30
Isabel Abecassis Empis Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves

Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

  • Upload
    lethuy

  • View
    214

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

Isabel Abecassis Empis

Cada Um Vê o Que Quer…

Num Molho de Couves

Page 2: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 3: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

7

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Dr. Carlos Lacerda, médico psiquiatra, pela quali-dade e humanidade da sua colaboração profissional assídua.

Agradeço ao Prof. Doutor Carlos Amaral Dias, médico psiquia-tra e psicanalista, o prefácio deste livro e as suas simpáticas e esti-mulantes palavras.

Agradeço à Drª. Paula Trigo da Rosa, psicóloga clínica e psica-nalista, minha colega de consultório, pela sua disponibilidade incon-dicional para comentar os meus textos.

Agradeço à Dr.ª Teresa Vasconcelos, psicóloga clínica e psico-terapeuta, e à Dr.ª Maria Empis, arqueóloga e tradutora, pelas suas competências e entusiasmo ao reverem, sugerirem e organizarem os textos.

Agradeço à Isabel Arantes Pedroso, artista plástica, pela qua-lidade da sua colaboração nos vários projectos que tenho vindo a desenvolver.

Agradeço à Maria João Lourenço, editora da Oficina do Livro, pelos seus comentários e sugestões, bem como pela sua paciência, continuando sempre a apostar em mim.

Com todos eles, espero poder continuar a aprender.

Page 4: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 5: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

9

Prefácio

A obra de Isabel Empis, que o leitor terá ocasião de percorrer, dá conta, como aliás a própria autora afirma, do exercício da prática clínica, quer como psicoterapeuta e psicanalista, bem como do modo como é «pensado» o labor quotidiano de quem exerce psicanálise.

Uma das virtudes maiores do trabalho que tenho a honra de apresentar é a coragem com que Isabel Empis sai a terreiro, sem medo dos confrontos inevitáveis que a sua forma de trabalhar poderá des-pertar em muitos colegas e sobretudo na ortodoxia psicanalítica.

A autora demarca-se de uma visão genético-desresponsabili-zante. Com isto quer dizer que o repuxamento do passado ou das figuras parentais não pode, nem deve, fazer qualquer espécie de sen-tido como explicação frequentemente desculpabilizante para as pro-blemáticas actuais dos pacientes. Bem pelo contrário, o que se torna mais óbvio na leitura de cada caso que nos é apresentado é a força e é a qualidade da relação interpessoal.

Isabel Empis não deixa que o seu trabalho fique aprisionado pela história passada de quem a procura. Não há nela uma visão histórica, mas uma historicidade permanente. O passado é presente e do presente o sujeito tem ele próprio de encontrar instrumentos para poder responsabilizar-se pelo seu próprio destino.

Sair a terreiro, a favor da responsabilização, é encontrar o étimo da própria palavra. É que responsabilidade significa, nem mais nem menos, que capacidade para dar resposta a, e é essa capacidade

Page 6: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

isabel abecassis empis

10

que povoa as intervenções e a forma de estar na clínica, tal como a autora a propõe.

Poder-se-á dizer que Isabel Empis é mais prometaica que lute-rana. Por outras palavras, mais do que o pendor explicativo, o que lhe interessa é «roubar o fogo aos deuses», nem que estes deuses se chamem objectos parentais ou sobretudo objectos parentais.

O corpo teórico da obra não se enquadra por isso em qualquer modelo «tradicional» da psicanálise, ou mesmo em qualquer teoria de base. A haver, é a ênfase posta na relação interpessoal ou, melhor, na relação bipessoal (terapeuta-paciente) que sustenta as palavras do primeiro. É controverso? É controverso. Abala convicções pré-for-madas? Abala. Mas quanto a isso a autora é apologética. Não se esconde, nem traveste os seus pontos de vista nem os seus propósi-tos. É que para além da clínica que emprenha todo o livro há tam-bém a assunção de uma controvérsia e de um desacordo aberto com o discurso oficial da psicanálise. Diga-se aliás que a autora se apro-xima de uma forma idiossincrática das interrogações que atraves-sam o que hoje se designa por crise da psicanálise.

