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CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

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100 anos dos contos gauchescos de João Simões Lopes Neto e 122 anos doDiário Popular.

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A literatura nas páginas de jornalDo trotar sobre tantíssimos rumos também nasceu

este projeto. Vários caminhos, inúmeras veredas - algu-mas deliciosas, outras ásperas como a terra seca - foram percorridas paciente e delicadamente antes que estas pá-ginas chegassem, neste instante, agora e futuro, em tuas mãos, leitor e companheiro. E em cada detalhe elas, estas páginas, se oferecem, como a prosa poética de Simões, para ser bebidas, uma a uma, a seu tempo. Porque a litera-tura simoneana tem gosto, ritmo. E saborear as palavras, sem pressa, como quem saboreia o amargo, é permitir-se penetrar, sutilmente, o melhor do texto literário: o eco dele na gente mesmo.

Das 19 histórias que compuseram a primeira edição de Contos Gauchescos*, publicada em 1912 por Echeni-que & C. Editores, doze já haviam sido publicadas en-tre setembro de 1911 e maio de 1912 nas páginas deste Diário Popular (veja lista). Até 2001, essa informação era desconhecida - veio à luz com a dissertação de mes-trado em Letras e Linguística (PUC-RS) da pesquisado-ra Cláudia Rejane Dornelles Antunes, que com afi nco e dedicação vasculhou as edições do Jornal do início do século 20. Por isso, este projeto é mais do que apenas a republicação dos textos: é, na sua mais profunda in-tenção, um resgate, uma reconciliação. Quer-se aqui, sem quaisquer pretensões pessoais mesquinhas, cem anos depois, fazer justiça a João Simões Lopes Neto, o escritor genial.

Este Contos Gauchescos em jornal não surge como uma edição crítica. Por dois motivos: porque o espaço necessá-rio para o arranjo com notas de rodapé seria monstruoso à realidade dos jornais no país; e porque já existem edições críticas exemplares da obra feitas por estudiosos extrema-mente mais qualifi cados. Optou-se por entregar ao leitor o criterioso estabelecimento do texto feito por Aldyr Garcia Schlee, publicado em 2006 e revisto para nova publicação ainda em setembro de 2012, no Instituto João Simões Lo-pes Neto (IJSLN). Aliás, a Schlee fi ca o maior agradecimen-to deste projeto. Sem Schlee, que cedeu despojadamente os arquivos com os contos revistos e uma tarde de moti-vadora conversa literária, não seria possível transitar com segurança pela literatura simoneana. Gracias, mil vezes, gracias!

Indispensável também para este projeto caminhar por trilhas seguras e iluminadas foi o apoio incondicional do presidente do IJSLN, Antônio Carlos Mazza Leite. Obteve-se, dessa maneira, acesso irrestrito à primeira edição de Contos Gauchescos. Impossível não citar a diretora do Diário Popular, Virginia Fetter, o amigo e editor-chefe, Ivan Ro-drigues, e aos colegas da Redação pelo companheirismo e

compreensão nesta jornada. Gracias, mil vezes, gracias! Este Contos Gauchescos, como bem pede nosso tempo

de mil e uma modernidades e para marcar os 122 anos do Jornal comemorados hoje, tem companhia no mundo virtual: o weblivro com os 19 textos está disponível para download gratuito no site do Diário Popular. O desejo é de que as escolas aproveitem este material. E fomentem o prazer pelo gosto da literatura simoneana. Porque a vida - como diria João Guimarães Rosa, certamente um leitor de Simões - também é para ser lida.

Para acompanhar a poesia dos contos, o projeto gráfi co e as ilustrações souberam transitar em tênue limite e respeitar a essência dos textos sem deixar de acrescentar a dose exata de co-criação. Fruto de quatro talentos da editoria de Arte do Diário Popular: Bruno Campelo, Mariana Weber, Pablo Conde e Tadeo Pérez. Gracias, mil vezes, gracias!

No mais, leitor e companheiro, que o sopro criador da fi cção simoneana possa entusiasmar cada vez mais gente a ler. E quem sabe, para alguns, entusiasmar a es-crever. No mais, leitor e companheiro, chega de falação. Porque mais importante do que falar sobre a obra de Simões é - e sempre será - saboreá-la. Letra por letra. Palavra por palavra. Silêncio por silêncio.

Boa leitura!

Pablo Rodrigues, coordenador da Redação Pelotas. Inverno de 2012. Escrito ao som de Milonga de Albornoz (Letra: Jorge Luis

Borges. Música: Vitor Ramil)

* Lendas do Sul seria incorporado às edições de Contos Gau-chescos apenas em 1926.

Os doze contos publicados no Diário Popular

20 de setembro de 1911 - “Duelo de Farrapos”31 de março de 1912 - “No Manantial”4 de abril de 1912 - “Trezentas Onças”7 de abril de 1912 - “O boi velho”11 de abril de 1912 - “Correr eguada”14 de abril de 1912 - “Melancia-Coco Verde”18 de abril de 1912 - “O anjo da Vitória”21 de abril de 1912 - “Os cabelos da china”25 de abril de 1912 - “O mate do João Cardoso”28 de abril de 1912 - “Chasque do Imperador”1º de maio de 1912 - “Jogo do osso”5 de maio de 1912 - “Penar de velhos”

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À memória de meu Pai

Saudade

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PATRÍCIO, apresento-te Blau, o vaqueano. Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso zigue-

zague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana, molhei as mãos no soberbo Uruguai, tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas pla-nícies do Saicã, oscilei entre as águas grandes do Ibicuí; pal-milhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magnífi cas de Tupanciretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos cabo-clos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus...

Saudei a graciosa Sta. Maria, fagueira e tranquila na encosta da serra, emergindo do verde-negro da montanha copada o casario, branco como um fantástico algodoal em explosão de casulos.

Subi aos extremos do Passo Fundo, deambulei para os cumes da Lagoa Vermelha, retrovim para a merencória So-ledade, fl or do deserto, alma risonha no silêncio dos

ecos do mundo; cortei um formigueiro humano na zona co-lonial.

Da digressão longa e demorada, feita em etapas de da-tas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão vivaz e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade.

Vi a colmeia e o curral; vi o pomar e o rebanho; vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cida-des; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desparecimento, guardarão na retina até o último milésimo da luz, a impressão da visão sublimada e consoladora; e o coração, quando faltar ao rit-mo, arfará num último esto para que a raça que se está for-mando aquilate, ame e glorifi que os lugares e os homens de nossos tempos heróicos, pela integração da Pátria comum, agora abençoada na paz. —

E, por circunstâncias de caráter pessoal, decorrentes da amizade e da confi ança, sucedeu que foi meu constante guia e segundo o benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouço de oitenta e oito anos, todos os dentes, vista agu-da e ouvido fi no, mantendo seu aprumo de furriel farroupi-lha, que foi, de Bento Gonçalves, e de marinheiro improvi-

sado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré. Fazia-me ele a impressão de um perene tarumã

verdejante, rijo para o machado e para o raio, e abri-gando dentro do tronco cernoso enxames de abelhas,

nos galhos ninhos de pombas...Genuíno tipo – crioulo – rio-grandense (hoje

tão modifi cado), era Blau o guasca sa-dio, a um tempo leal e ingênuo, im-

pulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infa-tigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacida-de servida e fl oreada pelo vivo e pito-

resco dialeto gauchesco.E, do trotar sobre tantíssimos ru-

mos: das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou, dos povo-

ados que atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lhe veda-

das ao singelo entendimento; do pelo-a-pelo com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida,entre

o Blau – moço, militar – e o Blau – velho, paisano –, fi cou estendida uma longa estrada semeada

de recordações – casos, dizia –, que de vez em quando o vaqueano recontava, como quem es-tende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao

fundo de uma arca.Querido digno velho!Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o.

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Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viaja-va de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.

Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.

Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma re-boleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lom-bilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.

Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira... e fui-me à água que nem capincho!

Debaixo da barranca havia um fundão onde mer-gulhei umas quantas vezes; e sempre puxei umas bra-çadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.

E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei.

Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.

Ah!... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-lhe para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.

Por sinal que uma noite...Mas isso é outra cousa; vamos ao caso.Durante a troteada bem reparei que volta e meia o

cusco parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; – parecia que o bichinho estava

me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco reco-meçar.

Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as – boas tardes! – ao dono da casa, aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!

Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de ga-dos que ia levantar.

E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro...

Eu era mui pobre – e ainda hoje, é como vancê sabe... – estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...

Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:

– Então, patrício? está doente?– Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é

que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama de meu patrão...

– A la fresca!...– É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele

pensar agora de mim!...– É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine, ho-

mem!Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do

cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e torna-va a latir...

Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Pa-

Trezentas onças

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recia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação da roupa nuns galhos de sarandi, e, em cima da pedra a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma úl-tima tragada, antes de entrar na água, e que deixei es-petada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo.

Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remé-dio era um só: tocar a meia-rédea, antes que outros andantes passassem.

Num vu estava a cavalo; e mal isto, o cachorrinho pegou a retouçar, numa alegria, ganindo – Deus me perdoe! – que até parecia fala!

E dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado.Ali logo frenteei com uma comitiva de tropeiros,

com grande cavalhada por diante, e que por certo vi-nha tomar pouso na estância. Na cruzada nos tocamos todos na aba do sombreiro; uns quantos vinham de ba-landrau enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua.

Amaguei o corpo e penicando de esporas, toquei a galope largo.

O cachorrinho ia ganiçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida.

A estrada estendia-se deserta; à esquerda os cam-pos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradou-ros da noite; à direita, o sol muito baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.

Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe – entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro – alvejava a brancura de um joão-grande, vo-ando, sereno, quase sem mover as asas, como numa despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...

Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio gran-de, em tudo.

O zaino era um pingaço de lei; e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polva-deira rasteira que as patas do flete levantavam.

E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogue-ado, como de incêndio num pajonal; depois o lusco-fusco; depois cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas... só estrelas...

O zaino atirava o freio e gemia no compasso do ga-

lope, comendo caminho. Bem por cima de minha cabe-ça as Três-Marias tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar... Lembrei-me dos meus fi-lhinhos, que as estavam vendo, talvez; lembrei-me de minha mãe, de meu pai, que também as viram, quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias, as Três-Marias.

Amigo! Vancê é moço, passa a sua vida rindo... Deus o conserve!... sem saber nunca como é pesada a triste-za dos campos quando o coração pena!...

Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, su-biam... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempi-nho... e ainda quentes, no arranco do galope, lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d’água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!...

Por entre as minhas lágrimas, como um sol cortan-do um chuvisco, passou-me pela lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:

Quem canta refresca a alma,Cantar adoça o sofrer;Quem canta zomba da morte:Cantar ajuda a viver!...

Mas que cantar, podia eu!...O zaino respirou forte e sentou, trocando a orelha,

farejando no escuro: o bagual tinha reconhecido o lu-gar, estava no passo.

Senti o cachorrinho respirando, como assoleado. Apeei-me.

Não bulia uma folha; o silêncio, nas sombras do ar-voredo, metia respeito... que medo, não, que não en-tra em peito de gaúcho.

Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pe-dregulho; vaga-lumes retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado; tenteei os galhos do sarandi; achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas; corri as mãos por todos os lados, mais pra cá, mais pra lá...; – nada ! nada!

Então, senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!... roubado!... Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual! Ladrão, ladrão, é que era!...

E logo uma tenção má entrou-me nos miolos: eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição.

É; era o que eu devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!

Tirei a pistola do cinto; amartilhei o gatilho... ben-zi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e frio, car-

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regado de bala...

Ah! patrício! Deus existe!... No refilão daquele tormento, olhei para diante e

vi... as Três-Marias luzindo na água... O cusco encara-pitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo tempo que a can-toria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!...

Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no luzimento daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção...

O cachorrinho tão fi el lembrou-me a amizade de minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança...

Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu, dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!...

E já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar.

E fui pensando. Tinha, por minha culpa, exclusi-vamente por minha culpa, tinha perdido as trezentas onças, uma fortuna para mim. Não sabia como expli-car o sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar das cousas. Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso – tirando umas leiteiras para as crianças e a

junta dos jaguanés lavradores – vender a tropilha dos colorados... e pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta... enfim, havia de se ver o jeito a dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família... isso, não!

E despacito vim subindo a barranca; assim que me sentiu, o zaino escarceou, mastigando o freio.

Desmaneei-o, apresilhei o cabresto; o pingo agar-rou a volta e eu montei, aliviado.

O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância.

Ao dobrar a esquina do cercado, enxerguei luz na casa; a cachorrada saiu logo, acoando. O zaino relin-chou alegremente, sentindo os companheiros; do po-treiro, outros relinchos vieram.

Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo, que se rebolcou, com ganas.

Então fui para dentro: na porta dei o – Louvado seja Jesu Cristo; boa noite! – e entrei, e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos paisa-nos; era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo.

Em cima da mesa a chaleira, e ao lado dela, enros-cada, como uma jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças dentro.

– Louvado seja Jesu Cristo, patrício! Boa noite! En-tonces, que tal le foi de susto?...

E houve uma risada grande, de gente boa.Eu também fiquei-me rindo, olhando para a guaia-

ca e para o guaipeva, arrolhadito aos meus pés...

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...Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... mas, taura, isso era, também!

Quando houve a carreira grande, do picaço do major Terêncio e o tordilho do Nadico (fi lho do Antunes gor-do, um que era rengo), quando houve a carreira, digo, foi que o negro mostrou mesmo pra o que prestava...; mas foi caipora.

Escuite.A Tudinha era a chinoca mais candongueira que ha-

via por aqueles pagos. Um cajetilha da cidade duma vez que a viu botou-lhe uns versos mui lindos – pro caso – que tinha um que dizia que ela era uma

“.................................chinoca airosa, Lindaça como o sol, fresca como uma rosa!...”

E o sujeito quis retouçar, porém ela negou-lhe o estri-bo, porque já trazia mais de quatro pelo beiço, que eram dali, da querência, e aquele tal dos versos era teatino...

Alta e delgada, parecia assim um jerivá ainda novi-nho, quando balança a copa verde tocada de leve por um vento pouco, da tarde. Tinha os pés pequenos e as mãos mui bem torneadas; cabelo cacheado, as sobrancelhas fi -nas, nariz alinhado.

Mas o rebenqueador, o rebenqueador..., eram os olhos!...

Os olhos da Tudinha eram assim a modo olhos de veado-virá, assustado: pretos, grandes, com luz dentro, tímidos e ao mesmo tempo haraganos... pareciam olhos que estavam sempre ouvindo... ouvindo mais, que ven-do...

Face cor de pêssego maduro; os dentes brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios de morocha deviam de ser macios como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju...

E apesar de arisca, era foliona e embuçalava um cris-tão, pelo só falar, tão cativo...

No mais, buenaça, sem entono; e tinha de quê, porque

corria a boca pequena que ela era fi lha do capitão Pereiri-nha, estancieiro, que só ali, nos Guarás, tinha mais de não sei quantas léguas de campo de lei, povoado. O certo é que o posto em que ela morava com a mãe, a sia Firmina, era um mimo; tinha de um tudo: lavoura, boa cacimba, um rodeíto manso; e a Tudinha tinha cavalo amilhado, só do andar dela, e com alguma prata nos preparos.

Parecenças, isso, tinha, e não pouco, com a gente do capitão...

O velho, às vezes, ia por lá, sestear, tomar um chimar-rão...

Pois para a carreira essa, tinha acudido um povaréu imenso.

E ela veio, também, com a velha. Velha, é um dizer, porque a sia Firmina ainda fazia um fachadão...

E deu o caso que os quatro embeiçados também vie-ram, e um, o mais de todos, era o Nadico.

E veja vancê: sem ninguém esperar, também apare-ceu o negro Bonifácio.

É assim que o diabo as arma... Escuite: O negro não vinha por ela, não; antes mais por far-

rear, jogar e beber: ele era um perdidaço pela cachaça e pelo truco e pela taba.

E bem montado, vinha, num bagual lobuno rabicano, de machinhos altos, peito de pomba e orelhas fi nas, de tesoura; mui bem tosado a meio cogotilho, e de cola ata-da, em três tranças, no alto, onde canta o galo!...

E na garupa, mui refestelada, trazia uma chirua, com ar de querendona...

Eta! negro pachola!De chapéu de aba larga, botado no cocuruto da cabe-

ça e preso num barbicacho de borlas morrudas, passado pelo nariz; no pescoço um lenço colorado, com o nó re-publicano; na cintura um tirador de couro de lontra de-

O negro Bonifácio

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bruado de tafetá azul e mais cheio de cortados do que manchas tem um boi salino!

E na cintura, atravessado com entono, um facão de três palmos, de conta.

Na pabulagem, andava sozinho: quando falava, era alto e grosso e sem olhar para ninguém.

Era um governo, o negro!

Ora bem; depois de se mostrar um pouco, o negro apeou a chirua e já meio entropigaitado começou a pas-torejar a Tudinha... e tirando-se dos seus cuidados en-costou o seu cavalo rente no dela e aí no mais, sem um – Deus te salve! – sacudiu-lhe um envite para uma paradita na carreira grande. A piguancha relanceou os olhos de veado assustado e não se deu por achada; ele repetiu o convite da aposta e ela então – depois explicou – de puro medo aceitou, devendo ganhar uma libra de doces, se ga-nhasse o tordilho. O tordilho era o do Nadico.

Ficou fechado o trato.O negro – era ginetaço! – deu de rédea no lobuno, que

virou direito, nos dois pés, e já lhe cravou as chilenas, grandes como um pires, e saiu escaramuçando, meio la-deado!

Os quatro brancos se olharam...; o Nadico estava es-verdeado, como defunto passado...

A Tudinha pegou logo a caturritar, e a cousa foi pas-sando, como esquecida.

Mas, quê!... o negro estava jurado... Escuite. Entraram na cancha os parelheiros, todos dois pisan-

do na ponta do casco, mui bem compostos e lindos, de se lavar com um bochecho d’água.

Fizeram as partida; largaram; correram: ganhou, de fi ador, o do Nadico, o tordilho.

Depois rompeu um vozerio, a gente desparramou-se, parecia um formigueiro desmanchado; as parcerias se juntaram, uns pagavam, outros ques-tionavam... mas tudo se foi arreglando em ordem, porque ninguém foi capaz de apontar mau jogo.

E foi-se tomar um vinho que os donos da carreira ofe-receram, como gaúchos de alma grande, principalmente o major Terêncio, que era o perdedor.

E a Tudinha lá foi, de charola.No barulho das saúdes e das caçoadas, quando todos

se divertiam, foi que apareceu aquele negro excomunga-do, para aguar o pagode. Esbarrou o cavalo na frente do bolicho; trazia na mão um lenço de sequilhos, que esten-deu à Tudinha: havia perdido, pagava...

A morocha parou em meio um riso que estava rindo e fi rmou nele uns olhos atravessados, esquisitos, olhos como pra gente que já os conhecesse... e como sentiu que o caso estava malparado, para evitar o desaguisado,

disse:– Faz favor de entregar à mamãe, sim?!...O negro arreganhou os beiços, mostrando as canjicas,

num pouco caso, e respostou:Ora, coração!... Eu sou teu negro, de cambão!..., mas

não piá da china velha! Toma! E estendeu-lhe o braço, oferecendo o atado dos do-

ces.Aqui, o Nadico manoteou e no sofl agrante sopesou a

trouxinha e sampou com ela na cara do muçum.Amigo! Virge nossa senhora!Num pensamento o negro boleou a perna, descascou

o facão e se veio!...O lobuno refugou, bufando.

Que peleia mais linda!Vinte ferros faiscaram; era o Nadico, eram os outros

namorados da Tudinha e eram os outros que tinham con-tas a ajustar com aquele tição atrevido.

Perto do negro Bonifácio, sentado sobre um barril, sem ter nada que ver no angu, estava um paisano tocan-do viola: o negro – pra fazer boca, o malvado! – largou-lhe um revés, tão bem puxado que atorou os dedos do coitado e o encordoamento e afundou o tampo do estru-mento!...

Fechou o salseiro. O Nadico mandou a adaga e atravessou a pelanca do

pescoço do negro, roçando na veia artéria; o major to-cou-lhe fogo, de pistola, indo a bala, de refi lão, lanhar-lhe uma perna... o ventana quadrava o corpo, e rebatia os talhos e pontaços que lhe meneavam sem pena.

E calado, estava; só se via no carão preto o branco dos olhos, fuzilando...

Ai!... Foi um grito doido da Tudinha... e já se viu o Nadico

testavilhar e cair, aberto na barriga, com a buchada de fora, golfando sangue!...

No meio do silêncio que se fez, o negro ainda gritou:– Come agora os meus sobejos!...Depois, roncou, tal e qual como um porco acuado... e

então foi uma cousa bárbara!...Em quatro paletadas, desmunhecando uns, cortando

outros, esgaravatando outros, enquanto o diabo esfrega o olho, o chão fi cou estivado de gente estropiada, espir-rando a sangueira naquele reduto.

É verdade também que ele estava todo esfuracado: a cara, os braços, a camisa, o tirador, as pernas, tinham mais lanhos que a picanha de um reiúno empacador; mas não quebrava o corincho, o trabuzana!

Aquilo seria por obra dalguma oração forte, que ele tinha, cosida no corpo.

A esse tempo, era tudo um alarido pelo acampamen-

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to; de todos os lados chovia gente no lugar da briga.A Tudinha, agarrada ao Nadico, com a cabeça pou-

sando-lhe no colo, beijando-lhe ela os olhos embaciados e a boca já morrente, ali, naquela hora braba, à vista de todo o mundo e dos outros seus namorados, que se esva-íam, sem um consolo nem das suas mãos nem das suas lágrimas, a Tudinha mostrava mesmo que o seu camote preferido era aquele, que primeiro desfeiteou e cortou o negro, por causa dela...

Foi então que um gaúcho gadelhudo, mui alto, canho-to, desprendeu da cintura as boleadeiras e fê-las roncar por cima da cabeça... e quando ia a soltá-las, zunindo, com força pra rebentar as costelas dum boi manso, e que o negro estava cocando o tiro, de facão pronto pra cortar as sogas..., nesse mesmo momento e instante a velha Fer-mina entrou na roda, e ligeira como um gato, varejou no Bonifácio uma chocolateira de água fervendo, que trazia na mão, do chimarrão que estava chupando...

O negro urrou como um touro na capa...; a rumo no mais avançou o braço, e fi ncou e suspendeu, levantou a velha, estorcendo-se, atravessada no facão, até o esse...; ao mesmo tempo, mandado por pulso de homem um bolaço cantou-lhe no tampo da cabeça e logo outro, no costilhar, e o negro caiu, como boi desnucado, de boca aberta, a língua pontuda, mexendo em tremura uma per-na, onde a roseta da chilena tinia, miúdo...

Patrício, escuite! Vi então o que é uma mulher rabiosa...: não há ma-

neia nem buçal que sujeite: é peior que homem!... A Tudinha já não chorava, não; entre o Nadico, mor-

to, e a velha Firmina estrebuchando, a morocha mais linda que tenho visto, saltou em cima do Bonifácio, ti-rou-lhe da mão sem força o facão e vazou os olhos do negro, retalhou-lhe a cara, de ponta e de corte... e por fi m, espumando e rindo-se, desatinada – bonita, sempre! –, ajoelhou-se ao lado do corpo e pegando o facão como

quem fi nca uma estaca, tateou no negro sobre a bexiga, pra baixo um pouco – vancê compreende?... – e uma, duas, dez, vinte, cincoenta vezes cravou o ferro afi ado, como quem espicaça uma cruzeira numa toca... como quem quer estraçalhar uma cousa nojenta... como quem quer reduzir a miangos uma prenda que era querida e na hora é odiada!...

Em roda, a gauchada mirava, de sobrancelhas ruga-das, porém quieta: ninguém apadrinhou o defunto.

Nisto um sujeito que vinha a meia-rédea sofrenou o cavalo quase em cima da gente: era o juiz de paz.

Mais tarde vim a saber que o negro Bonifácio fora o primeiro a... a amanosear a Tudinha; que ao depois to-mara novos amores com outra fulana, uma piguancha de cara chata, beiçuda; e que naquele dia, para se mostrar, trouxera na garupa a novata, às carreiras, só de pirraça, para encanzinar, para tourear a Tudinha, que bem viu, e que apesar dos arrastados de asa daquela moçada e so-bretudo do Nadico, que já a convidara para se acolherar com ele, sentira-se picada, agoniada da desfeita que só ela e o negro entendiam bem... Por isso é que ela fi cou como cobra que perdeu o veneno...

