidade orgacircnica necessaacuteria a do

homem voluacutevel que atravessa os minutos num fregolismo vivo de atitudesgozando o prazer de sentir-se disponiacutevel Sterne eacute um molto vivace da dis-soluccedilatildeo psicoloacutegica Em Machado a aparecircncia de movimento a pirueta e omalabarismo satildeo disfarces que mal conseguem dissimular uma profundagravidade-deveria dizer uma terriacutevel estabilidade Toda a sua trepidaccedilatildeoacaba marcando passordquo (983089983093)

Os que jaacute tiveram o prazer de ler o ensaio inteiro sabem que a partirdessa observaccedilatildeo Augusto Meyer vai expor em seu estilo inimitaacutevel decriacutetico-poeta a relaccedilatildeo existencial e estrutural entre a forma livre e a 1047297gura

do homem subterracircneo verdadeiro eacutetimo das mutaccedilotildees de superfiacutecie Natildeoeacute apenas o homem epideacutermico espevitado que muda por mudar mas tam-beacutem o auto-analista aquele que vive e se vecirc viver o espectador de si mesmopirandelliano avant la lettre capaz de envolver com a mortalha do defuntoautor a vida ociosa e egoiacutesta do Braacutes vivo

Ora essa percepccedilatildeo de que a forma ou o modelo confessadamente imi-tado natildeo assumia nas Memoacuterias poacutestumas o mesmo signi1047297cado que carac-terizava os caprichos de Tristram Shandy jaacute tinha sido reconhecida e ditacom todas as letras em primeiro lugar pelo proacuteprio autor quando a1047297rmara

que aqueles seus ldquomodelosrdquo natildeo partilhavam do seu ldquosentimento amargo eaacutesperordquo ldquoEacute taccedila que pode ter lavores de igual escola mas leva outro vinhordquoPassa entatildeo a ser uma tarefa hermenecircutica quali1047297car com precisatildeo esse

sentimento fundamental especiacute1047297co que permeia toda a dicccedilatildeo da obra A

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palavra-chave foi cunhada por Alcides Maia que por sua vez inspirou aleitura de Augusto Meyer humor

Comentando o achado criacutetico de ambos pude escreverHumor que oscila entre a moacutevel jocosidade na superfiacutecie das palavras e umsombrio negativismo no cerne dos juiacutezosHumor cuja lsquoaparecircncia de movimentorsquo feita de piruetas e malabarismo maldisfarccedila a certeza monoacutetona do nada que espreita a viagem que cada homemempreende do nascimento agrave hora da morteHumor que decompotildee as atitudes nobres ou apenas convencionais pondo anu as razotildees do insaciaacutevel amor-proacuteprio das quais a vaidade eacute o paradigmae a veleidade o perfeito sinocircnimo

Humor que mistura a convenccedilatildeo e o sarcasmo na forma de maacuteximasparadoxaisHumor en1047297m que parodia as doutrinas do seacuteculo positivismo e evolu-cionismo sob o nome de Humanitismo e as traz na boca de um mendigoaluadordquo (ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo 983090983097ndash983091983088)

Diremos que levando ao extremo a sua caracterizaccedilatildeo expressiva Au-gusto Meyer conclui de modo que natildeo sabemos se justo ou injusto mas sem-pre incisivo e problematizador dos nossos fetichismos ldquoA unidade de tomnos livros da uacuteltima fase chega a ser simples monotoniardquo (983090983090)

Um novo horizonte se abriu de todo modo envolvendo o anterior e con-ferindo-lhe novo sentido Estaacutevamos convencidos de que havia de fato uma vontade-de-estilo na feitura das Memoacuterias poacutestumas que resultara na formalivre e arbitraacuteria do defunto autor Mas agora estamos igualmente persuadi-dos de que apesar da vigecircncia expliacutecita desses padrotildees dos quais Sterne eacute omais relevante o tom a expressatildeo numa palavra o processo existencial quese formulou naquelas cadecircncias de estilo natildeo reproduzia passivamente osseus paradigmas na medida em que era peculiar ao novo projeto 1047297ccionaldo narrador machadiano

O humor de Machado tem uma forccedila destrutiva e dissolvente amargae aacutespera que natildeo se reconhece na tradiccedilatildeo menipeacuteia nem tampouco nasestrepolias de Tristram Shandy Eacute machadiano natildeo tem antecedentes nemdescendentes proacuteximos diretos Trata-se de um narrador que se dobra so-bre si mesmo re1047298etindo agrave luz fria da morte o que 1047297zera e dissera quan-do vivo

