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Os artigos publicados nos são indexados por The Philosopher’s Index, Clase e Geodados cadernos Nietzsche São Paulo – 2005 N o 18 ISSN 1413-7755 cadernos Nietzsche

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Os artigos publicados nos

são indexados porThe Philosopher’s Index,

Clase e Geodados

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São Paulo – 2005

No 18ISSN 1413-7755

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no 18 – São Paulo – 2005ISSN 1413-7755

Editor / Publisher: GEN – Grupo de Estudos NietzscheEditor Responsável / Editor-in-Chief

Scarlett Marton

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Comissão Editorial / Associate EditorsAlexandre Filordi de Carvalho, Carlos Eduardo Ribeiro, Clademir Luís Araldi,Fernando de Moraes Barros, Ivo da Silva Júnior, Márcio José Silveira Lima,

Sandro Kobol Fornazari, Vânia Dutra de Azeredo, Wilson Antônio Frezzatti Júnior

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Fundado em 1996, o GEN – Grupo de EstudosNietzsche – persegue o objetivo, há muito acalenta-do, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamen-to de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acer-ca de questões que dele emergem.

As atividades do GEN organizam-se em torno dosCadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que têmlugar em maio e setembro sempre em parceria comdiferentes departamentos de filosofia do país.

Procurando imprimir seriedade aos estudos nietzschia-nos no Brasil, o GEN acolhe quem tiver interesse, porrazões profissionais ou não, pela filosofia de Nietzsche.Não exige taxa para a participação.

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GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – was founded in1996. Its aim is to gather Brazilian researchers onNietzsche’s thinking, and therefore to promote the dis-cussion about questions which arise from his thought.

GEN’s activities are organized around its journal andits meetings, which occurr every May and Septemberin different Brazilian departments of philosophy.

GEN welcomes everyone with an interest in Nietzsche,whether professional or private. No fee for member-ship is required.

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Sumário

Nietzsche: esboços de umperspectivismo político 7Miguel Angel Rossi

Fronteiras da História 37Alan Sampaio

Povos e Pátrias: Wagner e a política 69Henry Burnett

A redenção da temporalidade:a trágica intuição do eterno retornoem Nietzsche 93Tereza Cristina B. Calomeni

A aparência embriagada 111Carlos Vasquez

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

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* Tradução de Luís Rubira.** Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).

Nietzsche: esboços de umperspectivismo político*

Miguel Angel Rossi**

Resumo: O objetivo de nosso trabalho orienta-se em relação a dois eixostemáticos. O primeiro deles gira em torno da crítica encarada por Nietzschecom respeito ao Historicismo e, em contrapartida, a abertura a uma visãoda História que acentua as noções de horizonte de sentido e hermenêutica.Disto provém a relevância do perspectivismo nietzschiano. O segundo eixofocaliza a crítica de Nietzsche ao Estado moderno e à democracia, aproxi-mando-nos daquilo que, em nossos próprios termos, podemos denominarcomo a emergência do “niilismo político”. No que se refere a este pontoem particular, nos concentraremos fundamentalmente em sua obra Hu-mano, demasiado humano, sobretudo por entendermos que na mesmaencontram-se concentradas as chaves de seu pensamento político.Palavras-chave: perspectivismo – modernidade – política – estado –niilismo político.

Seria realmente insustentável, e ao mesmo tempo de uma gran-de injustiça intelectual, penetrar a fundo nas alvoradas do pensamen-to do século XXI sem nos encontrarmos previamente com a figurade Nietzsche; relevância legitimada não somente pelo fato de que ofilósofo impõe caminhos pelos quais transitam as principais corren-tes contemporâneas, onde se encontram pensadores da estatura de

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Rossi, M. A.

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Heidegger e Foucault, mas, e fundamentalmente, porque suas pró-prias teorizações põem em questão – quando não em xeque – osprincipais pressupostos da Modernidade.

De fato, suas Extemporâneas revelam sua própria intencionali-dade. Um pensamento extemporâneo que não somente pretendeser oposto a sua época, mas influir nela – numa espécie de militância– para benefício de uma época posterior. Assim também se enten-de que o filósofo proclame em O anticristo que se deve ser anteriorou posterior à modernidade, tanto no que diz respeito a uma pro-funda repulsão do ideário da razão ilustrada do século XVIII quantoà oposição a um clima triunfalista, como foi aquele que caracterizouseu próprio século. A este respeito, Forster pontua: “Frente ao sé-culo XIX carregado de certezas utópicas: racionalistas, revolucioná-rias, nacionalistas, tecno-industriais, científicas, Nietzsche diz ‘Não,abomino de todo os crentes’; é um refutador de ideais” (Casullo/Forster 1, p. 350).

Um século-chave em relação ao surgimento de múltiplas e con-trapostas lógicas políticas. Por conseguinte, não podemos deixar demencionar a extraordinária originalidade de Nietzsche, especialmen-te no que se refere à desconstrução da antinomia conservadorismo,expressado por certa linha romântica, versus modernismo. Neste sen-tido, as apreciações de Dannhauser são mais que sugestivas: “Apolítica de esquerda é, para Nietzsche, sintoma de crise total e agra-vamento dela, motivo pelo qual, obviamente, não é uma solução.Que dizer do conservadorismo ou da política de direita? Nietzsche,por vários motivos, nega a possibilidade de uma solução conserva-dora, criticando, por sua vez, a forma específica que adotou o conser-vadorismo alemão na época de Bismarck, e as suposições gerais doconservadorismo” (Strauss/Cropsey 9, p. 790).

Vamos, portanto, à explicação de algumas das principais razões,seguindo as sendas de Dannhauser.

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Em primeiro lugar, Nietzsche critica as concessões do con-servadorismo ao fenômeno da democracia moderna, sobretudo noque diz respeito ao sufrágio universal, conjuntamente com uma vi-são que faz do rei uma mera figura decorativa atrás da primazia doparlamentarismo.

Em segundo lugar, o conservadorismo abraça fervorosamenteos ideais do nacionalismo, inerente, por outro lado, à cunhagem darevolução francesa. Por oposição, não são poucas as vezes em queNietzsche insiste na identidade européia, opondo-se, quando nãodesprezando, a todo tipo de nacionalismo. A esse respeito, é im-portante demarcar como o filósofo percebe o fenômeno do anti-semi-tismo, o qual liga de modo causal com o auge do nacionalismo,questão por demais silenciada pelo ideário nazista: “Diga-se, depassagem, que o problema dos judeus existe apenas no interior dosEstados nacionais, na medida em que neles a sua energia e superi-or inteligência, o seu capital de espírito e de vontade, acumuladode geração em geração em prolongada escola de sofrimento, devempreponderar numa escala que desperta inveja e ódio, de modo queem quase todas as nações de hoje – e tanto mais quanto mais nacio-nalista é a pose que adotam – aumenta a grosseria literária de con-duzir os judeus ao matadouro, como bodes expiatórios de todos osmales públicos e particulares” (MAI/HHI § 475).