Latente às palavras, a denúncia é de outra ordem. Não há crise da psicanálise, há crise na psicanálise e na prática psicanalítica.

Muitas vezes ao ler o texto, sobressaltei-me. Mas o que pode parecer uma desvantagem é, de facto, uma vantagem.

Quantas vezes me terei sobressaltado nos últimos anos ao ler alguns trabalhos psicanalíticos? Quantas vezes pude sentir que o meu desacordo não era uma catástrofe mas, bem pelo contrário, um acontecimento? Poucas. Só este simples facto me faria agradecer à Isabel esta obra.

Para terminar, gostaria de dizer que a coragem tem sempre um preço. A individualidade, que quase sempre é irmã gémea da cora-gem, também o tem. É dessa individualidade e dessa coragem que as palavras escritas nos dão conta.

Penso que os pacientes que tiveram, e têm, ocasião de privar com a autora terão beneficiado muitíssimo com isso. Afinal, a psica-

Page 7: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

11

Prefácio

nálise não é só feita de palavras, é feita de afectos, de emoções, de relação. É que sem isso, para parafrasear Santo Agostinho, palavras são apenas palavras, ou seja, o som e o ruído das palavras. Falar é outra coisa.

Carlos Amaral Dias

Page 8: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 9: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

13

Preâmbulo

Os percursos psicoterapêuticos que inspiram as histórias que descrevo foram usados com o conhecimento e a anuência das pes-soas aqui retratadas.

Há um sentimento de solidariedade com o próximo no agrado que muitos manifestaram em «servir» de exemplo naquilo que encontraram de renovador dentro de si.

Há também um sentimento de ternura e gratidão que nos liga e que foi reforçado pela ousadia e possibilidade de fazer este livro em conjunto, no fundo.

A todos manifesto o meu mais profundo respeito e reconheci-mento por esta colaboração e, ainda, antes de tudo, por me terem dado o seu receber.

Como é evidente, todos os dados destas dezoito pessoas de que falo foram suficientemente alterados, e os textos, na sua maio-ria e sempre que possível, submetidos à leitura de cada um, de modo a respeitar ao máximo a privacidade destes meus queridos colaboradores.

Page 10: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 11: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

15

Dedicatória

Dedico este livro à minha mãe e também a todos aqueles que me têm procurado e procuram para encontrarem dentro deles o melhor de si.

Page 12: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 13: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

17

Nota introdutória

Os oito primeiros capítulos dizem respeito a pessoas cujo caso designei por «evoluções mais curtas» em relação ao tempo de dura-ção do seu percurso psicoterapêutico comigo, e em comparação com os outros dez casos da segunda parte, que designei por «evoluções mais longas».

O tempo do inconsciente não é o tempo da nossa realidade con-creta. Esta distinção entre a primeira e a segunda parte ajuda a demonstrar que não há relação directa entre o grau de «gravidade» psicopatológica de uma pessoa e o tempo «concreto» que demora a resolver-se; tudo dependerá das características e das variáveis do caminho relacional a dois que se percorre.

O «Poder do querer», que usei como título para os casos de menor duração, esclarece um equívoco que poderá advir do célebre aforismo «querer é poder». De facto, aqui trabalha-se o percurso que vai até esta realidade, e que é, de resto, a base de qualquer trans-formação, a saber: o conseguir chegar ao «poder querer» (àquele conseguir voltar a desejar, tão comprometido em certos estados de depressão).

Na segunda parte, que intitulei «A Força do Crer», e que diz respeito a casos de psicoterapias de maior duração, remeto-me para a capacidade de continuar a acreditar na possibilidade de uma transformação que tarda em produzir-se. Aqui o factor «acreditar» é fundamental para que neste percurso mais longo não se instale o desânimo.