Mas a universalidade que se capta a partir de uma leitura existencialradical como a de Augusto Meyer (que soube comparar o homem subter-racircneo de Machado ao Dostoieacutevski das Memoacuterias do subsolo e aproximar o

analista de si mesmo da personagem pirandelliana) atinge outra dimensatildeoquando atentamos para a particularidade dos estiacutemulos sociais locais Ouseja o horizonte existencial ganha em concretude histoacuterica quando o inte-gramos no registro representativo ou mimeacutetico do texto narrativo

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III ndash Dimensatildeo representativa ou reflexa

Depois de sondar o homem subterracircneo e o analista de si mesmo 1047297gurasmodeladas pela criacutetica de Augusto Meyer ainda nos cabe perguntar masquem eacute este homem quais satildeo as suas coordenadas de tempo e espaccedilo Oua que estiacutemulos histoacutericos especiacute1047297cos ele reagiu e aplicou o seu humor cor-rosivo nadi1047297cante As respostas a essas perguntas exigem uma contextuali-zaccedilatildeo das memoacuterias de Braacutes

A contextualizaccedilatildeo do narrador e das personagens pode ser feita ou comos instrumentos da sociologia positivista cuja expressatildeo mais alta e re1047297-nada se encontra na sociologia de Max Weber ou com os instrumentos da

doutrina marxista particularmente com a categoria da arte como re1047298exo dasociedadeQual o meio social e econocircmico em que vivem Braacutes e as personagens

circundantes Qual o seu modus vivendi A que campo ideoloacutegico se pode1047297liar a sua personalidade ou a sua ldquomentalidaderdquo Em que medida seus pen-samentos palavras e obras satildeo determinados pela classe social a que per-tence no caso pelo fato de ser um rentista ocioso na sociedade escravistabrasileira do seacuteculo 983089983097

Nessa busca dos fatores sociais determinantes pode-se dizer que a so-

ciologia da literatura foi apertando os seus parafusos desde a geneacuterica abor-dagem plekhanoviana de Astrojildo Pereira em ldquoMachado de Assis roman-cista do Segundo Impeacuteriordquo ateacute o enfoque lukaacutecsiano de Roberto Schwarzem Um mestre na periferia do capitalismo passando pelo weberiano Ray-mundo Faoro em A piracircmide e o trapeacutezio

A teoria do re1047298exo desenvolvida por Lukaacutecs a partir da sua conversatildeoao marxismo ortodoxo baseia-se no postulado do ldquoexterno que se tornainternordquo ou seja dos componentes sociais que satildeo introjetados pelo escri-tor formando o cerne da sua obra Um dos seus procedimentos baacutesicos eacute a

construccedilatildeo do tipo social que se materializa na personagem ou no narradorTrata-se de um procedimento objetivante que parte do exterior para o co-nhecimento do nuacutecleo interno da personagem

Certas caracteriacutesticas vistas literariamente como forma livre ou vistasexistencialmente em termos de humor aacutecido e dissolvente passam a ser ex-plicadas de modo causal pela condiccedilatildeo econocircmica do narrador-personagemisto eacute pelo fato de Braacutes Cubas ser proprietaacuterio no contexto do BrasilImpeacuterio

A representaccedilatildeo de um tipo ou de uma situaccedilatildeo social localizada e da-

tada acresce nova dimensatildeo ao trabalho narrativo das Memoacuterias poacutestumasEacute a dimensatildeo do observador que se posta no lugar do psicoacutelogo social epassa a discriminar certos traccedilos de comportamento de uma determinadaclasse ou estrato social

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Bosi 983089983091

Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

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Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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Bosi 983089983093

mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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rente a este ou aquele traccedilo estiliacutestico e que a1047297nal seria preciso captar odesenho e o tom da narrativa inteira ouvir a melodia do comeccedilo ao 1047297m e

natildeo ater-se somente a uma ou outra imagem a uma ou outra nota a uma ououtra frase do texto Ou seja comeccedilamos a nos perguntar o que esses vaacuteriostraccedilos estiliacutesticos exprimem O que a1047297nal quer dizer o desenho que presi-diu agrave construccedilatildeo da obra Entramos assim no cerne da segunda dimensatildeomencionada