Da mesma forma, é também relevante destacar que o filósofoatribui, nesta etapa de seu pensamento, um papel positivo à Ilustra-ção, especialmente no tocante ao espírito científico. De fato,“Nietzsche acentua o papel decisivo do judaísmo – em oposição aocristianismo – no que diz respeito a ocidentalizar o Ocidente” (Mares-ca 4, p. 4).

Por último, e sem dúvida alguma, sua principal crítica se ba-seia no fato de que Nietzsche entende que o conservadorismo é in-separável do cristianismo. Daí que, e essa é nossa consideraçãopessoal, nosso filósofo subsuma o conservadorismo ao interior da

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lógica do niilismo decadente, questão que trataremos nas páginasseguintes.

Concluamos, então, com uma citação nietzschiana, que nos lançauma claridade magistral no que se refere a tal tema: “Dito ao ouvi-do dos conservadores. – O que antes não se sabia, o que hoje sesabe, se poderia saber – nenhuma involução, nenhuma volta atrás,em qualquer sentido ou grau, é possível. (...) há ainda hoje partidosque sonham como alvo a marcha de caranguejo de todas as coisas.Mas ninguém está livre para ser caranguejo. De nada ajuda: é ne-cessário ir para diante, quer dizer, avançar passo a passo na déca-dence (– eis minha definição do ‘progresso’ moderno...)” (GD/CI,“Incursões de um extemporâneo”, § 43).

A partir destas considerações preliminares, enunciemos, então,o objetivo de nosso trabalho, o qual se orienta em relação a doiseixos temáticos.

1) A crítica de Nietzsche ao Historicismo e, como contrapartida,a abertura a uma visão da História que acentua as noções de sentidoe hermenêutica. Em dito tópico teria de ser incluído a diatribe dofilósofo com relação à dialética hegeliana. Não obstante a relevân-cia de tal temática, somente nos deteremos em um aspecto particu-lar, pois, do contrário, tal tópico mereceria um tratamento exclusi-vo, digno de um novo trabalho.

Nossa leitura colocará ênfase na estrita vinculação entre as no-ções de “hermenêutica” e “vontade de potência” e, a partir desteprecioso entrecruzamento, nos abriremos passo a passo para a di-mensão do perspectivismo nietzschiano, o qual explicita que todainterpretação nunca pode ser alheia à vontade de potência; não semantes compreender esta como uma conjunção de forças dinâmicasatravés das quais se constituem e desconstroem possíveis centros.

2) A crítica de Nietzsche ao Estado moderno e à democracia,aproximando-nos daquilo que, em nossos próprios termos, pode-mos denominar como a emergência do “niilismo político”.

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No que se refere a este ponto em particular, nos concentrare-mos fundamentalmente em sua obra Humano, demasiado humano,sobretudo por entender que na mesma se encontram concentradasas chaves de seu pensamento político, o qual o filósofo irá desdo-brar ao longo de toda sua produção teórica.

Antes de acercarmo-nos de nossa tarefa, acreditamos necessá-rio pontuar que o sentido deste escrito gira em torno da expansãoda lógica do pensamento do filósofo e, através deste expediente,vislumbra tangencialmente – levando em consideração o reconhe-cimento explícito por parte do mundo acadêmico – sua enorme in-fluência para o presente.

No que diz respeito à dialética, consideramos que a intenção deNietzsche está no pólo oposto da realização de uma abordagemexegética e minuciosa da mesma, e da realização de uma análiseexaustiva da obra de Marx. De fato, não são poucos os comentadoresque sustentam que Nietzsche sabia muito pouco sobre o autor de OCapital. Não obstante, há de se enfatizar que tanto Heidegger quantoFoucault e a vertente pós-moderna – além de suas abismais diferen-ças – foram unívocas em pensar aquela a partir da visão nietzschia-na, e é justamente esta cunhagem que queremos destacar, especifi-camente o problema do determinismo.

Portanto, o pensador se concentra nas implicações teórico-prá-ticas que tais cosmovisões tiveram para o homem europeu. Recorde-mos que sua época é o reflexo do surgimento de grandes movimen-tos de massa incursionando pela vida pública. Daí sua sensibilidadepara analisar o socialismo, a democracia, a opinião pública concen-trada nos jornais, a “partidocracia”: todos fenômenos tipicamentecontemporâneos.

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1. Nietzsche: uma filosofia do perspectivismo

Nietzsche reage energicamente contra o que, em seus própriostermos, pode denominar-se “a febre histórica que padeceu o séculoXIX”. Vários são os pontos de sua diatribe.

Um deles radica em sua aguda crítica no que diz respeito a per-ceber o processo histórico a partir do desenvolvimento de uma“teleologia” implícita. Outro, na desconstrução do pressuposto mo-derno que percebe o processo histórico como a odisséia da razão,especificamente em referência direta aos filósofos da modernidade,especialmente Hegel.

Estreitamente vinculada às críticas anteriores, haveria de sesomar a problemática do determinismo e da ação, que conduz aodeterminismo histórico. A esse respeito, é possível observar umaespécie de profunda empatia com o pensamento de Carl Schmitt1,pois, ainda que o jurista alemão não tenha trabalhado especifica-mente os textos nietzschianos, o certo é que ambos pensadores res-saltaram a primazia da ação como uma espécie de corte transversalao determinismo do materialismo histórico.

Tal como nos referimos anteriormente, simplificaremos a críti-ca de Nietzsche ao primado da dialética, recortando-a somente noque diz respeito ao problema do determinismo histórico.

Um primeiro ponto de partida – e retomando o dito há pouco –poderia consistir na crítica que Nietzsche realiza ao racionalismomoderno, da qual o registro filosófico moderno cobra um lugar pri-vilegiado. Assim, aduz o filósofo: “Se todo sucedido contém em siuma necessidade racional, se todo acontecimento é o triunfo do ló-gico ou da ‘Idéia’ – então, depressa, todos de joelhos, e percorreiajoelhados toda a escada dos ‘sucedidos’!” (HL/Co.Ext. II § 8).

Nietzsche coloca em questão uma das idéias-chave do mundomoderno, certamente hegemônica, tanto no século XVIII como noséculo XIX. Trata-se da idéia de evolução ou progresso, categoria

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que, pelo olhar do filósofo, encontra sua expressão mais acabadana dialética. Assim, a noção de conservação-superação, nota fun-damental de todo desenvolvimento dialético, conduz a perceber –enfatiza Nietzsche – a última etapa do processo histórico como asuperação, no que diz respeito à evolução do Espírito ou Razão,das etapas históricas anteriores. Simultaneamente, com tal afirma-ção, é dado deduzir a desconstrução nietzschiana do princípio decausalidade aplicado ao terreno da História para reivindicar, emcontraposição, o terreno do arbítrio e do acaso.

Outro dos problemas que acarreta a dialética hegeliana, ligadotambém ao determinismo histórico, radica na problemática da ação:por conseguinte, Nietzsche se revela contra um sentido histórico pro-videncial e teleológico que, inspirado em uma lógica da necessidade,consagra o domínio dos fatos excluindo toda possível decisão singu-lar. Contrariando tal ótica, o filósofo argumenta: “ – por toda parteele [o homem] é virtuoso por levantar-se contra aquela cega potênciados fatos, contra a tirania do efetivo, e por submeter-se a leis quenão são as leis daquelas flutuações históricas.” (HL/Co.Ext. II § 8).