Page 14: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 15: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

19

Índice

Prefácio ......................................................................................................... 9

Preâmbulo ..................................................................................................... 13

Dedicatória .................................................................................................... 15

Nota introdutória .......................................................................................... 17

Introdução ..................................................................................................... 21

Primeira parte:«O poder do querer»

Evoluções mais curtas ................................................................................. 27

1 – A escolha da saúde ................................................................................ 29

2 – Para sair «daí» não é preciso sair da «vida» .......................................... 39

3 – A vida é luz, é cor, é som, é flor, é movimento! ..................................... 47

4 – Pior… e melhor é impossível! ................................................................ 59

5 – Há bens que vêm por mal ..................................................................... 69

6 – As coisas que eu já nem sabia que sabia ................................................ 77

7 – Nada se perde... Tudo se transforma! .................................................... 85

8 – Afinal o patinho feio era bonito! ........................................................... 95

Segunda parte:«A força do crer»

Evoluções mais longas ................................................................................ 111

1 – Querer é mesmo poder .......................................................................... 113

2 – Agora já sei como me quero chamar ..................................................... 125

3 – As máscaras! ......................................................................................... 137

4 – As últimas braçadas .............................................................................. 149

5 – «Um psiquiatra que deixa a tristeza existir» ........................................ 159

Page 16: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

isabel abecassis empis

20

6 – Quem tem medo, compra… uma boa psicoterapia! (no caso de o cão não chegar) ................................................................ 173

7 – «Um flirt com a angústia» ................................................................... 183

8 – Eu não sou a minha zanga .................................................................. 193

9 – E quem não vai à guerra, não dá e leva? .............................................. 205

10 – Ainda fomos a tempo .......................................................................... 215

Conclusão ...................................................................................................... 231

Page 17: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

21

Introdução

«Rui, até parece mal dar-te estas folhas de couve assim, neste saco de plástico...»«Tita! Isso para mim é um ramo de flores!»

Assim como o Rui transforma um molho de couves num ramo de flores, também muitos técnicos ditos de saúde podem transfor-mar a harmonia de um ser humano num molho de brócolos. Através de interpretações, teorias, silêncios, classificações, é possível incor-rer-se em atitudes precipitadas que assustam a pessoa queixosa, em vez de responder à sua necessidade de ser compreendida, reconfor-tada e acalmada nos seus temores.

Neste livro apresento dezoito casos da minha prática clínica ao longo de trinta anos no meu trabalho em psicoterapia e em psicaná-lise. Todos têm em comum o facto de terem consultado alguém espe-rando sentir-se melhor, compreendidos, e todos se sentiram ou na mesma ou pior.

São pessoas insatisfeitas, algumas sentem-se desequilibradas ou amedrontadas, outras sentem-se numa espécie de segurança explica-tiva sobre o seu estado, mas com vontade de mudar, e outras ainda sentem-se mantidas por um rótulo psicopatológico e meio anestesia-das por medicação.

A psicanálise (processo que deverá levar um ser humano a reatar consigo próprio) pode correr o risco de se transformar em «explica-nálise» (processo que levará um ser humano a afastar-se de si pró-prio, através de clichés explicativos e desresponsabilizantes). É então

Page 18: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

isabel abecassis empis

22

o reino do «porque o pai...», «porque a infância...», «porque o namo-rado…», «porque o vizinho...», «porque os comunistas...», «porque os fascistas...», «porque o Sporting!!...». Assim ameaçadas e impo-tentes, estas pessoas procuram um novo psi, um pouco inseguras, sem saber bem se vale a pena. Algumas com uma «passagem» por um psi, outras, mesmo, com várias «passagens». Em certos casos, uma abordagem deste género pode resultar na desresponsabilização da pessoa pelo que é, uma vez que ela se sente compelida a ser ape-nas um produto do que «lhe fizeram».

É, afinal, na descrição das suas queixas e evoluções que o leitor ficará a entender melhor o que eu pretendo anunciar (uma vez que anunciar é sempre mais útil que a estéril denúncia): uma abordagem mais humana, em que o que se valoriza é a relação que se vai estabe-lecendo entre paciente e psicoterapeuta, porque é nela e só nela (rela-ção) que as trocas são catalisadoras das necessárias transformações ao reencontro dos recursos internos de se dar saúde e alegria, vol-tando a assumir o poder sobre si próprio e a sua auto-estima.