II ndash Dimensatildeo expressiva ou existencial do texto ficcional

Abramos o primeiro ensaio de Augusto Meyer sobre Machado de Assis in-

titulado ldquoO homem subterracircneordquo Eacute de 983089983097983091983093 Entatildeo natildeo se celebrava o cen-tenaacuterio do escritor pois ele havia morrido havia menos de trinta anos Oincipit do texto eacute provocador

ldquoQuase toda a obra de Machado de Assis eacute um pretexto para o improvisode borboleteios maliciosos digressotildees e parecircnteses felizes Fez do seucapricho uma regra de composiccedilatildeo E neste ponto se aproxima realmenteda ldquoforma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistrerdquo Mas a analo-gia eacute formal natildeo passa da superfiacutecie sensiacutevel para o fundo permanenteA vivacidade de Sterne eacute uma espontaneidade orgacircnica necessaacuteria a do

homem voluacutevel que atravessa os minutos num fregolismo vivo de atitudesgozando o prazer de sentir-se disponiacutevel Sterne eacute um molto vivace da dis-soluccedilatildeo psicoloacutegica Em Machado a aparecircncia de movimento a pirueta e omalabarismo satildeo disfarces que mal conseguem dissimular uma profundagravidade-deveria dizer uma terriacutevel estabilidade Toda a sua trepidaccedilatildeoacaba marcando passordquo (983089983093)

Os que jaacute tiveram o prazer de ler o ensaio inteiro sabem que a partirdessa observaccedilatildeo Augusto Meyer vai expor em seu estilo inimitaacutevel decriacutetico-poeta a relaccedilatildeo existencial e estrutural entre a forma livre e a 1047297gura

do homem subterracircneo verdadeiro eacutetimo das mutaccedilotildees de superfiacutecie Natildeoeacute apenas o homem epideacutermico espevitado que muda por mudar mas tam-beacutem o auto-analista aquele que vive e se vecirc viver o espectador de si mesmopirandelliano avant la lettre capaz de envolver com a mortalha do defuntoautor a vida ociosa e egoiacutesta do Braacutes vivo

Ora essa percepccedilatildeo de que a forma ou o modelo confessadamente imi-tado natildeo assumia nas Memoacuterias poacutestumas o mesmo signi1047297cado que carac-terizava os caprichos de Tristram Shandy jaacute tinha sido reconhecida e ditacom todas as letras em primeiro lugar pelo proacuteprio autor quando a1047297rmara

que aqueles seus ldquomodelosrdquo natildeo partilhavam do seu ldquosentimento amargo eaacutesperordquo ldquoEacute taccedila que pode ter lavores de igual escola mas leva outro vinhordquoPassa entatildeo a ser uma tarefa hermenecircutica quali1047297car com precisatildeo esse

sentimento fundamental especiacute1047297co que permeia toda a dicccedilatildeo da obra A

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Bosi 983089983089

palavra-chave foi cunhada por Alcides Maia que por sua vez inspirou aleitura de Augusto Meyer humor

Comentando o achado criacutetico de ambos pude escreverHumor que oscila entre a moacutevel jocosidade na superfiacutecie das palavras e umsombrio negativismo no cerne dos juiacutezosHumor cuja lsquoaparecircncia de movimentorsquo feita de piruetas e malabarismo maldisfarccedila a certeza monoacutetona do nada que espreita a viagem que cada homemempreende do nascimento agrave hora da morteHumor que decompotildee as atitudes nobres ou apenas convencionais pondo anu as razotildees do insaciaacutevel amor-proacuteprio das quais a vaidade eacute o paradigmae a veleidade o perfeito sinocircnimo

Humor que mistura a convenccedilatildeo e o sarcasmo na forma de maacuteximasparadoxaisHumor en1047297m que parodia as doutrinas do seacuteculo positivismo e evolu-cionismo sob o nome de Humanitismo e as traz na boca de um mendigoaluadordquo (ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo 983090983097ndash983091983088)

Diremos que levando ao extremo a sua caracterizaccedilatildeo expressiva Au-gusto Meyer conclui de modo que natildeo sabemos se justo ou injusto mas sem-pre incisivo e problematizador dos nossos fetichismos ldquoA unidade de tomnos livros da uacuteltima fase chega a ser simples monotoniardquo (983090983090)