Nietzsche coloca em xeque a própria categoria de objetividade– o que em seus próprios termos denomina “uma filosofia do mar-telo” –, conceito fortemente vinculado à problemática da verdade.É a partir desta significativa asseveração que o filósofo possibilita aabertura ao plano da hermenêutica e da subjetividade para insistirna impossibilidade de verdades objetivas e absolutas, para não di-zer também “a pura verdade”. Daí em diante, o filósofo incursionaráem uma cosmovisão que faz da verdade um erro. Não obstante, umerro mais que necessário, não somente pela “necessidade” das fic-ções, sobretudo daquelas que contribuem para a manutenção daspulsões vitais, mas, e essencialmente, pela produção de múltiplos einacabados sentidos constitutivos do próprio fluir do mundo da vida.

A este respeito, é muitíssimo interessante a observação feita pelogrande estudioso Fink: “Para Nietzsche, porém, precisamente a dita

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objetividade dos valores não passa de uma criação: criada pela exis-tência, mas esquecida enquanto tal. A vida humana é estabelecimen-to de valores. Mas ela ignora-o quase sempre. O que a própria vidaestabeleceu afigura-se-lhe como exterior, como força constringenteda lei moral. Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca dian-te de si a sua própria criação como um objeto estranho dotado detodas as características mais veneráveis do ser em si. O que Nietzschepretende fundamentalmente abolir é o dogmatismo axiológico. (...)A doutrina nietzschiana da subjetividade dos valores é de longesuperior ao relativismo barato que se fundamenta no arbítrio indivi-dual. Poder-se-ia mesmo dizer que a sua doutrina da subjetividadenão nega a objetividade fenomênica dos valores, antes entende estacomo uma esquecida criação transcendental da existência. A trans-valoração dos valores significa assim abolição da existência aliena-da” (Fink 3, p. 144).

Compartilhamos com Eugen Fink a suposição de que a transva-loração dos valores não implica a queda em um mero relativismo emuito menos a inscrição em um grosseiro materialismo, como mui-tas vezes se quis interpretar a Nietzsche, especificamente quandose o compreendeu simplesmente desde a inversão platônica.

Nietzsche sabe que existir como vontade de potência e vida éafirmar-se, valorar-se. O valor ou os valores a serviço da vida. Mesmoassim, incorreríamos em erro se interpretássemos a vida a partir doesquema da sobrevivência darwiniana. Se este fosse o caso, o homemnietzschiano, o tipo ideal do “além-do-homem”, seria o primeiro dosinadaptados. Assim, o conceito de vida vai além de um mero senti-do biologista. Inclusive até poderia estabelecer-se uma semelhançacom o Hegel da dialética do senhor e do escravo, porquanto des-prezar a vida no que possui de animal é alcançar o mundo da cultura.

Aprofundemo-nos, portanto, nesta discussão, pois ela possivel-mente é o aporte mais significativo de Nietzsche para a posteridade.

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Com razão, costuma-se dizer que Nietzsche é, por excelência, opensador do niilismo. Inclusive não são poucos os estudiosos quesustentam que dita categoria articula a totalidade de seu pensamen-to. De fato, tal problemática está presente, tanto de forma implícitacomo tardiamente explicita, em sua produção teórica.

A primeira questão que emerge gira em torno ao papel estrutu-ral – com o perdão da palavra – que Nietzsche outorga à dita no-ção, essencialmente no que diz respeito à desconstrução da metafí-sica e, por conseguinte, à problemática da verdade, sobretudo, ecomo referimos anteriormente, entendida em termos de “absoluti-zação e objetividade”. Em conseqüência, o pensador se perguntapelas possíveis respostas que tanto em nível individual como socialpodem oferecer-se, mas sem jamais se iludir, uma vez que a lógicaniilista atravessa o destino do Ocidente, independentemente do graude conscientização que se tenha ou não de dita questão, que, poroutro lado, constitui para o filósofo o grande problema existencialdo homem europeu.

Em geral se costuma traduzir o problema mencionado pela per-da de “sentido”, obviamente em maiúscula; e, extremado, sua ló-gica conduz à antinomia entre conhecimento, interpretado em ter-mos de sacralidade, e vida. Assim, Nietzsche nos induz a pensarque quando desaparece a sacralidade aparece a vida. Talvez sejapor esta mesma razão que Zaratustra é o mais anti-religioso e religio-so de todos os homens, curiosamente um “profeta ateu”.

Concentremo-nos, portanto, nos três tipos de niilismo aos quaisNietzsche faz referência e, a partir de dita tipologia, arrisquemosnossa própria interpretação, que se radica em compreender deter-minadas lógicas políticas segundo o posicionamento que se tenhaem relação ao caos e à contingência. Por conseguinte, não é casual– como fizemos referência anteriormente – que Nietzsche analise otema da eclosão das massas na vida pública – desde já com sentido

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negativo – conjuntamente com a eclosão do socialismo e da demo-cracia moderna, e o faça em termos de decadência.

O primeiro tipo de niilismo se compreende como “niilismo de-cadente” enquanto confrontação com o “nada” e retorno a um fun-damento mais absoluto. Em tal sentido, a lógica do Nazismo, comotodo tipo de fundamentalismo, poderia servir de rótulo para ditavariante.

Mesmo assim, há de se aclarar que para nosso pensador a lógi-ca do niilismo se preanuncia desde um começo. Mais precisamen-te, a partir da figura de Sócrates, consagrando-se definitivamentecom o aparecimento do cristianismo. Cumpre dizer que não somen-te a metafísica tradicional como negação do mundo e primazia doSer, mas também, e em conexão com esta, a via moral, entranha ogrande problema do filósofo. Um problema teórico, mas tambémuma questão essencialmente prática. Pois por niilismo Nietzscheentende toda negação do vital. Decorre disto que Sócrates, com ainvenção do conceito ou logos seja o primeiro em distanciar-nos daplenitude da vida.

Precisando os termos a partir da confrontação com o caos, acontingência e o constante fluir, por outro lado, são as instâncias apartir das quais podemos gerar ou construir sentidos provisórios(niilismo futuro); por oposição, o niilismo decadente intenta retornara um fundamento ainda mais absoluto, uma volta a uma origemque esteja a salvo de toda possível contingência.

Ante a derrubada do fundamento metafísico, “a morte de Deus”,enquanto possibilidade de garantir tanto o plano do saber como damoral a partir de uma perspectiva absoluta, ante a morte do sujeitoe o esgotamento da representação, nada melhor que a legitimaçãodo terreno do “imediato”, próprio de uma filosofia que aspira a des-construir toda a possível normatividade. Contrariamente, Nietzschenão acredita na nulidade ou esgotamento dos valores. Seu ponto devista está em lhes adjudicar a marca da fluidez e da contingência,

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valores mais que necessários para a vida social, sempre provisóriose reguladores do mundo da vida, enquanto já não necessitam hi-póstase no além. Valores que, perdendo sua substancialidade –Nietzsche fala mesmo de “mumificação” –, devolvem ao homemo mundo da vida como uma espécie de reafirmação do momento,do instante como a instância que merece ser tida em consideração.Tal perspectiva, inclusive, poderia conectar-se com a categorianietzschiana do “eterno retorno”, pois amar a repetição, desejar queesta aconteça, é também viver o presente plenamente, sobretudovalorizando a pura auto-afirmação, questão sacrificada em funçãodo transcendental.