Um certo tipo de abordagem psicoterapêutica pode fazer des-moronar, nos melhores casos, ou destruir (às vezes para sempre), o encontro da pessoa consigo própria. O «doente», sem saber que está a ser vítima de uma atitude terapêutica, talvez desadequada ao seu caso, pode substituir o direito às suas emoções, às suas vivências, ao fluir dos seus afectos, às suas esperanças, aos seus projectos, à sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores, por uma carapaça estruturada mas estagnadora, com que se julga (sem se dar conta de que o faz) a si próprio e ao mundo. Essa carapaça, invisível para si próprio, pode, de resto, acabar por ir substituindo a sua pró-pria personalidade e identidade.

São aquilo a que Winnicott, conhecido psicanalista inglês, ver-dadeiro iluminado da evolução interior, chamou «falso self». Podem ser pessoas que passam ao lado da essência da vida, que não sofrem paixões, não sentem amores, evitam desilusões. Podem ter então ten-dência para aderirem ao «clube de pensamento» do terapeuta, onde

Page 19: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

cada um vê o que quer… num molho de couves

23

os seus membros parecem descrever como «certezas», reclamadas como «científicas», certas opiniões, por acharem que são donos de uma verdade, como seres «esclarecidos» que se consideram, e sem nunca duvidarem do que afirmam e explicam.

Ao contrário, na perspectiva da dita psicanálise da relação, que eu e vários colegas praticamos – movimento de verdadeira revolução na psicanálise ou psicoterapia dita ortodoxa (e que tem como respei-tado pioneiro em Portugal o Dr. António Coimbra de Matos, que recentemente criou uma nova sociedade de psicanálise com o Profes-sor Carlos Amaral Dias) –, tudo nasce, cresce e se desenvolve «na» e «pela» relação com o terapeuta.

Trocam-se emoções, trocam-se afectos, apalpam-se sentires, não se inventam patologias aos doentes por um jogo verbal e «opiniões» teóricas, não se classificam pessoas, nem sintomas, nem comporta-mentos. Empatiza-se, e é aí que se vai conseguindo a confiança, a nova relação, que permitirá ao analisando reconstruir também uma nova relação com as «suas coisas» e a pouco e pouco com o mundo.

Inventar ou fabricar dependências é pernicioso. Nesta aborda-gem, pelo contrário, é anunciado ao paciente desde logo (e sempre que este tender a querer ficar dependente do psi) que isso estará ligado a um hábito de pensar que a «salvação» ou a «culpa» vem de fora, mas que ele tem dentro dele com que ir transformando essa ideia. Nunca o analista aqui se «arma» em salvador que sabe mais sobre a pessoa do que ela própria. Ao antigo clima a que chamarei «suspeita psico-patológica», e que define a atmosfera que o técnico induz na psicaná-lise ortodoxa, sucede um novo clima de «suspeita», por assim dizer, mas desta vez ela incide sobre as capacidades que o paciente tem de se fazer bem e de se dar saúde, e que ainda não utilizou.

O analista é um companheiro de uma «viagem» em que, na aliança terapêutica que se vai fortificando, não é necessária sequer a amizade ou admiração do paciente, mas sim a sua intimidade e cumplicidade para que possam ambos «apaixonar-se» pela mesma coisa: o renascimento do paciente.

Page 20: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

isabel abecassis empis

24

É este o objectivo de uma psicoterapia, de uma psicanálise honesta e eficiente.

A eficiência provém da intimidade, a não confundir com a pseu-do-eficiência que vem da aderência ao «clube de pensamento» do psicoterapeuta, onde este permanecerá sempre idealizado porque é «aquele que sabe mais...».

São processos ditos psicoterapêuticos, onde as tomadas de cons-ciência que levam ao autoconhecimento são substituídas pelas tais explicações, opiniões, raciocínios, interpretações precoces, enfim, descrições de alter-ego que podem levar uma pessoa a já só se saber explicar, em vez de simplesmente poder viver, afastando-se assim de si própria.