Escuite. Até hoje me intriga isto: como uma morena, tão linda,

entregou-se a um negro, tão feio?... Seria de medo, por ele ser mau?... Seria por bobice de

inocente?... Por ele ser forçudo, ela franzina?... Seria por... Que, de qualquer forma ela vingou-se, isso, vingou-

se...; mas o resto que ela fez no corpo do negro? Foi como um perdão pedido ao Nadico ou despique tomado da ou-tra, da piguancha beiçuda?...

Ah! mulheres!... Estancieiras ou peonas, é tudo a mesma cousa... tudo

é bicho caborteiro... a mais santinha tem mais malícia que um sorro velho!...

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Está vendo aquele umbu, lá embaixo, à direita do co-xilhão?

Pois ali é a tapera do Mariano. Nunca vi pêssegos mais bonitos dos que amadurecem naquele abandono; ainda hoje os marmeleiros carregam que é uma temeridade!

Mais para baixo, como umas três quadras, há uns olhos-d’água, minando das pedras, e logo adiante uns coqueiros; depois pega um cordão de araçazeiros.

Diziam os antigos que aí encostado havia uma lagoão mui fundo onde até jacaré se criava.

Eu, desde guri conheci o lagoão já tapado pelos ca-pins, mas o lugar sempre respeitado como um tremedal perigoso: até contavam de um mascate que aí atolou-se e sumiu-se com duas mulas cargueiras e canastras e tudo...

Mais de uma rês magra ajudei a tirar de lá; iam à gra-ma verde e atolavam-se logo, até a papada.

Só cruzam ali por cima as perdizes e algum cusco le-viano.

Com certeza que as raízes do pasto e dos aguapés foram trançando uma enrediça fechada, e o barro e as folhas mortas foram-se amontoando e pouco a pouco, capeando, fazendo a tampa do sumidouro.

E depois nunca deram desgoto na ponta do lagoão, porque, se dessem, a água corria e não se formaria o mundéu...

Mas, onde quero chegar: vou mostrar-lhe, lá, bem no meio do manantial uma cousa que vancê nunca pensou em ver; é uma roseira, e sempre carregada de rosas...

Gente vivente não apanha as fl ores, porque quem plantou a roseira foi um defunto... e era até agouro um cristão enfeitar-se com uma rosa daquelas!...

Mas, mesmo ninguém poderia lá chegar; o manantial defende a roseira baguala: mal um fi rma o pé na beirada, tudo aquilo treme e bufa e borbulha...

Uns carreteiros que acamparam na tapera do Maria-no contaram que pela volta da meia-noite viram sobre o manantial duas almas, uma vestida de branco, outra de

mais escuro... e ouviram uma voz que chorava um choro mui suspirado e outra que soltava barbaridades...

Mas como era longe e eles estavam de cabelos em pé... – pois nem os cachorros acoavam, só uiva-vam... uivavam... – não puderam dar uma re-lação mais clara do caso.

E o lugar fi cou mal-assombrado.

Mas, onde quero chegar: foi assim como lhe vou con-tar. Estes campos eram meio sem dono, era uma pampa aberta, sem estrada nem divisa, apenas os trilhos do gado cruzando-se entre aguadas e querências.

A gadaria, não se pode dizer que era alçada: quase toda orelhana, isso sim.

Mas vivia-se bem, carne gorda sobrava, e potrada lin-da isso era ao cair do laço.

O Mariano apareceu aqui, diz que vindo de Cima da Serra, corrido dos bugres; uns, porque lhe morrera a mu-lher, da bexiga preta, outros ainda, a boca pequena, que não era por santo que ele mudara de cancha.

Mas fosse como fosse, chegou e arranchou-se.Trazia para o brigadeiro Machado uma carta que de-

via ser de gente pesada, porque o brigadeiro tratou-o muito bem e decerto foi com seu consentimento que ele aboletou-se aqui nos pagos.

Tocava uma carreta de tolda, uma ponta de gado manso e uma quadrilha de ruanos.

De gente, ele, duas velhuscas, uma menina, uns pre-tos, campeiros e uma negra mina, chamada mãe Taná-sia.

A menina era fi lha dele; das velhas, uma era a avó da criança, e a outra, irmã dessa, vinha a ser tia-avó. Ele dava-se por genro da velha, mas não era: havia suspendi-do com a moça da casa, e depois nunca se proporcionou ocasião de padre para fazer-se o casamento, e o tempo foi

No manantial

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passando, até que a defunta morreu, fi cando a inocente nesse paganismo de não ser fi lha de casal legítimo... por sacramento. Mas davam-se bem, todos.

O paisano era trabalhador e entendido nas cousas; desde o torrão para os ranchos, e quinchar, madeiras, cercados, lavouras, tudo passou pelas suas mãos. E tanto falquejava um linhote como semeava uma quarta de tri-go, e já capava um touro como amanoseava um bagual.

Quando a Maria Altina – era a menina, a fi lha dele – andava nos dezesseis anos, este arranchamento era um paraíso: o arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação miúda, de tudo era uma fartura; havia galpões, eira, currais, tafona.

O Mariano e as duas velhas traziam nas palminhas a pequena. Ela era o – ai-jesus! – de todos, até dos negros.

Duma feita que a família foi ao povo, para um terço de muita fama que se rezou na casa do brigadeiro Macha-do, a Maria Altina fez um fachadão entre a moçada; mas de todos ela tomou-se de camote com um tal André, que era furriel e gauchito teso. Não entro nisto mais pelo mi-údo porque não vale a pena de falar nestes chicos pleitos de namoriscos e milongagens de crianças.

Mas segue-se é que na despedida da volta o furriel André deu-lhe uma rosa colorada, com um pé de palmo... e ela atravessou a fl or no seu chapéu de palha, ali no mais, com toda a inocência, à vista de todos.

Cá pra mim havia algum conchavo entre o brigadeiro e o Mariano, porque naquele sofl agrante da fl or os dois piscaram os olhos um para o outro e riram-se à sorrelfa por debaixo do bigode.

Ah!... o furriel era afi lhado e ordenança do galão-lar-go... e até dizem mais alguma cousa... Vancê entende!

A comitiva nessa noite pousou no caminho, e a me-nina deu jeito e arrumou a rosa numa botija com água, para não murchar.

De manhãzinha marcharam; e de chegada em casa, o primeiro cuidado da pécora foi cortar a rosa bem rente do cachimbo e plantar o galho numa terra peneirada e fresquinha.

E tais cuidados deu-lhe que a planta pegou, botando raízes fi rmes e espigando ramos e folhas; e quando vie-ram os primeiros botões, ela apanhou-os, fez um ramo todo cheiroso, amarrou-o com a fi ta dos cabelos e foi prendê-lo no pé da cruz dum Nosso Senhor que estava na frente do oratório... como quem dá uma prenda, a modo de pagamento de promessa feita!...

Nesses entrementes – cousa arranjada pelo brigadei-ro – o furriel pousou em casa do Mariano, de passagem para um destacamento onde ia levar ofícios. Foi um ale-grão para todos, mas para a Maria Altina nem se fala!...

Vancê pense... A paisaninha só teve alma e vida e coração para o moço... ele também estava entregue, de rédea no chão.

Aquela visita trazia água no bico... era o trato de ca-samento.

Depois que o furriel se foi as velhas pegaram a fazer rendas de bilros e outros preparos de aprontamento da noiva.

A roseira estava em todo o viço: recendia que era um gosto e bordava de vermelho o caniçado da horta, que se via desde longe.

Mas, perto da pomba andava rondando o gavião.Na Restinguinha, obra de um quarto de légua pra lá

do Mariano morava um tal Chico Triste, que tinha fi lhos como rato, e o mais velho era já homem feito.

Este, que pro caso chamava-se Chicão, andava mui enrabichado pela Maria Altina.

Ele era um bruto, que só olhava, só queria a Maria Al-tina – de carne e osso –. Do mais não se lhe dava; não que-ria saber se a menina era vergonhosa, ou trabalhadeira ou prendada.

Ele só olhava-lhe para as ancas, e os seios, e para a grossura dos braços; era, – mal comparando –, como um pastor no faro de uma guincha...

A rapariga tinha-lhe quase tanto medo como raiva. Uma vez ele pediu-lhe uma muda da roseira, e ela, sem negar, para não fazer desfeita, disse-lhe que tirasse o que quisesse.

– Mas eu quero é dado pela senhora!...–Ah! não!... Tire o senhor mesmo, a seu gosto...–Não dá?... pois qualquer dia pico a facão toda essa

porcaria!...E levantou-se e saiu, todo apotrado.Outras vezes trazia-lhe de presente ovos de perdiz,

ou ninhadas de mulitas, que ela criava com paciência e logo que podiam manter-se, largava para o campo. Uma ocasião trouxe-lhe um veadinho; ela soltou-o; uns gatos viscachas, soltou-os também.

O Chicão que não via nunca os seus presentes, soube do caso, e, por despique, apanhou uns quatro fi lhotes de avestruz, e a tirões arrancou-lhes – ainda vivos, criatu-ra! – as pernas e as asas, e assim arrebentados e estre-buchando, mandou-os à Maria Altina;... a pobre desatou num pranto de choro, ao ver a malvadez daquele judeu.

Assim estavam as cousas quando o furriel passou e logo depois correu a nova do casamento.

O Chicão espumou de raiva... Levava os cavalos a so-frenaços, os cachorros a arreador, os irmãos a manotaços e até a mãe, com respostadas duras.

Só respeitava o pai, o velho Chico, e isso mesmo por-que esse tinha marca na paleta mas não era tambeiro...

No dia – véspera da barbaridade, houve na casa do Chico Triste um batizado feito por um padre missionei-ro que ia de caminho; a gente do Mariano foi convidada.

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Nessa noite comeram doces, tocaram viola, cantaram e até dançaram uma tirana e o anu.

Aí o Chicão cargoseou muito a Maria Altina.A jantarola e o resto da festa iam ser no dia seguinte

– que foi o do caso.Vancê acredita?... Nesta manhã, desde cedo, os pica-

paus choraram muito nas tronqueiras do curral e nos palanques... e até furando no oitão da casa;... mais de um cachorro cavoucou o chão, embaixo das carretas;... e a Maria Altina achou no quarto, entre a parede e a beira da cama uma borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto entrar...

Sol nado o Mariano e uma das velhas foram para o Triste, para dar um ajutório. Os campeiros, como de cos-tume, para os seus serviços, uns de campo, outros de le-nhar.

Na casa só fi caram, para irem mais tarde a Maria Alti-na e a outra velha, que era a avó; e para as duas, debaixo do umbu, dois mancarrões encilhados.

Ficou também a negra mina, que viu tudo e foi quem depois fez o conto.

A avó estava na cozinha frigindo uns beijus e a Ma-ria Altina na varanda, apenas em saia, arrematava um timãozinho novo.

Na cabeça, como gostava, trazia uma rosa fresca, e que fi cava-lhe sempre a preceito, no negrume da cabe-leira. E garganteava uma coplas que tinha aprendido na véspera, quando dançava a tirana e se divertia. Umas coplas que eram assim... e me lembro, porque quem as botou – para uma outra – foi mesmo este seu criado Ma-tias!...

Quem canta pra tu ouvires Devia morrer cantando...Pois quando daqui saíres,Do cantor vais te olvidando;

E, pode ser que morrendo,Dele então tu te lembrasses:Se visses outro defunto,Ou se outra vez tu dançasses...

Minha voz em teu ouvido,Soluçaria de dor,Não por deixar a vid...

E nem acabou o verso, porque estourou na cozinha um esconjuro e logo a voz da vó, sumida e arroucada, gritando – bandido! bandido! – e depois um gemido an-siado, uns ais... e um baque surdo...

De pé, com o timãozinho numa mão e a agulha na ou-tra, pálida como a cal da parede, o coração parado, Maria

Altina pregada no chão, de puro medo, ouviu... ouviu,... e aí no mais entrou e veio a ela o Chicão..., – o Chicão, entende vancê? – com uns olhos de bicho acuado, e um bafo de fogo, na boca...

E como chegou, atropelou-a, agarrou-a, apertou-a, abraçando-a pela cintura, metendo a perna entre as dela, forcejando por derrubá-la, respirando duro, furioso, de-sembestado... mais mordendo que beijando o pescoço amorenado... e garboso...

A rapariga gritou, empurrando-o num desespero, unhando-lhe a cara, ladeando o corpo... por fi m tacou-lhe os dentes num braço.

Ele urrou com a dor e largou-a um momento; ela aproveitou o alce e disparou... ele quis pegá-la de novo, mas no mover-se enredou as esporas no timãozinho que caíra, e testavilhou maneado...

A pobre, ao passar pela cozinha viu a avó estendida, com as roupas enrodilhadas, a cabeça branca numa san-gueira... e então desatinada, num pavor, correu para o umbu e foi o quanto pulou a cavalo e já tocou, a toda, coxilha abaixo!...

Mas logo, logo, mesmo sem se voltar, sentiu-se quase alcançada pelo Chicão, que também montara e se lhe vi-nha em perseguição...

E os dois, – à que te pego! à que te largo! – se despen-caram por aquele lançante, em direitura ao manantial! E, ou por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça e nem se lembrasse do perigo, a Maria Altina encostou o rebenque no matungo, que, do lance que trazia costa abaixo, se foi, feito, ao tremedal, onde se afundou até as orelhas e começou a patalear, num desespero!... A cam-peirinha varejada no arranco, sumiu-se logo na fervura preta do lodaçal remexido a patadas!... E como rastro, fi -cou em cima, boiando, a rosa do penteado.

E da mesma carreira, o cavalo do Chicão, que também vinha tocado a espora e relho, chapulhou no pantanal, um pouco atrás do outro, cousa de braça e meia... e ali fi cou, o corpo todo sumido, procurando aguentar as ven-tas, as orelhas fora d’água.

O Chicão, agora deslombando-se em esforços para sair da enrascada, não podia, porque bem sentia as espo-ras enleadas nas raízes – e os cabrestilhos eram fortes... – e parecia-lhe que tinha um pé quebrado por uma patada do cavalo, que se despedaçava aos arrancos, sentindo-se chupado para o fundo...

Depois desse estropício, tudo fi cou como estava: tudo no sossego, o sol subindo sempre, nuvens brancas cor-rendo no céu, passarinhos cruzando para um lado e ou-tro... os galos cantando lá em cima... uns latidos muito longe... pios de perdiz... algum inhé de sapo ali perto...

Parecia que nada se havia dado: se não fosse a rosa colorada boiando, lá, e o Chicão atolado até o peito, mais

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pra cá.O cavalo dele, com a cabeça alinhada, mal podia

agüentar fora da água o focinho e ressolhava, o pobre, puxando a respiração em assobios grossos, e o dono, todo salpicado de barro, suava em cordas, cada vez mais ansiado, não podendo desprender-se das malditas espo-ras, que o sujeitavam em cima do bagual, que ia se afun-dando... afundando... afundando... E a cada sacudida feita naquele reduto todo o manantial bufava e borbulhava...

Com pouco mais o Chicão desceu ainda, atolado até os sovacos; o cavalo já se não via e nem bulia, sufocado e morto, pesando entregue no mole do tremedal...

E as esporas... as malditas esporas, nem nada!...Obrigado pela postura em que estava, ele olhava para

o buraco que tinha engolido a Maria Altina: sobre a água barrenta, escura, nadavam folhas secas, capins pisotea-dos, gravetos... e no meio deles, limpa e fresca, boiava a rosa que se soltara dos cabelos da cobiçada no momento em que ela entrava pela morte adentro, dentro do loda-çal!...

E o tempo foi passando, a tranquito, sem pressa nem vagar.

Vancê lembra-se?...Como eu disse, havia fi cado em casa, além das bran-

cas a tia mina, – a mãe Tanásia – que, quando sentiu a desgraceira, ganhou no paiol, escondendo-se e daí pôde bombear alguma cousa. Quando viu as criaturas monta-rem e tocarem – como caça e caçador – a mãe Tanásia saiu da toca e voltou à cozinha, dando com a – nhanhã – morta... e logo viu que a sinhazinha fugira. E pensou em ir ao Chico Triste, avisar o Mariano. O mais perto era ir pelos olhos-d’água, acima do manantial; desceu o ca-minho; costeou pelas pedras e quando dobrava a estradi-nha frenteou com o Chicão...

A mãe Tomásia fi cou estatelada... e daí a pedaço – em que olhou só, sem pensar nada – foi que a coitada falou.

– Eh! eh!... siô moço!... que é que suncê fez!...E o desalmado gritou-lhe:– Vai, bruaca velha, vai contar!...–Ah! ah!... Deus perdoe!...E foi andando, estradinha afora, lomba acima, apu-

rando o passo, um pouco renga.Nesse meio tempo também chegavam à casa os cam-

peiros; era hora de comer; repararam que só estava amarrado um cavalo; a casa aberta, silenciosa; um espiou pela janela da cozinha... e gritou pelos outros, benzendo-se...

Lá estava a senhora, com a cabeça rebentada a olho de machado... O fogo apagado, a banha... coalhada, os beijus frios... e mui a seu gosto, de papo para o ar, dormindo na saia da morta, uma gata brasina e a sua ninhada.

Chamaram pela mãe Tanásia... gritaram... procura-ram... e nada! Um deles, mais alarife, propôs que fugis-

sem... que era melhor ser caiambola do que ser estaquea-do... que por certo iam ser acusados daquela maldade.

Porém outro mais precatado disse:– Cala a boca, parceiro... Vamos é avisar sinhô ve-

lho...E fi cando uns de guarda, tocaram-se os outros, a meia

rédea, para o Triste, onde fulos de medo, desovaram a novidade.

Que canhonaço, amigo! A gentama toda se alvorotou; o que era de mulheres abriu num alarido, o que era ho-mem apresilhou as armas, e já se saiu, muitos de em pelo, cobrindo a marca dos fl etes, o Mariano na frente, como um louco.

Eu estava nessa arrancada. Chegamos como um pé de vento e conforme boleamos a perna, vimos o mesmo que os negros contavam. E da Maria Altina, nada; da mãe Ta-násia, nada. Apenas no chão da varanda novelos despar-ramados, a mesa arredada, o timãozinho novo com um rasgão grande...

Nisto, um aspa-torta, gaúcho mui andado no mundo e mitrado, puxou-me pela manga da japona e disse-me entre dentes:

– O Chicão repontava a rapariga;... ele não estava em casa nem veio conosco; ela não está...

Patrício... que lhe parece?– Hom!... respondi eu, e fi quei-me com aquele zunido

de varejeira no ouvido...Mas o paisano tinha estômago frio e foi passando lín-

gua;... daí a pouco todos faziam as mesmas contas, até que um, mais golpeado, disse-o claro, ao Mariano!

O homem relanceou os olhos a ver talvez se descobria o Chicão... depois teve a modo uns engulhos e depois fi -cou como entecado...

Pensaria mesmo que a fi lha tinha fugido com o que-rendão?... Quem sabe lá!... Que o rapaz rondava, isso ele e todos sabiam e que ela não fazia caso do derretimento, isso também se sabia; agora, como dum momento para o outro os dois se tinham combinado, isso é que era!...

Mas ao mesmo tempo perguntava-se – quem matou a velha e por quê?...

E quando estávamos neste balanço ouvimos então a gritaria das mulheres, que tinham vindo de a pé, encon-trando no caminho a mãe Tanásia.

Em antes de chegarem, já os cuscos, ponteiros, ti-nham começado a acoar, por debaixo dos araçazeiros; as crianças, curiosas e mais ligeiras, tinham corrido pen-sando ser algum bicho... e recuaram, assustadas, fazen-do cara-volta, umas chorando, outras sem fala, apenas apontando para o manantial...

E quando a ranchada das donas chegou perto e viu... viu o Chicão atolado; o Chicão atolado, e logo adiante, no barro revolvido, a rosa colorada boiando; a rosa boiando porque a moça estava no fundo, afogada, porque... por-

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que... por causa do Chicão?... por medo dele, que queria abusar dela?... quando as senhoras donas, todas caladas, viram aquele condenado, e uma, mais animosa, gritou-lhe – cachorro desavergonhado! – foi que a mãe dele, jungindo as lágrimas para não saltarem, perguntou:

– Chicão, meu fi lho, que é isto?...– Atolado;... as esporas;... um laço!...– Filho!... que desgraça! E a Maria Altina?...– Aí!... embaixo da rosa...Foi neste ponto que rompeu o alarido, os choros, os

chamados que ouvimos lá em cima, nas casas, e desce-mos logo. O Mariano vinha com os olhos raiados de san-gue e batendo os dentes, como porco queixada...

E quando paramos todos e vimos o jeito daquele ru-fi ão maldito, ainda um lembrou alto:

– Vamos laçar o homem, e puxar cá pra fora!...O Mariano porém, gritou:– Espera!... e voltando-se para o atolado, indagou:– Por que mataste a velha?...– Não!– Viste a Maria Altina?– Não!– Que esburacado é esse, aí na tua frente?– Não sei!– E aquela rosa... também não sabes?...– Pois sei, sim! É ela... e a velha, também, fui eu... e

agora?...– Vou rebentar-te a cabeça...– Arrebenta! Se não fosse as esporas!...Então o Mariano sacou a pistola do cinto e trovejou...

e errou! Secundou o tiro e a bala quebrou o ombro do Chicão, que deu um urro e entorceu-se todo; quis fi rmar-se, porém o braço são afundava-se no barro, acamando os capins já machucados; com esses tirões e arrancos o manantial todo tremia e bufava, borbulhando...

O Mariano amartilhou a outra pistola; o Chicão ber-rou de lá:

–Mata! Eu não pude!... mas o furriel também não há de!...

Mas nisto a mãe dele abraçou-se nos joelhos do Ma-riano, e o padre missioneiro levantou a cruzinha do ro-sário, meteu o Nosso Senhor Crucifi cado na boca do cano da pistola... e o Mariano foi baixando o braço... baixando, e calado varejou a arma para o lameiro...; mas de repen-te, como um parelheiro largado de tronco, saltou pra diante e de vereda atirou-se no manantial... e meio de pé, meio de gatinhas, caindo, bracejando, afundando-se, sur-dindo, todo ele numa plasta de barro reluzente, alcançou o Chicão, e – por certo – fi rmando-se no corpo do cavalo morto, botou-se ao desgraçado, com as duas mãos escor-rendo lodo apertou-lhe o gasganete... e foi calcando, es-premendo, empurrando para trás... para trás... Até que, num – vá! – aquele abraçados escorregaram, cortou o ar

uma perna, um pé do Chicão, – livre da espora – e tudo sumiu-se na fervura que gorgolejou logo por cima!...

Imagine vancê, aquilo passando-se ali pertinho, a meio laço de distância e ninguém podendo remediar...

Houve só uma palavra em todas as bocas: Jesus, Se-nhor!...

O manantial borbulhava por todas as costuras... Se fosse água limpa... Credo!...

Despacito... despacito... o missionário foi estendendo o braço, como esperando que as almas subissem... depois riscou uma cruz larga, na claridade do dia; e ajoelhando-se na beira daquela cova balofa, de três defuntos de razão de morrer tão diferente e de morte tão a mesma, come-çou a rezar.

E logo no derredor a gentama também se foi arrodi-lhando... e todos com os olhos fi rmados no manantial, e todos de mãos postas, todos empeçaram um – Salve-Rainha – que foi alteando e subindo no descampado, tão penaroso, tão sentido, tão do coração, que até parece que amansou os próprios bichos, porque, entrementes, nem um cachorro latiu, nem passarinho piou, nem cavalo se mexeu!...

Nas paradas da reza só se ouvia os soluços da mãe do Chicão e um leve guasqueio do vento nas talas dos jeri-vás.

Acabada a devoção e marchando como uma procis-são, fomos para a casa levando a outra velhinha, a irmã da que lá estava, de cabeça esmigalhada. Velamos o cor-po e na manhã seguinte fi zemos-lhe o enterro, também lá embaixo, na costa do manantial.

O missioneiro benzeu, e então fi ncamos uma cruz morruda, de cambará, para vigia às almas dos quatro mortos.