O segundo tipo de niilismo pode caracterizar-se como niilismointegral. A este respeito, Cragnolini explicita: “A filosofia do niilismointegral situa-se ‘para além de bem e mal’ e mais além das arkhaí.Na medida que se realiza uma análise histórico-genealógica desmas-caradora dos fundamentos que organizam os sistemas filosóficos,esses fundamentos perdem sua velha autoridade e se tornam débeisos laços que os uniam com tudo o que disto dependia: moral, costu-me” (Cragnolini 2, p. 121).

A experiência do niilismo integral, fazendo mérito a seu nome,leva ao máximo seu poder crítico, sua filosofia do martelo. Nãoobstante, não se trata da crítica ilustrada, mas mais propriamentedo contrário. Pois a experiência do niilismo integral faz lembrar aohomem a historicidade e a contingência da origem. Questão queFoucault terá especialmente em consideração no que se refere àreivindicação do pensamento nietzschiano: “Quisera ater-me, en-tão, a isto, concentrando-me primeiramente no termo invenção.Nietzsche afirma que, em um determinado ponto do tempo e emum determinado lugar do universo, alguns animais inteligentes in-ventaram o conhecimento. A palavra que emprega, invenção – otermo alemão é Erfindung –, reaparece com freqüência em seusescritos, e sempre com intenção e sentidos polêmicos. Quando fala

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de invenção possui em mente uma palavra que se opõe à invenção,a palavra origem. Quando diz invenção é para não dizer origem,(...)” (Foucault 7, p. 20).

Logo o pensador francês – seguindo Nietzsche – colocará ênfa-se em mostrar como a religião, a poesia e o conhecimento remon-tam a uma invenção surgida pela trama de “obscuras e mesquinhasrelações de poder”. Assim, e contrariamente ao homem do niilismodecadente que reivindica a origem, o homem do niilismo integralrompe com todo o tipo de fundamento metafísico.

Contudo, Nietzsche nos adverte do perigo de permanecermosna etapa do niilismo integral, instância onde é impossível a esferada crença, ficção necessária nos altares da vida. O tema será, nova-mente, a forma em que se toma para si dito abismo.

Retomando a lógica política, Nietzsche percebe a cunhagem doanarquismo como uma conseqüência do niilismo integral. De qual-quer forma, o perigo da anarquia ou o ceticismo é de menor gravi-dade se comparado com uma recaída na metafísica, na origem, nofundamento absoluto.

O terceiro tipo de niilismo pode denominar-se “niilismo futu-ro”. Justamente será o niilismo que possibilite o perspectivismo e, apartir daí, vinculado à vontade de potência, coloque em jogo umdeterminado horizonte de sentido.

Um niilismo que nos insta constantemente a criar sentidos. Portal razão, Nietzsche fala do artista ou da criança, que a partir dapura criação ou do jogo nos salva do abismo, ao mesmo tempo re-cordando-nos que todo sentido, interpretação ou comentário estádeterminado pela força da contingência e da fluidificação. Sem dú-vida alguma, este é o aspecto mais democrático do olhar nietzschia-no, independentemente de que nosso pensador seja um dos críticosmais acirrados deste regime de governo.

Mesmo assim, Nietzsche considera que, se bem que os possí-veis sentidos são provisórios, sempre se possibilita uma hegemonia

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de sentido – palavra não utilizada por ele mas que reflete seu pen-samento. Dita hegemonia imprime uma direção que possibilita umacerta unidade na dispersão e no caos. Certamente que esta estarátambém sujeita à mudança e à contingência. Justamente, uma dascríticas à democracia moderna será a homogeneidade de sentidosque, numa espécie de paradoxo, termina eliminando todo sentido.

2. Esboços de uma perspectiva política: Um olhar ao Estado.

Um dos núcleos temáticos presentes no pensamento de Nietzscheé sua profunda, ao mesmo tempo em que radical, crítica ao Estadomoderno. Pode-se argumentar, sem nenhum risco, que o filósofonão percebe nenhum traço positivo com respeito ao mesmo. Pois,tomado em perspectiva de retrocesso, Nietzsche percebe o Estadomoderno como o último ponto da decadência ocidental. Estado que,à diferença da pólis ou da república antiga, somente pode nomear-se como um ente artificial, emergente de relações contratuais vin-culadas, por sua vez, ao auge da democracia e da eclosão dos par-tidos de massa.

Deste modo, e retomando o anteriormente assinalado – e nesteaspecto coincidindo com as Extemporâneas – a condenação do Es-tado moderno é interpretada pelo filósofo desde um horizonte desentido muito mais extensivo e fundante. Tratar-se-ia da condena-ção da cultura moderna, sendo o Estado moderno, mais especifica-mente o democrático, um aspecto dela.

Desta perspectiva, é claro que para Nietzsche a irrupção damassa na vida pública tem uma profunda conotação negativa, so-bretudo quando contrastada com a idéia de “povo”. Nietzsche nãoacredita na existência de um “povo moderno”, dando a entenderque um povo somente pode ser viva expressão de uma autênticacultura.

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Dita massa necessita – em virtude de sua própria constituição– da figura de um líder. Em tal sentido, Nietzsche também é críticoda liderança moderna, com a ressalva de que a crítica não está pos-ta na categoria de “liderança” enquanto tal, mas na resignificaçãoque a modernidade faz dela. Talvez, neste aspecto em particular,Nietzsche esteja pensando no tipo ideal weberiano de líder caris-mático, questão esta que, por outro lado, combina muito bem coma crítica de Nietzsche à razão de Estado.

Desta forma, se tivéssemos que organizar uma seqüência con-ceitual, teríamos: líder, partidocracia, democracia, cultura decaden-te. E poderíamos inferir, como conseqüência, que a “massa” é, paraNietzsche, um dos signos mais visíveis de uma cultura decadente.Assim, o filósofo não deixa de manifestar sua angústia existencialmotivada pela confrontação com o “espírito de sua época”. Daí suaempatia por alguns homens, os quais identifica muitas vezes com afigura do “livre pensador”.

Retomando o ideal da democracia grega, Nietzsche tem cons-ciência não somente do caráter elitista da mesma, mas também queela aposta por um espaço público onde é possível, mais ainda, écondição necessária, o primado das diferenças. Quer dizer, a idéiade isonomia grega partia de um conceito de igualdade que, diferen-temente do moderno, não erradicava de seu seio as próprias singu-laridades dos cidadãos.