Concluindo: a verdade é que não há nada para «explicar». Ape-nas um percurso a dois para percorrer, onde a dita ciência psicanalí-tica depende de uma arte: a arte da relação.

Se hoje vos falo disto à vontade, não é por me sentir mais ou melhor que ninguém; quantas pessoas não terei eu também querido ajudar sem conseguir? Mas sinto este livro importante e urgente, porque recebo dezenas de pessoas nestas condições de aflição e, algumas, há anos, a marcar passo na vida, umas com a obsessão recorrente: «Sinto-me bem, mas sou doente porque me foi atribuí-do um título…» ou «aquele psicólogo achou-me esquisita com a tal interpretação que me atravessou...», ou ainda «será que vou mesmo ter que tomar estes remédios para sempre?».

O segundo motivo pelo qual me sinto moralmente autorizada e impelida a escrever aquilo que, espero, seja uma contribuição para a protecção daqueles que cada vez em maior número precisam de recorrer a nós, psicoterapeutas, é porque eu, asseguro-vos, teria precisado de ler este livro bem cedo na minha vida, naquela altura em que fiz uma psicanálise dita «freudiana ortodoxa». Vi-me con-frontada com explicações e interpretações pormenorizadas sobre todos os meus sonhos, discursos, comportamentos, projectos, dese-jos, aspirações... Embora estas vivências me tenham tirado a ale-

Page 21: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

cada um vê o que quer… num molho de couves

25

gria, a espontaneidade, a poesia e a arte de viver durante anos, sem dúvida que as reencontrei redobradas mais tarde. Foi assim como a liberdade para quem sofreu um cativeiro (mas se eu pudesse ter escolhido, ou sido informada, nunca teria querido entrar para esse cativeiro).

Falaram-me muito de agressão, de agressividade, de trauma-tismo... o objectivo último de uma travessia psicoterapêutica, sei eu agora, é com certeza chegar ao amor e não parar pela descoberta da agressividade. Responsabilizar-se pelo que em nós há de agres-sivo, em vez de mascarar isso com «bondadezinha neurótica», «uma pseudo-aceitação mascarada de submissão», uma «passividade paralisadora», ou sintomas físicos somatizados, é uma coisa. Mas outra coisa é parar por aí e agir constantemente a agressividade, culpando os pais (quando ainda cá estão) ou justificando compor-tamentos atribuindo-lhes responsabilidade, ou arvorando compor-tamentos de pisar o próximo e de os meios justificarem os fins, e tudo isto porque: «encontrei, enfim, a minha combatividade». Penso que o objectivo último de uma travessia psicoterapêutica-psicanalí-tica, ou mesmo só da simples travessia desta vida, é conseguir expe-rimentar cada vez melhor o perdão, a aceitação, a criatividade e o amor, transformando, assim, a tal agressividade identificada.

No decurso dessa longa psicanálise freudiana dita clássica (cinco vezes por semana, durante cinco anos e meio), cheguei a escrever uma carta à minha mãe (a dita «culpada de tudo»!), a cortar rela-ções com ela. Tive sorte: uma crise de angústia e uma indecifrável tristeza, com lágrimas e saudades dela, fizeram-me telefonar-lhe de imediato (estava eu na Suíça) a pedir que não lesse a carta. Disse-me sempre que nunca a tinha recebido. Bem haja, mãe!

A si dedico este livro, com todo o meu amor, agradecendo-lhe do fundo do meu coração – e também em nome de todos quantos a vida me tem proporcionado ajudar, agradecendo, repito, a mãe ter «estado lá», da forma que pôde, nesses momentos difíceis. Foi, tam-bém, graças a isso que aprendi a fazer diferente.

Page 22: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 23: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

primeira parte:

«O poder do querer»

evoluções mais curtas

Page 24: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,
Page 25: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

29

1

A escolha da saúde

«A mãe esteve sempre lá!»

Linda Maria. Personalidade carismática. Pessoa atenta, gene-rosa, encantadora. No entanto, fechada em círculos viciosos de auto--sabotagem, de uma certa destruição de si própria, direi mesmo, num desafio permanente à sua própria sobrevivência física.