Depois, cada qual tomou seu rumo.Anos depois passei por aqui: cortava a alma olhar

para o arranchamento. Os negros tinham tomado a al-forria por sua mão, e se foram a la cria!... Ficaram as duas mulheres, a mãe Tanásia e a sua senhora velha, que, por caridade, o brigadeiro Machado mandou buscar pra casa dele.

O arranchamento fi cou abandonado; e foi chovendo dentro; desabou um canto de parede; caiu uma porta, os cachorros gaudérios já dormiam lá dentro. Debaixo dos caibros havia ninhos de morcegos e no copiar pousavam as corujas; os ventos derrubaram os galpões, os andantes queimaram as cercas, o gado fez paradeiro na quinta. O arranchamento alegre e farto foi desaparecendo... o fei-tio da mão de gente foi-se gastando, tudo foi minguan-do; as carquejas e embiras invadiram; o gravatá lastrou; só o umbu foi guapeando, mas abichornado, como viúvo que se deu bem em casado...; foi fi cando tapera... a tape-ra... que é sempre um lugar tristonho onde parece que a gente vê gente que nunca viu... onde parece que até as

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árvores perguntam a quem chega: – onde está quem me plantou?... onde está quem me plantou?... —

Olhe! Veja vancê: ali embaixo... heim? Stá vendo?... aqueles coqueiros, o matinho de araçás?

Pois é ali o manantial, que virou sepultura naquele dia brabo em que desde manhã tanto agouro apareceu, de desgraça: os pica-paus chorando... os cachorros ca-voucando... a bruxa preta entrada sem ninguém ver...

Sempre dói na alma, mexer nestas lembranças. E há quem não acredite!...

A cruz... onde já foi!... mas a roseira baguala, lá está! Roseira que nasceu do talo da rosa que fi cou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios...

Vancê está vendo bem, agora?Pois é... coloreando, sempre! Até parece que as raízes,

lá no fundo do manantial, estão ainda bebendo sangue vivo no coração da Maria Altina...

Vancê quer, paramos um nadinha. Com isto da-

mos um alcezito aos mancarrões, e eu... desaperto o co-ração!...

Ah! saudade!... Parece que ainda vejo a minha morena, quando no rancho do Chico Triste botei-lhe os versos...

Minha voz no teu ouvido Fez seu ninho pra cantar...

Diabo!... parece que tenho areia nos olhos... e um pé-

de-amigo na goela... Ah! saudade!...É uma amargura tão doce, patrãozinho!...

Saudade é dor que não dói,Doce ventura cruel,É talho que fecha em falso É veneno e sabe a mel...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

22 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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A la fresca!... que demorou a tal fritada! Vancê re-parou?

Quando nos apeamos era o pino do meio-dia... e são três horas, largas!... Cá pra mim esta gente esperou que as franguinhas se pusessem galinhas e depois botas-sem, para depois apanharem os ovos e só então bater esta fritada encantada, que vai nos atrasar a troteada, obra de duas léguas... de beiço!...

Isto até faz-me lembrar um caso... Vancê nunca ou-viu falar do João Cardoso?... Não?... É pena.

O João Cardoso era um sujeito que vivia por aqueles meios do Passo da Maria Gomes; bom velho, muito esti-mado, mas chalrador como trinta e que dava um dente por dois dedos de prosa, e mui amigo de novidades.

Também... naquele tempo não havia jornais, e o que se ouvia e se contava ia de boca em boca, de ouvido para ouvido. Eu, o primeiro jornal que vi na minha vida foi em Pelotas mesmo, aí por 1851.

Pois, como dizia: não passava andante pela porta ou mais longe ou mais distante, que o velho João Cardoso não chamasse, risonho, e renitente como mosca de ra-mada; e aí no mais já enxotava a cachorrada, e puxando o pito de detrás da orelha, pigarreava e dizia:

– Olá! amigo! apeie-se; descanse um pouco! Venha tomar um amargo! É um instantinho... crioulo?!...

O andante, agradecido à sorte, aceitava... menos al-gum ressabiado, já se vê.

– Então que há de novo? (E para dentro de casa, com uma voz de trovão, ordenava:) Oh! crioulo! Traz mate!

E já se botava na conversa, falava, indagava, pedia as novas, dava as que sabia; ria-se, metia opiniões, aprova-va umas cousas, fi cava buzina com outras...

E o tempo ia passando. O andante olhava para o cavalo, que já tinha refrescado; olhava para o sol que

subia ou descambava... e mexia o corpo para levantar-se.

– Bueno! são horas, seu João Cardoso; vou marchando!...

– Espere, homem! É um instantinho! Oh! crioulo, olha esse mate!

E retomava a chalra. Nisto o crioulo já calejado e sa-bido, chegava-se-lhe manhoso e cochichava-lhe no ouvido:

– Sr., não tem mais erva!...– Traz dessa mesma! Não demores, crioulo!...E o tempo ia correndo como água de sanga cheia.Outra vez o andante se aprumava:– Seu João Cardoso, vou-me tocando... Passe bem!– Espera, homem de Deus! É enquanto a galinha lam-

be a orelha!... Oh! crioulo!... olha esse mate, diabo!E outra vez o negro, no ouvido dele:– Mas, sr.!... não tem mais erva!– Traz dessa mesma, bandalho!E o carvão sumia-se largando sobre o paisano uma

riscada do branco dos olhos, como escarnicando...Por fi m o andante não aguentava mais e parava pa-

trulha:– Passe bem, seu João Cardoso! Agora vou mesmo.

Até a vista!– Ora, patrício, espere! Oh crioulo, olha o mate!– Não! não mande vir, obrigado! Pra volta!– Pois sim... porém dói-me que você se vá sem que-

rer tomar um amargo neste rancho. É um instantinho... oh! crioulo!

O mate do João Cardoso

23 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

Page 24: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

Porém o outro já dava de rédea, resolvido à retira-da.

E o velho João Cardoso acompanhava-o até a beira da estrada e ainda teimava:

– Quando passar, apeie-se! O chimarrão, aqui, nunca se corta, está sempre pronto! Boa viagem! Se quer espe-rar... olhe que é um instantinho... Oh! crioulo!...

Mas o embuçalado já tocava a trote largo.

Os mates do João Cardoso criaram fama... A gente

daquele tempo, até, quando queria dizer que uma cou-sa era tardia, demorada, maçante, embrulhona, dizia – está como o mate do João Cardoso!

A verdade é que, em muita casa e por muitos moti-vos, ainda às vezes parece-me escutar o João Cardoso, velho de guerra, repetir ao seu crioulo:

– Traz dessa mesma, diabo, que aqui o sr. tem pres-sa!...

– Vancê já não tem topado disso?...

24 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

Page 25: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

O velho Lessa era um homem assinzinho... nanico, re-taco, ruivote, corado, e tinha os olhos vivos como azou-gue... Mas quanto tinha pequeno o corpo tinha grande o coração.

E sisudo; não era homem de roer corda, nem de pa-lavra esticante, como couro de cachorro. Falava pouco, mas quando dizia, estava dito; pra ele, trato de boca valia tanto – e até mais – que papel de tabelião. E no mais, era – pão, pão; queijo, queijo! –

E, por falar nisto:Duma feita no Passo do Centurião, numa venda gran-

de que ali havia, estava uma ponta de andantes, tropei-ros, gauchada teatina, peonada, e tal, quando descia um cerro alto e depois entrava na estrada, ladeada de butia-zeiros, que se estendem para os dois lados, sombreando o verde macio dos pastos, quando troteava de escoteiro, o velho Lessa.

De ainda longe já um dos sujeitos o havia conhecido e dito quem era e donde; e logo outro – passou voz que aí no mais todos iriam comer um queijo sem nada pagar...

Este fulano era um castelhano alto, gadelhudo, com uma pêra enorme, que ele às vezes, por graça ou tenção reservada, costumava trançar, como para dar mote a al-gum dito, e ele retrucar, e, daí nascer uma cruzada de facões, para divertir, ao primeiro coloreado...

Sossegado da sua vida o velho Lessa aproximou-se, parou o cavalo e mui delicadamente tocou na aba do sombreiro:

– Boa tarde, a todos! E apeou-se.

Maneou o mancarrão, atou-lhe as rédeas ao pescoço e dobrou os pelegos, por causa da quentura do sol.

Quando ia entrar na venda, saiu-lhe o castelhano pelo lado de laçar... A este tempo o negociante saudava o velho, dizendo:

– Oh! seu Nico! Seja bem aparecido! Então, vem de

Canguçu, ou vai ?...Antes que o cumprimentado falasse, o castelhano

intrometeu-se:– Ah! es usted de Canguçu?... Entonces... debe un que-

so!...O paisano abriu um ligeiro claro de riso e com toda a

pachorra ainda respondeu:– Ora, amigo... os queijos andam vasqueiros...– Sí, pa nosotros... pero Canguçu pagará queso,

hoy!...O vendeiro farejou catinga agourenta, no ar, e quis

ladear o importuno; o velho Lessa coçou a barbinha do queixo, coçou o cocuruto, relanceou os olhinhos pelos assistentes, e mui de manso pediu ao empregado do bal-cão:

– Stá bem!... Chê! dê-me aquele queijo!...E apontou para um rodado de palmo e meio de corda,

que estava na prateleira, ali à mão.O gadelhudo refastelou-se sobre um surrão de erva,

chupou os dentes e ainda enticou:– Oigalé!... bailemos, que queso hay!Com a mesma santa paciência o velho encomendou

então o seu almoço – ovos, um pedaço de linguiça, café – e depois pegou a partir o queijo, primeiro ao meio, em duas metades e depois uma destas em fatias, como umas oito ou dez; acabando, ofereceu a todos:

– São servidos?Ninguém topou; agradeceram; então disse ele ao co-

brador :– Chê!... pronto! Sirva-se!...O castelhano levantou-se, endireitou as armas e che-

gando-se para o prato, repetiu o envite:– Entonces?... ¡está pago, paisanos!...E às talhaditas começou a comer.

O velho Lessa – ele tinha pinta de tambeiro, mas era touro cupinudo... – pegou a picar um naco; sovou uma palha; enrolou o baio; bateu os avios; acendeu e come-

Deve um queijo!...

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Page 26: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

çou a pitar, sempre calado, e moneando, gastando um tempão...

Lá na outra ponta do balcão um freguês estava recla-mando sobre uma panela reiúna, que lhe haviam vendi-do com o beiço quebrado...

Aí pelas seis talhadas o clinudo parou de mastigar.– Bueno... buenazo!... pero no puedo más!... Mas o velho, com o facão espetou uma fatia e ofre-

ceu-lhe:– Esta, por mim!– Sí, justo: por usted, vaya!...E às cansadas remoeu o pedaço.E mal que engoliu o último bocado, já o velho apre-

sentava-lhe outra fatia, na ponta do ferro:– Outra, à saúde de Canguçu!...– Pero...– Não tem pero nem pera... Come...– Pe...– Come, clinudo!...

E no mesmo sofl agrante, de plancha, duro e chato, o velho Lessa derrubou-lhe o facão entre as orelhas, pelas costelas, pelas paletas, pela barriga, pelas ventas... segui-do, e miúdo, como quem empapa de água um couro lanu-do. E com esta sumanta levou-o sobre o mesmo surrão de erva, pôs-lhe nos joelhos o prato com o resto do queijo e gritou-lhe nos ouvidos: – Come!...

E o roncador comeu... comeu até os farelos... mas, de repente, empanzinado, de boca aberta, olhos arregala-dos, meio sufocado, todo se vomitando, pulou porta fora, se foi a um matungo e disparou para a barranca do pas-so... e foi-se, a la cria!...

O reclamador da panela desbeiçada deu uma risada e chacoteou, pra o rastro:

– Orre, maula!... quebraram-te o corincho!...

E o velhito, com toda a sua pachorra indagou pelo al-moço, se já estava pronto...

– Os ovos... a linguiça... o café?...

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Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem! Conte vancê as maldades que nós fazemos e diga se

não é mesmo!... Olhe, nunca me esqueço dum caso que vi e que me fi cou cá na lembrança, e fi cará té eu morrer... como unheiro em lombo de matungo de mulher.

Foi na estância dos Lagoões, duma gente Silva, duns Silva mui políticos, sempre metidos em eleições e enre-dos de qualifi cações de votantes.

A estância era como aqui e o arroio como a umas dez quadras; lá era o banho da família. Fazia uma ponta, ti-nha um sarandizal e logo era uma volta forte, como uma meia-lua, onde as areias se amontoavam formando um baixo: o perau era do lado de lá. O mato aí parecia planta-do de propósito: era quase que pura guabiroba e pitanga, araçá e guabiju; no tempo, o chão coalhava-se de fruta: era um regalo!

Já vê... o banheiro não era longe; podia-se bem ir lá, de a pé, mas a família ia sempre de carretão, puxado a bois, uma junta, mui mansos, governados de regeira por uma das senhoras donas e tocados com uma rama por qualquer das crianças.

Eram dois pais da paciênca, os dois bois. Um se cha-mava Dourado, era baio; o outro, Cabiúna, era preto, com a orelha do lado de laçar, branca, e uma risca na papada.

Estavam tão mestres naquele piquete, que, quando a família, de manhãzita, depois da jacuba de leite, pegava a aprontar-se, que a criançada pulava para o terreiro ainda mastigando um naco de pão e as crioulas apareciam com as toalhas e por fi m as senhoras donas, quando se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito tempo que estavam encostados no cabeçalho, remoendo muito sossegados, esperando que qualquer peão os ajoujasse.

Assim correram os anos, sempre nesse mesmo ser-viço.

Quando entrava o inverno eles eram soltos para o campo, e ganhavam num rincão mui abrigado, que havia por detrás das casas. Às vezes, um que outro dia de sol

mais quente, eles apareciam ali por perto, como indagando se havia calor bastante para a gente banhar-se. E mal que os miúdos davam com eles, saíam a correr e a gritar, numa alga-zarra de festa para os bichos.

– Olha o Dourado! Olha o Cabiúna! Oôch!... ôch!...

E algum daqueles traquinas sempre desencovava uma espiga de milho, um pedaço de abóbora, que os bois tomavam, arreganhando a beiçola lustrosa de baba, e punham-se a mascar, mui pachorrentos, ali à vista da gu-rizada risonha.

Pois veja vancê... Com o andar do tempo aquelas crianças se tornaram moças e homens feitos, foram-se casando e tendo família, e como quera, pode-se dizer que houve sempre senhoras donas e gente miúda para os bois velhos levarem ao banho do arroio, no carretão.

Um dia, no fi m do verão, o Dourado amanheceu mor-to, mui inchado e duro: tinha sido picado de cobra.

Ficou pois solito, o Cabiúna; como era mui compa-nheiro do outro, ali por perto dele andou uns dias pas-tando, deitando-se, remoendo. Às vezes esticava a cabeça para o morto e soltava um mugido... Cá pra mim o boi velho – uêh! tinha caraca grossa nas aspas! – o boi velho berrava de saudades do companheiro e chamava-o, como no outro tempo, para pastarem juntos, para beberem juntos, para juntos puxarem o carretão...

– Que vancê pensa!... os animais se entendem... eles trocam língua!...

Quando o Cabiúna se chegava mui perto do outro e farejava o cheiro ruim, os urubus abriam-se, num trotão, lambuzados de sangue podre, às vezes meio engasgados, vomitando pedaços de carniça...

Bichos malditos, estes encarvoados!...Pois, como fi cou solito o Cabiúna, tiveram que ver

O boi velho

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outra junta para o carretão e o boi velho por ali foi fi -cando. Porém começou a emagrecer... e tal e qual como uma pessoa penarosa, que gosta de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato, quem sabe, de penaroso, também...

Um dia de sol quente ele apareceu no terreiro.Foi um alvoroto na miuçalha.– Olha o Cabiúna! o Cabiúna! Oôch! Cabiúna!

oôch!...E vieram à porta as senhoras donas, já casadas e

mães de fi lhos, e que quando eram crianças tantas ve-zes foram levadas pelo Cabiúna; vieram os moços, já homens, e todos disseram:

– Olha o Cabiúna! Oôch! Oôch!...Então, um notou a magreza do boi; outro achou que

sim; outro disse que ele não aguentava o primeiro mi-nuano de maio; e conversa vai, conversa vem, o primei-ro, que era mui golpeado, achou que era melhor matar-se aquele boi, que tinha caraca grossa nas aspas, que não engordava mais e que iria morrer atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia então um prejuízo certo, no couro perdido...

E já gritaram a um peão, que trouxesse o laço; e veio. À mão no mais o sujeito passou uma volta de meia-cara; o boi cabresteou, como um cachorro...

Pertinho estava o carretão, antigão, já meio des-conjuntado, com o cabeçalho no ar, descansado sobre o muchacho.

O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou

a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...

Houve um silenciozito em toda aquela gente.

O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo, algum pre-gaço de picana, mal dado, por não estar ainda arrumado... – pois vancê creia! – : soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao compri-do, no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os dois canzis... e fi cou arruma-do, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe passas-se a regeira na orelha branca...

E ajoelhou... e caiu... e morreu... Os cuscos pegaram a lamber o sangue, por cima dos

capins... um alçou a perna e verteu em cima... e enquanto o peão chairava a faca para carnear, um gurizinho, gor-dote, claro, de cabelos cacheados, que estava comendo uma munhata, chegou-se para o boi morto e metendo-lhe a fatia na boca, batia-lhe na aspa e dizia-lhe na sua língua de trapos:

– Tome, tabiúna! Nó té... Nô fá bila, tabiúna!... E ria-se o inocente, para os grandes, que estavam por

ali, calados, os diabos, cá pra mim, com remorsos por aquela judiaria com o boi velho, que os havia carregado a todos, tantas vezes, para alegria do banho e das guabiro-bas, dos araçás, das pitangas, dos guabijus!...

Veja vancê, que desgraçados; tão ricos... e por um mixe couro de boi velho!...

Cuê-pucha!... é mesmo bicho mau, o homem!

28 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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Se vancê fosse daquele tempo, eu calava-me, por-que não lhe contaria novidade, mas vancê é um guri, perto de mim, que podia ser seu avô... Pois escuite.

Tudo era aberto; as estâncias pegavam umas nas outras sem cerca nem tapumes; as divisas de cada uma estavam escritas nos papéis das sesmarias; e lá um que outro estancieiro é que metia marcos de pedras nas li-nhas, e isso mesmo quando aparecia algum piloto que fosse entendido do ofício e viesse bem apadrinhado.

Vance vê que desse jeito ninguém sabia bem o que era seu, de animalada. Marcava-se, assinalava-se o que se podia, de gado, mas mesmo assim, pouco; agora, o que tocava à bagualada, isso era quase reiúno... per-tencia ao campo onde estava pastando. E mesmo nem tinha valor nenhum: égua baguala era só para tirar-se as loncas, alguma bota.

Depois é que apareceram uns lamões e uns ingleses, melados, que compravam o cabelo: por isso às vezes se cerdeava; mas eles pagavam uma tuta e meia.

Veja vancê; sempre a estrangeirada especulando cousas de que a gente nem fazia caso...

Eguada chucra, potrada orelhana, isso, era imundí-cie, por esses campos de Deus; miles e miles!...

E bicho brabo pra se tropear, esse!... Barulhento, espantadiço, disparador e ligeiro, como trezentos dia-bos!

Mas como quera, era sempre um divertimento ma-canudo, uma volteada de baguais!

Ah!...Não há nada como tomar mate e correr eguada!

Aí para os meios de Quaraim, nos campos do major Jordão, entrei uma vez numa correria macota.

Foi logo depois da guerra do Oribe. Havia como dez

mil baguais entre éguas e potros orelhanos, cavalhada largada, reiúna e marcada, que toda virou haragana, nos pajonais.

Os gados, que já eram mui ariscos, viviam numa bo-landina com as disparadas da bagualada.

Pro caso, diz que é o Negrinho do Pastoreio que faz as disparadas dos cavalares... Isso é uma história com-prida...

Um belo dia o major resolveu fazer uma limpa na-quele bicharedo alçado.

E preparou-se, com tempo.

Desfrutou a novilhada que pôde, no verão, arreglou as suas contas e mandou avisar e convidar o vizindário para correr a bagualada no veranico de maio, que era para agarrar o bicharedo rachando de gordo e agua-chado, pesadão, e o tempo mais fresco para a cavalha-da do serviço.

Amigo! Quando foi aos três dias da lua nova a es-tância estava apinhada de gauchada. Como uns oitenta e tantos torenas, campeiraços destorcidos, domadores e boleadores de fama.

Adelgaçava-se os fletes com água a meia costela, em qualquer lagoão, e à soga; cascos bem aparados, agar-radeiras bem cavadas, endurecidas com uma untura de sebo de rim e carvão, aquentada com a ponta em brasa de um tição de goiabeira; cola curta, toso baixo.

E a gauchada quase toda de em pelo. Uns de bom-bacha, outros de chiripá; muitos sem chapéu, muitos de lenço na cabeça; tudo em mangas de camisa e faca atravessada.

O mais maula levava pelo menos dois pares de bo-las; três pares, isso era a rodo, e havia torena que che-gava a levar cinco: um na mão, os outros na cintura.

Correr eguada

29 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

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E tudo boleadeiras mui bem feitas, de pedra peque-na; porque vancê sabe que o cavalar tem o osso mais quebradiço que a rês – e vai, se toma de mau jeito um bolaço pesado, aí no mais já temos um avariado.

Pois é: as três-marias retovadas a preceito; e as so-gas macias, pra não cortar; e levava-se também uns quantos ligares.

Vancê não sabe o que é um ligar? Não é só, não sr., o couro de terneirote pra fazer carona; é também uma tira de guasca, chata, assim duma meia braça, com um furo dum lado e uma meia ponta do outro. Conforme boleava um animal e ele caía, o campeiro chegava-se e passava-lhe o ligar em cima do garrão e apertava, aco-chava, à moda velha; hom!... era mesmo como botar uma liga de mulher, com perdão da comparação!

Vancê comprende, não?Ficava o nervo do garrão, arrochado pelo ligar; en-

tão o gaúcho desenredava as boleadeiras e assinalava e mal isto, já o bagual se aprumava e levantava-se, bu-fando, puava, pra rufar..., mas qual! saía em três per-nas!... E assim de seguida, em dois, três, oito ou mais, que cada corredor boleasse; esses não podiam mais disparar, ficavam perneteando no meio do campo!

Então a gurizada, os piás, a relho, iam entropilhan-do os ligados, que depois cada dono separava pelo si-nal feito.

Era assim, que, conforme ia correndo a eguada, cada gaúcho ia boleando o bagual que mais lhe agra-dava; às vezes saíam dois a um mesmo animal: aí, o que primeiro lhe sentava as pedras, era o dono.

Mas também, quanto porongo!... Quantas vezes, depois duma canseira, boleava-se e caía um potro lindaço, cogotudo e bem lançado, e ia-se ver, era um colmilhudo, com cada dente como uma estaca... ve-lho como o cerro do Batovi; ou era um mancarrão de montaria, aporreado e cuerudo... outras vezes ainda... enfim, havia sempre embaçadelas!

Mas, como ia dizendo: quando a gente estava toda a cavalo e pronta, o estancieiro ou o encarregado dis-tribuía os ternos, que espalhavam-se a todos os rumos, sobre as costas e rinconadas, para fazer a tocada de lá desses fundos.

E daí a pouco já se levantavam os primeiros rumo-res... A bagualada estranhava aqueles movimentos; os colhudos começavam a relinchar, ajuntando, pas-torejando as manadas; os entropilhados, farejando, entreparavam-se, arpistas; outras pandilhas, de cola alçada, iam num trotão dançado, bufando... e já cer-ravam numa correria em redondo e depois riscavam, campo fora...

Lá adiante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum rincão, numa trepada de coxilha, numa descida

de canhada, rufando duma restinga, os lotes de eguari-ços iam se encontrando, entreverando-se; os campei-ros vinham chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ia-se tocando a bagualada de cada querência; de todos os lados cruzava-se a contradança, que se encaminhava sobre uma linha já combinada; e aos poucos ia crescen-do o rodeio movediço, que engrossava, redomoinhava, espirrava, tornava a embolar-se... e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma trovoada.

Aí a gente entrava a manguear, aos dois lados, e então é que começava, de verdade, o divertimento! Arrematava-se três, quatro, cinco fletes; corria-se sem parar, seis, dez, doze léguas... e no fim estava-se fo-lheiro!...

Barbaridade! Nem há nada como tomar mate e cor-rer eguada!