A democracia moderna possui, para Nietzsche, a característi-ca, ou melhor, o vício, de levar tudo a um terreno mercantil, ondetudo se transforma em “mercadoria”. Advento de um mundo homo-gêneo e empobrecido: “O mercador sabe estimar o valor de tudosem produzi-lo, e estimar-lhe o valor segundo a necessidade dos con-sumidores, não segundo suas próprias necessidades; (...) em rela-ção a tudo o que é produzido ele pergunta pela oferta e a demanda,a fim de estabelecer para si o valor de uma coisa. Isto alçado em

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caráter de toda uma cultura, pensado com o máximo de amplidão esutileza, e impondo-se a toda vontade e capacidade” (M/A § 175).

Nietzsche entende que a esfera política acaba introjetando adinâmica do mercado. Isto o leva a declarar em Humano, demasia-do humano que a política moderna é um assunto de comerciantes eempresários, enfatizando, assim, a absolutização do privado.

A preocupação nietzschiana pela cultura moderna não pode es-tar dissociada do dinamismo da vida política, sobretudo em funçãode uma lógica democrática que instaura o primado de um relativis-mo homogêneo no qual tudo é suscetível de negociação e troca.Ruptura das hierarquias e instância que preanuncia, fundamental-mente com a perda do substrato metafísico intrínseco ao Estado e àpolítica, o advento do “niilismo”. Assim se entende porque Nietzschefala da “morte do Estado”, temática que abordaremos nas próxi-mas páginas.

Não sem razão se costuma dizer que Nietzsche é um pensadorantidemocrático. Nossa intenção não joga em função de demons-trar o contrário. Ao contrário, acreditamos ser relevante explicitar amatriz significativa desde a qual Nietzsche denuncia a hipocrisia dademocracia moderna: a trama economicista que constitui sua únicarazão de “ser”. Inclusive, percebe a partidocracia como a arenarepresentativa de múltiplos interesses privados, em última instânciauma “pura ficção”, agora em sentido pejorativo; afinal, mais alémdas aparentes diferenças dos diversos setores e partidos políticos,na realidade tudo se reduz a um mesmo assunto: o interesse privado.

Em contraposição, e retomando o anteriormente dito, Nietzscheabre um caminho que será retomado por certa perspectiva contem-porânea: mostrar o pano de fundo e a origem da democracia mo-derna, a qual o filósofo identifica com o dispositivo liberal. É desdeesta ótica que, também, se pode apreciar o empobrecimento domundo moderno, levando em consideração o surgimento de um

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“sujeito” e de uma subjetividade que, por um lado, se situa em umespaço público famoso essencialmente em termos de juridicidadeigualitária, ainda que abstrata ou formal e, por outro lado – dife-rentemente do sujeito antigo –, joga seus interesses reais no terrenodo privado. Assim, como crítico da sociedade burguesa, lança umapergunta que ainda hoje permanece sem solução: como fazer empre-go de um espaço público que, analogamente ao antigo, pode inter-pretar uma igualdade que não exclua o plano das diferenças? Distoresulta que o dispositivo liberal somente pode apostar em uma sub-jetividade formal, homogênea e empobrecida, reservando o planodas singularidades exclusivamente ao foro privado.

Outro dos temas políticos que Nietzsche menciona é a proble-mática da “autoridade”, categoria que aparece desvalorizada nacultura contemporânea e que constitui um ponto obrigatório de re-flexão para o pensamento alemão em geral. Neste aspecto, apenasa referência a Max Weber é bastante esclarecedora: “(...) e quandoesta subordinação não for mais possível, já não haverá como obtermuitos dos defeitos mais assombrosos, e o mundo se tornará maispobre. Ela tem de desaparecer, pois desaparece o seu fundamento:a crença na autoridade absoluta, na verdade definitiva; mesmo nosEstados militares não basta a coerção física para produzi-la, mas serequer a adoração hereditária do principesco como algo sobre-hu-mano. – Em circunstâncias mais livres, as pessoas se subordinamapenas sob condições, em conseqüência de acordo recíproco, istoé, com todas as reservas do interesse pessoal” (MAI/HHI § 441).

Nietzsche compartilha com Weber que a noção de “autorida-de” não pode ser interpretada como uma simples questão de “for-ça” ou poder, tanto em sentido físico como legal, mas que aquelapressupõe essencialmente a referência a um horizonte eidético ouaxiológico. Em tal sentido, Nietzsche explicita, se bem que de for-ma descritiva e não prescritiva2, que uma das notas fundamentais,para não dizer a mais relevante, que deve possuir a noção de “auto-

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ridade” gira em torno ao conceito de “sacralidade”. Assim entendeque o advento de um mundo dessacralizado é o que, definitivamen-te, termina anulando a crença no bem comum; sobretudo porque aautoridade se pensa sempre desde o público e não desde o terrenodo privado.

Deste modo está claro que para Nietzsche a deterioração doconceito de autoridade e hierarquia, instâncias que caracterizaram,ainda que de modos diferentes – e em sentido involutivo – ao Esta-do grego, o medieval e o absolutista moderno, ingressam completa-mente no esgotamento da metafísica e da teologia, esgotamento queimplica a perda substancial de valores. Valores que perdem seucaráter qualitativo ou transcendental e entram – como anteriormen-te assinalamos – homogeneamente na lógica do mercado.

Outro dos traços políticos modernos que o filósofo põe em ques-tão é o dispositivo jurídico, o qual julga tão necessário quanto ateologia para o estamento medieval. Assim, Nietzsche compreendea esfera do direito moderno como uma espécie de sintoma ou esta-lido que denotaria a impossibilidade de um poder absoluto, obvia-mente determinado pelo choque de forças. Daí a necessidade deum acordo, mas não sustentado desde um a priori ético, e sim pelanecessidade de uma razão instrumental sujeita ao cálculo das reaispossibilidades, dando Nietzsche a entender, neste aspecto, que anteuma lógica do poder absoluto não existe direito que valha.

Outra das instâncias políticas mais importantes no que respeitaa sua confrontação com a cultura do século XIX constitui-se em suaaversão a “racionalidade” estatal, curiosamente um tópico esquecidopelos que fazem de Nietzsche o idealizador do Nazismo. De fato, éem confrontação com a razão de Estado que o filósofo aprofunda otema da singularidade, categoria que às vezes identifica com a noçãode indivíduo, sobretudo em oposição à massa e, outras tantas, des-vincula do conceito de indivíduo, dando a entender que este últimoé um dos axiomas básicos da cultura decadente. A este respeito,

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não deixa de ser sugestivo que Nietzsche compartilhe o conceitoclássico da ideologia marxista e considere, por conseqüência, o Es-tado como a expressão de interesses particulares mas “disfarçado”de interesse coletivo ou geral.

De todas as formas é lógico que, desde o diagnóstico nietzschia-no no que se refere ao mundo moderno, o único caminho possívelem função de um homem que aposta no livre pensamento seja o daconstituição da singularidade. Vejamos, em conseqüência, um dosparágrafos mais significativos no que diz respeito à temática mencio-nada: “Toda ação individual, todo modo de pensar individual, sus-cita arrepio; não podemos deixar de levar em conta o que precisa-mente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais, em todoo decurso da história, tiveram de sofrer por serem sempre sentidoscomo os maus e os perigosos, e mesmo por se sentirem assim elespróprios. Sob o domínio da eticidade do costume, a originalidadede toda espécie adquiriu má consciência; com isso, até o presenteinstante, o céu dos melhores é ainda mais ensombrecido do queteria de ser” (M/A § 9).