Um novo horizonte se abriu de todo modo envolvendo o anterior e con-ferindo-lhe novo sentido Estaacutevamos convencidos de que havia de fato uma vontade-de-estilo na feitura das Memoacuterias poacutestumas que resultara na formalivre e arbitraacuteria do defunto autor Mas agora estamos igualmente persuadi-dos de que apesar da vigecircncia expliacutecita desses padrotildees dos quais Sterne eacute omais relevante o tom a expressatildeo numa palavra o processo existencial quese formulou naquelas cadecircncias de estilo natildeo reproduzia passivamente osseus paradigmas na medida em que era peculiar ao novo projeto 1047297ccionaldo narrador machadiano

O humor de Machado tem uma forccedila destrutiva e dissolvente amargae aacutespera que natildeo se reconhece na tradiccedilatildeo menipeacuteia nem tampouco nasestrepolias de Tristram Shandy Eacute machadiano natildeo tem antecedentes nemdescendentes proacuteximos diretos Trata-se de um narrador que se dobra so-bre si mesmo re1047298etindo agrave luz fria da morte o que 1047297zera e dissera quan-do vivo

Mas a universalidade que se capta a partir de uma leitura existencialradical como a de Augusto Meyer (que soube comparar o homem subter-racircneo de Machado ao Dostoieacutevski das Memoacuterias do subsolo e aproximar o

analista de si mesmo da personagem pirandelliana) atinge outra dimensatildeoquando atentamos para a particularidade dos estiacutemulos sociais locais Ouseja o horizonte existencial ganha em concretude histoacuterica quando o inte-gramos no registro representativo ou mimeacutetico do texto narrativo

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III ndash Dimensatildeo representativa ou reflexa

Depois de sondar o homem subterracircneo e o analista de si mesmo 1047297gurasmodeladas pela criacutetica de Augusto Meyer ainda nos cabe perguntar masquem eacute este homem quais satildeo as suas coordenadas de tempo e espaccedilo Oua que estiacutemulos histoacutericos especiacute1047297cos ele reagiu e aplicou o seu humor cor-rosivo nadi1047297cante As respostas a essas perguntas exigem uma contextuali-zaccedilatildeo das memoacuterias de Braacutes

A contextualizaccedilatildeo do narrador e das personagens pode ser feita ou comos instrumentos da sociologia positivista cuja expressatildeo mais alta e re1047297-nada se encontra na sociologia de Max Weber ou com os instrumentos da

doutrina marxista particularmente com a categoria da arte como re1047298exo dasociedadeQual o meio social e econocircmico em que vivem Braacutes e as personagens

circundantes Qual o seu modus vivendi A que campo ideoloacutegico se pode1047297liar a sua personalidade ou a sua ldquomentalidaderdquo Em que medida seus pen-samentos palavras e obras satildeo determinados pela classe social a que per-tence no caso pelo fato de ser um rentista ocioso na sociedade escravistabrasileira do seacuteculo 983089983097

Nessa busca dos fatores sociais determinantes pode-se dizer que a so-

ciologia da literatura foi apertando os seus parafusos desde a geneacuterica abor-dagem plekhanoviana de Astrojildo Pereira em ldquoMachado de Assis roman-cista do Segundo Impeacuteriordquo ateacute o enfoque lukaacutecsiano de Roberto Schwarzem Um mestre na periferia do capitalismo passando pelo weberiano Ray-mundo Faoro em A piracircmide e o trapeacutezio

A teoria do re1047298exo desenvolvida por Lukaacutecs a partir da sua conversatildeoao marxismo ortodoxo baseia-se no postulado do ldquoexterno que se tornainternordquo ou seja dos componentes sociais que satildeo introjetados pelo escri-tor formando o cerne da sua obra Um dos seus procedimentos baacutesicos eacute a

construccedilatildeo do tipo social que se materializa na personagem ou no narradorTrata-se de um procedimento objetivante que parte do exterior para o co-nhecimento do nuacutecleo interno da personagem

Certas caracteriacutesticas vistas literariamente como forma livre ou vistasexistencialmente em termos de humor aacutecido e dissolvente passam a ser ex-plicadas de modo causal pela condiccedilatildeo econocircmica do narrador-personagemisto eacute pelo fato de Braacutes Cubas ser proprietaacuterio no contexto do BrasilImpeacuterio

