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5/9/2018 Bourdieu e Foucault: entre dispositivos e disposi es - slidepdf.com
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XIV Congresso Brasileiro de Sociologia28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro(RJ)Grupo de Trabalho (29): Teoria Sociológica
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Bourdieu e Foucault: entre dispositivos e disposiçõesProf. Dr. Liráucio Girardi Júnior – Faculdade Casper Líbero
Foucault, em seus estudos sobre a arqueologia do saber e,posteriormente, na sua produção de uma genealogia do poder , procurou
entender como os dispositivos (uma rede, um regime de articulação de
elementos discursivos e não-discursivos do mundo social) torna-se capaz de
adquirir força social, aparecendo como um sistema de dispersão de
representações e ações humanas.
A arqueologia do saber e a genealogia do poder fazem parte de um
mesmo projeto que lentamente vai se definindo para Foucault, pois se oprimeiro procedimento busca entender o processo de formação social e
histórica dos discursos, o segundo procura entender como esses discursos
apresentam-se como relações de poder, baseados em regimes de instauração
da verdade e do saber.
“A tarefa do analista do discurso é dupla: o arqueólogo do saber localiza e descreve os discursos como práticas que dispõem ascoisas para o saber (...) e o genealogista do poder mostra aproveniência, a formação da vontade de verdade que tem produzidodiscursos. (...) Os discursos não possuem âmago, não são umconjunto de significações. São séries de acontecimentos que aordem do saber produz e controla. (...) Daí as perguntas sobre comoo discurso funciona, quem o detém, de que lugar se fala, como seusefeitos são produzidos e regulados, serem as armas críticas maiseficientes para reconhecer o tipo de saber/poder que tem por alvo eproduto o indivíduo moderno.” (Araújo, 2004 p. 236-237)
As formações discursivas delimitam domínios, espaços de possíveis,
dispersão de objetos de conhecimento e controle. Um campo discursivo não sedefine pela unidade do objeto ou por um conjunto de noções homogêneas, nem
sequer organiza-se progressivamente.
Os atos de constituição do mundo e de seus sentidos são atos de
violência simbólica (Bourdieu, 2001), produto de relações de poder presentes
na produção de sentido do mundo. O discurso, portanto, é um modo de ação
no mundo, que o cria sob certas condições. Logo, a ordem e o sentido do
mundo objetivam-se socialmente, transformando-se em dispositivos produtores
de relações de saber e poder.
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Encontrar os dispositivos de produção de um enunciado significa
descobrir o seu modo de instituição como uma forma de jogo enunciativo
(Muchail, 1985). Este jogo deve produzir, também, as disposições sociais de
reconhecimento necessárias para sua existência. A relação entre os
dispositivos e as disposições incorporadas pelos agentes sociais nas
interações produzidas no interior desses mesmos dispositivos permitem algum
tipo de articulação entre o pensamento de Foucault e o de Bourdieu.
Um dispositivo é produzido constantemente em um campo de lutas
simbólicas, que pressupõe um discurso produtor de “positividades”. Mas, nesse
caso, é preciso entender que o poder que se inscreve nesse discurso não
delimita apenas uma forma de repressão ou interdição, não se trata, somente,
de uma obrigação, mas de um regime de produção de saberes e controles, um
poder que se apóia nos agentes sociais por ele mesmo investidos, que também
os incitam, induzem e seduzem (Foucault, 1988a, Deleuze, 2000, Eco, 1984).
Esse poder não é propriamente possuído, mas exercido em meio a um campo
de posições e relações estratégicas dispersas pelo mundo social, no que pode
ser chamado de sua capilaridade. Como observa Foucault:
“Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido
não seja concebido como uma propriedade, mas como umaestratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos auma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, a táticas, atécnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma redede relações sempre tensas, sempre em atividade, que, que umprivilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modeloantes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou aconquista que se apodera de um domínio. (...) Esse poder, por outrolado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ouuma proibição, aos que ‘não têm’; ele os investe, passa por eles eatravés deles; apóia-se neles do mesmo modo que eles, em sua luta
contra esse poder, apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele osalcança. (Foucault, 1987 p. 29)
O que se gera a partir da rede de relações produzidas pelos dispositivos
sociais são modos de subjetivação, regimes de luz, modos de reconhecimento,
enfim, meios pelos quais se pode sentir, ver, dizer e agir no mundo social.