Amigo! Aquele novelo não se desmanchava mais; ao contrário, o que ia topando pela frente ou aos lados, de eguada, também corria e atirava-se, incorporando-se; na culatra ia ficando uma estiva de potrilhos, de flacos, de aplastados, dos que rodavam, dos que se quebravam e até dos que morriam pisoteados por aquela massa cerrada de cascos.

E em cancha direita ou fazendo voltas largas, não se respeitava sanga, banhado, tacuru, panela de ca-ranguejo, nem buraco de tuco-tuco; ia-se acamando as macegas, pisoteando cardais, esmigalhando as man-chas de trevo, e ia-se sempre a meia-rédea.

Aí é que era lindo!Os fletes montados, alevianados, corriam, alçados

no freio; os tiros de bolas cruzavam-se nos ares... e aquilo era largar as três-marias sobre a paleta do esco-lhido e o bagual logo rodava, no enleio das sogas.

O gaúcho, apeava, ligava, tirava as boleadeiras e já se bancava de novo pra nova hombrada.

Isto quando era por divertir.

Quando era para tropa, o melhor era reiunar os boleados; isso era ligeiro: com um talho de faca, por detrás, na raiz da orelha, esta caía pra diante, sobre o olho; o sangue também ajudava, porque escorria e se empastava nas clinas; e podia ser potro cru e maleva-ço, que ali no mais dava o cacho; podia fazer-se dele sinuelo.

Quando era para limpeza, então tocava-se a egua-da sobre um apertado qualquer, sobre uma sanga bem funda, grota, manantial, sumidouro, e atirava-se aí pra dentro, para destroçar, para acabar, atirava-se aí para dentro toda a bagualada, que, do lance em que vinha,

30 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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toda se afundava, amontoava, esmagava e morria, sem poder recuar, perdida pela sua própria brabeza, em-purrada pelas pechadas dos que vinham, sarapanta-dos, tocados de trás!...

E o resto que se desguaritava e que se podia ainda apanhar a laço e bolas, esse, degolava-se.

Dessa feita, nos campos do major Jordão matamos pra mais de seis mil baguais. E cada gaúcho, na despe-

dida, foi tocando por diante a sua tropilhita nova.

Hoje... onde é que se faz disso?É verdade que há muita cousa boa, isso é verda-

de... mas ainda não há nada, como antigamente, tomar mate e correr eguada...

Xô-mico!... Vancê veja... eu até choro!...Ah! tempo!...

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Quando foi do cerco de Uruguaiana pelos para-guaios em 65 e o imperador Pedro 2º veio cá, com toda a frota de sua comitiva, andei muito por esses meios, como vaqueano, como chasque, como confiança dele; era eu que encilhava-lhe o cavalo, que dormia atra-vessado na porta do quarto dele, que carregava os pa-péis dele e as armas dele.

Começou assim: fui escalado para o esquadrão que devia escoltar aquele estadão todo.

Quando a força apresentou-se ao seu general Caxias, o velho olhou... olhou... e não disse nada.

Cada um, fi rme como um tarumã; as guascas, das me-lhores, as garras, bem postas, os metais, reluzindo; os fl etes tosados a preceito, a cascaria aparada... e em cima de tudo, – tirante eu – uma indiada macanuda, capaz de bolear a perna e descascar o facão até pra Cristo, salvo seja!...

Pois o velho olhou... olhou... e fi cou calado. E calado saiu.O tenente que nos comandava, relanceou os olhos como

numa sufocação e berrou:– Firme! E dando um torcicão forte na banda, começou a

mascar a pera, furioso.E ali fi camos; de vez em quando um bagual escarceando,

refolhando, escarvando...Daí a pouco, de enfrente, das casas, veio saindo uma gen-

tama, muito em ordem, de a dois, de a três.Na testa vinha um homem alto, barbudo, ruivo, de olhos

azuis, pequenos, mas mui macios. À esquerda dele, dois pas-sos menos, como na ordenança, o velho Caxias, fardado e fi r-me, como sempre.

O outro, o ruivo, assim a modo um gringo, vinha todo de preto, com um gabão de pano piloto, com veludo na gola e de botas russilhonas, sem esporas.

Pela pinta devia ser mui maturrango.Não trazia espada nem nada, mas devia ser um maioral

porque todos os outros se apequenavam pra ele. Quem se-ria?...

O tenente descarregou umas quantas vozes; e nós estáva-mos como corda de viola!...

O ruivo passou pela nossa frente, devagar; mirou um fl an-co e outro, e falou com o velho, mostrando um ar risonho no rosto sério.

O velho acenou ao tenente, que tocou o cavalo e fi rmou a espada em continência.

Então o ruivo disse:– Stá bem, snr. tenente; estou satisfeito! mande-me aqui

um de seus homens, qualquer...O tenente bateu a espada e deu de rédea, e parou mesmo

na minha frente... eu era guia da fi la testa.– Cabo Blau Nunes! Pé em terra!Um!... Dois!...Estava apeado e perfi lado, com a mão batendo na aba le-

vantada do meu chapéu de voluntário.– Apresente-se!E baixinho, fuzilando nos olhos, boquejou-me: – aquele é

o imperador; se te enredas nas quartas, defumo-te!Ora!... Caminhei fi rme e quando cheguei a cinco passos

do ruivo, tornei a quadrar o corpo, na postura dos manda-mentos.

Aí o velho Caxias perguntou:– Sabes a quem falas?– Diz que ao senhor imperador!– Sua majestade o imperador, é que se diz.– A sua majestade o imperador!Vai então, o tal, que pelo visto, era o tão falado imperador,

disse, numa vozinha fi na:– Bem; cabo, você vai fi car na minha companhia; há de ser

o meu ordenança de confi ança. Quer?...– O senhor imperador vai fi car mal servido: sou um gaú-

Chasque do Imperador

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34 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

cho mui cru; mas para cumprir ordens e dar o pelego, tão bom haverá, melhor que eu, não!

Aí o homem riu-se e o velho também. E vai este indagou:– Conheces-me?– Como não?!... Desde 45, no Ponche Verde; fui eu que uma

madrugada levei a vossa excelência um ofício reservado, pra sua mão própria... e tive que lanhar uns quantos baianos abe-lhudos que entenderam de me tomar o papel...

Vossa excelência mandou-me dormir e comer na sua barraca, e no outro dia me regalou um picaço grande, mui lindo, que...

– Bem me parecia, sim...E ainda és o mesmo homem?– Sim, sr., com algum osso mais duro e o juízo mais tiro-

neado!– É que sua majestade vai precisar de um chasque prova-

do, seguro... há perigo, na missão...– Uê, seu general!... Meu pai e minha mãe hoje, é esta!E beijei minha a divisa de cabo.O imperador pôs a mão no meu ombro e disse: – Estimo-te. Podes ir... e cala-te.E vancê creia... – que diabo! – tive uma estremeção por

dentro!...Eu pensava que o imperador era um homem diferente

dos outros... assim todo de ouro, todo de brilhante, com olhos de pedras fi nas...

Mas, não senhor, era um homem de carne e osso, igual aos outros... mas como quera... uma cara tão séria... e um jei-to ao mesmo tempo tão sereno e tão mandador, que deixava um qualquer de rédea no chão!...

Isso é que era!...

Fiz meia-volta e fui tomar o meu lugar; o esquadrão desfi -lou, apresentando armas e fomos acampar. Logo a rapaziada crivou-me de perguntas... mas eu, soldado velho, contei um par de rodelas, queimei campo a boche, mas não afrouxei nada da conversa; não vê!...

De tardezita já entrava de serviço.A não ser nas conversas particulares daqueles graúdos –

pois tudo era só seu barão, seu conselheiro, seu visconde, seu ministro –,eu sempre via e ouvia o que se passava.

E a bem boas assisti.

Um dia apresentaram ao imperador um topetudo não sei donde, que perguntou, mui concho:

– Então vossa majestade tem gostado disto por aqui?– Sim, sim, muito!– Então por que não se muda pra cá, com a família?...

Outro, no meio da roda, puxou da traíra, sovou uma pa-lha de palmo, e começou a picar um naco; esfregou o fumo na cova da mão, enrolou, fechou o baio e mui senhor de si

ofereceu-o ao imperador.– É servido?– Não, obrigado; parece-me forte o seu fumo...– Não sabe o que perde!...Então, com sua licença!...E bateu o isqueiro e começou a pitar, tirando cada tragada

que nuveava o ar!

Havia um que era barão e comandava um regimento, que era mesmo uma fl or; tudo moçada parelha e guapa.

O imperador gabou muito a força, e aí no mais o barão já lhe largou esta agachada:

– Que vossa majestade está pensando?... Tudo isto é india-da coronilha, criada a apojo, churrasco e mate amargo... Não é como essa cuscada lá da Corte, que só bebe água e lambe a... barriga!...

Este mesmo barão, duma feita que o d. Pedro procurou no bolso umas balastracas para dar uma esmola e não achou mais nada, desafi velou a guaiaca e entregando-a disse:

– Tome, senhor! Cruzes!Nunca vi homem mais mão-aberta do que vossa majesta-

de... olhe que quem dá o que tem, a pedir vem... mas... quando quiser os meus arreios prateados... e até a minha tropilha é só mandar... só reservo o tostado crespo e um qualquer pe-lego...

– Mas, sr. barão, nem por isso eu dou o que desejara...– Ora qual!... Vossa majestade não dá a camisa... porque

não tem tempo de tirá-la!...Numa das marchas paramos num campestre, na beira

dum passo, perto dum ranchito.Daí a pouco, com uma trouxinha na mão apareceu no

acampamento uma velha, que já tinha os olhos como retovo de bola. Por ali andou mirando, e depois, entrando mesmo no grupo onde ele estava, disse:

– Bom dia, moços! Qual de vocês é o imperador?– Sou eu, dona! Assente-se.A velha olhou-o de alto a baixo, calada, e depois, rindo nos

olhos:– Deus te abençoe! Nossa Senhora te acompanhe, meu fi -

lho! Eu trago-te este bocadinho de fi ambre!E abrindo o pano, mui limpinho, mostrou um requeijão,

que pela cor devia de estar um gambelo, de gordo e macio. D. Pedro agradeceu e quis dar uma mota à velha, que parou patrulha.

– Não! não!... Tu vais pra guerra... Os meus fi lhos e netos já lá andam... Eu só quero que vocês não se deixem tundar!...

Houve uma risada grande, da comitiva. A velhota ainda correu os olhos em roda e indagou:

– Diz que o seu Caxias também vem aqui... quem é?– Sou eu, patrícia!... Conhece-me?– De nome, sim, senhor. O meu defunto, em vida dele, sem-

pre falava em vancê... Pois os caramurus iam fuzilar o coitado,

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35 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

quando vancê apareceu... Lembra-se?... E vai, quando o seu ge-neral Canabarro fez a paz entre os farrapos e os legais, o meu defunto jurou que onde estivesse o seu Caxias, ele havia de ir... mas morreu, pro via dum inchume, que apareceu, aqui, lá nele. Mas, como por aqui correu que vancê ia pra guerra dos para-guaios, o meu fi lho mais velho, em memória do pai, ajuntou os irmãos e os sobrinhos e uns quantos vizinhos e se tocaram todos, pra se apresentarem de voluntários, a vancê!...

Vancê dê notícias minhas e bote a benção neles; e diga a eles que não deixem o imperador perder a guerra... ainda que nenhum deles nunca mais me apareça!... Bem! com sua licen-ça... Seu imperador, na volta, venha pousar no rancho da nhã Tuca; é de gente pobre mas tudo é limpo com a graça de Deus... e sempre há de haver uma terneira gorda pra um costilhar!...

Passar bem! Boa viagem... Deus os leve, Deus os traga!...O imperador – esse era meio maricas, era! – abraçou a ve-

lha, prometendo voltar, por ali, e quando ela saiu, disse:– Como é agradável essa rudeza tão franca!

Numa cidade onde pousamos, o imperador foi hospeda-do em casa dum fulano, sujeito pesado, porém mui gauchão.

Quando foi hora do almoço, na mesa só havia doces e do-ces... e nada mais. O imperador, por cerimônia provou alguns; a comitiva arriou aqueles cerros açucarados. Quando foi o jantar, a mesma cousa: doces e mais doces!... Para não desgos-tar o homem, o imperador ainda serviu-se, mas pouco; e de noite, outra vez, chá e doces!

O imperador, com toda a sua imperadorice, gurniu fome!No outro dia, de manhã, o fulano foi saber como o hóspe-

de havia passado a noite e ao mesmo tempo acompanhava uma rica bandeja com chá e... doces...

Aí o imperador não pôde mais... estava enfarado!...– Meu amigo, os doces são magnífi cos... mas eu agradecia-

lhe muito se me arranjasse antes um feijãozinho... uma lasca de carne...

O homem fi cou sério... e depois largou uma risada:– Quê! Pois vossa majestade come carne?! Disseram-me

que as pessoas reais só se tratavam a bicos de rouxinóis e do-ces e pasteizinhos!... Por que não disse antes, senhor? Com trezentos diabos!... Ora esta!...

Vamos já a um churrasco... que eu, também, não aguento estas porquerias!...

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36 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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37 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

Vancê sabe que eu tive e me servi muito tempo dum buçalete e cabresto feitos de cabelo de mulher?... Verda-de que fui inocente no caso.

Mais tarde soube que a dona dele morreu; soube, galopeei até onde ela estava sendo velada; acompanhei o enterro... e quando botaram a defunta na cova, então atirei lá pra dentro aquelas peças, feitas do cabelo dela, cortado quando ela era moça e tafulona... Tirei um peso de cima do peito: entreguei à criatura o que Deus lhe ti-nha dado.

Eu conto como foi.Quem me ensinou a courear uma égua, a preceito,

estaquear um couro, cortar, lonquear, amaciar de mor-daça, o quanto, quanto...; e depois tirar os tentos, desde mais largos até os fi ninhos, como cerda de porco, e me-nos; quem me ensinou a trançar foi um tal Juca Picumã, um chiru já madurázio, e que tinha mãos de anjo para trabalhos de guasqueiro, desde fazer um sovéu campeiro até o mais fi no preparo para um recao de luxo, mestra-ço, que era, em armar qualquer roseta, bombas, botões e tranças de mil feitios.

Este índio Juca era homem de passar uma noite intei-ra comendo carne e mateando, contanto que estivesse acocrado em cima quase dos tições, curtindo-se na fuma-ça quente... Era até por causa desta catinga que chama-vam-lhe – picumã.

Pra mais nada prestava; andava sempre esmolamba-do, com uns caraminguás mui tristes; e nem se lavava, o desgraçado, pois tinha cascão grosso no cogote.

Comia como um chimarrão, dormia como um lagar-to, valente como quê... e ginete, então, nem se fala!...

Para montar, isso sim!... fosse potro cru ou qualquer aporreado, caborteiro ou velhaco – o diabo, que fosse! –, ele enfrenava e bancava-se em cima, quieto como vancê ou eu, sentados num toco de pau!... Podia o bagual escon-der a cabeça, berrar, despedaçar-se em corcovos, que o chiru velho batia o isqueiro e acendia o pito, como qual-

quer dona acende a candeia em cima da mesa! Às vezes o ventana era traiçoeiro e lá se vinha de lombo, boleando-se, ou acontecia planchar-se: o coronilha escorregava como um gato e mal que o sotreta batia a alcatra na terra ingrata, já lhe chovia entre as orelhas o rabo-de-tatu, que era uma temeridade!...

Voltear o caboclo, isto é que não!E bastante dinheiro ganhava; mas sempre despilcha-

do, pobre como rato de igreja.Um dia perguntei-lhe o que é que este fazia das balas-

tracas e bolivianos, e meias-doblas e até onças de ouro, que ganhava...

Esteve muito tempo me olhando e depois respondeu, todo num prazer, como se tivesse um pedaço do céu en-cravado dentro do coração:

– Mando pra Rosa... Tudo! E é pouco, ainda!– Que Rosa é essa?– É a minha fi lha! Linda como os amores! Mas não é

pra o bico de qualquer lombo-sujo, como tu...A conversa fi cou por aí.Passaram os anos. Eu já tinha o meu bigodinho.Rebentou a guerra dos Farrapos; eu me apresentei, de

minha vontade; e com quem vou topar, de companheiro? Com o Juca Picumã.

Duma feita, andávamos tocados de perto pelos ca-

ramurus... Tínhamos saído em piquete de descoberta e aconteceu que depois de vararmos um passo, os legalis-tas nos cortaram a retirada e vieram nos apertando sobre outra força companheira, como para comer-nos entre duas queixadas...

E não nos davam alce; mal boleávamos a perna para churrasquear um pedaço de carne e já os bichos nos caí-am em cima...

Na guerra a gente às vezes se vê nestas embretadas, mesmo sendo o mais forte, como éramos nós, que bem podíamos até correr a pelego aqueles camelos... mas são

Os cabelos da china

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cousas que os chefes é que sabem e mandam que se as aguente, porque é serviço...

Ora bem; havia já dois dias e duas noites que vivía-mos neste apuro; arrinconados nalgum campestre dava-se um verdeio aos cavalos; os homens cochilavam em pé; nisto um bombeiro assobiava, outro respondia e o capi-tão, em voz baixa e rápida mandava.

– Monta, gente!E o Juca Picumã, que era o vaqueano, tomava a pon-

ta e metia-nos por aquela enredada de galhos e cipós, e lá íamos, mato dentro, roçando nos paus, afastando os espinhos e batendo a mosquitada que nos carneava... Ninguém falava. A rapaziada era de dar e tomar, e – sem desfazer em vancê, que está presente –, eu era do fan-dango... e devo dizer, que nesse tempo, fui mondongo meio duro de pelar...

Dessa vereda o vaqueano foi pendendo para a esquer-da; de repente batemos na barranca do arroio, e ele, sem dizer palavra meteu na água o cavalo e, devagarzinho fo-mos encordoando de atrás e varando, de bolapé.

Seguimos um pedaço, sempre sobre a esquerda, e mui adiante tornamos a varar o arroio para o lado que tínhamos deixado. Tínhamos feito uma marcha em roda, que íamos agora fechar saindo na retaguarda do acam-pamento dos legalistas.

Num campestrezinho paramos; o capitão mandou apear, rédea na mão, tudo pronto ao primeiro grito. De-pois acolherou-se com o Juca Picumã e meteram-se no mato e aí boquejaram um tempão. Depois voltaram.

Então o capitão correu os olhos pelos rapazes e dis-se:

– Preciso de um, que toque viola...Mas o Picumã xereteou logo:– Tem aí esse pisa-fl ores, o furriel Blau...– Esse gurizote?...– Sim, senhor, esse: é cruza de calombo!...E deu de rédea, com cara de sono. O capitão acompa-

nhou-o, mandando que eu seguisse; e eu segui-o quente de raiva, pelo pouco caso com que ele chamou-me – gu-rizote –. Se não fosse pelas divisas, eu dava-lhe o – guri-zote!...

Fomos andando... parando... farejando... escutan-do... Em certa altura o Picumã, sem se voltar levantou o braço, de mão aberta e parou. O capitão parou, e eu.

O chiru disse, baixo:– Está perto... ali!... E o churrasco é gordo!...E levantava e mexia o nariz, tal e qual como um ca-

chorro, rastreando...E apeamos.– Vamos botar um torniquete nos cavalos, para não

relincharem...Fizemos, com o fi el do rebenque.

– Tiramos as esporas, por causa dalguma enrediça... Tiramos.– Bom; agora o capitão diz como há de ser o serviço...

O ofi cial encruzou os braços e assim esteve um peda-ço, alinhavando a ideia; depois, como falando mais pra mim do que pra o outro, disse:

– Olha, furriel Blau, tu e o velho Picumã vão jogar o pelego numa arriscada... Ele que te escolheu pra compa-nheiro é porque sabe que és homem... Há dois dias, como sabes, andamos nestes matos..., mas não é tanto pelo ser-viço militar, é mais por um vareio que quero dar... por minha conta... Ouve. A minha china fugiu-me, seduzida pelo comandante desta força... Vocês vão se apresentar a ele, como desertados e que se querem passar... Ele é um espalha-brasas; ela é dançadeira...; arranja jeito de rufar numa viola e abre o peito numas cantigas... Tendo farra estão eles como querem... E enquanto estiverem descui-dados, eu caio-lhes em cima com a nossa gente. Agora... quando fechar o entrevero só quero que tu te botes ao comandante... e que lhe passes os maneadores... quero-o amarrado...; entendes? És capaz?... O Picumã ajuda... O resto... depois...

– Mas... não é pra defuntear o homem... amarrado?...– Não! Acoquiná-lo, só...– A tal piguancha, também... não é pra... lonquear?...– Não! Desfeiteá-la, só... – Então, vou. Mas quem fala é o Picumã...; – eu, nem

mentindo digo que sou desertor...– Estás te fazendo muito de manto de seda!... Cuida-

do!...– Seu capitão é ofi cial... nada pega...; e eu sou um po-

bre soldado que qualquer pode mandar jungir nas esta-cas...

Aí o Picumã meteu a colher:– Seu capitão, o mocito não é sonso, não! Deixe estar,

patrãozinho, tudo é comigo... vancê só tem é que atar o gagino...

Depois os dois se abriram e ainda estiveram de cochi-cho, rematando as suas tramas.

O capitão montou.–Bueno!... Vejam o que fazem; eu vou buscar a gente,

e, conforme chegar, carrego. Vocês devem-se arrinconar junto da carreta, para eu saber. Blau!... não cochiles: o ruivo não é trigo limpo!...

E desandou por entre as árvores.Quando não se ouvia mais nada o chiru convidou.– Vamos: nos apresentamos como passados, que já

andamos entocados aqui há uns quantos dias. Deixe es-tar, que eu falo... estes caramurus são uns bolas... Vai ver como passamos o buçal!... logo nos aceitam! Vamos! Ah! meta dentro da camisa uma cana de rédea... é para a ma-neia do homem... Os companheiros depois nos levam os

38 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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mancarrões, a cabresto...E metemos a cabeça no mato, ele adiante, a rumo do

cheiro, dizia.Andamos mais de seis quadras; nisto o chiru pegou

a cantar umas coplas, devagar, meio baixo, como quem anda muito descansado, de propósito para ir chamando o ouvido de algum bombeiro, se houvesse...

Ora... dito e feito! Com duas quadras mais, um vul-to junto duma caneleira morruda, gritou, no sombreado das ramas:

– Quem vem lá!– É de paz!– Alto! Quem é?– É gente pra força, patrício! Andamos campeando

vocês desde já hoje...– Ahn! Pra quê?– Ora, pra quê?... Pra escaramuçar os farrapos!... E

queremos jurar bandeira com o ruivo...– Ah! vancês conhecem o comandante?– Ora... ora! Mangangá de ferrão brabo! Ora, se co-

nheço... Então, seguimos?– Passem. Vão por aqui... até topar um sangradou-

ro...; aí tem outra sentinela; diga que falou comigo, o Marcos...

– Tá bom... Quando render, vá tomar um mate comi-go!...

Fomos andando, até a sanga dita; aí topamos com a outra sentinela; o chiru nem esperou o grito, ele é que falou, ainda longe:

– Oh... sentinela!– Quem vem lá?...– Foi o Marcos que nos mandou; andávamos extravia-

dos... ele nos conhece... vamos levar um aviso ao coman-dante... É dos farrapos que andavam ontem por aqui... foram corridos...

– Ahn! Pois passem...– Sim... Pois é... foram-se à ramada do Guedes... Com

um couro na cola, os trompetas!... Tem aí cavalhada de refresco?

– Que nada! A reiunada está estransilhada... A gente a custo se mexia... E pra mal dos pecados ainda o coman-dante traz uma china milongueira, numa carreta tolda-da, que só serve pra atrapalhar a marcha... A china é lin-daça... mas é o mesmo... sempre é um estorvo!...

Aqui o Picumã se acocrou, tirou uma ponta de trás da orelha e pediu-me.

– Dá cá os avios, parceiro...E bateu fogo. Reparei que a respiração do chiru esta-

va a modo entupida... Mas pegou outra vez:– É... o Marcos disse-me que o comandante é mui ru-

fi ão...– É mesmo; mal empregada, a cabocla; qualquer dia

ele mete-lhe os pés... é o costume... Ora!...

– É... assim, é pena... Vamos, parceiro. Até logo. Como é a sua graça?