A representaccedilatildeo de um tipo ou de uma situaccedilatildeo social localizada e da-

tada acresce nova dimensatildeo ao trabalho narrativo das Memoacuterias poacutestumasEacute a dimensatildeo do observador que se posta no lugar do psicoacutelogo social epassa a discriminar certos traccedilos de comportamento de uma determinadaclasse ou estrato social

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Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

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Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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Bosi 983089983093

mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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Bosi 983089983089

palavra-chave foi cunhada por Alcides Maia que por sua vez inspirou aleitura de Augusto Meyer humor

Comentando o achado criacutetico de ambos pude escreverHumor que oscila entre a moacutevel jocosidade na superfiacutecie das palavras e umsombrio negativismo no cerne dos juiacutezosHumor cuja lsquoaparecircncia de movimentorsquo feita de piruetas e malabarismo maldisfarccedila a certeza monoacutetona do nada que espreita a viagem que cada homemempreende do nascimento agrave hora da morteHumor que decompotildee as atitudes nobres ou apenas convencionais pondo anu as razotildees do insaciaacutevel amor-proacuteprio das quais a vaidade eacute o paradigmae a veleidade o perfeito sinocircnimo

Humor que mistura a convenccedilatildeo e o sarcasmo na forma de maacuteximasparadoxaisHumor en1047297m que parodia as doutrinas do seacuteculo positivismo e evolu-cionismo sob o nome de Humanitismo e as traz na boca de um mendigoaluadordquo (ldquoBraacutes Cubas em trecircs versotildeesrdquo 983090983097ndash983091983088)

Diremos que levando ao extremo a sua caracterizaccedilatildeo expressiva Au-gusto Meyer conclui de modo que natildeo sabemos se justo ou injusto mas sem-pre incisivo e problematizador dos nossos fetichismos ldquoA unidade de tomnos livros da uacuteltima fase chega a ser simples monotoniardquo (983090983090)

Um novo horizonte se abriu de todo modo envolvendo o anterior e con-ferindo-lhe novo sentido Estaacutevamos convencidos de que havia de fato uma vontade-de-estilo na feitura das Memoacuterias poacutestumas que resultara na formalivre e arbitraacuteria do defunto autor Mas agora estamos igualmente persuadi-dos de que apesar da vigecircncia expliacutecita desses padrotildees dos quais Sterne eacute omais relevante o tom a expressatildeo numa palavra o processo existencial quese formulou naquelas cadecircncias de estilo natildeo reproduzia passivamente osseus paradigmas na medida em que era peculiar ao novo projeto 1047297ccionaldo narrador machadiano

O humor de Machado tem uma forccedila destrutiva e dissolvente amargae aacutespera que natildeo se reconhece na tradiccedilatildeo menipeacuteia nem tampouco nasestrepolias de Tristram Shandy Eacute machadiano natildeo tem antecedentes nemdescendentes proacuteximos diretos Trata-se de um narrador que se dobra so-bre si mesmo re1047298etindo agrave luz fria da morte o que 1047297zera e dissera quan-do vivo

Mas a universalidade que se capta a partir de uma leitura existencialradical como a de Augusto Meyer (que soube comparar o homem subter-racircneo de Machado ao Dostoieacutevski das Memoacuterias do subsolo e aproximar o

analista de si mesmo da personagem pirandelliana) atinge outra dimensatildeoquando atentamos para a particularidade dos estiacutemulos sociais locais Ouseja o horizonte existencial ganha em concretude histoacuterica quando o inte-gramos no registro representativo ou mimeacutetico do texto narrativo

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983089983090 Luso-Brazilian Review 461

III ndash Dimensatildeo representativa ou reflexa

Depois de sondar o homem subterracircneo e o analista de si mesmo 1047297gurasmodeladas pela criacutetica de Augusto Meyer ainda nos cabe perguntar masquem eacute este homem quais satildeo as suas coordenadas de tempo e espaccedilo Oua que estiacutemulos histoacutericos especiacute1047297cos ele reagiu e aplicou o seu humor cor-rosivo nadi1047297cante As respostas a essas perguntas exigem uma contextuali-zaccedilatildeo das memoacuterias de Braacutes