Retomando algumas das proposições da Pragmática, é preciso lembrar
que o discurso não se transforma apenas em um processo de representação
das coisas. A linguagem é uma prática (Tedesco In: Queiroz & Cruz, 2007) que
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nos obriga a identificar qual é a posição, o lugar que os interlocutores sempre
devem assumir para serem reconhecidos como o sujeito de um enunciado
(Foucault, 1986).
Um enunciado nunca está isolado. Ele emerge em uma rede enunciativa
ritualmente produzida, em um complexo campo de possíveis no qual adquire
sua força simbólica (Bakhtin, 2000; Bourdieu, 1983,1996a). Por meio dessa
rede e dos gêneros ritualmente exercidos em seus domínios, delimita-se as
fronteiras, as zonas de visibilidade do mundo social. Assim, um acontecimento
discursivo só ocorre como enunciado se estiver imerso em um campo
discursivo no qual circula uma complexa rede de jogos e estratégias
enunciativas. Por isso:
“O enunciado não é a projeção direta, sobre o plano dalinguagem, de uma situação determinada ou de um conjunto derepresentações. (...) Não há enunciado que não suponha outros; nãohá nenhum que não tenha, em torno de si, um campo decoexistências, efeitos de série e de sucessão, uma distribuição defunções e de papéis. Se se pode falar de um enunciado, é namedida em que uma frase (uma proposição) figura em um pontodefinido, com uma posição determinada, em um jogo enunciativo quea extrapola.” (Foucault, 1986 p. 114-115)
É o referencial do dispositivo enunciativo e das disposições que mobiliza
nos interlocutores que é capaz de dar à frase o seu sentido e à proposição
exposta um valor de verdade, uma condição de validade. Ele está inscrito em
um domínio, em suas fronteiras, está imerso em um campo enunciativo no qual
aparece em sua singularidade, com suas margens “povoadas de outros
enunciados”. Deste modo, ele depende, inteiramente, de um campo
enunciativo:
"(...) onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveiscom o passado e que lhe abre um futuro eventual. (...) não háenunciado livre, neutro, independente; mas sempre um enunciadofazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando umpapel no meio de outros, neles se apoiando e deles se distinguindo:ele se integra em um jogo enunciativo, onde tem sua participação,por ligeira e íntima que seja" (Foucault, 1986 p. 114)
A formação discursiva é um campo de dispersão de posições e
modalidades enunciativas, é uma rede de lugares, uma rede de práticas, de
estratégias que dispõem certos enunciados em uma série, que se caracteriza
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pelo uso de determinados procedimentos de intervenção (técnicas de escrita,
métodos de transcrições de enunciados, modos de tradução e métodos de
sistematização das proposições). Ela é o lugar de emergência de um feixe de
relações produtoras de sentido, de uma rede conceitual que se exerce como
um tipo de poder simbólico. Esse feixe de relações cria uma espécie de
"anonimato uniforme" que exerce uma pressão sobre todos os que pretendem
falar em seu interior.
Formações discursivas não são coisas (palavras) que se agrupam, mas
esquemas, regras de organização e dispersão, "maneiras reguladas (e
descritíveis como tais) de utilizar as possibilidades dos discursos" (Foucault,
1986 p. 77). Devido às suas regras de dispersão, nem todos os jogos
discursivos podem ser realizados em dado momento histórico, pois, segundo
Foucault, tudo depende da economia da constelação discursiva encontrada,
esse sistema de desvios e escolhas estratégicas em meio às quais se travam
lutas simbólicas pela existência de uma ordem de “positividades”.