– João Antônio, seu criado... E a sua, inda que mal per-gunte?

– Juca, patrício... Juca no mais... Quando render, espe-ro a sua pessoa para um amargo!...

– Stá feito!... Vá em paz!...E outra vez nos mexemos, agora sobre o acampamen-

to dos legais. Começamos a ouvir o falaraz dos homens, assobios, risadas, picamento de lenha, uma rusga de ca-chorros.

Mais umas braças. Chegamos. No meio do campestre uma fogueira grande, rodeada de espetos onde o chur-rasco chiava, pingando o fartum da gordura; nas brasas, umas quantas chocolateiras, fervendo; armas dependu-radas, botas secando, japonas abertas, e ponchos, nos galhos. Deitados nos pelegos, nas caronas, muitos solda-dos ressonavam; outros, em mangas de camisa, pitavam, mateavam.

Do outro lado da sombra uma carreta toldada. Num fueiro, pendurado, um porongo morrudo, tapado com um sabugo; vestidos de mulher, arejando, diziam logo o que aquilo era. Pertinho, outro fogão, também com chur-rasco, uma chaleira aquentando e uma panela cozinhan-do algum fervido... Uma fumaça mui azul, cerrava tudo, alastrando-se na calmaria da ressolana.

Dois cavalos à soga, e um outro, bem aperado, mane-ado, pastando.

Mal que desembocamos do mato vimos tudo... e tudo com jeito de acampamento relaxado.

O chiru foi andando como cancheiro, e eu, na cola dele. Nisto um sujeito, deitado nos arreios, gritou-nos:

– Chê! Aspa-torta! Então isto aqui é quartel de farra-pos?... não se dá satisfações a ninguém?...

– Foi o Marcos que nos mandou...– Que Marcos?– O Marcos, que está de sentinela... e o João Antônio...

sim, senhor, para falar com o comandante...– Isso é outro caso... O comandante está sesteando...

Se quiserem, esperem ali, junto da carreta. Já comeram?– Já, sim senhor.– Pois então!... Vão!E apontou. Arrolhamo-nos na sombra da carreta, junto da roda,

encostando a cabeça na maça. Eu estava como em cima de brasas... não era pra menos...

Cuna!... Se descobrissem, nos carneavam, vivos!...O Picumã cochilava... mas estava alerta, porque às ve-

zes eu bem via fuzilar o branco dos olhos, na racha das pálpebras, entre o sombreado das pestanas...

A milicada começou a retirar os churrascos, já pron-tos e foi-se arranchando em grupos, para comer.

39 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

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Nisto, por cima de nós, dentro da carreta, ouvimos falar, e depois uma risada moça, e logo uma mulher des-ceu, barulhando anáguas.

O chiru, que estava com os braços encruzados por cima dos joelhos, quando sentiu a mulher, afundou a ca-beça pra diante, escondendo a cara... e o chapéu ainda fi cou imprensado entre a testa e a curva do braço... Então passou pela nossa frente a cabocla... viu um como dormi-do e o outro, que era eu, mui derreado e bocó... E foi-se à panela, mirou-a, apertando os olhos por via da fumaça e do mormaço do brasido.

Por Deus e um patacão!...Era um chinocão de agalhas!... Seiúda, enquartada, de

boas cores, olhos terneiros... e com uma trança macota, ondeada, negra, lustrosa, que caía meio desfeita, pelas costas, até o garrão!...

Por que seria que este diabo largou o meu capitão, para se acolherar com este tal ruivo?

Isto de chinas e gatos... quem amimar sai arranhado... Talvez por este ser ruivo... talvez por farromeiro... por causa de algum cavalo que ela gabou e ele regalou-lhe... e até... até por enfarada do outro... Ora vão lá saber!...

Nisto a piguancha alçou a panela e voltou pra carre-ta.

O chiru então, com a cara de lado, soprou-me de leve:

– Ela não se arpistou quando me viu?...– Não... nem nos benzeu com um olhado... É uma ca-

bocla enfestada!...– Cale a boca... Apronte-se que o fandango não tarda.– Eu preferia bailar com a morena...– Aqueles dois do mate convidado não vêm mais...– Os sentinelas?– Sim; com certeza o capitão enxugou-os... Está me

palpitando que a gente está desabando aí...Palavras não eram ditas, que saiu do mato um mili-

co, pondo a alma pela boca, e balançando, de cansaço e medo, mascou a nova:

– Os farrapos! Os farrapos! Mataram o João Anto-nio!...

Estrondeou um tiro... zuniu uma bala... um legal vi-rou, pataleando.

E pipocou a fuzilaria em cima da camelada!Eu, pulei logo para o recavém da carreta, para me bo-

tar ao ruivo; mas antes de chegar já ele tinha descido... e se foi ao cavalo, que montou de pulo e mesmo sem freio e maneado, tapeando-o no mais, tocou picada fora.

E berrou à gente:–Pra o rincão! Pra o rincão!E com a folha da espada tocou o fl ete, que pelo visto

era mestre naquelas arrancadas.Mesmo assim eu ia ver se segurava o homem, mas o

chiru gritou-me:– Deixe! Deixe! Agora é tarde!...Naturalmente de dentro da carreta a china viu o en-

trevero, e que o negócio estava malparado; e pulou pra fora, pra disparar e ganhar o mato. Mas quando pisou o pé em terra, a mão do Juca Picumã fechou-lhe o braço, como uma garra de tamanduá...

A cabocla não estava tão perdida de susto, porque ainda deu um safanão forte e gritou, braba.

– Larga, desgraçado!...E olhou, entonada... mas conheceu o chiru e fi cou abi-

chornada, pateta...– O tata! O tata!...– Cachorra!... Laço, é o que mereces!...– Me largue, tata!...– Primeiro hei de cair-te de relho... pra não seres a

vergonha da minha cara...Nesse instante, fulo de raiva, o nosso capitão mano-

teou-a pelo outro braço.– Ah! mencê... perdão!... Nunca mais!... Eu... Eu...– Eu é que vou dar-te sesteadas com o ruivo, guincha

desgraçada!

E furioso, piscando os olhos, com a as veias da testa inchadas, largou o braço da morena mas agarrou-lhe os cabelos, a trança quase desmanchada, fechando na mão duas voltas; agarrou curto, entre os ombros, pertinho da nuca... e puxou pra trás a cabeça da cabocla... Com a outra mão pelou a faca, afi ada, faiscando e procurou o pescoço da falsa...

Chegou a riscar... riscar, só, porque o chiru velho, o Juca Picumã, foi mais ligeiro: mandou-lhe o facão, de ponta, bandeando-o de lado a lado, pela altura do cora-ção!...

– Isso não!... é minha fi lha! – disse.O capitão revirou os olhos e deu um suspiro rouco...

depois respirou forte, espirrou uma espumarada de san-gue e afrouxou os joelhos... e logo caiu, pesado, com uma mão apertada, sem largar a faca, com a outra mão aper-tada, sem largar a trança.

E a china, assim presa, rodou por cima dele, lambu-zando-se na sangueira que golfava pelo rasgão do talho, que bufava na respiração do morrente...

Vendo isso, o Picumã quis soltar a piguancha e forçou abrir a mão do capitão: qual! era um torniquete de ferro; tironeou... nada! Então, sem perder tempo, com o mes-mo facão matador cortou a trança, rente, entre a mão do morto e a cabeça da viva... Foi – ra... raaac! – e a china viu-se solta, mas sura da trança, tosada, tosquiada, como égua chucra que se cerdeia a talhos brutos, ponta abaixo, ponta acima...

E mal que sentiu-se livre sacudiu a cabeça, azonzada, relanceou os olhos assombrados, arrepanhou as anáguas

40 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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e disparou mato dentro, como uma anta...– Cachorra!... vai-te!... rugiu o chiru, limpando o fer-

ro na manga da japona. E olhando o corpo do capitão, cuspiu-lhe em cima, resmungando:

– Pois é... seduziu... e agora queria degolar... E mui triste, pra mim:

– Vancê vai dar parte de mim?– Esta é a Rosa, a tua fi lha?– Sim, senhor, que eu criei com tanto zelo!...E mais não pudemos dizer, porque o entrevero ron-

dou para o nosso lado... e tivemos que fazer pela vida!... No meio do berzabum o Picumã ainda achou jeito de atirar uns quantos tições pra dentro da carreta... e daí a pouco o fogo lavorava forte naquele ninho de amores... A la fresca!... que ninho!...

Alguém gritou: o capitão stá morto!... Vamos embo-ra!...

Um de a cavalo atravessou-o no lombilho e fomos re-tirando, tiroteando sempre.

Mas a trança não ia mais na mão do morto.

Passaram-se uns três meses largos; em muita corre-ria andamos, surpresas, tiroteios, combates sérios.

Um dia um estancieiro regalou-me um pingo tordi-lho, pequenitate, mas mui mimoso. Quando eu ia sentar-lhe as garras, apareceu-me o Picumã, sempre esfranga-lhado e com cara de sono e disse-me, desembrulhando um pano sujo:

– Vim trazer-te um presente; é um trançado feito por mim; e há de fi car mui bem no tordilho, porque é pre-to...

E ajeitou na cabeça do cavalo um buçalete e cabresto preto, de cabelo, trançado na perfeição. Nunca passou-me pela cabeça cousa nenhuma a respeito...

O meu esquadrão marchou para a fronteira; depois andamos de Herodes para Pilatos, até que no combate das Tunas... fomos topar com os antigos companheiros de divisão. Brigamos muito, nesse dia. Aí ganhei as mi-nhas batatas de sargento.

Não sei como ele soube, mas de noute um fulano pro-curou-me dizendo que o soldado Juca Picumã, um chiru velho, que estava muito ferido, pedia para eu não deixá-lo morrer sem vê-lo.

Lá fui. Estava o chiru deitado nas caronas e todo rea-tado de panos, pela cabeça, nas costelas, nas pernas.

O coitado gemia surdo, de boca fechada; e às vezes cuspia preto...

Quando me viu, à luz de uma candeia de barro fresco, quis mexer os ossos e não pôde...

– Então, Picumã... homem afl oxa o garrão?E ele falou tremendo a voz:– Estou... como um crivo... Eram oito... em cima... de

mim... só pude... estrompar... cinco!... Vancê... ainda... tem... aquele buçalete?...

– Tenho sim; meio estragado; mas tu ainda hás de compô-lo, não é?

– Não... eu queria... eu queria... lhe... lhe pedir... ele, outra vez... pra... pra mim...

– Pois sim, dou-te! Amanhã trago-te!– É do... cabelo da Rosa... a trança... lembra-se?...Levantei-me, como se levasse um pregaço no costi-

lhar... O buçalete era feito do cabelo da china?!... E aque-le chiru de alma crua... E quando fi rmei a vista no índio, ele arregalou os olhos, teve uma ronqueira gargalejada e fi nou-se, nuns esticões...

Nessa mesma madrugada fui mandado num piquete de reconhecimento, de forma que não soube onde nem como foi enterrado o Picumã, porque o meu desejo era atirar-lhe pra cova aquele presente agourento...

Agourento... agourento não digo, porque afi nal en-quanto usei aquele buçalete nunca fui ferido... e ganhei de uma a quatro divisas...

Tem é que dobrei a prenda, reatei-a com um tento e soquei-a pro fundo da maleta, até ver...

Até que um dia, como lhe disse, soube que a Rosa morreu e então... ah!... já lhe disse também: atirei para a cova da china os cabelos daquela trança... doutro jeito, é verdade... mas sempre os mesmos!...

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Vancê pare um bocadinho; componha os seus arreios, que a cincha está muito pra virilha. E vá pitando um ci-garro enquanto eu dou dois dedos de prosa àquele andan-te... que me parece que estou conhecendo... e conheço mesmo!... É o índio Reduzo, que foi posteiro dos Costas, na estância do Ibicuí. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Vancê desculpe a demora, mas quando se encontra um conhecido de outro tempo – e então do tope deste! – a gente até sente uma frescura na alma!... Coitado, está meio acalcanhado... mas, bonzão, ainda!

Pois aquele cuerudo que vancê está vendo, teve grito d’ar-mas!... Vou contar-lhe uma alarifagem em que ele andou metido, e que só depois se soube, pelo miúdo, e isso mesmo porque a própria gente do caso é que contava.

O Reduzo foi nascido e criado na casa dos Costas, ain-da no tempo do velho, o Costa lunanco, um que foi alferes dos dragões do Rio Pardo. Este Costa lunanco era um pen-te-fi no, que naquele tempo arranjou tirar para ele e para os fi lhos – miudagem, ainda – como quatro sesmarias de campo, sobre o Ibicuí, pegadas umas nas outras, e com umas divisas largas... como goela de gringo!...

O chiru criou-se junto com os meninos, e desde ni-nhar e armar urupucas, até botar as vacas, irem aos ara-çás e pegar mulitas, tudo faziam juntos.

Quando eram já taluditos o velho começou a encostá-los no serviço, também sempre de companheiros; e assim foram aprendendo a campeirear, domando, capando... até saberem apartar boi gordo e tocar uma tropa.

Neste entrementes rebentou outra vez uma gangoli-na com os catelhanos.

Um os moços, que era um quebra largado, nomeado por Costinha, esse, foi dos primeiros a se apresentar ao comandante das armas, pra servir. E tais cantigas cantou ao velho Costa, que este deixou o Reduzo ir com ele, de companheiro e ordenança, porque o rapaz era cadete,

com estrela, e tinha direito.O chiru fi cou todo ganjento; imagine vancê que colhe-

ra, daqueles dois aruás!...Neste passo porém deu-se uma cousa em que o Costi-

nha nem tinha pensado.É rabo-de-saia, já se vê...O cadete tinha uma paixão braba por uma moça linda-

ça – a sia Talapa –, fi lha dum tal Severo, também fazendei-ro dali pertinho, obra de cinco léguas.

O moço Costinha de vez em quando aparecia por lá, matava as saudades; fazia umas agachadas, e vinha-se embora trazendo nos olhos o encantamento dos olhos da namorada.

O velho Severo parece que não queria o casamento dos dois, nem por nada; teimava e berrava que ela havia de casar-se era com o sobrinho dele, primo dela, um que tinha uma casa de negócio na Vila.

Esse tal era um ilhéu, mui comedor de verduras, e que para montar a cavalo havia de ser em petiço e isso mesmo o petiço havia de ser podre de manso... e até maceta... e nambi... e porongudo!...

A moça chorava que se secava, quando caçoavam-na com o primo e o casório.

Era mesmo uma pena, lhe digo... casar uma brasileira mimosa com um pé-de-chumbo, como aquele desgraçado daquele ilhéu... só porque ele tinha um bolicho em ponto grande!...

O caso é que o Costinha gostava da moça e a moça gos-tava dele: tem, é que não atavam nem desatavam... e o velho Severo puxava a pera, torcendo as ventas...

O ilhéu às vezes vinha à estância do tio, em carreti-nha...; veja vancê como ele era ordinário, que nem se ave-xava em aparecer de carretinha, diante da moça!... E era só cama com lençóis de crivo, para o primo; fazia-se sopa de verdura para o meco; e até bacalhau aparecia, só pra ele!...

Que isto das nossas comidas, um churrasco escorren-do sangue e gordura e salmoura... uma tripa grossa assada

Melancia – Coco Verde

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nas brasas... uma cabeça de vaquilhona... uma paleta de ovelha; e mogango e canjica e coalhada... e uns beijus e umas manapanças... e um trago de cana e um chimarrão por cima... e para rebater tudo, umas tragadas dum baio, de um naco bem cochado e forte... tudo isso, que é do bom e do melhor, para o ilhéu não valia nem um sabugo!...

Tuúh! diabo!... Até me cuspo todo quando me lembro daquele excomungado!...

Vancê está se rindo e fazendo pouco?... É porque van-cê não é daquele tempo... quando rompeu a independên-cia lá na Corte do Rio de Janeiro... e depois tivemos que ir pra coxilha fazer a guerra dos Farrapos, com seu general Bento Gonçalves, que foi meu comandante, sim senhor, graças a Deus... e mais os outros torenas!...

Galego, naquele tempo, era gente, vancê creia! Estân-cia, era dele; negócio, era dele; ofi cial, era só ele; era ar-rematante das sisas, ele; surgião, ele; padre-vigário, ele; e pra botar a milicada em cima dos continentistas... era ele!...

E cada presilha!...Gente da terra não valia nada!...Que é que vancê está dizendo?... O que nós somos hoje

a eles devemos? Qual! É verdade que uns inventaram plantação de trigo... isso, enfi m, era bom...; sempre era uma fartura; noutras casas plantavam e fi avam linho... também não era mau, isso; noutras cardavam lã... Algum mais vivaracho botava tenda e vendia mechifl arias ou prendas de ouro... nalguns trocava-se uns quantos couros por um pão de açúcar, e pipote de cana por qualquer meia dúzia de vacas. E sempre corria alguma dobla, de salário, e algum cruzado pela peonada de ajuste.

Mas, como quera... eram mui entonados, os reinóis.Onde é mesmo que eu estava? Ah!... O Costinha e a

sia Talapa tinham juramento entre eles, de se casarem, ainda que ela saísse de casa na garupa do namorado, se o carrança do velho Severo não consentisse. Com o ilhéu é que nunca!

Pois foi por estas alturas que os castelhanos bandea-ram a fronteira e o Costinha assanhou-se.

Foi uma despedida de arrebentar a alma! Ele deixou-

lhe de lembrança uma memória e ela deu-lhe um nega-lho de cabelo. E combinaram que pra qualquer recado ou carta ou aviso, ela teria o nome de Melancia e ele de Coco Verde. Só eles, ninguém mas saberia; que era para despis-tar algum xereta.

E como a despedida foi de noite, e ela veio acompanhá-lo até a porta... até a ramada, onde ele montou a cavalo... e como ventava forte, e a vela que um crioulo trazia apa-gou-se... parece que houve a roubada de uma boquinha... porque ele tocou a trotezito, calado, e ela, fi cou como entecada, no mesmo lugar, calada... Quem não soubesse jurava que se despediam enfunados, quando a verdade é

que se despediam chorando nos olhos, mas tocando mú-sica no coração... por causa daquela bicota arreglada no escuro, mas que valeu como um clarão!... Ninguém viu... só o Reduzo.

Nessa madrugada o cadete marchou.

O velho Severo deixou passar um mês ou mais; quando teve notícias de que as forças andavam bem longe, e tran-çadas com o inimigo, que ninguém de lá podia sair assim a dois tirões... sem falar nos balázios e nos lançaços – que isso era a boche! –, quando inteirou-se de tudo, mandou à Vila o capataz para vir acompanhando o sobrinho, a quem escreveu uma carta grande, fechada com mais obreias do que tragos de vinho tem um copo de missa, de padre gor-do!...

Ora!... Daí a uns dias o ilhéu batia na estância, de carre-tinha e com um carregamento de cousas. E já começaram a aferventar o casamento.

Imagine vancê o cerco em que se viu pobre da sia Tala-pa! Eram os pais dela; a parentalha; vizinhos velhos; can-cheiros da estância... tudo a dizer, a gabar, a achar até bonito o ilhéu...

E já foram alinhavando os papéis, e preparos de ves-tidos e doçarias, perus na engorda, leitões no chiqueiro, terneiras pros churrascos.

Uma negra que havia lhe dado de mamar era a única criatura que chorava com a moça... mas chorava escon-dido, a pobre, por medo do laço... De noite, fechadas no quarto, as duas abraçavam-se, rezavam e só diziam, no consolo de uma esperança:

– Mãe santíssima... valei-me!...– Nossa Senhora!... manda nhô Costinha aparecer!...Afi nal chegou o dia marcado. Veio o vigário com o

sancristão e gentama de toda parte; não digo bem: o velho Costa lunanco nem a família não foram convidados.

Mas assunte vancê como se preparam as cousas.Pela Vila tinha justamente passado a meia-rédea um

chasque para as forças em que servia o cadete. O chas-que era rapaz novo, alegre, mui relaci onado por aqueles meios; enquanto mudava de cavalo tinha ido tomar um refresco no negócio do ilhéu, e aí, pela gente da casa sou-be a nova do casamento, do dia certo, dos preparos da jan-tarola, enfi m, de tudo, tudo, pelo miúdo.

E mal que apertou os pelegos, montou, – e se foi – que o rei manda marchar, não manda chover.

Quando bateu no acampamento e entregou os ofícios que levava, procurou a rapaziada conhecida e portanto o Costinha, para dar a novidade do casório de sia Talapa com o primo.

Como touro de banhado laçado a meia espalda, assim fi cou o moço. Amassou o sombreiro sobre a orelha, afi ve-lou a espada e gritou:

44 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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– Me vou, e é já! Reduzo!– Pronto!– Encilha os nossos cavalos! Já! Vamos embora!... De-

serto!... Hei de lonquear aquele galego ordinário!... Deser-to... Deserto... acabou-se!

– Encilho? reperguntou o chiru.– Sim, coos diabos! – berrou o desesperado. Neste momento o clarim deu o toque de alarma... e

como pra acoquinar o pobre um cabo veio a toda pressa chamar o Costinha, de ordem do comandante... Veja van-cê que entaladela!

Pelos altos das coxilhas avistava-se uma partida do inimigo. O comandante então até deu ao Costinha uma prova de confi ança, pois encarregou-o de um carga sobre um fl anco dos atacantes...

E agora?!...Filho de tigre é pintado!...Diante do dever o moço engoliu a tristeza, e mesmo

não quis se desmoralizar, desertando justamente naquela hora de peleia.

Mas coriscou-lhe um pensamento... e logo montou, formou a gente, tomou a testa do piquete e disse ao Re-duzo:

– Procura-me, que te preciso!...Desembainhou a espada, deu um – viva a Sua Majes-

tade! – e despencou-se, fi rme nos estribos, com o chapéu caído pra trás, sobre um ombro, preso pelo barbicacho. E a gauchada, reboleando as lanças, carregou, a gritos, fa-zendo tremer a terra e o ar.

O Reduzo, de pura pabulagem, atou a cola do pingo e logo riscou, escaramuçando, na culatra dos companhei-ros.

E foi mesmo no meio da carga, entre gritos, juras, pa-lavrões, tiros, pontaços de espadas e coriscos de lanças, pechadas de cavalos, foi nesse berzabum do entrevero que o Costinha industriou o chiru:

– Tu, sai já; vai direto lá em casa, mas não chegues. A Talapa, depois d’amanhã, de noite, se casa, à força, com o ilhéu... Tu, mata cavalos, boleia e monta os que precisa-res... arrebenta-te, mas chega antes do casamento... Não digas a ninguém, nem lá em casa, que me viste, nem que sabes de mim... Mas vai ao velho Severo, mete-te lá, custe o que custar e acha jeito de dizer, que ela ouça, que o coco verde manda novas à melancia... Ela entende, compre-endes?... Eu sou o Coco Verde, ela é a Melancia... Só nós sabemos isso... e tu, agora. Vai. Tu vais adiante; logo mais eu sigo, se não morrer nesta revira. Vai, Reduzo!... Coco verde... Melancia... Não esqueças... Abaixa-te!... Abai!...

E enquanto o chiru se deitava no pescoço do cavalo e uma lança de três pontas escorregava-lhe por cima do espinhaço, o Costinha, com um tiro de pistola derrubava um gadelhudo lanceador... e continuava o sermão:

– Olha, não brigues... pra não perder tempo... Olha... é depois d’amanhã... Se dormires, se comeres no caminho, não chegas a tempo!... Sempre a meia-rédea, Reduzo! Eu não posso desertar agora... Senão, eu ia... Vou logo... ama-nhã. Tu, agora!... já sabes: Coco verde manda novas a Me-lancia...

Diz como quem não quer... Só ela entende... O que é preciso é que ela ouça...

–Acuda aquele, patrãozinho, que eu tempero estes!...Isso disse o chiru e esporeando o fl ete atirou-o contra

dois desalmados que iam degolar um ferido... emborcou-os a patadas e logo gritou ao moço:

– Já sei tudo! Deus ajude! Lá le espero!...E riscou campo fora, rumo da querência, ainda baten-

do na boca, num pouco caso dos castelhanos!