A contextualizaccedilatildeo do narrador e das personagens pode ser feita ou comos instrumentos da sociologia positivista cuja expressatildeo mais alta e re1047297-nada se encontra na sociologia de Max Weber ou com os instrumentos da

doutrina marxista particularmente com a categoria da arte como re1047298exo dasociedadeQual o meio social e econocircmico em que vivem Braacutes e as personagens

circundantes Qual o seu modus vivendi A que campo ideoloacutegico se pode1047297liar a sua personalidade ou a sua ldquomentalidaderdquo Em que medida seus pen-samentos palavras e obras satildeo determinados pela classe social a que per-tence no caso pelo fato de ser um rentista ocioso na sociedade escravistabrasileira do seacuteculo 983089983097

Nessa busca dos fatores sociais determinantes pode-se dizer que a so-

ciologia da literatura foi apertando os seus parafusos desde a geneacuterica abor-dagem plekhanoviana de Astrojildo Pereira em ldquoMachado de Assis roman-cista do Segundo Impeacuteriordquo ateacute o enfoque lukaacutecsiano de Roberto Schwarzem Um mestre na periferia do capitalismo passando pelo weberiano Ray-mundo Faoro em A piracircmide e o trapeacutezio

A teoria do re1047298exo desenvolvida por Lukaacutecs a partir da sua conversatildeoao marxismo ortodoxo baseia-se no postulado do ldquoexterno que se tornainternordquo ou seja dos componentes sociais que satildeo introjetados pelo escri-tor formando o cerne da sua obra Um dos seus procedimentos baacutesicos eacute a

construccedilatildeo do tipo social que se materializa na personagem ou no narradorTrata-se de um procedimento objetivante que parte do exterior para o co-nhecimento do nuacutecleo interno da personagem

Certas caracteriacutesticas vistas literariamente como forma livre ou vistasexistencialmente em termos de humor aacutecido e dissolvente passam a ser ex-plicadas de modo causal pela condiccedilatildeo econocircmica do narrador-personagemisto eacute pelo fato de Braacutes Cubas ser proprietaacuterio no contexto do BrasilImpeacuterio

A representaccedilatildeo de um tipo ou de uma situaccedilatildeo social localizada e da-

tada acresce nova dimensatildeo ao trabalho narrativo das Memoacuterias poacutestumasEacute a dimensatildeo do observador que se posta no lugar do psicoacutelogo social epassa a discriminar certos traccedilos de comportamento de uma determinadaclasse ou estrato social

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Bosi 983089983091

Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

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983089983092 Luso-Brazilian Review 461

Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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Bosi 983089983093

mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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III ndash Dimensatildeo representativa ou reflexa

Depois de sondar o homem subterracircneo e o analista de si mesmo 1047297gurasmodeladas pela criacutetica de Augusto Meyer ainda nos cabe perguntar masquem eacute este homem quais satildeo as suas coordenadas de tempo e espaccedilo Oua que estiacutemulos histoacutericos especiacute1047297cos ele reagiu e aplicou o seu humor cor-rosivo nadi1047297cante As respostas a essas perguntas exigem uma contextuali-zaccedilatildeo das memoacuterias de Braacutes

A contextualizaccedilatildeo do narrador e das personagens pode ser feita ou comos instrumentos da sociologia positivista cuja expressatildeo mais alta e re1047297-nada se encontra na sociologia de Max Weber ou com os instrumentos da

doutrina marxista particularmente com a categoria da arte como re1047298exo dasociedadeQual o meio social e econocircmico em que vivem Braacutes e as personagens

circundantes Qual o seu modus vivendi A que campo ideoloacutegico se pode1047297liar a sua personalidade ou a sua ldquomentalidaderdquo Em que medida seus pen-samentos palavras e obras satildeo determinados pela classe social a que per-tence no caso pelo fato de ser um rentista ocioso na sociedade escravistabrasileira do seacuteculo 983089983097

Nessa busca dos fatores sociais determinantes pode-se dizer que a so-

ciologia da literatura foi apertando os seus parafusos desde a geneacuterica abor-dagem plekhanoviana de Astrojildo Pereira em ldquoMachado de Assis roman-cista do Segundo Impeacuteriordquo ateacute o enfoque lukaacutecsiano de Roberto Schwarzem Um mestre na periferia do capitalismo passando pelo weberiano Ray-mundo Faoro em A piracircmide e o trapeacutezio