Se em uma formação discursiva produz-se uma nova constelação, isso
significa, também, que ela carrega novas modalidades de exclusão, novas
possibilidades de escolhas, novas associações, aproximações e abandonos, na
delimitação de sua forma e de sua materialidade. O campo enunciativo é
caracterizado como um campo de presença (nó em uma rede de
conhecimentos anteriores), um campo de concomitância (pode ocorrer uma
homologia na estrutura de vários campos - filosófico, teológico e matemático) e
um campo de memória. Bakhtin destaca esse caráter dialógico do enunciado:
“O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira,algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado comum valor (a verdade, o bem, a beleza etc.). Entretanto, qualquer
coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada (alíngua, o fenômeno observado na realidade, o sentimento vivido, opróprio sujeito falante, o que é já concluído em sua visão de mundoetc.) o dado se transfigura no criado. (...) No exame de seu histórico,qualquer problema científico (quer seja tratado de modo autônomo,quer faça parte de um conjunto de pesquisas sobre o problema emquestão) enseja uma confrontação dialógica (de enunciados, deopiniões, de pontos de vista) entre os enunciados de cientistas quepodem nada saber uns dos outros, e nada podiam saber uns dosoutros. O problema comum provocou uma relação dialógica”(Bakhtin, 2000 p. 349e 354)
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A atenção está voltada para a função que o enunciado desempenha nas
formações discursivas. Um enunciado está vinculado a um "referencial", um
campo de possibilidades de aproximação, combinação, nomeação mais ou
menos conhecidas, reconhecidas, impostas ou negadas.
Pois, é a partir dessas observações sobre a produção de uma teoria dos
dispositivos em Foucault que se pretende a sua possível integração a uma
teoria dos campos e das disposições propostas por Bourdieu.
O mundo moderno produziu um complexo processo de autonomização e
dispersão de uma série de esferas de atividades sociais, transformando-as em
um complexo espaço, sobre o qual se instituem campos de forças mais ou
menos dinâmicos e relativamente autônomos. Portanto, um dos momentos
genealógicos do trabalho do cientista social consiste em identificar o campo de
forças, o regime de dispersão, que está presente na gênese de um campo
social, identificar como se produziu em seu interior um processo de depuração
capaz de transformá-lo em uma rede de enunciados, gêneros de discurso,
posições, disposições e rituais de um tipo particular de “constelação” social.
Assim:
“Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que
faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo delinguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair aoabsurdo do arbitrário e do não-motivado, os atos dos produtores e asobras por eles produzidas (...) (Bourdieu, 1989 p. 69)
Os campos depuram-se em torno da crença nos jogos muito particulares
que nos forçam a reconhecê-los, por um lado, mas que nos induzem e
seduzem a participar de sua legitimação. Eles não somente produzem um jogo
social, mas devem produzir e se valer dos dispositivos e disposiçõesadequados às condições de sua existência. Devem produzir não somente a
repressão, mas um tipo particular de encantamento, de Illusio. Cada campo
estabelece certos preços de entrada a todos que nele pretendem ingressar, ou
seja, exige uma mobilização e conversão de certos tipos de capitais (culturais,
econômicos, sociais e simbólicos), que se transformam em um tipo muito
particular de investimento social.
O grande segredo da eficácia simbólica do discurso está no fato de
funcionar como doxa, isto é, como uma verdade evidente e por parecer
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razoável sem ter a razão como princípio. É no universo produzido pela doxa
que o sentido do mundo ganha força, não apenas na forma de representação
das coisas, mas como um modo por meio do qual se pode ser, ver e agir no
mundo, um modo de reconhecimento tácito do lugar a partir do qual se fala e a
partir do qual se escuta, um modo socialmente incorporado de produção e
reconhecimento dos discursos e práticas, uma rede de disposições
incorporadas, denominada habitus.