Casada há muitos anos, três filhos, jovens adultos, e um marido médico fisiatra e dedicado à reabilitação física de casos complica-dos, ele próprio de qualidade profissional e humana reconhecidas.

Na vida desta mulher, estava tudo tão bem… e ela tão mal! A Maria chorou muito, muito mesmo. Esteve talvez uns três meses a chorar… Falava de saudades, de nostalgia do passado, de tudo o que perdera – uma carreira profissional, por exemplo, porque escolhera ficar, como dizia, «de dondoca» a tratar dos filhos.

O mais velho partiu para viver em Itália, a filha do meio casou--se. O mais novo ficara ainda em casa, estudante, com amigos e ale-gria de viver; contudo, a mãe mal o vê. Os cinquentas a chegar e o balanço de uma vida – que sente estéril – a fazer-se. Mas o que mais a admirava é que dantes não era assim. Onde estava a sua alegria de viver? Onde estava aquela Maria que adorava as viagens com o marido, os congressos em que interagia com simplicidade mas com entrega, os programas com as pessoas que conhecera?

Page 26: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

isabel abecassis empis

30

«Sim, a minha auto-estima chegou a zeros – acho que está mesmo graus negativos abaixo de zero! Eu surpreendo-me a mim própria e não me reconheço!»

Encaminhei, de início, a Maria para um colega psiquiatra. Dou graças a Deus por nunca ter tido problemas graves com doentes, e penso que isso se deve em parte a eu não correr riscos. Não sinto ter o direito, de facto, de correr riscos pelo outro – isto é, sempre que tenho alguma dúvida, por pequena que seja, encaminho a pessoa que me consulta para a medicina, escolhendo, escusado será dizer, cuidadosamente, os profissionais com quem interajo.

A Maria diz-me então que tem uma doença crónica que carece de medicação que desleixou há cerca de oito anos. O que a admira é que a morte da mãe há dez anos foi por ela vivida como um pro-cesso de luto normal. Tristeza profunda, mas seguida de aceitação tranquila. Porquê então dois anos depois este reboliço? Eu não tinha resposta nenhuma nesse momento para dar à Maria. E repito aqui, em tom de alerta assumido totalmente por mim, que é importante compreender, empatizar, mas, sobretudo, não cair nunca na ten-tação de fazer «explicanálise», desatando a dar «ideias e explica-ções» sobre a vida, sintomas, razões para certos comportamentos… numa palavra, fazer «pseudoterapia» só porque não nos consegui-mos calar e admitir de vez que «só o próprio sabe o que se passa» e que antes de ele lá chegar não podemos inventar coisas. O que é ainda mais grave é podermos estar a inventar sem saber que o esta-mos a fazer – aí então é a desgraça total, e desgraçada da saúde daquele que nos procurou e paga (em dinheiro, em tempo, em espe-rança…) para se encontrar, para reencontrar a sua ordem interna, e não – não mesmo – as nossas ideias inteligentes (mas não inteligí-veis para a sua pessoa…) sobre os «seus assuntos».

Aprendi cedo com os meus formadores que a primeiríssima coisa que um técnico de saúde mental precisa de fazer é «curar-se da necessidade de curar». Não curamos ninguém: as pessoas que nos procuram é que poderão «curar-se», se nós não as impedir-

Page 27: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

cada um vê o que quer… num molho de couves

31

mos (com falsa terapia) e conseguirmos estabelecer com elas a rela-ção necessária para que o seu próprio processo se possa desenrolar, acompanhadas, claro, por nós, durante um tempo, até que tomem conta do seu próprio processo interior reencontrado – e que não encontrem «as nossas ideias e frases», em vez do seu processo dinâ-mico interno.

A veemência com que me estou a exprimir encontra a sua parti-cular razão de ser numa sessão, que não esquecerei jamais, e que vos passo a contar na íntegra. A Maria foi então consultar um psiquia-tra, que passou a segui-la mensalmente, articulado comigo (falamos de resto semanalmente sobre todos os casos que temos em comum). Havia um problema de abuso de álcool, sem ser propriamente um alcoolismo declarado. Era mais um comportamento reactivo que surgiu nos tais dois anos depois da morte da sua mãe.