A teoria do re1047298exo desenvolvida por Lukaacutecs a partir da sua conversatildeoao marxismo ortodoxo baseia-se no postulado do ldquoexterno que se tornainternordquo ou seja dos componentes sociais que satildeo introjetados pelo escri-tor formando o cerne da sua obra Um dos seus procedimentos baacutesicos eacute a

construccedilatildeo do tipo social que se materializa na personagem ou no narradorTrata-se de um procedimento objetivante que parte do exterior para o co-nhecimento do nuacutecleo interno da personagem

Certas caracteriacutesticas vistas literariamente como forma livre ou vistasexistencialmente em termos de humor aacutecido e dissolvente passam a ser ex-plicadas de modo causal pela condiccedilatildeo econocircmica do narrador-personagemisto eacute pelo fato de Braacutes Cubas ser proprietaacuterio no contexto do BrasilImpeacuterio

A representaccedilatildeo de um tipo ou de uma situaccedilatildeo social localizada e da-

tada acresce nova dimensatildeo ao trabalho narrativo das Memoacuterias poacutestumasEacute a dimensatildeo do observador que se posta no lugar do psicoacutelogo social epassa a discriminar certos traccedilos de comportamento de uma determinadaclasse ou estrato social

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Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

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Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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Considero esse esforccedilo de contextualizaccedilatildeo da obra machadiana umadas conquistas das uacuteltimas deacutecadas da sua fortuna criacutetica Ela nos tem reve-

lado um escritor atento ao cotidiano poliacutetico do Segundo Impeacuterio medianteo estudo minucioso das suas crocircnicas e ateacute mesmo dos seus despachos bu-rocraacuteticos como funcionaacuterio do Ministeacuterio da Agricultura Machado nosaparece agora ao contraacuterio das acusaccedilotildees veementes que lhe lanccedilou o grandeabolicionista negro Joseacute do Patrociacutenio como um liberal democraacutetico dis-creto e ironicamente distanciado mas luacutecido em relaccedilatildeo agraves atrocidades doregime de trabalho escravo

De todo modo o problema do alcance da interpretaccedilatildeo socio-tipoloacutegicaeacute anaacutelogo ao que se pode levantar em relaccedilatildeo agraves outras leituras a formal e

a existencial Eacute necessaacuterio saber precisamente ateacute que ponto caracteriacutesticasinerentes agraves Memoacuterias poacutestumas como a forma livre e o humor aquele senti-mento amargo e aacutespero que as penetra podem ser meramente subordinadasagraves disponibilidades econocircmicas da personagem Braacutes Cubas Temos diantede noacutes uma pessoa com seus momentos de auto-re1047298exatildeo e auto-criacutetica ouapenas um tipo rei1047297cado ao qual soacute caberia o procedimento da saacutetira de cos-tumes Trata-se da apreensatildeo fenomenoloacutegica de um homem que viveu e se

vecirc viver ou de uma alegoria ideoloacutegica Satildeo quali1047297caccedilotildees que se excluem mu-tuamente ou se imbricam dialeticamente Perguntas todas cruciais tendo

em vista que a leitura alegorizante ostensivamente unilateral tende ultima-mente a espalhar-se por toda a obra de Machado reduzindo os narradoresde Dom Casmurro e do Memorial de Aires a pobres fantoches ideoloacutegicos

A criacutetica socioloacutegica weberiana e a de 1047297liaccedilatildeo lukaacutecsiana estatildeo interes-sadas no desvelamento da ideologia que enforma a narrativa A questatildeonatildeo eacute nada faacutecil a comeccedilar pela proacutepria posiccedilatildeo do uacuteltimo Lukaacutecs que naOntologia do ser social nega que se possa atribuir a um autor enquanto in-diviacuteduo uma determinada ldquoideologiardquo (Lukaacutecs 983092983092983093) O termo valeria depreferecircncia para modos de pensar e sentir de classes ou estratos inteiros de

uma dada sociedade interessados em manter ou defender o seu status quoUm escritor quando individualmente considerado pode projetar tendecircn-cias contraditoacuterias de um momento da sua proacutepria sociedade misturandolances de rebeldia com expressotildees de teacutedio ou conformismo notas de saacutetiralocal com lances de humor universalizante Seria provavelmente este o casode Machado de Assis Sabemos por via negativa que as ideologias do pro-gresso correntes no seu tempo o positivismo e o evolucionismo codi1047297cadasnas obras de Comte e de Spencer natildeo soacute natildeo o atraiacuteram como foram objetode saacutetira na 1047297gura daquele 1047297loacutesofo aluado do Humanitismo Quincas Borba