O habitus adquirido pelas interações sociais no interior dos dispositivos
sócio-históricos funciona como um princípio gerador de práticas e
representações mais ou menos organizadas que não aparecem, jamais, como
uma simples obediência a regras ou orientadas por um tipo de regente
(Bourdieu, 2001). Pode ser associada ao que Foucault chamou, acima, de
“anonimato uniforme”. Elas podem ser identificadas como disposições:
A palavra disposição parece particularmente apropriada para exprimir o que recobre o conceito de habitus (definido como sistema dedisposições):com efeito, ele exprime, em primeiro lugar, o resultadode uma ação organizadora, apresentando então um sentido próximoao de palavras tais como estrutura; designa, por outro lado, umamaneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) e, emparticular, uma predisposição, uma tendência, uma propensão ou
uma inclinação. (Bourdieu, 1983a p. 61)
A técnica social de representação e ação no mundo, obtida pela
incorporação de certos jogos de linguagem, produzidos no interior de diversos
dispositivos sociais, é correspondente a um princípio gerador de improvisações
regradas, por meio do qual, os agentes sociais se reconhecem e se movem em
meio a uma complexa rede de elementos discursivos e não-discursivos nas
quais estão enredados. Esse senso prático da ordem do discurso, das
disposições, que estão no fundamento da doxa, já que: "Aquilo que se sabe
quando ninguém nos interroga, mas que não se sabe mais quando devemos
explicar, é algo sobre o que se deve refletir.(E evidentemente algo sobre o que,
por alguma razão, dificilmente se reflete)." (Wittgenstein, 1989 p. 49)
Essa experiência do mundo social, que se transforma em doxa, define
não somente um regime tácito dos possíveis da fala, mas também as posições
que os sujeitos devem ocupar e as disposições que devem ter para poder falar.
Ela cria as condições sociais necessárias ou reconhecidas para que os
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interlocutores possam falar com autoridade, isto é: delimita espaços e
situações onde objetiva quem pode falar o quê, com quem, em qual
circunstância ou lugar.
As interações sociais só podem sustentar a “objetividade” e a
materialidade do discurso porque são recebidas como formas objetivadas pela
educação, pela socialização no interior de certos dispositivos (e seus
elementos discursivos e não-discursivos). Trata-se de uma violência simbólica
característica das sociedades humanas, uma violência que cria as condições
para o reconhecimento dos enunciados e do sentido da ação social. A
presença das estruturas sociais e dos discursos objetivados nos agentes
sociais não pode ser realizada por uma simples imposição, mas pela produção
e incorporação de esquemas de ação, de pensamento, classificação e fala que
se construíram lentamente nas experiências dos agentes sociais em meio a
certos dispositivos sócio-históricos. Um tipo de investimento.(Bourdieu, 1989,
1997)
O que se produz na experiência desses agentes, desde a infância, são
esquemas de percepção e apreciação, que produz um mundo que se auto-
evidencia em repreensões, anseios, desejos, silêncios, recompensas, prazeres
e posturas. A produção desses esquemas no processo de socialização nunca
é garantido de antemão. No entanto, as disposições adquiridas no processo de
socialização no interior dos regimes de luz e das “positividades” dos
dispositivos sociais são as condições para os exercícios dos jogos sociais. Não
seria, então, essa uma das condições para que se produza uma capilaridade
do poder à qual se refere Foucault?
Os campos sociais produzem regimes de relações de força, de
positividades em meio à qual os agentes sociais apóiam-se, da qual são
investidos e investem seu corpo e sua alma. O tempo é um fator importante
para a produção dessa microfísica do poder dos campos, pois através das lutas
simbólicas produzidas na sua formação (sua genealogia) é possível identificar
e distribuir nesse espaço certas positividades - os pioneiros, os pais fundadores
do campo, as novas gerações, o deslocamento e perda de autonomia do
campo, as regras práticas de reconhecimento, as estratégias e alianças
possíveis, as lutas pela conquista da hegemonia, os efeitos de envelhecimentoetc. (Girardi Jr, 2004)
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Em Regras da Arte, Bourdieu retoma a idéia de "campo de
possibilidades estratégicas" como um espaço de possíveis dentro dos campos.