E bateu na marca!... Boleou e mudou cavalos alheios, pediu outros no caminho, tomou um, à força, largou os arreios porque rebentou-se-lhe o travessão e não tinha tempo para remendá-lo, mas com duas braças de sol, na tarde do casamento, veio dar no velho Severo, de em pêlo – pelego, e freio –, as boleadeiras na cintura, o facão atra-vessado no cinto, e sem mais nada; moído, estransilhado, estrompado, varado de fome, com sono, com frio, mas ainda de olho vivo e língua pronta, contando uma rode-la mui deslavada... que vinha de casa, andava campeando umas tambeiras... e uma vaca mocha, que não apareciam no gado manso, havia dois dias!...

O velho Severo pasmou...– Uêh! chiru!... Pois tu não tinhas ido com o seu Cos-

tinha?– Eu?... Não sr., patrão! Fui só levar uns cavalos até o meio do caminho e dei

volta. Diz que lá bala é como chuva... e lança, como rose-ta!... Não vê!... E dele mesmo, nem notícia nenhuma, té agora... Vancê dá licença de campear os alimais?

– Deixa isso pra amanhã.Hoje estamos de festa. Fica aí, pra tomares um copo

de vinho e comer uns doces à saúde do noivado... Vai pra o galpão...

– Sim, senhor patrão; Deus lhe pague. Eu hei de fazer uma saúde, sim se-

nhor...– Pois sim, pois sim; vai!O sorro entrou no galinheiro...Quando apeou-se, o chiru estava de pernas duras;

aguentou-se como um tigre, pra não dormir.Daí a pouco pegaram a jantarola. O casamento ia ser

de noite, depois da comida; depois do baile. Havia uns quantos cantadores, e violas; dava pra dançar a tirana, o anu e a mancada na casa grande e no terreiro.

O Reduzo foi se fazendo de chancho rengo... e foi se encostando pra janela da sala de jantar... e por ali foi co-

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mendo e bebendo, como soldado estradeiro, que não se aperta...

A noiva estava como um defunto: branca, esverdea-da, de olhos fundos e chorando sem alívio; a negra, ama, atrás dela, muito retinta, só mexia o branco dos olhos, pa-recia uma alma penada, do purgatório...

O ilhéu é que estava solto!...Parecia que tinha bicho-carpinteiro, o desgraçado!...Só estava era meio vendido com o o jeito da noiva,

mas fi ngia não se dar por achado, o velhaco...Um convidado levantou-se e fez uma saúde; depois

outro; e outro e outro; cada um fazia o seu verso. Havia risadas, o noivo agradecia... a noiva chorava.

Os convidados aplaudiam; moças também botaram versos; os rapazes respondiam; foi se virando tudo numa alegria geral.

Nisto o capataz da estância chegou à porta e pediu li-cença pra oferecer um verso à saúde do noivado, e botou uma décima bem bonita. Outros, posteiros e agregados, também.

Nesse entrementes o velho Severo perguntou:– Que é do Reduzo? Oh! Chiru?...– Pronto, patrão, respondeu o caboclo.– Então?... e a saúde prometida?– Já vai, sim senhor!E amontoando-se para a mesa, bem junto dos que es-

tavam sentados, frente a frente dos noivos, olhando pra sia Talapa o chiru levantou o copo e disse:

Eu venho de lá bem longe,Da banda do Pau Fincado: Melancia, coco verdeTe manda muito recado! E enquanto todos se riam e batiam palmas, enquanto

o ilhéu se arraganhava numa gargalhada gostosa, e o ve-lho Severo, mui jocoso, gritava – gostei, chiru! outra vez! – e enquanto se fazia uma paradita no barulho, a noiva se punha em pé como uma mola, e com uma mão grudada no braço da ama, já não chorava, tinha um coloreado no rosto e os olhos luziam como duas estrelas pretas!...

Lindaça fi cou, como uma Nossa Senhora!O Reduzo aproveitou o sofl agrante e soltou outro

verso:

Na polvadeira da estradaO teu amor vem da guerra:...

Melancia desbotada!...Coco verde está na terra!...

Amigo! Nem lhe sei contar o resto!...A noiva atirou-se pra trás e pegou aos gritos.A gente da mesa levantou-se toda; o mulherio correu,

pra acudir...O padre-vigário benzia pra os lados...O ilhéu olhou para o Reduzo, viu-lhe o facão atraves-

sado... e tomado dum mau espírito, gritou furioso e es-carlate:

– Foi esse negro, com tanta arma, que estarreceu a menina!

Um que estava perto do chiru gritou-lhe na cara:– Que desaforo é este?...O Reduzo – cuê-pucha! índio dente-seco! – largou-lhe

os cinco mandamentos, de em cheio!Porém caíram-lhe em cima; foi uma desgraceira!O ilhéu, do outro lado da mesa sampou-lhe com uma

botija de bebida, que acertou bem entre o queixo e o ou-vido do chiru...

Fechou o salseiro, nem se sabia bem com quem.Nessa inferneira o Reduzo mergulhou por baixo da

mesa e quando surdiu, foi para arriar o braço, dar uma volta na traíra e reiunar o ihéu...

E antes que o picassem – que o picavam! – pulou por uma janela e se foi ao galpão onde montou no primeiro matungo que encontrou e abriu os panos!...

O resto é simples.Passados dois dias chegavam o Costinha, como bagual

com couro na cola; e apresentou-se ao velho Severo, pe-dindo a mão da moça. O velho teve de desembuchar, con-tar o compromisso em que estava e que até havia se de-morado o casamento por causa dum estrupício mui bruto, que tinha havido... O Costinha não quis saber de nada... armou banzé...; veio a moça à fala...

Vancê imagina: rebentou o laço pra mais de quatro... Pra não afrontar o velho Severo, o Reduzo teve de

andar escondido. Tempos depois do Costinha já casado, então o chiru tomou conta dum posto; depois passou a capataz.

Era a confi ança da casa.Veja vancê que artes de namorados: Melancia... Coco

verde!...

46 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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Foi depois da Batalha de Ituzaingó, no Passo do Ro-sário, pra lá de S. Gabriel, do outro lado do banhado de Inhatium. Vancê não sabe o que é inhatium?

É mosquito: bem posto nome!Banhado de Inhatium... Virge Nossa Senhora!...

mosquito, aí, fumaceia, no ar!Eu era gurizote: teria, o muito, uns dez anos; e an-

dava na companha do meu padrinho, que era capitão, para carregar os peçuelos e os avios de chimarrão.

As cousas da peleia não sei, porque era menino e não guardava as conversas dos grandes; o que eu que-ria era haraganear; mas, se bem me lembro, o meu pa-drinho dizia que nós estávamos mal acampados, e es-transilhados, pensando culatrear o inimigo, mas que este é que nos estava nos garrões; não havia bombei-ros nem ordem, que o exército vinha num berzabum, e que o general que mandava tudo, que era um tal Bar-bacena, não passava de um presilha, que por andar um dia a cavalo já tinha que tomar banhos de salmoura e esfregar as assaduras com sebo...

O meu padrinho era um gaúcho mui sorro e acos-tumado na guerra, desde o tempo das Missões, e que mesmo dormindo estava com meio ouvido, escutan-do, e meio olho, vendo...; mesmo ressonando não desgrudava pelo menos dois dedos dos copos da ser-pentina...

Num escurecer, enquanto pelo acampamento os soldados carneavam e outros tocavam viola e canta-vam, ou dormiam ou chalravam, o que sei é que nesse escurecer o meu padrinho mandou pegar os nossos cavalos; e encilhamos até a cincha; e depois nos dei-tamos nos pelegos, com os pingos pela rédea, mane-ados: ele, armado, mateando; eu, enroscadito no meu

bichará, e o ordenança, que era um chiru ombrudo, chamado Hilário, pitando.

Eu, como criança, peguei logo a cochilar.Amigo! Vancê creia: o coração às vezes, trepa, den-

tro da gante, o mesmo que jaguatirica por uma árvore acima!...

Lá pelas tantas, ouvia-se cornetas e clarins e rufos de caixa...; mas o som dos toques andava ainda galope-ando dentro do silêncio da noite quando desabou em cima de nós a castelhanada, a gritos, e já nos fumegan-do bala e bala!...

Numa arrancada dessas é que o coração trepa, den-tro da gante, como gato...

– Desmaneia e monta! – gritou o meu padrinho; ele que falava, eu e o chiru que já estávamos enforquilha-dos nas garras.

E por entre as barracas e ramadas; por entre os fo-gões meio apagados, onde ainda havia fincados espe-tos com restos de churrascos; por entre as carretas e as pontas de bois mansos e lotes de reiúnos; no fusco-fusco da madrugada, com uma cerraçãozita o quanto quanto; por entre toques e ordens e chamados, e a choradeira do chinaredo e o vozerio do comércio, já no cheiro da pólvora e em cima dos primeiros feridos, formou-se o entrevero dos atacantes e dos dormilões.

E cantou o ferro... e choveu bala!...O meu padrinho levantou na rédea o azulego: e de

espada em punho; o chiru, com uma lança de meia-lua – e eu entre os dois, enroscadito no meu bichará – nos botamos ao grosso do redemoinho, para abrir caminho para o quartel-general do dito Barbacena.

Como lá chegamos, não sei.A espada do meu padrinho estava torcida como um

cipó, e vermelha, e o azulego tinha uns quantos lanhos

O anjo da Vitória

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Page 48: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

na anca; o Hilarião tinha um corte de cima a baixo da japona, e eu levei um lançaço, que por sorte pegou no malote do poncho.

Mas, varamos.

No quartel de Barbacena ninguém se entendia.A oficialada espumava, de raiva. E um cutuba, bai-

xote, já velho, botava e tirava o boné e metia as unhas na calva, furioso, de raiar sangue!...

Esse, era um tal general Abreu... um tal general José de Abreu, valente como as armas, guapo como um leão... que a gauchada daquele tempo – e que era torenada macota! – bautizou e chamava de – Anjo da Vitória!

Esse, o cavalo dele não dava de rédeas para trás,

não! Esse, quando havia fome, apertava o cinto, com os outros e ria-se!

Esse dormia como quero-quero, farejava como cer-vo e rastreava como índio... Esse, quando carregava, era como um ventarrão, abrindo claros num matagal.

Com esse... castelhano se desguaritava por essas coxilhas o mesmo que bandada de nhandu, corrida a tiro de bolas!...

Era o Anjo da Vitória, esse! Daí a pouco apareceu um outro oficial, mocetão

bonito, que era major. Este chamava-se Bento Gonçal-ves, que depois foi meu general, nos Farrapos.

Os dois se conversaram, apalavraram os outros e tudo montou e tocou pra rumos diferentes.

No acampamento estrondeava a briga.Já tinha amanhecido.

Eu andava colado ao meu padrinho, como carrapa-to em costela de novilho. Por onde ele andou, andei eu; passou, passei; carregava, eu carregava; fazia cara-volta, eu também.

Naquelas correrias, o meu bicharazito, às vezes, enchia-se de vento, e voava, batia aberto, que nem uma bandeira cinzenta...

O major Bento Gonçalves formando a cavalaria, aguentava, como um taura, as cargas do inimigo, para ir entretendo, e dar tempo à nossa gente de quadrar-se, unida.

Os castelhanos, mui ardilosos, logo que aquentou o sol tocaram fogo nos macegais onde estava o carreta-me; o vento ajudou, e enquanto eles carcheavam a seu gosto, uma fumaça braba tapou tudo, do nosso lado!...

Então o general Abreu no alto do coxilhão formou

os seus esquadrões; o meu padrinho comandava um deles.

Formou, fez uma fala à gente e carregou, ele, na frente, montado num tordilho salino, ressolhador.

Oh! velho temerário! Firme nos estribos, com o boné levantado sobre o cocuruto da cabeça, a espada apontando como um dedo, faiscando, o velhito pon-teou aquela tormenta, que se despenhou pelo lançante abaixo e afundou-se e entranhou-se na massa cerrada do inimigo, como um cunha de nhanduvai abrindo em dois um moirão grosso de guajuvira... E deixando uma estiva de estrompados, de mortos, de atarantados, de feridos e de morrentes – como quando rufa um rodeio chucro... vancê já viu? – varou para o outro lado, man-dou fazer – alto, cara-volta! – e mal que reformou os esquadrões, os homens chalrando e rindo, a cavalha-da, de venta aberta, bufando ao faro do sangue e tro-cando orelha, pelo alarido, o velho já se bancou outra vez na testa, gritou – Viva o Imperador! – e mandou – Carrega!

E a tormenta da valentia rolou, outra vez, sobre o

campo.Mas nesta hora maldita, a fumaça maldita nos ro-

deava e cegava; e mal íamos dando lance à carga – eu, folheirito, abanando no mais o meu bichará, pra o Hilarião – rebentou na vanguarda e num flanco a fu-zilaria, e vieram as baionetas... e uma colubrina, que nos tiroteavam donde não podia ser!...

A nossa cavalaria se enrodilhou toda, fazendo uma enrascada de mil diabos... e enquanto o tiroteio nos estraçalhava, que os ginetes e os cavalos caíam, varados, e que, por fim, os próprios esquadrões já iam rusgando uns com os outros – aí, amigo, andei eu às pechadas! – enquanto isso... veio uma rajada forte de vento, que varreu a fumaça, limpou a vista de todos e mostrou que era a nossa infantaria que nos tinha feito aquela desgraça...

Então, por cima dos mortos e feridos houve um

silêncio grande, de raiva e de pena... como de quem pede perdão, calado... ou de quem chora de saudade, baixinho...

Lá longe, os castelhanos, enganados, tocaram a re-

tirada. O nosso quartel-general também tocou a reti-rada.

Pegou a debandada; dispersava-se a gente por to-dos os lados, aos punhados, botando fora as pedernei-ras, as patronas; muitos sotretas fugiram de cambu-lhada com o chinerio...

Metades de batalhões arrinconavam-se; outras en-cordoavam marcha.

Os ajudantes galopavam conduzindo ordens... mas parecia que toda a força ia fugindo duma batalha per-

48 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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dida, que não era, porque tudo aquilo era da indisci-plina, somentes.

O Anjo da Vitória lá ficou, onde era a frente dos

seus esquadrões, crivado de balas, morto, e ainda se-gurando a espada, agora quebrada.

Campeei o meu padrinho: morto, também, caído ao

lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de peça; ali junto, apertando ainda a lança, toda lasca-da, estrebuchava o Hilarião, sem dar acordo, aiando, só aiando...

Deitado sobre o pescoço do cavalo, comecei a cho-rar.

Peguei a chamar:– Padrinho! padrinho!...– Hilarião! Meu padrinho!...Apeei-me, vim me chegando e chamando – padri-

nho!... padrinho!... E tomei-lhe a benção, na mão, já fria;... puxei na manga do chiru, que já nem bulia...

Sem querer fiquei vendo as forças que iam-se mo-

vendo e se distanciando... E num tirão, quando ia mon-tar de novo sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e gaúcho, sem nin-guém pra me cuidar!...

Foi então que, sem saber como, já de a cavalo, en-

quanto sem eu sentir as lágrimas caíam-me e rolavam sobre o bichará, os olhos se me plantaram sobre o tor-dilho salino... sobre o coto da espada... sobre um boné galoado...

E o cabelo me cresceu e fiquei de choro parado... e ouvi, patentemente, ouvi bem ouvido, o velho macota, o Anjo da Vitória, morto como estava, gritar ainda e forte – Viva o Imperador! Carrega!

O meu bicharazito se empantufou de vento, des-

dobrou-se, batendo como umas asas... o mancarrão bufou, recuando, assustado... e quando dei por mim, andava enancado num lote de fujões...

Comi do ruim... Vê vancê que eu era guri e já corria mundo...

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Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibi-rocaí.

Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira; à luz do sol, no des-maiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!...

Conhecia as querências, pelo faro; aqui era o chei-ro do açouta-cavalo fl orescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leve, com sabor de barro ou sabendo a limo.

Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingó; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.

Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado

sempre, por ser muito de mãos abertas.Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada

de balastracas, reunia a gurizada de casa, fazia – pi! pi! pi! pi! – como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro.

Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, fi cando en-tupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num – caim! caim! caim! – de de-sespero.

Outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fi m do festo, quan-do já estava tudo meio en-tropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!...

Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán...

Era um pagodista! Aqui há poucos anos – coitado! – pousei no arran-

chamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilia-do. Não nos víamos desde muito tempo.

A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de fi lhos, uns três ma-talotes já emplumados e uma mocinha – pro caso, uma moça –, que era o – Santo-Antoninho-onde-te-porei! – daquela gente toda.

E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habi-lidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.

E noiva, casadeira, já era.E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas

vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.

O noivo chegou no outro dia; grande alegria; come-çaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fi quei pro festo.

O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para bus-car o tal enxoval da fi lha.

Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito

Contrabandista

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em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu...

Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro.

Nesta terra do Rio Grande sempre se contraban-

deou, desde em antes da tomada das Missões.Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e

mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços; abanava o poncho e vinha a meia-rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.

Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pa-gavam desquitando-se do mesmo jeito.

Só se cuidava de negacear as guardas de Cerro Lar-go, em Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea!

Depois veio a Guerra das Missões; o governo come-çou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...

Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, con-quistaram e defenderam estes pagos!...

Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesma-rias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...

Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam.

Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua liccença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...

Também só na vila de Porto Alegre é que havia bara-lhos de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fi cal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!

Por esses tempos antigos também o tal rei nosso se-nhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos ou-tros lugares desta terra, só pra dar fl ux aos reinóis...

Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia

andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!...

E logo com quem!... Com a gauchada!... Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou man-

davam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e ninguém pagava dízimos dessas cousas.

Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com can-galhas e tudo, numa explosão de pólvora; doutras uma partida de milicianos saía de atravessado e tomava con-ta de tudo, a couce de arma: isto foi ensinando a escara-muçar com os golas-de-couro.

Nesse serviço foram-se afi cionando alguns gaúchos; recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.

Os paisanos das duas terras brigavam, mas os merca-dores sempre se entendiam...

Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Far-rapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; de-pois a guerra do Rosas.

Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis

e gringos emigrados.A cousa então mudou de fi gura. A estrangeirada era

mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e fi car de cabeça enxuta...; entrou nos ho-mens a sedução de ganhar barato: bastava ser campei-ro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, apor-rear algum subdelegado abelhudo...

Não se lidava com papéis nem contas de cousas; era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entre-gar!...

Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.Rompeu a guerra do Paraguai.O dinheiro do Brasil fi cou muito caro: uma onça de

ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer qua-renta e seis mil réis!... Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!...

Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, água de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a qua-tro!... Era só pedir por boca!

Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, a desovar aqui...

Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...

Ora!... ora!... Passar bem paisano!... A semente gre-lou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do con-trabando de hoje.

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O Jango Jorge foi maioral nesses estrupícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi.

Como disse, na madrugada vespra do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da fi lha.

Passou o dia; passou a noite.No outro dia, que era o do casamento, até de tarde,

nada.Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vi-

zinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá.

Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala.

Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergan-do ao peso dos pratos enfeitados.

A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandi-nas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.

Às vezes mandava um dos fi lhos ver se o pai apa-recia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga coberta de arvoredo.

Surdiu de um quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, dité-rios, elogios.

Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas fl ores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.

As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.Entardeceu.Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fi ze-

mos uma algazarra e ela – tão boazinha! – veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chi-ta de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.

A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lá-grimas grandes, que rolavam devagar dos olhos pesta-nudos...

E rindo e chorando estava, sem saber por quê... sem

saber por quê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:

– Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...Foi um vozerio geral; a moça porém fi cou, como esta-

va, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez me-nos sem saber por quê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas fl ores de noiva...

Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva;

mas num silêncio, tudo.E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e

abrindo todos os olhos.Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o

corpo entregue de um homem, ainda de pala enfi ado...Ninguém perguntou nada, ninguém informou de

nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava aca-bada e a tristeza começada...

Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfei-tado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos che-gados disse:

– A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de balas... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!

A sia dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o.

Era o vestido branco da fi lha, o sapato branco, o véu branco, as fl ores de laranjeira...

Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de fei-tios estrambólicos... como folhas de cardo solferim es-magadas a casco de bagual!...

Então rompeu o choro na casa toda.

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54 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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Pois olhe: eu já vi jogar-se uma mulher num tiro de taba. Foi uma parada que custou vida... mas foi jogada!

Um pouco pra fora da Vila, na volta da estrada, meti-da na sombra dumas fi gueiras velhas fi cava a vendola do Arranhão; era um bolicho mui arrebentado, e o dono era um sujeito alarifaço, cá pra mim, desertor, meio espa-nhol meio gringo, mas mui jeitoso para qualquer arreglo que cheirasse a plata...

Mui destravado da língua e ao mesmo tempo rezador, sempre se santiguando e olhando por baixo, como porco, tudo pra ele era negócio: comprava roubos, trocava cou-sas, emprestava pra jogo, com usura, e sempre se atrapa-lhava para menos, no troco dos pagamentos.

Às vezes armava umas carreiritas, que se corriam numa cancha dumas três quadras que ele mesmo tinha arranjado a um lado do potreiro; então conchavava al-gum gringo tocador de realejo e estava preparado o di-vertimento. O que ele queria era gente, peonada, andan-tes, vagabundos, carreteiros, para poder vender canha e comida e doces; e de noite facilitava umas mesas de primeira, de truco ou de sete-em-porta para tirar o cafi -fe. Doutras ocasiões ajeitava umas dançarolas que alvo-rotavam o chinaredo da vizinhança.

Por este pano de amostra vancê vê o que seria aquele gavião.

Duma vez que ele tinha trançado umas carreiras, com

duas ou três pencas de patacão, e se havia ajuntado al-gum povo, tudo gauchada leviana, choveu.

A chuvarada estragou a cancha, molhou as carpetas, atrapalhou tudo.

E a gente foi ganhando na venda, apinhoscou-se por debaixo das fi gueiras e no galpão.

Quando passou o aguaceiro e oreou o terreiro, deram alguns afi cionados para jogar o osso.

Vancê sabe como é que se joga o osso? Ansim:

Escolhe-se um chão parelho, nem duro, que faz saltar, nem mole, que acama, nem areento, que enterra o osso.

É sobre o fi rme e macio, que convém. A cancha com uma braça de largura, chega, e três de comprimento; no meio bota-se uma raia de piola, amarrada em duas esta-quinhas ou mesmo um risco no chão, serve; de cada cabe-ça da cancha é que o jogador atira, sobre a raia do centro: este atira daqui pra lá, o outro atira de lá pra cá.

O osso é a taba, que é o osso do garrão da rês vacum. O jogo é só de culo ou suerte.

Culo é quando a taba cai com o lado arredondado pra baixo; quem atira assim perde logo a parada. Suerte é quando o lado chato fi ca embaixo: ganha logo e sempre.

Quer dizer: quem atira culo perde, se é suerte ganha e logo arrasta a parada.

Ao lado da raia do meio fi ca o coimeiro que é o sujeito depositário da parada e que a entrega logo ao ganhador. O coimeiro é que também tira o barato – para o pulpeiro. Quase sempre é algum aldragante velho e sem-vergonha, dizedor de graças.

É um jogo brabo, pois não é?Pois há gente que se amarra o dia inteiro nessa ca-

chaça, e parada a parada envida tudo: os bolivianos, os arreios, o cavalo, o poncho, as esporas. O facão nem a pis-tola, isso sim, nenhum afi cionado joga; os fala-verdade é que têm de garantir a retirada do perdedor sem debo-cheira dos ganhadores... e, cuidado... muito cuidado com o gaúcho que saiu da cancha do osso com a marca quen-te!...

Pois dessa feita se acolheraram a jogar a taba o Osoro

e o Chico Ruivo.O Osoro era um moreno mui milongueiro, compositor

de parelheiros e meio aruá; andava sempre metido pelos ranchos contando histórias às mulheres e tomando mate de parceria com elas.

Jogo do osso

55 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

Page 56: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

O Chico era domador e morava de agregado num rin-cão da estância das Palmas; e vivia com uma piguancha bem jeitosa, chamada Lalica.

Neste dia tinha vindo com ela ao festo do Arranhão.Enquanto os dois jogavam, a morocha andava lá por

dentro, com as outras, saracoteando.Havia violas; havia tocadores; a farra ia indo quente.E os dois, jogando. O Chico perdia uma em cima da

outra.– Culo! Outra vez?... Marraios!... – Suerte, chê! Ganhei! – repetia o Osoro.– Jogo-te o tostado, aperado, valeu?– Topo!– E culo!... Isto é mau olhado dalgum roncolho mirone!...E relanceou os olhos pelos vedores, esperando que al-

gum comprasse a camorra; ninguém se picou.– Jogo o teu ruano contra as duas tambeiras da Lalica!– É pouco, Chico!... Ainda se fosse a dona!...– Osoro, não brinca!... Pois olha; jogo!– O ruano?– O ruano contra a Lalica! Assim como assim, esta china

já está me enfarando!...– Pois topo!Os mirones se entreolharam, boquejando, alguns;

eles bem viam que o gaúcho estava sem liga, que já tinha perdido tudo, o dinheiro, o cavalo, as botas, um reben-que com argolão de prata; e agora, o outro, o Osoro, para completar o carcheio, ainda tinha topado a última para-da, que era a china...