Acreditamos, então, que o homem singular para a cunhagemnietzschiana é aquele que se constitui em referência ao seu próprioolhar, possibilitando-se, assim, tomar distância da moral, dos cos-tumes, da educação e, inclusive, da cultura; especificamente da-quilo que todas estas manifestações possuem em comum: a de con-verter a singularidade, aquilo que é intransferível, o próprio, o quenos constitui como indivíduo – e, portanto, não negociável –, o quenão está dividido, justamente, em sujeito.

Mesmo assim, é relevante explicitar, sobretudo em oposição auma hermenêutica generalizada em torno de Nietzsche, que o ho-mem singular não se identifica com os valores do senhor feudal ouda elite aristocrática. É certo que, diferentemente de Marx, Nietzscheresgata tal axiologia em confrontação com as “virtudes” plebéias damodernidade. Porém não deixa de ser menos certo que aquelas,

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enquanto representação social, não escapam da dialética da ordemdo instituído-instituinte.

Está claro, então, que a singularidade é uma tarefa a ser con-quistada, tendente, como finalidade primeira, à apropriação de nossaprópria perspectiva. Processo que, como bem assinala Nietzsche,não está isento da culpabilidade que pressupõe a ruptura com aordem do instituído. Daí que o filósofo fale de “má consciência”,efeito lógico de todo o processo de ruptura.

Assim, consideramos que Nietzsche contrapõe a noção de su-jeito, efeito da dinâmica do instituído, o que em definitivo faz dohomem um “sujeito de rebanho”, à noção de singularidade, quenestes escritos é uma figura próxima da do “livre-pensador”. Daí osentido de autarquia que deve caracterizar a este, especialmenteem função do retrocesso até todo disciplinamento estatal, outro itempresente nas Extemporâneas.

Do mesmo modo, haveria outro aspecto no que se refere ao temada singularidade no qual a cosmovisão nietzschiana ficaria sem re-solução, dado que, às vezes, o homem singular seria aquele queescapa à trama da socialização; porém, outras vezes, se aproxima-ria, em certo sentido, ao que mais tarde poderemos encontrar portrás da denominação de “além-do-homem”, enquanto vontade depotência que possibilita novos valores e que é quem estabelece asnovas regras da dinâmica social. Assim, em Aurora, enfatiza: “Oslivres agentes se acham em desvantagem frente aos livres-pensado-res, porque os homens sofrem mais visivelmente com as conseqü-ências dos atos do que dos pensamentos. Levando-se em conta,porém, que tanto uns como outros buscam a satisfação, e que já opensar e enunciar coisas proibidas dá satisfação aos livres-pensa-dores, todos se eqüivalem quanto aos motivos: e, no tocante às con-seqüências, a balança penderá mesmo contra o livre-pensador (...).Há que retirar boa parte da calúnia lançada sobre os homens queromperam através de uma ação a autoridade de um costume –

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geralmente são chamados de criminosos. Todo aquele que subver-teu a lei de costume existente foi tido inicialmente como homemmau: mas se, como sucedeu, depois não se conseguia restabelecê-la e as pessoas acomodavam-se a isso, o predicado mudava gradual-mente; – a história trata quase exclusivamente desses homens maus,que depois foram abonados, considerados bons!” (M/A § 20).

Antes de finalizar nosso trabalho, acreditamos ser necessárioinsistir em duas questões que ficaram pendentes. Uma delas já foianunciada: trata-se do diagnóstico nietzschiano acerca da “mortedo Estado”. A outra atenta para o olhar do filósofo no que se refereao socialismo como força política moderna.

Nietzsche e o socialismo

No referente a dito tópico surge uma primeira observação expli-citada por Ernst Nolte, aquele que indubitavelmente nos brinda comum excelente horizonte referencial: “Nietzsche não sabia demasia-do sobre o socialismo, e é manifesto que nunca leu uma linha deMarx; porém, apesar disso, não pode excluir-se que pensara no mar-xismo quando se manifestava pelo socialismo, e que essas manifes-tações permitiam reconhecer uma simpatia central” (Nolte 8, p. 77).O mencionado comentador não esclarece em que se fundamenta talprincípio de empatia entre ambos pensadores. Não obstante, talvezpossamos arriscar nossos próprios pressupostos.

Um primeiro ponto de aproximação, talvez, esteja dado pelasdemolidoras críticas que Marx fez à sociedade burguesa, sobretudono tocante a temas como o dinheiro, a usura, os bancos e empresá-rios. Instâncias constitutivas do mundo moderno.

Outro ponto de encontro entre ambos pensadores é, sem dúvi-da alguma, a crítica ao Estado. Inclusive Nietzsche assinala a ambi-güidade na qual cai a tradição do socialismo pós-Marx pois, se porum lado o ideário socialista ensina acerca do perigo de todas as

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acumulações de poder político e, portanto, o Estado ocupa nesteaspecto um lugar privilegiado, ao mesmo tempo enfatiza Nietzscheque, numa espécie de movimento contrário, o grito de guerra detodo socialista não pode ser outro mais que “tanto Estado quantoseja possível”.

De todas as maneiras, e apesar de algumas possíveis coincidên-cias entre Nietzsche e Marx, é claro que a balança se inclina muitomais para os desencontros. Provavelmente não com o próprio Marx,mas certamente com a tradição do socialismo.

Em primeiro lugar, Nietzsche vê o socialismo também como umcristianismo disfarçado, se bem que desde uma visão dessacralizadae, inclusive, crítica da mesma estrutura religiosa. O motivo de talpercepção se compreende pela noção de “ressentimento”, a qual,tanto no cristianismo quanto no socialismo, constitui a fonte depulsões altruístas ou reivindicatórias traduzidas em termos de justiça.

Insistindo na relação entre cristianismo e socialismo, visto queambos reivindicam um tempo arquetípico de felicidade e redençãohumana, Nietzsche enfatiza: “O destino dos homens se acha dis-posto para momentos felizes – cada vida humana tem deles –, masnão para tempos felizes. No entanto, estes perduram na fantasiahumana como “o que está além dos montes”, como uma herançados antepassados; pois a noção de uma era feliz talvez provenha,desde tempos imemoriais, daquele estado em que o homem, apósviolentos esforços na caça e na guerra, entrega-se ao repouso, dis-tende os membros e ouve o rumor das asas do sono. Há uma con-clusão errada em imaginar, conforme aquele antigo hábito, que apósperíodos inteiros de carência e fadiga se pode partilhar também aque-le estado de felicidade, com intensidade e duração correspondentes”(MAI/HHI § 471).

Desta forma, pode-se observar a crítica de Nietzsche ao próprioconceito de utopia enquanto negação e incorformação com respeitoà ordem existente. Não obstante, incorreríamos em um grave erro

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se pensássemos que Nietzsche reivindica a resignação cristã. A ques-tão é não ter uma postura que negue o presente como afirmação emprol de uma pretendida transcendência. Daí que o pior tipo de so-cialismo para Nietzsche seja o socialismo utópico.