Exigi também, como condição para continuar a segui-la, que fosse ao seu médico de família, a quem não recorrera nos últimos cinco anos, tendo preferido ignorar a sua doença crónica. A inges-tão de álcool era de resto uma das principais contra-indicações para esta sua condição física. Embora aderindo a este acompanhamento médico, psiquiátrico e psicoterapêutico, as coisas não estavam a evo-luir tanto como eu esperaria. A tristeza e alguma «desistência», bem como o álcool, continuavam muito presentes.

Foram meses de sessões penosas, em que, apesar de a Maria nunca faltar e de estar a crescer a simpatia e a empatia entre nós, eu não sentia aquele fluir relacional que ambas desejávamos e que depende mais de um «ir acontecendo» do que de uma decisão racio-nal, como é evidente. O «amor» acontece, não se decide.

O papel receptivo do analista é muito importante. Tem um efeito de «contentor» dos conteúdos, eventualmente assustadores e proibidos, vivências antigas. Mas embora a paciência seja uma vir-tude que se vai desenvolvendo nesta profissão, é também importante não se ser cúmplice de algum adiar de movimentos dinamizadores internos. Confesso que o tempo de espera que algo se passasse já me

Page 28: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

isabel abecassis empis

32

estava a inquietar. Não me apetecia «adormecer a dois», mas não via ainda nitidamente qual a «pedra a deitar para o charco».

Resolvo então um dia dizer-lhe: «É como se a Maria, apesar de querer vir ter comigo, se tivesse instalado aqui numa atmosfera de alguma “chatice” parecida com o que diz ser aquilo em que a sua vida se tornou. Não acredito que, dada a sua qualidade como mãe, com as trocas vivas que me descreveu na sua maternidade – por exemplo – e o amor e atenção que descreve da parte do seu marido, a sua vida tenha sido sempre esta semiestagnação de que se queixa e que repete aqui comigo. E isto apesar de me dizer que quer tanto mudar alguma coisa. O que se passa mesmo, Maria?»

Depois de uns longos minutos de silêncio, e como se se tratasse de mais uma daquelas banalidades tristes pouco dinamizadoras que a Maria trocava comigo há longos meses, ouço-a dizer-me, como se não fosse uma resposta directa à minha intervenção:

«É aquela minha última psicanalista que me disse que achava que a minha mãe me teria preterido, tomando o partido da irmã dela contra mim naquela discussão familiar que houve. Eu nunca tinha pensado nisso. Eu só achei foi que a minha mãe teve pena da irmã, porque ela era muito só, não tinha filhos, e decidiu deixá-la ficar beneficiada no testamento. Mas eu compreendi. Até falei disso com a minha mãe. Mas a psicanalista disse-me “não, não esteja a fugir e a negar que se sentiu traída pela sua mãe!” E sabe, Dr.ª Isa-bel, a mãe já não estava cá para falarmos, e isso faz-me tristeza. Por-que eu nunca tinha pensado nisso dessa maneira.»

«Mas você nunca me disse que já tinha estado antes numa outra psicanalista?!»

«Ah, não…?! Esqueci-me. Foi uns dois anos depois de a minha mãe morrer. Fui lá só à procura de tentar entender para que é que eu teria jeito e onde poderia procurar motivação para recomeçar a estudar ou sair só deste papel de dona de casa e mãe, porque os meus filhos estavam a crescer e a voar. Eu queria uma orientação concreta. Também só lá fui durante uns dois meses, depois desisti

Page 29: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

cada um vê o que quer… num molho de couves

33

porque não encontrei a resposta e não estava a servir para nada. Ela falava pouco!»