Indica a grande contribuição de Foucault, ao destacar a relação de
interdependência, de produção de homologias, que podem ser estabelecidas
entre os dispositivos sociais. Os jogos sociais estão, portanto, relacionados às
disposições produzidas nesse espaço de possíveis. No caso da teoria literária,
muitas vezes se ignora que os campos produzem modos de reconhecimento e
acolhimento, processos de avaliação e hierarquização com o qual e contra o
qual se joga. Produzindo a crença no produtor, o campo produz as condições
para a crença na obra e no seu valor:
“Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto
simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja,socialmente instituída com obra de arte por espectadores dotados dadisposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto nãoapenas a produção material da obra, mas também a produção dovalor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor daobra.”(Bourdieu, 1996b p. 259)
Os campos sociais produzem seus rituais de instituição e certas
instâncias de legitimação que se tornam princípios reguladores de sua
existência, transformando-a em uma rede de elementos discursivos e não-
discursivos movidos por um tipo particular de Illusio, essa crença e
encantamento por certos jogos sociais que sustentam a complexa e conflituosa
manutenção do campo.
Por isso, em sua análise sobre a gênese dos campos, Bourdieu observa
que não se deve levar em consideração apenas os produtores (escritores,
compositores, artistas), mas as instituições, os mercados simbólicos em meios
aos quais os bens culturais circulam e recebem avaliação e sentido, mercados
que envolvem editores, críticos, historiadores da arte, colecionadores, rituais de
consagração (premiações, menções etc.). Deve-se levar em consideração as
instâncias administrativas e as relações políticas (atuação de ministérios,
fundações etc.) e as escolas responsáveis pela reprodução dos princípios de
percepção e apreciação desses bens culturais.
Quais são os agentes e instituições que por sua posição no campo são
capazes de produzir estratégias que lhes permitem controlar os princípios de
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avaliação do campo? Quais são as instâncias de legitimação historicamente
construídas para atribuição de valor às obras? Que regime de luz instauram?
Quais são os regimes de tensão que se estabelecem na divisão social dos
agentes no interior dos campos (diretores, editores, escritores, atores, críticos,
profissionais da área técnica, responsáveis pelo “marketing” das obras e pela
sua circulação interna e externa)?
O próprio Bourdieu parece reconhecer um possível ponto de
aproximação entre o espaço dos possíveis sentidos de uma obra que a teoria
dos campos oferece e o campo de possibilidades estratégicas que a teoria da
enunciação encontra nas formações discursivas. Assim:
"De fato, é sem dúvida em Michel Foucault que se encontra a
formulação mais rigorosa dos fundamentos da análise estrutural dasobras culturais. Consciente de que nenhuma obra cultural existe por si mesma, isto é, fora das relações de interdependência que a unema outras obras, ele propõe chamar ‘campo de possibilidadesestratégicas’ o ‘sistema regrado de diferenças e de dispersões’ nointerior do qual cada obra singular se define. [Entretanto] (...) não é possível, como no caso do campo científico, tratar a ordem cultural (a epistéme ) como totalmente independente dos agentes e dasinstituições que a atualizam e levam à existência, e ignorar asconexões sócio-lógicas que acompanham ou sustentam asconsecuções lógicas. (...)A eficácia dos fatores externos, criseseconômicas, transformações técnicas, revoluções políticas ou, muitosimplesmente, demanda social de uma categoria particular decomanditários, de que a história social tradicional busca amanifestação direta nas obras, não pode exercer-se senão por intermédio das transformações da estrutura do campo que essesfatores podem determinar. (Bourdieu, 1996b p.225-232)
Os campos, como o habitus (disposições), aparecem objetivados e todos
os ingressantes pagam um preço de entrada neles, o campo e o habitus
carregam uma tradição, uma herança, um estado de coisas "dissimulado",
tácito, reconhecível aos iniciados que dele se valem como códigos de contato,
uma postura, uma técnica social (discursiva e corporal). Só um trabalho de
anamnese é capaz de revelar as condições sociais de sua instituição como um
verdadeiro dispositivo.