Em segundo lugar, Nietzsche não vacila em apontar o socialis-mo como o irmão menor do despotismo ilustrado. Assim, enfatizaem Humano, demasiado humano: “O socialismo é o visionário ir-mão mais novo do quase extinto despotismo, do qual quer ser her-deiro; seus esforços, portanto, são reacionários no sentido mais pro-fundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como até hojesomente o despotismo teve, e até mesmo supera o que houve nopassado, por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo: o qualele vê como um luxo injustificado da natureza, que deve aprimorare transformar num pertinente órgão da comunidade. Devido à afini-dade, o socialismo sempre aparece na vizinhança de toda excessivamanifestação de poder, como o velho, típico socialista Platão na cortedo tirano da Sicília” (MAI/HHI § 473).

Não deixa de chamar a atenção que, no que diz respeito à críti-ca ao socialismo, Nietzsche internalize algumas críticas que o libe-ralismo faz ao socialismo, especificamente a prédica da anulaçãodas singularidades; em termos liberais, a abolição dos direitos indi-viduais. Inclusive, de forma semelhante aos partidários do liberalis-mo, Nietzsche estabelece uma seqüência que vai de Platão ao cris-tianismo, deste até Rousseau, e do filósofo genebrês ao socialismo.

Por outro lado, é relevante explicitar que Platão é, para Nietzsche,o principal mentor do que em termos modernos denominamos “ra-zão de Estado”. Para o filósofo alemão, o ateniense teria sido o pri-meiro a disseminar uma engenharia política a partir da qual tudodeveria ser administrado pela casta governamental, especialmenteas manifestações culturais, os mitos e, inclusive, a paideia, que, portodos os meios possíveis, Platão quer arrebatar das mãos privadas.De fato, a árdua polêmica entre Platão e os sofistas girou em torno

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de dita questão. Daí Nietzsche interpretar, também, que na Repú-blica platônica não existe espaço para nenhum tipo de singularida-de. Assim, nesta etapa de seu pensamento, se tem a impressão deque Nietzsche estabelece uma aguda tensão entre lógica estatal elógica individual, para inclinar-se, evidentemente, a favor da segundaalternativa.

Com respeito a Rousseau, também o filósofo alemão se tornaeco da diatribe liberal. Inclusive é interessante a semelhança entreNietzsche e Kant, pois ambos descrêem da lógica revolucionária,ao mesmo tempo em que apostam em uma paulatina ilustração. Porconseguinte, Nietzsche interpreta que, graças – ou melhor, por des-graça – ao filósofo genebrês se retardou, inclusive pondo em peri-go, a marcha do progresso. Mas deixemos falar o próprio Nietzsche:“(...) e que, portanto, uma subversão pode ser fonte de energia numahumanidade cansada, mas nunca é organizadora, arquiteta, artista,aperfeiçoadora da natureza humana. – Não foi a natureza mode-rada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar,mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau quedespertaram o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu grito:‘Ecrasez l’infâme’. Graças a ele o espirito do iluminismo e da progres-siva evolução foi por muito tempo afugentado: vejamos – cada qualdentro de si – se é possível chamá-lo de volta!” (MAI/HHI § 463).

É claro, então, que não se pode falar da ótica nietzschiana acercado socialismo sem a obrigatória referência a Rousseau. Não somen-te pelo fato – como expressamos anteriormente – de que o filósofogenebrês é uma estação de passagem obrigatória ao socialismo, mastambém porque Nietzsche descrê num espírito utópico que seja ca-paz de transformar a “natureza humana”, especificamente, em fun-ção de um socialismo utópico que coloca acento em um novo tipode engenharia institucional como o meio de erradicar o egoísmo e amiséria. Por tal razão, para Nietzsche, tal socialismo parte, de modoigual a Rousseau, do pressuposto antropológico-político de que o

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homem é por natureza bom, mas a sociedade se encarrega de per-vertê-lo. A este respeito, está claro que Nietzsche considera que estetipo de socialismo é o pior de todos.

Em terceiro lugar, Nietzsche fala daqueles que são mais pro-pensos ou inclinados a cair nas redes do socialismo. Tratar-se-iadas massas semicultas. Tal ideário não se joga simplesmente emuma tosca reivindicação material. Nietzsche põe acento na relevân-cia da idéia de justiça como item central da plataforma socialista,introjetada nas massas em prol de um fim altruísta. Por outro lado,chama atenção que Nietzsche fale de uma massa “semiculta”, tal-vez dando a entender, neste aspecto, o perigo que acarreta a ilus-tração abortada ou inacabada.

Em quarto lugar, Nietzsche conclui: “Uma questão de poder, nãode direito. – Para aqueles que sempre consideram a utilidade supe-rior de algo, não há no socialismo, caso ele seja realmente a suble-vação, contra os opressores, dos que por milênios foram oprimidose subjugados, nenhum problema de direito (com a ridícula e débilquestão: ‘até que ponto devemos ceder às suas exigências?’), massim um problema de poder (“até que ponto podemos utilizar suasexigências?’) (...) O socialismo só adquirirá direitos quando pare-cer iminente a guerra entre os dois poderes, entre os representan-tes do velho e do novo, e o cálculo prudente das chances de conser-vação e de vantagem, em ambos os lados, fizer nascer o desejo deum pacto. Sem pacto não há direito. Mas até agora não há guerranem pactos, no território mencionado, e portanto nenhum direito,nenhum ‘dever’” (MAI/HHI § 446).

Por último, é sobremaneira interessante a observação de Nolte:“Com este pequeno repasse já fica claro que o ‘socialismo’ é umfenômeno muito complexo. Em certo sentido, é algo muito velho: sebusca uma ‘raiz do mal’ no presente e se encontra a propriedadeprivada, não de modo diferente a como já sucedeu na Antigüidade;a salvação e a redenção são buscadas em algumas condições parafa-

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miliares, pessoais e igualitárias. Devido a este ‘primitivismo’ o soci-alismo é radicalmente reacionário, inclusive arcaico: uma religiãosocial e o contraponto ao mundo moderno, com o domínio da má-quina, da impessoalidade e da especialização que o caracterizam.Por outra parte, o socialismo é particularmente moderno, já queoferece uma aguda crítica cultural, previne-se do aumento dos des-possuídos, pode apoiar-se na produção e nas ‘tendências socia-lizantes’ que se produzem na vida estatal (imposto sobre rendas,grandes empresas), faz sua a crítica ilustrada da religião, apreciasumamente a ciência natural e oferece uma análise do estado decrise permanente da economia moderna” (Nolte 8, p. 173).

Pedimos desculpa pela extensão da citação, mas acreditamosque esta é mais que ilustrativa no que diz respeito ao presente tema.Desta forma, é evidente que Nietzsche vê no socialismo um foco dereunião de seus principais inimigos: moral comunitária, cristianis-mo e semiprogresso.

Nietzsche e a morte do Estado. Uma aproximação do niilismo político

No que diz respeito ao vínculo entre religião e política, Nietzscheinsiste em alguns aspectos que são necessários ter em consideração.