A cousa ia ser tirana; correu logo voz; em roda dos dois amontoou-se a gente.

O Osoro atirou, e deu suerte...O Ruivo atirou e deu suerte...– Ora, não deu gosto! – disse um – Outra mão! – disse o outro E o Ruivo atirou: culo!O Osoro atirou: suerte!– Ganhei, aparceiro!– Pois toma conta, ermão!– Tu é que tens de fazer a entrega!...– Não tem veremos... Trato é trato!...Já ia querendo anoitecer. O que se passou entre aquelas três criaturas, não sei; se

juntaram num canto do balcão da venda e falaram. Por certo que o Chico Ruívo disse à china que a jogara numa parada de taba; o Osoro só disse uma vez:

– Eu, se perdesse o ruano, o Chico já ia daqui montado nele...

A Lalica deu uma risadinha amarela; olhou o Osoro, olhou o Chico Ruivo, cuspiu de nojo e disse pra este, na cara:

– Sempre és muito baixo!..., guampudo, por gosto!...

– Olha, guincha, que te grudo as chilenas!...– Ixe! Este, agora, é que me encillha, retalhado!... Nisto um violeiro pegou a rufar uma dança chorada;

umas parelhas pegaram a se menear no compasso da mú-sica e logo o Osoro, para cortar aquele aperto, travou do pulso da morocha, passou-lhe o braço na cinta e quase levando-a no ar entrou na roda dos dançadores; o Ruivo fi cou quieto, mas de goela seca e nos olhos com uma luz diferente.

Na primeira volta, quando o par passou por ele, a china ia dizendo mui derretida:

– Quando quiseres, meu negro...Na segunda volta, como num despique, ela tornou a

boquejar pro Osoro:– Eu vou na tua garupa...E na outra, a china vinha calada, mas com a cabeça deita-

da no peito do par, ohando terneira pra ele, com uma luz de riso, os beiços encolhidos, como armando uma promessa de boquinha; e o Osoro se esqueceu do mundo... e colou na boca da tentação um beijo gordo, demorado, cheio de desaforo...

O Chico Ruivo teve um estremeção e deu um urro entu-pido, arrancou do facão e atirou o braço pra diante, numa cegueira de raiva, que só enxerga bem o que quer matar...

E vai, como pegou o Osoro pela esquerda, do lado,

meio por detrás, por debaixo da paleta, o facão saiu no rumo certo e foi bandear a Lalica meio de lado, sobre a esquerda da frente.

Vancê comprende? Do mesmo talho varou os dois co-rações, espetou-os no mesmo ferro, matou-os da mesma morte, fazendo os dois sangues, num de cada peito, cor-rerem juntos num só derrame... que foi lastrando pelo chão duro, de cupim socado, lastrando... até os dois cor-pos baterem na parede, sempre abraçados, talvez mais abraçados, e depois tombarem por cima do balcão, onde estava encostado o tocador, que parou um rasgado boni-to e fi cou olhando fi xe para aquela parelha de dançarinos morrentes e farristas ainda!...

Levantou-se uma berraçada.– Matou! Foi o Chico Ruivo!... Amarra! Cerca!...Mas o Ruivo parece que voltou a si; coriscou o facão

aos dois lados e atropelou a porta, ganhou o terreiro e se foi ao palanque onde estava o ruano do Osoro: mon-tou e gritou pra os que fi cavam:

– Siga o baile!...E deu de rédea, no escuro da noite.

O Arranhão acudiu ao berzabum; aquele safado, curtido na ciganagem só soube dizer:

– Pois é... jogaram o osso, armaram a sua parranda... mas nenhum pagou nada ao coimeiro!... Que trastes!

56 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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Já um ror de vezes tenho dito e – provo – que fui ordenança do meu general Bento Gonçalves.

Este caso que vou contar pegou o começo no fi m de 42, no Alegrete, e foi acabar num 27 de fevereiro, daí dois anos, nas pontas do Sarandi, pras bandas e já per-tinho de Santana.

Foi assim. Tenho que contar pelo miúdo, pra se en-tender bem. Em agosto de 42, o general, que era o Pre-sidente da República Rio-Grandense – vancê desculpe... estou velho, mas inté hoje, quando falo da República dos Farrapos, tiro o meu chapéu!... – o general fez um papel, que chamavam-lhe – decreto – mandando ordens pruma eleição grande, para deputados; estes tais é que iam combinar as leis novas e cuidar de outras cousas que andavam meio à matroca, por causa da guerra.

Em setembro houve a eleição; em outubro já se sabia quem eram os macotas votados, que eram quase todos os torenas que andavam na coxilha. O jornal do gover-no deu uma relação deles e dos votos que tiveram, que eu sabia, mas já esqueci.

Por sinal que esse jornal chamava-se – Americano – e tinha na frente um versinho que saía sempre escrito e publicado e que era assim, se bem me lembro:

“Pela Pátria viver, morrer por ela;Guerra fazer ao despotismo insano;A virtude seguir, calcar o vício;Eis o dever de um livre Americano”.

Em novembro, os deputados, que eram trinta e seis, mas que só se apresentaram vinte e dois, juntaram-se em assembleia; em dezembro, logo no dia um, foi então a cerimônia principal.

O general foi em pessoa, como presidente, com a mi-

nistrada, os comandantes de corpos e outros topetudos, e aí fez uma – Fala – muito sisuda e compassada, que todos escuitaram quietos, só sacudindo a cabeça, como quem dizia que era mesmo como o general estava lendo no escrito.

Uê!... e que pensa vancê?... Estava tudo na estica, sim senhor: fardas novas, bainhas de espada, alumiando; re-dingotes verdes ou azuis com botões amarelos, padres com as suas batinas saidinhas; um estadão! E famílias, muita moçada fachuda, povaréu, e até uma música. Eu e o outro ordenança, os dois, mui anchos, de gandola colorada.

Por esses entrementes, no Estado Oriental, andava gangolina grossa entre Oribe e Rivera, que eram os dois que queriam o penacho de manda-tudo. Volta e meia as partidas deles se pechavam e sempre havia entrevero.

Ah! se vancê visse a indiada daquele tempo... cada gadelhudo... Ah! bom!...

Mas, como quera, onde se encontrasse, a nossa gente entropilhava-se bem com a deles. E mesmo era ordem dos supriores.

Quando íamos mal de vida, já pelas caronas, nos ban-deávamos para o outro lado da linha; lá se churrasque-ava, fazia-se uma volteada de potrada e voltávamos à carga, folheiritos no mais!

O barão Caxias, que era o maioral dos caramurus, mordia-se com estas gauchadas.

Mas tanto Oribe como Rivera nos codilhavam quan-do podiam, porque faziam também suas fosquinhas aos legais... apertavam o laço pra nós, mas afrouxavam a ilhapa pra eles...

Vancê entende?... Pau de dois bicos!...Mas, vá vancê escuitando. Rabo-de-saia é sempre precipício pros homens...

Duelo de Farrapos

57 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

Page 58: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

Não vá vancê cuidar que no caso andou mulher bo-tando fungu no coração de ninguém, não, senhor; a coi-sa foi muito outra, de alarifage...

Naquele novembro de 42, quando os deputados foram-se ajuntando, de um a um, vindos de todos os rumos da província da República e havia na vila do Ale-grete movimento de comitivas e piquetes, um dia, já à boquinha da noite, chegou uma carreta de campanha, mui bem toldada, com boiada gorda, e escoltada por um acompanhamento grande, de gente bem montada e armada.

Chegou o combói e parou no meio da praça; e logo o que vinha de vaqueano cortou-se e foi apresentar o passe e outros papéis; e foi dizendo que a pessoa que vinha na carreta era uma senhora dona viúva, que tra-zia ofício pra o governo e que era sobre uns gados que haviam sido arrebanhados e cavalhadas, e prejuízos e tal, e mais uma conversa por este teor e com mais vol-tas que um laço grande enrodilhado...

Foi isso o que correu logo no redepente da curiosi-dade.

Papéis foram que a tal dona trazia, que logo o ge-neral mandou chamar os deputados e os ministros e depois se trancaram todos numa sala grande; e depois despachou um capitão para ir buscar a fi gurona.

E ela veio; e mal que chegou o general veio à porta, fez um rapapé rasgado e foi com ela pra tal sala onde estavam os outros.

Se era linda a beldade!... Sim, senhor, dum gaúcho de gosto alçar na garupa e depois jurar que era Deus na terra!...

E destorcida, e bem-falante; e olhava pra gente, como o sol olha pra água: atravessando!

Dentro da sala, fechada, ia um vozerio dos homens; depois serenava; parece que eles estavam mussitando; e a voz da dona repinicava, hablando un castellano de mi fl or!

Lá pelas tantas levantaram o ajuntamento; o mesmo capitão foi levar a dona. E, de manhã, nem carreta, nem boiada, nem comitiva apareceram mais.

Depois é que vim ao conhecimento que aquela fi gu-rona tinha vindo de emissária.

Rivera era mais valente; Oribe era mais sorro; mas, os dois, matreiraços!...

Agora, qual dos dois, pra disfarçar dos caramurus o chasque, mandou, em vez dum homem aquela vivara-cha, qual dos dois foi, não pude sondar.

Era assunto encapotado...Depois desse dia começou a haver um zunzum mui

manhoso contra o general...Não sei se era inveja, ou intrigas ou queixas ou ga-

nas que alguns lhe tinham. As cousas foram-se parando embrulhadas na tal assembléia e uma feita, não sei por

que chicos pleitos o general e o coronel Onofre Pires tiveram um desaguisado; o general deu as costas, num pouco caso e o coronel saiu, num rompante, batendo forte os saltos dos botins.

Em 43 houve outra arrancada braba, foi quando ma-taram um Paulino Fontoura, que era um pesado. Houve outro bate-barbas entre o general e o coronel Onofre, que era mui esquentado e cosquilhoso.

Mas logo os chefes todos se desparramaram, porque o barão Caxias andava na estrada, levantando polvadei-ra.

E brigou-se!Em São Gabriel, na Vacaria, em Ponche Verde, no

Rincão dos Touros. O governo tinha saído do Alegrete e estava outra vez em Piratinim; aí por perto peleou-se, e no Arroio Grande, em Jaguarão, nas Missões, sobre o Quaraim, em Canguçu, em Pai Passo.

Que ano que bebeu sangue, esse!E quando o exército se amontoou todo, pra lá do Ibi-

cuí e depois foi estendendo marcha, houve um conselho grande de ofi ciais; e aí se falou outra vez na emissária, a fulana, aquela da carreta, no Alegrete. Aí, então, os dois galões-largos se contrapontearam outra vez.

A gente como eu é bicho bruto e os graúdos não dão confi ança de explicar as cousas, por isso é que eu não sei muitas delas: tenência não me faltava; mas como é que eu ia saber as de adentro dos segredos?...

Já sobre o Garupá – vancê não conhece? são os cam-pos mais bonitos do mundo! – aí os homens se cartea-ram.

Então já era o ano 44.O coronel escreveu barbaridades; o general respon-

deu com aquele jeito dele, sisudo.E quando foi no dia 27 de fevereiro o general me cha-

mou e mandou que eu fosse levando pela rédea, para a restinga, os dois cavalos que estavam atados debaixo de um espinilho; era um picaço grande e um colorado.

Fui andando; lá longe ia descendo um vulto, atrás de mim vinha outro.

E devagarinho, como quem vai mui descansado da sua vida, os dois.

Ah! esqueci de dizer a vancê que atravessada debai-xo da sobrecincha de cada fl ete, vinha uma espada.

Reparando, vi que as duas eram iguais, de copo fe-chado e folha grande, das espadas de roca, que só mes-mo pulso de homem podia fl orear.

E quando parei e os dois vultos se chegaram, conheci que eram o meu general e o coronel Onofre.

E desarmados, chê!...Mas como chegaram, cada um despiu a farda, que

botou em cima dos pelegos, e desembainhou a espada que vinha.

O colorado era do coronel; o picaço, do general.

58 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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Então o general deu ordem:– Espera aí com os cavalos!E o coronel também:– Bombeia; se chegar alguém, assobia!E rodearam a restinga, para o outro lado.Então é que entendi a marosca: eles iam tirar uma

tora, dessas que não se tira duas vezes entre os mesmos ferros...

Maneei os mancarrões e com um olho no padre, ou-tro na missa, por entre as ramas da restinga, fui espiar a peleia.

Estavam já, frente a frente, de corpo quadrado.O sol dava a meio, para os dois.O general Bento Gonçalves era sacudido no jogo da

espada preta; maneava o ferro, que chispava na luz, como uma fi ta de espelho; o coronel Onofre parava os botes e respondia no tempo, mas com tanta força que a espada assobiava no coriscar.

Nisto o general pulou pra trás, fi ncou a espada no chão e pegou a tirar o tacão da bota, que se desprega-ra.

O coronel encruzou os braços, e a espada dele fi cou dependurada da mão, como dum prego.

Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual... aqueles não eram gente disso, não!

E cruzaram, de novo. Em cima de minha cabeça um sabiá pegou a cantar... e era tão desconchavado aquele canto que chora no coração da gente, com aqueles ta-lhos que cortavam o ar, que eu, que já tinha lanhado muito cristão caramuru, eu mesmo, fi quei, sem saber como, com os olhos nos peleadores, os ouvidos no sa-biá, mas o pensamento andejando... nos pagos, no meu padrinho, no Jesu-Cristo do oratório de minha mãe...

Os ferros iam tinindo. E nisto o coronel deu um – ah!

– furioso, caiu-lhe da mão a espada... e a sangueira colo-reou pelo braço abaixo, desarmado, entregue!...

Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual! aqueles não eram gente disso, não!

O general tornou a cravar a espada na terra e veio ao ferido com bom jeito.

Pegou o braço, viu o ferimento; e com um lenço grande que levantou do chão, do lado do chapéu, ati-lhou o talho para estancar o sangue.

O outro, calado, nem gemia.Depois o general tornou a pegar da espada, fez uma

inclinação de cabeça ao coronel e caminhou pra cá...Foi o quanto eu me atirei pra trás e me acocrei perto

dos cavalos.Vestiu a farda, embainhou a espada e montou. Então

me disse:– Agora vem gente, que eu vou mandar. Não te mo-

vas daí, antes...E deu de rédea, a galopito, para o acampamento.E no silêncio que fi cou, só fi cou balançando no ar o

canto do sabiá, na restinga: do outro lado, o sangue do coronel pingando nos capins; deste lado, eu, sabendo, mas não podendo me intrometer...

Agora veja vancê se não foi mesmo o fungu daquela tal dona – emissária dum dos dois sorros castelhanos – que veio transtornar tanta amizade dos farrapos?...

Ela só não pôde foi mudar o preceito de honra de-les: brigavam, de morte, mas como guascas de lei: leais, sempre!

Pois não viu, naquelas duas vezes?... Pra um que qui-sesse aproveitar...

E creia vancê, que lhe rezei este rosário sem falha de uma conta, apesar de já sentir a memória mais esbura-cada que poncho de calavera... Pois faz tanto ano!...

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Conheci, sim, sr., o Binga Cruz, desde assinzinho. Guri levado da casqueira!...E teve um fi m que nunca se soube... Pobrezinho...

Andaria nos doze anos. Filho único...

O pai dele, o velho, recebeu de regalo um bagual picaço sãozito das quatro patas, sem uma basteira; e de rédea, um pensamento. E era mesmo para o andar dele.

Pois, amigo, se lhe conto!...

Um dia, dezembro, sol de rachar, com trovoada ar-mada, andava o guri ninhando numas restingas que havia sobre o fundo da roça, por detrás das casas. O chapéu estava já abarrotado de ovos de tico-tico, de al-ma-de-gato, de corrruíras, canarinhos, sabiás...; era um entrevero bonito de cores e de feitios diferentes.

De calcita arregaçada, mui espinhado nas canelas e nos braços, o rosto vermelho e a cabeça ardendo, o diabinho ainda gateava um ninho de tesouras, quando, do outro lado da cerca ouviu o assobio das avestruzes, pastando.

Ouviu, e fura aqui, fura ali, varou a cerca para dar fé, bem à sua vontade.

Entre a roça e um braço de banhado, que havia, formava-se uma rinconada mui boa para volteada: e foi nisso que o guri pensou. As avestruzes seriam umas oito e uma tropilha de fi lhotes, já emplumaditos.

Não se conteve, o miúdo: pulou para o lado de fora, perto da bandada, e já correu sobre ela, de braços aber-tos, aos pulos, aos gritos: os bichos se arrolharam, as-sustados, mas logo o macho do bando ponteou para o rincão e tudo acompanhou.

Era o que o guri esperava mesmo; ele queria, de por força, pegar uma, viva; mas só laçando...

Foi quando lhe coriscou na ideia bancar-se no ba-gual picaço, do velho.

Se estava tão delgado e lindo... aquilo seria só ama-

gar o corpo, chu-par no beiço e rebolear o laço... Nem era tento! Num – vá! – era avestruz no cabresto!

E correndo para o galpão, enfrenou o pingo, atirou-lhe um pelego no lombo, passou a mão no seu lacito e se foi a arri-ba!

Espiou para os lados e mui de manso, a passo, saiu, sobre a cacimba, a encobrir-se numa reboleira de chorões, que fazia uma sombra fres-ca, onde as galinhas se rebolcavam, arripiando as penas, assoleadas.

Mas tudo isto levou seu tempo, de modo que quan-do ele chegou ao rincão já as avestruzes haviam-se ati-rado no banhado e bandeado; apenas, por descuidada ou mais esfomeada, apenas uma se deixou ficar e agora não atinava com a passagem, e quando o Binga gine-teando, deu em cima dela, então é que o bicho ficou mesmo atarantado, e começou a gambetear zonzo, na enrascada.

O guri se esqueceu do mundo!Tocava o picaço em cima do nhandu e atirava o

laço... o bicho negaceava, e o laçador errava o tiro... E vá outro, e outro... mas errando sempre, só de apurado!

Mas nisto o nhandu deu com a boca do rincão, viu o campo largo, e fazendo umas gambetas fortes, espar-ramando as asas, por fi m aprumou o corpo e cravou a unha, num trotão galopeado, de comer quadras!...

Mas o rapazinho estava encanzinado: levantou o pi-caço no freio e bateu de atrás!

Amigo! Que disparada! Por tacuruzais e buracama de tuco-tuco, por cima das panelas de caranguejo, por

Penar de velhos

61 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

Page 62: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

lançantes das coxilhas e moles das canhadas, salvando sangas e arrancando no barral das lagoas, tudo era vár-zea lisa para aquela alminha de gaúcho!

Despistada pela perseguição, a avestruz corria à toa. Corria. Depois foi mermando; e foi afrouxando, até que se enredou numas macegas e caiu numa cova de touro. E conforme caiu já o guri estava-lhe em cima, atracado com ela, passando-lhe o laço, maneando-a, vencedor, afi nal!

E respirou, aliviado; olhou o campo, silencioso, viu a

casa lá longe, branqueando no verde do arvoredo.Como diabo ia ele levar a caça, aquela?... E quando

estava botando as suas contas, o nhandu deu em patear, a se revirar todo, e mal apanhou livre uma perna, pris-cou e se foi a la cria, deixando o caçador no ora-veja!...

Aí o Binga fez um jeito de choro de raiva, e mui des-consolado montou de novamente.

E voltou para casa, a passo, porque o picaço vinha meio estaqueado, de quartos duros.

Com mil cuidados, apoveitando ainda a hora da ses-ta, tornou a meter o fl ete no galpão e mui concho da sua vida foi para dentro, pedir à mãe – uma santa se-nhora, aquela dona! – pedir uma tijela de coalhada, pra refrescar.

Na manhã seguinte o picaço apareceu esticado na estrebaria: derreteu a graxa dos rins; morreu arrega-nhado.

O velho fi cou buzina!... Quem foi, quem não foi...; afi nal o próprio Binga, meio de orelha murcha mas de-cidido, relatou a criançada, tintim por tintim.

Aí o velho andou mal... ali no mais, à vista da peo-nada, quis sovar o fi lho... e quando o guri viu o rabo-de-tatu no ar... quebrou o corpo, disparou e de vereda encarapitou-se num matungo que estava de piquete, encilhado, e abriu campo fora, sem rumo certo ao deus-dará... Debalde o velho gritou-lhe – Pára aí, menino! Pára aí, menino!

Qual! No peito do gauchinho não cabia a vergonha daquele guascaço do rabo-de-tatu, que caía-lhe em cima, se ele não foge...

A sia dona não viu nada deste passo; andava lá pra dentro, nos seus arranjos.

Passou o tempo.Nunca mais houve notícias do menino.Campeou-se pelo vizindário, saíram chasques a vá-

rios rumos e... nada!O velho foi descuidando das lavouras; já não ia ao

rodeio nem montava a cavalo; nas marcações fi cava na porteira da mangueira, calado; pitava muito e passava os dias passeando na quinta, na rua das laranjeiras, de chapéu nos olhos e de mãos atrás das costas.

A peonada já nem podia arranhar nas violas, porque o velho se enquizilava e mandava logo um piazito dizer lá fora que não queria bochinchadas em casa.

Outras vezes dava-lhe para arranjar alguma trança; prendia a lonca e começava a tirar os tentos... e de re-pente parava, suspirava... e torcia a mão, cortando ou fazendo entradas no couro, e afi nal picava tudo e não fazia nada, nem um botão, nem um passador qualquer, de cacaracá...

Ou fi cava horas e horas, com os olhos perdidos na-queles descampados... olhando, olhando sempre, mas sem ver nada... nem as pontas de gado nem os mesmos andantes, que às vezes chegavam, pedindo pousada...

A velhita, essa, então, dava lástima a gente se fi xar nela...

Não se riu, nunca mais, aquela senhora dona. Chorar, eu não vi; mas devia de chorar muito, porque quando vinha pra mesa servir os hospes, trazia sempre os olhos vermelhos e algo inchados.

Ajuntou num canto da sala todas as cousas do Binga; os aperos, o laço; umas tamanquinhas já gastas; um car-retão de brinquedo, enfi adas de ovos, uma chuspa cheia de pelotas de barro, argolas e ossinhos de mocotó; en-fi m não sei quantas mais bobages de criança... mas que tocavam no coração quando a gente pensava que o do-ninho andava por esse mundo, de gaudério e teatino... como cachorro chimarrão, comendo de esmola algum soquete ordinário e tinindo de frio, sem ao menos um bichará esburacado...

E sempre buenaça: mal chegava um andante, manda-va logo um piá levar-lhe um mate, e ainda, à noite, água para os pés; e de manhã, quando a gente ia agradecer a pousada, lá vinha um naco de queijo ou meia vara de linguiça, para fi ambre e outro amargo, pra o estribo...

Quem sabia do caso até nem falava nele... era tão pe-

naroso o sofrer daqueles velhos, que não diziam nada, que a gente entendia tudo...

E não havia hospe que tivesse comido daquela mesa ou dormido naquele teto, que não desejasse ser ele que pudesse um dia topar o guri desguaritado e trazê-lo, para o colo que esperava sempre e que rezava sempre ao Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo Deus, morreu perto de sua mãe...

A velhita fi nou-se primeiro, e de pura pena foi, por

certo.O vizindário em peso acudiu ao velório; o enterrro

se fez na vila.Pois desde a estância até o cemitério – umas quantas

léguas – o caixão veio sempre a mão. Mas não pesava nada. Também – pobrezinha! – que pecados podia ela ter?...

62 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

Page 63: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

E quando foi a hora do corpo cair na cova, que cada um atirou um punhado de terra, e que as crianças – quase todas suas afi lhadas – e as mulheres desataram num pranto de choro e até o coveiro se entreparou en-tristado, aí vi mais de um gaúcho colmilhudo manote-ando nas lágrimas que dos olhos lhes caíam, grandes e claras, como as gotas de água que caem dos cartuchos dos caetés...