Para mim tinha aparecido a peça do puzzle que faltava para saber o que dizer e como avançar, em que direcção ir a fim de aju-dar esta mulher a reencontrar-se, a reatar com a tal alegria perdida de que falava. Não disse nada de especial naquela sessão. Deixei aquilo fazer um caminho em mim, com uma sensação de perplexi-dade, como aquela que se sente às vezes perante uma evidência que estava escondida! Tipo «olha onde o coelhinho da Páscoa foi escon-der o ovo! E eu que não o via, e ele aqui mesmo!».

O importante não era eu ter uma pista e pensar que tinha des-coberto o enigma, mas o porquê de dois anos depois de um luto bem feito aparecer um tal sofrimento e uma autodesvalorização e até autodestruição numa personalidade que nunca tinha atravessado nada de parecido. O importante era, agora, ajudá-la a chegar lá, dentro dela, e dar-lhe a oportunidade de ser ela a dizer-me o que me parecia evidente.

Resolvi ser mais interveniente – comecei a convidar e a abrir espaço para a Maria falar da vivência com a mãe. Começou então a aparecer um material tão vivo, tão diferente da tristeza, o do vazio que era o clima habitual das sessões. Falámos de coisas simples: uns balões numa festa de crianças que a mãe rebentara para a fazer rir. Aquele dia em que a mãe entornou sumo de morango em cima dela própria e que acabou em gargalhada, pois tinha acabado de se vestir para ir a uma festa. Os presentes de Natal que escondiam e compra-vam juntas, para o pai e os irmãos não encontrarem antes do dia 25. Aquele cabeleireiro onde adoravam ir juntas, tratar delas próprias «dos pés à cabeça» quando sobrava um dinheirinho no fim do mês. A coroação da cumplicidade maravilhosa que sempre tivera com a sua mãe é também revelada na abertura que sempre teve com ela acerca de namorados e experiências amorosas.

Nas vésperas do seu casamento partiu numa viagem ao estran-geiro com cinco amigas dela e com a mãe e duas amigas da mãe que

Page 30: Cada Um Vê o Que Quer… Num Molho de Couves - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/cada_um_ve_o_que_quer_num_molho_de_couves... · sua espontaneidade, até mesmo ao sentir dos seus amores,

isabel abecassis empis

34

a conheciam de pequena, num fim-de-semana que não esqueceria nunca. Conta-me a Maria que tinham começado a rir na sexta de manhã até domingo à noite.

Os seus bebés eram sempre partilhados com a sua mãe em har-monia e protecção, bem como o carinho com que compravam as rou-pas de criança juntas. E por aí fora…. E por aí fora. Os dois irmãos mais velhos (dois homens) e o pai sorriam com a ternura da cumpli-cidade delas as duas – pareciam da mesma idade, diziam eles!

Foi este o clima que passou a reinar nas suas sessões, mais coisa menos coisa. Não senti nunca necessidade de lhe fazer a liga-ção entre o que agora partilhávamos e a tristeza que antes reinava. Preferi aguardar, e ia-lhe apenas dizendo conotações positivas do género: «Como é importante e bom ter-se uma cumplicidade com a mãe!» ou ainda «Com uma relação assim com a sua mãe, não é de estranhar que queira ter sido “dondoca”, ser tratada pelas suas “aias” e tratar tão bem os seus filhos.» De facto, a Maria gostara muito de ter criado tão dedicadamente os seus filhos, e também estranhava ter entristecido ao longo dos últimos anos, daquela forma.

Ao dizer-lhe coisas assim, ela podia recuperar a continuidade da relação com a mãe, que se prolongara na relação com a sua própria maternidade. Isto foi uma realidade vivida por ela, afinal. Não era uma «caridadezinha» minha. Era um direito seu. E foi no desenrolar deste processo de consciencialização que aconteceu então um emo-cionante momento que nunca esquecerei e que, sempre que penso nisso, me faz sentir fortes arrepios de emoção.

A Maria entrou como de costume a horas, mas, em vez de se dirigir ao divã para se deitar, abraçou-me longamente, chorando copiosamente e dizendo-me baixinho «você trouxe-me a minha mãe de volta». Senta-se no divã de mão dada comigo e, continuando a chorar, mostra-me na outra mão a caixa do remédio que tinha de tomar e que tinha abandonado anos atrás.