Uma questão importante na análise do campo como um espaço de
posições e um espaço de relações de força relativamente autônomo é a sua
relação com o espaço do consumo, os modos de uso e apropriações a que asobras ou as práticas dos agentes estão sujeitas. Trata-se de uma microfísica
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do poder em que se instituem o autor, a obra e o leitor a partir de certos
dispositivos sociais. Forma-se, assim, um campo de positividades, um espaço
relacional de posições entre os autores e suas obras, entre aqueles que podem
ser reconhecidos como autores e os que não podem, entre os que assumem a
posição de “clássicos” e os que são esquecidos etc. Deste modo:
"Tudo isso significa que não se podem criar na ciência dasobras duas partes, uma consagrada à produção, a outra à recepção.(...) O que a análise da essência esquece são as condições sociaisda produção (ou da invenção) e da reprodução (ou da assimilação)das disposições e dos esquemas classificatórios que sãoempregados na percepção artística.(...) O que é descrito pela análisea-histórica da obra de arte e da experiência estética é, na realidade,uma instituição que, enquanto tal, existe de alguma maneira duas
vezes, nas coisas e nos cérebros. Nas coisas, sob a forma de umcampo artístico, universo social relativamente autônomo que é oproduto de um lento processo de emergência; nos cérebros, sob aforma de disposições que se inventaram no próprio movimento pelaqual se inventava o campo a que estão ajustadas. (...) Essa relaçãode causalidade circular, a da crença e do sagrado, caracteriza todainstituição que pode funcionar apenas se é instituída a um só tempona objetividade de um jogo social e em disposições quepredisponham a entrar no jogo, a interessar-se por ele. (Bourdieu,1996b p.322-324)"
É impossível avaliar uma obra sem avaliar o campo no qual o valor e a
crença na obra e no seu autor são produzidos. A formação desse tipo de
“subjetivação” nos campos sociais faz com que os jogos sociais que geram
objetivem-se como experiência e produzam lentamente as disposições, o
conhecimento e o reconhecimento necessário para que a crença e o interesse
por eles mantenham-se. Esse processo pode ser definido como uma complexa
"dialética de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade”.
Linhas de subjetivação são construídas como disposições que produzem não
apenas proibições e interditos, mas um investimento, a manifestação de um
regime de existência social que se apresenta como razoável - a todos que
tenham a disposição para reconhecê-los - sem que tenha, propriamente, a
razão como guia.
Nesse mesmo caminho, ao identificar a relação entre discurso e o
desejo como formadores dos campos sociais, Bourdieu aproxima-se de
Foucault, por um outro ângulo a partir de sua noção de Illusio:
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"Tendo defendido meu uso da noção de interesse, tentareiagora mostrar como podemos substituí-la por noções mais rigorosascomo a de illusio, investimento ou até libido. (...) illusio, palavra latinaque vem da raiz ludus (jogo), poderia significar estar no jogo, estar envolvido no jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena
ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar.(...)Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazemesquecer como jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que é produto de uma relação de cumplicidade ontológica entreas estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social."(Bourdieu, 1997. p. 139-140)
As disposições estão sendo formadas a partir de modos de ver, sentir e
agir, de saberes e poderes, de estratégias e jogos elaborados por e nas linhas
no “novelo” e no sistema multilinear dos dispositivos.No desenvolvimento de suas pesquisas Foucault, cada vez mais,
observa que o sujeito de um discurso está situado em uma rede discursiva e,
ao mesmo tempo, não-discursiva. A divisão entre discursivo e não-discursivo
que é usada para a identificação da rede que compõe o dispositivo, torna-se
uma questão à qual Foucault deve sempre retornar em suas entrevistas . Uma
de suas formulações mais completas sobre essa questão pode ser encontrada
aqui:
“Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, umconjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposiçõesfilosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são oselementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se podeestabelecer entre estes elementos. (...)[É preciso observar, ainda,que] entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, quetambém podem ser muito diferentes.
Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo deformação que, em determinado momento histórico, teve como funçãoprincipal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, umafunção estratégica dominante. (...) O dispositivo, portanto, estásempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto,ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas queigualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias derelações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadaspor eles.” (Foucault, 1988b pp. 245-246)
Se, no início deste trabalho, foram desenvolvidas algumas observaçõessobre “formações discursivas” e “jogos enunciativos” pode-se perceber, ao
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longo das pesquisas de Foucault, o seu deslocamento para o problema da
genealogia do poder e de seus dispositivos. Essa transição obriga-o a advertir
seus leitores de que suas pesquisas não estão propriamente interessadas em
desenvolver um problema de tipo “lingüístico”, mas a produção de dispositivos,
que articulam relações de poder e saber, nos diversos tipos de regimes de
enunciação. Esses dispositivos estão inseridos em uma microfísica do poder,
de tal modo que:
“O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito ésimplesmente que ele não pesa como uma força que diz não, masque de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber,produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva queatravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir.” (Foucault, 1988b p. 8)Para Deleuze (1990), as metáforas associadas à imagem de um
dispositivo não devem ser a de uma máquina ou de uma “coisa”, mas as de um
novelo, de uma meada, de um sistema multilinear na qual a posição de um
autor e de uma enunciação e dos objetos que submete a um “regime de luz”
deve ser pensada como um regime de formação de vetores. O dispositivo não
é propriamente uma coisa, mas princípios de produção de regimes de luz, de
produção de visibilidade e dizibilidade (Tedesco In: Queiroz & Cruz, 2007),linhas de objetivação - que orientam a produção de um conjunto de
“positividades” e “materialidades” sobre os corpos e sobre o espaço -, linhas de
subjetivação e fratura. Assim:
Os dispositivos têm, então, como componentes linhas devisibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas desubjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que seentrecruzam e se misturam, enquanto umas suscitam, através devariações ou mesmo mutações de disposição. (Deleuze, 1990)
As sociedades modernas produzem dispositivos capazes de organizar
uma vasta “economia” de saber/poder, técnicas, jogos de linguagem, relações
de prazer, estratégias capazes de sustentar uma microfísica do poder de
maneira contínua. Inspirado por Nietzsche, Foucault observa que “a verdade
não existe fora do poder” e que todos nós estamos submetidos a um “regime”
da verdade e a processos de subjetivação.
Não é o sujeito o ponto de partida da eficácia simbólica de um enunciadoparticular, mas a tensão que o dispositivo social produz – ao produzir certos
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regimes de visibilidade e dizibilidade - com seus ritos de instituição e as
instâncias de legitimação de saberes e poderes.
Foucault não teme efetuar deslocamentos em suas teorias, hesita, muda
de direção, reavalia posições, produz conscientemente um discurso dialógico.
O que se constata na análise de sua obra, de suas palestras e entrevistas é o
movimento de uma arqueologia do saber (centrada nas formações discursivas)
para uma genealogia do poder (que pressupõe, também, as relações não-
discursivas). As questões levantadas nessa trajetória passam a ser articuladas
na análise dos dispositivos, uma rede de regimes de enunciação, um sistema
multilinear em que se formam discursos, instituições, disciplinas, organizações
arquitetônicas, proposições filosóficas etc.
Nas grandes questões que a Sociologia tem pela frente, o século XXI
não estaria anunciando, de algum modo, o desenvolvimento de novos
dispositivos e disposições sociais por meio dos quais seria possível ao
pesquisador produzir uma “peça para a genealogia da alma” pós ou hiper-
moderna ? Não é isso que anuncia Deleuze (2000), na sua leitura dos
dispositivos de Foucault, ao nos falar das sociedades de controle?
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