Meses depois o velho seguiu o mesmo caminho de

nós todos; mas antes de morrer, engambelado por um padre gringo que apareceu aqui pelos pagos, lá fez uns papéis... e papéis foram que tudo o que era dele passou para missas e outros engrólios que ninguém sabia o que

eram. Nem um tambeiro saiu para um afi lhado!...Os parentes meteram demanda... foi um arranca-

rabo que durou anos...E enquanto isso... vancê sabe o que é casa sem

dono!...O Binga... quem sabe o que foi feito dele, por esse

mundo de Deus, tão grande!... Cuê-pucha!... Eu desejava que ele aparecesse, só por

causa do padre gringo!... Que sumanta o guri lhe não havia de encostar!...

E... por Deus e um patacão!... Eu dava as guascas e ainda ajudava a atar!...

Ora se não!...

63 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

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64 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

Page 65: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

Vancê leu ontem no jornal aquele caso do sujeito que atirou-se à água da beira da praia para salvar um fulano que estava-se afogando... quando no aperto chegou um boteiro que levantou os dois... não foi assim? E o tal ainda ganhou uma medalha do governo pela grande áfrica!...

Stá direito, não digo que não, que afi nal ele ao me-nos sempre se lembrou de acudir a uma criatura de Deus; mas, lá quanto à hombrada, hum!... nem por isso!

Olhe, mais, então, merecia o Juquinha Guerra.Eu conto, conto; vá assuntando.O Juca Guerra foi muito meu conhecido, desde guri.

Já morreu, coitado, e morreu numa tristura...Veja vancê!... Um gaúcho daqueles..., destorcido,

bonzão!...Aquilo, era pra fi car na coxilha, picado de espada, ra-

chado de lançaços, mas não pra morrer como foi, aper-reado em cima da cama, o corpo besuntado de unturas e a garganta entupida de melados e pozinhos dos dou-tores!...

Pobre de mim!... stou vendo que hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-fl ores da cidade, como bicho de galinheiro!...

Moreno, alto, delgado; olho preto; nariz de homem mandador; mãos e pés de moça; tinha força como quatro; bailarino, alegre, campeiraço; e o coração devia ser-lhe mui grande, devia encher-lhe o peito todo, de bom que era.

Dessa feita houve rodeio na estância do Pavão; a es-tância era na costa de dois rios; e tem muitos albardões com mato, que eram a querência da gadaria chucra. Mas, pra chegar lá, havia que atravessar um santafezal cerrado, tiririca, atoleiros, juncais; um banhado brabo; lá dentro é que a gadaria alçada vivia misturada com os galheiros e os capinchos e os ratões.

A gritos, a tiro e a cachorro tinha-se conseguido tocar como umas pra mais de três mil reses.

Nem lhe falo nas cousas divertidas do serviço, como ro-dadas, algum matungo riscado de aspa de brasino, as compadradas da peonada e outras que sempre alegram um campeiro.

E mal que cerrou o rodeio a gente mudou de cava-los, churrasqueou em pé mesmo e começou logo a apar-tar a tourada. E que torunas! Cada bicho pesado, criado na pura grama vermelha, ligeiros como gatos, e malevas, de acompanharem o laço, quase cabresteando!...

Pois, foi um destes, que um moço chamado Tandão Lopes laçou... e laçou mal, de meia espalda: o touro bufou, e depois do tirão já se lhe veio em cima...

O moço estava mui bem montado; o pingo era de pa-tas; porém apenas rocim, mui cosquilhoso; e os arreios já vinham mal e com o tirão a cincha correu toda pras virilhas...

Virge Mãe!...O bagual agachou-se a velhaquear, e, pra peior ainda,

em volta, enredando-se no laço, frouxo; o moço – gineta-ço! – fechou as chilenas e meneou o rebenque, de chapéu do lado, numa pabulagem temerária, de guasca que só a Deus, respeita!

Foi nesse apuro, que o touro carregou, e veio, de lín-gua de fora, berrando surdo... e entreparado, baixou a cabeça, retesando o cogote largo e ia a levantar a guam-pada, quando, meio maneado no laço e ladeado por um sofrenaço de pulso o bagual planchou-se... e o moço Tan-dão fi cou também aí caído, preso pela perna, exposto, entregue... O touro recuou um pouco, escarvou, meio dançando, retesou os lagartos, numa fúria de força e fez a menção...

A campeirada olhava, parada, vendo a desgraça vir...

Juca Guerra

65 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

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Mas nisto, justo, justo quando o touro, balanceando no ar, pareceu dar o pulo da carga, o Juca Guerra esteve-lhe em cima! Em cima!

Foi como o trovão e logo o raio... pois como um raio o gaúcho carregou e atirou a montaria contra o touro!

Oigalé pechada macota!O tostado arrebentou as duas paletas na encontrada

e caiu, sacudindo a cola, os olhos chispeando, de beiço enrugado e subido, de dor... Caiu, mas o touro, também.

E tanto que atirou o seu pingaço, de pechada feita – e certo de o escangalhar – contra o touro, escorregou pela garupa, e enquanto os dois brutos se batiam e enovela-vam, o Juca já aliviava o companheiro, que apenas livre, pulou para o cupinudo, ainda meio azonzado do trom-paço, manoteou-lhe nas aspas e torceu-lhe a cabeça, que cravou no chão, num pronto! O bicho pataleava, puxan-do a respiração forte, que ondulava, no arredondado da barriga.

Aqueles, sim, eram dois torenas que se valiam!Só então é que os vedores acudiram... mas foi para

aguentarem uma tirana de sotretas! comedores de car-ne! maulas! vasilhas! capões!... e outros rebencaços de língua, desses que a gente esparrama quando está de marca quente...

E no meio daquele bolo de campeiros, sobre as ma-cegas pisadas, ao lado do touro arquejando e do cavalo gemente, os dois homens abraçaram-se e beijaram-se,

chamando-se irmãos; e assim juntos chegaram-se para o cavalo tostado, quebrado dos encontros... fi zeram-lhe umas festas de puro mimo e tristeza... e enquanto o Juca, com a sua própria mão sangrava o seu confi ança, o moço Tandão abraçava a cabeça inteligente do fl ete... Correu o sangue, em borbotão; e quando, esvaído, o tostado afroxou a força e a respiração e o garbo, e foi descaindo e ia a tombar, de vez, os dois amigos, lado a lado, ampararam-lhe a cabeça... e devagarzinho, como se fosse uma criança dormilona, deitaram-na bran-damente sobre os capins – pro caso – sobre um pé de malmequer branco, ramalhudo, que fl orejava ali, como num propósito.

Coitado do fl ete!Mas como deixá-lo viver, assim, arrebentado? Para

vê-lo morrer de dores, inchado, com fome e com sede... e antes disso serem-lhe os olhos vazados pelos urubus... e os buracos deles, ainda vivos, virarem tocas das vare-jas?!... Não! Um gaúcho de alma não abandona assim o seu cavalo: antes mata-o, como amigo que não emporca-lha o seu amigo!

Vancê assuntou bem no conto?Ora, agora, vamos ao fi m; o que merecia, de prêmio,

o Juca Guerra?Qual o mais valente? o tal fulano, da beira da praia, ou

este da beira... da morte certa?

66 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

Page 67: CADERNO ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO

Muita gente anda no mundo sem saber pra quê: vi-vem, porque veem os outros viverem.

Alguns aprendem à sua custa, quase sempre já tarde pra um proveito melhor. Eu sou desses.

Pra não suceder assim a vancê, eu vou ensinar-lhe o que os doutores nunca hão de ensinar-lhe por mais que queimem as pestanas deletreando nos seus livrões. Van-cê note na sua livreta:

1º Não cries guacho; mas cria perto do teu olhar o potrilho pro teu andar.

2º Doma tu mesmo o teu bagual: não enfrenes na lua nova, que fi ca babão; não arrendes na minguante, que te sai lerdo.

3º Não guasqueies sem precisão nem grites sem oca-sião; e sempre que puderes, passa-lhe a mão.

4º Se és maturrango e chasque de namorado, man-cas o teu cavalo, mas chegas; se fores chasque de vida ou morte, matas o teu cavalo e talvez não chegues.

5º A maior pressa é a que se faz de vagar. 6º Se tens viajada larga não faças pular o teu cavalo;

sai ao tranco até o primeiro suor secar; depois ao trote até o segundo; dá-lhe um alce sem terceiro e terás cavalo para o dia inteiro.

7º Se queres engordar o teu cavalo tira-lhe um pelo da testa todas as vezes da ração.

8º Fala ao teu cavalo como se fosse a gente.9º Não te fi es em tobiano, nem bragado, nem mela-

do; pra água, tordilho; pra muito, tapado; mas pra tudo, tostado.

10º Se topares um andante com os arreios às costas,

pergunta-lhe – onde fi cou o baio?...11º Mulher, arma e cavalo do andar, nada de empres-

tar.12º Mulher, de bom gênio; faca, de bom corte; cavalo,

de boa boca; onça, de bom peso.13º Mulher sardenta e cavalo passarinheiro... alerta,

companheiro!...14º Se correres eguada chucra, grita; mas com os ho-

mens, apresilha a língua.15º Quando dois brincam de mão, o diabo cospe ver-

melho...16º Cavalo de olho de porco, cachorro calado e ho-

mem de fala fi na... sempre de relancina...17º Não te apotres, que domadores não faltam...18º Na guerra não há esse que nunca ouviu as esporas

cantarem de grilo... 19º Teima, mas não apostes; recebe, e depois assenta;

assenta, e depois paga...20º Quando stiveres pra embrabecer, conta três vezes

os botões de tua roupa...21º Quando falares com homem, olha-lhe para os

olhos; quando falares com mulher, olha-lhe para a boca... e saberás como te haver...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Que foi?... Ah! quebrou-se a ponta do lápis?Amanhã vancê escreve o resto: olhe que dá para en-

cher um par de tarcas!...

Artigos de fé do gaúcho

67 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

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68 CONTOS GAUCHESCOS - 100 ANOS

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Nasceu o potrilho, lindo e gordo, filho de égua boa leiteira, crioula de campo de lei.

* O guri era mimoso, dormindo em cama limpa e co-

mendo em mesa farta. - -

Já de sobreano fizeram uma recorrida grande, sen-taram-lhe uns pealos, apertaram-no pelas orelhas e pela cola e a marca em brasa chiou-lhe na picanha.

* Andaria nos oito anos quando meteram-lhe nas

mãos a cartilha das letras e o mestre-régio começou a inchar-lhe as unhas, de palmatoadas.

*O potrilho couceou na marca. O menino meteu fios

de cabelo nos olhos da santa-luzia...*

Em potranco acompanhava a manada e retouçava com as potrancas, sem mal nenhum.

*O rapazinho rezava o terço e brincava de escon-

der com as meninas... o que custou-lhe uma sapeca de vara de marmeleiro.

*Quando o potrilho foi-se enfeitando para repontar,

o pastor velho meteu-lhe os cascos e mais, a dente, botou-o campo fora: fosse rufiar lá longe!...

*O gurizote, já taludo, quis passar-se de mais com

uma prima...; o tio deu-lhe um chá-de-casca-de-vaca, que saiu cinza e fedeu a rato!...

* O potro andava corrido, farejando... Mas nem uma

petiça arrastadeira de água e poronguda, achou, para consolo da vida. Té que o caparam.

* O mocito, que era pimpão, foi mandado encorpo-

rar. Sentaram-lhe a farda no lombo.

* Mal sarou da ferida o potro foi pegado: corco-

veou, berrou; quebraram-lhe a boca a tirões; dividi-ram-lhe a barriga com a cincha; quis planchar-se, e la-nharam-lhe as virilhas a rebenque e as paletas a roseta de espora. Tiraram-lhe as cócegas... Ficou redomão.

*O recruta marcou passo, horas, pra aprender; en-

trou na forma; aguentou descomposturas; deu umas bofetadas num cabo e gurniu solitária e guarda dobra-da, por quinze dias. Cortaram-lhe o cabelo à escovinha e ficou apontado. Era o faxineiro do esquadrão.

*Houve uns apuros de precisão... O rocim foi vendi-

do em lote, para o regimento.*

Tocou a reunir: era uma ordem de marcha, urgen-te. O faxineiro recebeu lança, espadão e tercerola.

* Quando a cavalhada chegou, o primeiro serviço dos

sargentos foi assinalar os novos; era simples e ligeiro: um talho de faca na orelha, rachando-a. Bagual, assim, virava reiúno.

*Quando tocou o bota-sela, o faxineiro estava na

porteira, de buçal na mão, esperando a vez. O laçador laçava, chamava a praça e esta enfrenava... e cada um roía o osso que lhe tocava.

– Chê! Enfrena!...Foi o reiúno que caiu pro recruta.

- -Aí se juntaram os dois parecidos, o bicho e o ho-

mem. E a sorte levou os dois, de parceria, pelo tempo adiante. Curtiam fome, juntos, cada um, do seu comer. E sede. E frio. E cansaço, mataduras e manqueiras; cheiro de pólvora e respingos de sangue, barulho de

Batendo orelha!...

69 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

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músicas, tronar grosso e pipocar, nas guerrilhas.*

E de saúde, assim, assim... Um teve sarnagem, o outro apanhou muquiranas; se um batia a mutuca, o outro coçava as pulgas.

Quando, no verão, o reiúno pelechava, também o faxineiro deixava de sofrer dores de dentes.

*Passados anos o mancarrão já nem engordava

mais, e todo ovado estava. O fiscal do regimento, sem uma palavra de – Deus te pague – mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria. Um carroceiro comprou-o, por patacão e meio, com as ferraduras.

*Passados anos o praça aquele teve baixa, por inca-

paz, com o bofe em petição de miséria; e saiu da fileira sem mais família e sem saber ofício. Saiu com cinco patacas, de resto do soldo, e sem o capote. Foi então ser carregador de esquina.

* O reiúno apanhava do carroceiro, como boi la-

drão!*

O carregador levava dos fregueses descompostura, de criar bicho!

* O reiúno deu em empacar.

* O carregador pegou a traguear.

* O carroceiro um dia, furioso, meteu o cabo do relho

entre as orelhas do empacador e... matou-o. *

A polícia uma noite prendeu o borrachão, que re-sistiu, entonado; apanhou estouros... e foi para o hos-pital, golfando sangue; e esticou o molambo.

– –

O engraçado é que há gente que se julga muito su-perior aos reiúnos; e sabe lá quanto reiúno inveja a sorte da gente...

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Olhe! Aí está um peão do major Vieira; jogo o pescoço se ele não lhe traz envite para ir lá, hoje, festejar o Natal, na estância!

Eu sei!... Aquele é gauchão buenaço!Eu, se fosse o patrãozinho, ia. Ia, só pra ver o que é

uma gente de devoção.E é que o seu major Vieira não era assim, não; pro

caso que ele, em moço, até que era um virado, da gente se benzer três vezes!

O major Vieira quando era cadete haraganeava muito pela rancheria dos postos.

A estância era grande, e entre agregados e posteiros havia um povaréu; o patrão velho, pai dele, era mui es-moleiro e não gostava de, perto dele, ver ninguém com cara de fome.

Mas o diabo era que o que o velho fazia com as mãos o cadete desmanchava coos pés...

O mocito era abusador, e mais duma feita saiu ven-tando de certos ranchos daqueles pagos... Sim, que um pai cria uma filha não é pra carniça de gaudérios!... Por isso é que já os antigos inventaram o casamento.

A divisa da estância, no fundo, faz uma quebrada forte, assim como o cotovelo do meu braço; nesta ponta aqui, onde está a minha mão, fi ca o lagoão das Lontras, e mais pra cá, passa a estrada real.

Em certos tempos a gadaria pegava a costear o lagoão e andando, andando, entrava na estrada e... adeus!

Assim perdeu-se numa primavera uma ponta de no-vilhos que se evaporaram como sereno...

Foi um estafaréu, na estância, por causa disto; o pa-trão velho fi cou buzina com o capataz, que relaxou os repontes, e quase mandou lonquear um certo Miguelão, que passava todo o santo dia lagarteando na reversa do

rancho, e de noite nunca parava em casa...Parece que eu estou lhe enredando o ras-

tro, mas não stou, não; vancê escuite.É que este Miguelão não era trigo limpo; e ti-

nha uma fi lha que era uma criatura boa como uma santa, morocha linda como uma princesa. E vai, o desgraçado obrigou a menina a casar-se com um sujei-to sem eira nem beira e que diziam a boca pequena que era parceiro nas velhacadas do Miguelão.

Era um mais que mouro e meio corcunda e tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca; e mal encarado, era.

Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os telhados dos ricos!...

Marido e mulher davam assim uma ideia esquisita: vancê já reparou quando abre um cacho de fl or num je-rivá velho, de casca esbranquiçada, cheio de talos secos pendurados e um que outro pendão esfi apado, que já deu coquinhos?...

O jerivá é uma arve tristonha, mas quando bota um cacho de fl or fi ca alegre, de enfeitada. Aquele pendão amarelo, lá em cima, chama os olhos da gente, parece um favo de cera, de tão limpo e dourado; chama as man-daçaias, os passarinhos, os mangangás, as joaninhas; dá cheiro e é doce; é uma boniteza pra todos os viventes.

Assim era aquele casal: ele como o jerivá velho, ela como um cacho de fl or...

Ela chamava-se nhã Velinda; e chorava muito, às ve-zes.

Por quê? Quem sabe lá....Depois daquele sumiço dos novilhos o cadete Vieira

passou a recorrer o campo por aquelas bandas; a bole-ar avestruzes por aquelas várzeas; a correr veados por aqueles meios; a caçar mulitas naquela costa, e até numa

O “Menininho” do presépio

71 DIÁRIO POPULAR - 122 ANOS

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noite de breu arranjou uma perdida – magine! mais va-queano que sorro! –, mas perdida foi que soube rumbear sobre o rancho do Miguelão...

Cousas de rapaz; que a nhã Velinda, essa, era de con-fi ança.

Lá porque era moça, quase uma criança perto do ma-rido, lá por isso, não era motivo pra qualquer um chegar-se de buçalete em mão, como se faz pra uma redomona, pra amanosear-lhe desde a tábua do pescoço até as an-cas...

Mas o cadete gostava da moça numa paixão de ver-dade, diferente de quantas calaveiradas estava avezado a fazer.

Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu coração; perdia a voz pra falar com ela, enredava-se nas esporas, perdia o entono de todo o seu jeito, e todo ele vivia só nos olhos quando atentava na formosura de seu rosto.

Entrementes foi acabando o ano e já era sobre o Na-tal.

E vai a família do patrão velho armou um presépio na sala grande da estância; e ele mesmo mandou avisar o vizindário todo que a sia dona convidava para se cantar um terço de festa, na noite santa.

E veio tudo, velhada e crianças, moçada, namorados, e até alguns andantes, que estavam de pouso, fi caram, todos pra louvar a Deus na noite mais pequena do ano.

O cadete andava no meio do povo caçoísta, dançarino e pisa-fl ores, mas no que chegou a gente do Miguelão já se foi pondo como um céu amontoado, emburrado, de dar nas vistas.

Houve jantarola e doçaria, na sombra das figuei-ras.

Escureceu; a sala grande estava fechada e as moças da estância lá dentro, preparando as luminárias; en-quanto o velho e a sia dona pauteavam com a gente si-suda, embaixo da ramada grande, em frente da casa, a gurizada corria na pega dos vaga-lumes, rodando por cima dos cachorros ou fazendo provas de burlantins, nos cabeçalhos das carretas; do galpão vinha o zun-zum da peonada; na sombra do campo não se via nada, mas de lá vinham relinchos e mugidos, CRACRÁS das corujas e UAIS!... dos graxains...

E no ar, como uma cerração que não se via, andava o fartum dos churrascos.

Por um segredo do destino a sia dona mandou o cadete ver se as luminárias estavam ou não prendi-das e vai, o moço, no entrar a porta, topou de cara a cara com a nhã Velinda que saía, justamente para vir chamar os donos da casa; toparam-se as criaturas e miraram-se, num clarão que só eles viram...

As mãos se encontraram... e num redepente, num silêncio, num tirão das suas almas, na pressa e no lus-co-fusco, perto da gentama, numa relancina de coris-co, as duas bocas famintas se encontraram sem mer-mar um no (...) e um beijo um beijo, que jurou pelos dois, para toda a vida, um beijo só derrubou todas as negaças, como uma represa de açude aluída é derruba-da por uma muita descida de águas...

Vê vancê, a gente sabe falar, dizer muitas enredices adocicadas, mas às vezes a palavra nem dá pra partir... e caladito no mais, um simples beijo, largado de tron-co, chega ao laço, folheirito, de rebenque alçado! Uma bicota, é perigo de respeito!...

Pobres! Nesse passo cruzou na mesma porta o Mi-guelão e bispou o caso e decerto já lo foi xeretear ao genro e atossicá-lo, mussitando-lhe maldades...

Mas logo escancaram as janelas e a claridade da sala alumiou o terreiro; foi um alarido de contentamen-to, todos se ajuntaram e a sia dona puxando a ponta entrou, para principiar o rosário. E aquele bandão de gente entrou e foi-se acomodando, olhando com ar de riso pasmado, toda só dizendo: o presépio! o presépio! o presépio!

Fazia a modo uma ramada no alto de uns cerritos, e fi ngindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns ALIMAIS entre boizinhos e ovelhas, de brinquedo e outros enfeites, e mais uns fi gurões mui calamistrados, de coroa, que pareciam reis e pro caso um, que era negro retinto, era o mais empacholado. E perto destes, sobre a ponta do presépio estava então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles, aca-mado numas palhinhas de milhã e uns musgos e umas penugens estava o Menininho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em pelo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergoinhas do seu cor-pinho de inocente.

Todos se ajoelharam de roda, mas foi nessa ponta do presépio que a nhã Velinda ajoelhou-se; e no costa-do dela, como um precipício ou como um encorrenta-do, aí amoitou-se o cadete Vieira, talvez até para dar ao seu peito o resguardo dalgum perigo...

Não lhe conto nada!... Quando pegou a cantoria do rosário e no cantante da reza a gente se foi enquarte-ando e emparelhando as vozes, que era uma boniteza de se ouvir, por aí os olhos dela estavam como amarra-dos no presépio, mas olhos dele estavam no rosto dela como se aí estivesse o próprio presépio, com suas ve-linhas e prateados e bichinhos mimosos...; era até um pecado do inferno, aquela maneira de adorar gente, ali assim, nas barbas dos santos e da Senhora Virgem e do

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seu Menino!...

Mas porém, lá da porta, outro olhar raiado de san-gue estava vendo tudo; por certo que alguma loucura de cabeça atacou aquele cristão velho, porque, num soflagrante, sem um – Deus te salve! – o aflito aquele meneou os passos, derrubando gente, e logo o facão relampeou na direitura do coração de nhã Velinda!...

Houve um grito de espanto pro mode o desaforo do desatinado.

– Jesus!..., foi o grito de todas as bocas. Ah! patrãozinho!... Olhe que às vezes, na luz das

velas bentas se passam cousas de deixar um golpea-do qualquer mais aplastado que mancarrão reiúno em mãos de recruta...

Quando a ponta do ferro matador estava a uma mão travessa... a quatro dedos só da carne macia, aí – credo! louvado seja Deus! –, aí rolou da sua caminha de milhã... rolou e caiu no boleado do seio da moça, na canhadita dos dois, caiu no regaço de nhã Velinda o

Menino Jesus, como uma defesa... e aí no regaço deli-cado ficou, como um dono na sua casa...

E o facão matador sentou, tironeando... depois re-cuando, MINUINDO, caiu mermado, malseguro na mão sem força, do braço sem vontade, e o cuerudo aquele deu costas e se botou porta fora, e o Miguelão com ele, boquejando.

Tempos depois se soube que lo mataram num en-trevero, numa bochinchada de carreiras.

Jerivá torto não dá ripa!...

Os velhos lá ouviram do cadete e de nhã Velinda o que havia, e lá arrumaram as cousas.

O que le conto é que o seu major Vieira, ainda em cadete, se casou com a nhã Velinda e que aquele tal Menininho Jesus ainda hoje é o figurão do oratório e é o mesmíssimo do presépio que, há mais de cinquenta anos, se arma sempre na estância, no festo do Natal.

Não lhe parece que houve um milagre? Claro! Foi por causa do Menininho que... Se o diabinho é tão mi-lagroso!...

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