Conveacutem lembrar que positivismo e evolucionismo eram sistemas 1047297losoacute1047297-cos e sob vaacuterios aspectos poliacuteticos difundidos em todo o Ocidente natildeose restringindo evidentemente aos estratos cultos brasileiros O ceticismomachadiano recebia estiacutemulos locais mas transcendia nossas fronteiras

8202019 BOSI Alfredo Rumo Ao Concreto

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983089983092 Luso-Brazilian Review 461

Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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Bosi 983089983093

mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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983089983092 Luso-Brazilian Review 461

Em minha percepccedilatildeo sujeita naturalmente a revisotildees o Machado maduroconservou basicamente os princiacutepios trazidos do liberalismo democraacutetico e

militante da sua juventude evidentes nas crocircnicas dos anos 983089983096983094983088 mas in-fundiu-lhe cadecircncias melancoacutelicas ceacuteticas e pessimistas jaacute expressas nosmoralistas franceses dos seacuteculos 983089983095 e 983089983096 que ele tanto admirava (Pascal LaRochefoucauld Chamfort ) e nos grandes pessimistas do seacuteculo 983089983097 pensoem Leopardi mdash cujo desencanto absoluto coacutesmico e histoacuterico ressuma nodeliacuterio de Braacutes Cubasmdashe em Schopenhauer

O limite da saacutetira local se encontraria na auto-re1047298exatildeo e no ceticismouniversalizante A sua forma estiliacutestica eacute o capricho A sua expressatildeo exis-tencial eacute o humor

Princeton NJ 983095 de outubro de 983090983088983088983096

Notas

983089 Desejo agradecer ao colega e amigo Prof Pedro Meira Monteiro a gentilezado convite para participar de seu curso em Princeton sobre a obra de Machado deAssis Trata-se de uma oportunidade particularmente feliz pois me dedico ao seu

estudo desde os anos setenta quando escrevi meu primeiro ensaio sobre o Memo-rial de Aires ateacute data recente faz dois anos publiquei Braacutes Cubas em trecircs versotildees ehaacute apenas trecircs meses o ensaio ldquoFiguras do narrador machadianordquo Eacute portanto umprivileacutegio poder expor e discutir com leitores latino-americanistas essas minhasuacuteltimas tentativas de interpretaccedilatildeo

983090 Ver em partricular os estudos de Joseacute Guilherme Merquior e de Enylton deSaacute Rego

983091 Procurei desenvolver o toacutepico da interaccedilatildeo narrador-leitor em ldquoFiguras donarrador machadianordquo

983092 O movimento detectado pela sondagem expressiva vai no sentido contraacuterio ecomplementar quer conhecer o modo pelo qual o interno se torna externo

983093 Sobre a presenccedila deste veio moraliste na obra madura de Machado 1047297z algunscomentaacuterios em Machado de Assis O enigma do olhar

Trabalhos citados

Bosi Alfredo Braacutes Cubas em trecircs versotildees Estudos machadianos Satildeo Paulo Com-panhia das Letras 983090983088983088983094mdashmdashmdash ldquoFiguras do narrador machadianordquo Cadernos de Literatura Brasileira

Machado de Assis Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles 983090983088983088983096 983089983090983094ndash983094983089

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mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

Xavier de Maistre Almeida Garrett e Machado de Assis Satildeo Paulo Companhiadas Letras 983090983088983088983095

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mdashmdashmdash Machado de Assis O enigma do olhar Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983097983097Lukaacutecs Gyoumlrgy Ontologia dellrsquoessere sociale II Roma Ed Riuniti 983089983097983096983089

Merquior Joseacute Guilherme ldquoO romance carnavalesco de Machadordquo prefaacutecio agraves Memoacuterias poacutestumas de Braacutes Cubas Satildeo Paulo Aacutetica 983089983097983095983089Meyer Augusto Machado de Assis (983089983097983091983093ndash983089983097983093983096) Apresentaccedilatildeo de Alberto da Costa e

Silva 983092a ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio Academia Brasileira de Letras 983090983088983088983096Rego Enylton de Saacute O calundu e a panaceacuteia Machado de Assis a saacutetira menipeacuteia e

a tradiccedilatildeo luciacircnica Rio de Janeiro Forense 983089983097983096983090Rouanet Seacutergio Paulo Riso e melancolia A forma shadiana em Sterne Diderot

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