Em primeiro lugar, a religião é um meio de profundo refrea-mento individual, sobretudo em épocas de crises ou perdas, perío-dos nos quais o Estado se sente impotente em oferecer algum tipode saída ou solução. Por esta razão Nietzsche fala do papel da reli-gião na esfera privada, ainda que às vezes estende também tal lógi-ca aos acontecimentos públicos, tais como as guerras, a escassezprolongada de alimentos, etc.

Em segundo lugar – e em concordância com o jovem Marx –Nietzsche considera que as religiões, mais especificamente as mono-teístas, como dispositivos teocráticos: concentram-se na idéia depoder descendente, incitando, consequentemente, à obediência dos

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cidadãos: “Onde as deficiências necessárias ou casuais do governoestatal, ou as perigosas conseqüências de interesses dinásticos, fa-zem-se notórias para o homem perspicaz e o dispõem à rebeldia, osnão-perspicazes pensam enxergar o dedo de Deus e pacientementese submetem às determinações do alto (conceito em que habitual-mente se fundem os modos humano e divino de governar): assim sepreserva a paz civil interna e a continuidade do desenvolvimento”(MAI/HHI § 472).

Em terceiro lugar, Nietzsche interpreta que a legitimidade dopoder se vincula com a noção de “sacralidade”, motivo pelo qual areligião cumpre, neste aspecto, um papel insubstituível. Nietzschenos faz lembrar que a todo governo é mais que necessário a admi-nistração das almas. Tal é a razão das múltiplas alianças entre oclero e o Estado: “Sem a ajuda dos sacerdotes nenhum poder écapaz, ainda hoje, de tornar-se ‘legítimo’: como bem entendeu Napo-leão. – Assim, governo tutelar absoluto e cuidadosa preservação dareligião caminham necessariamente juntos” (MAI/HHI § 472).

Em quarto lugar, é interessante ressaltar a sutileza do filósofo,quando considera que a casta governamental ilustrada não está des-provida do “livre pensamento”. É justamente este requisito quepossibilita àqueles a utilizar a religião como um simples meio,perdendo, assim, sua sacralizada finalidade. Por esta razão queNietzsche sustenta que o livre pensamento somente pode surgir apartir da ruptura com a religião: “Nisto se pressupõe que as pesso-as e classes governantes sejam esclarecidas a respeito das vanta-gens que a religião oferece, e que até certo ponto se sintam superio-res a ela, na medida em que a usam como instrumento: eis aqui aorigem do livre-pensar” (MAI/HHI § 472).

Em quinto lugar, Nietzsche considera que a última etapa da de-cadência do Estado é a democrática. Pois, se bem que em um pri-meiro momento é factível legitimar um dispositivo de sacralidade,agora, estendido à vontade popular, inclusive – em termos de poder

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ascendente –, em uma segunda instância, Nietzsche sustenta que,com a perda da noção de “transcendência”, a religião passa, semperder seu caráter absoluto, à esfera privada. Posteriormente adviráum relativismo de tipo religioso que, em última instância, terminaráde solapar os fundamentos do Estado.

Assim, desde nosso ponto de vista, acreditamos que Nietzscheé sensível à novidade que instaura a cunhagem da Reforma protes-tante, vale dizer, a ruptura com a transcendência e a representa-ção. Agora o absoluto será captado diretamente pela consciênciaindividual. O que, em termos schimittianos, conduziria a falar daabsolutização do foro privado. Daí que a política e o Estado, os quais,para Nietzsche, na ordem da ficção, jogaram a aposta pelo interessegeral ou absoluto colocado no público, agora se infiltram até o espaçoprivado. A este respeito, não é ao acaso que Schmitt tenha compa-rado Nietzsche aos conservadores católicos. Pois, além das inco-mensuráveis diferenças, segundo a ótica de Schmitt, tanto Nietzschequanto os contra-revolucionários católicos tiveram consciência deque a perda do princípio de autoridade, conjuntamente com a per-da dos valores sagrados, traria atrelado a irrupção do niilismo.

Não obstante, Nietzsche propõe um final aberto, dando a en-tender que, definitivamente, o que deu seu último suspiro de vida,sobretudo em função da lógica política que se apresenta como aaposta pelo público é, justamente, dita ficção. Em tal sentido, o fi-lósofo se pergunta, em um tom esperançoso se, na melhor hipótese,isto implica uma superação. Concluamos, portanto, nosso trabalhocom dito parágrafo: “As sociedades privadas incorporam passo apasso os negócios do Estado: mesmo o resíduo mais tenaz do velhotrabalho de governar (por exemplo, as atividades que se destinam aproteger as pessoas privadas umas das outras) termina a cargo deempreendedores privados. O desprezo, o declínio e a morte do Es-tado, a liberação da pessoa privada (guardo-me de dizer: do indiví-duo), são conseqüência da noção democrática de Estado; nisso está

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sua missão. (...) – Repetindo brevemente o que foi dito: os interes-ses do governo tutelar e os interesses da religião caminham de mãosdadas, de modo que, quando esta última começa a definhar, tam-bém o fundamento do Estado é abalado. (...) – Mas a perspectivaque resulta desse forte declínio não é infeliz em todos os aspectos:entre as características dos seres humanos, a sagacidade e o inte-resse pessoal são as mais bem desenvolvidas; se o Estado não maiscorresponder às exigências dessas forças, não ocorrerá de maneiranenhuma alguma o caos: uma invenção ainda mais pertinente queaquilo que era o Estado, isto sim, triunfará sobre o Estado” (MAI/HHI, § 472).

Abstract: This paper explores two thematic lines of investigation. Thefirst one focuses on Nietzsche’s critique of historicism and the consequentdevelopment of a vision of history that stresses the notions of a “horizon”of meaning and hermeneutics, which in itself led to the importance ofNietzsche’s perspectivism. The second line of investigation deals withNietzsche’s critique of the modern State and of democracy, hereby bringingus closer to what we might refer to as the emergence of “political nihilism”.With respect to this specific point, analysis will be based primarily uponNietzche’s Human, all-too human, a work that in our opinion sums up thephilosopher’s political thought.Keywords: perspectivism – modernity – politics – state – political nihilism

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notas

1 Não obstante a possível empatia, existe, pelo menos, umaspecto de distância abismal entre Nietzsche e Schmitt: ojurista pode ser considerado um teórico da transcendência,o que é próprio, por sua vez, de um pensador católico.

2 Tanto Weber quanto Nietzsche advertem sobre o perigoque pressupõe uma queda no metafísico. Assim, se por umlado dão conta da dessacralização do mundo moderno etudo o que isto implica, por outro lado, estão no lado opos-to de um caráter nostálgico. Do que se trata é de consumar– quando não assumir – o niilismo como destino.

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Fronteiras da História

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* Parte deste ensaio foi apresentado na mesa-redonda “Nietzsche e a Histó-ria: memória, consciência e sentido histórico”, em outubro de 2003, na Fun-dação Clemente Mariani, Salvador, da qual participaram Monclar Valverde eAndré Itaparica. Agradeço-lhes pelo acabamento do ensaio.

** Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Mestre em Filosofiapela Universidade Federal da Bahia.

Fronteiras da História*

Alan Sampaio**

Resumo: A partir da crítica à historiografia oitocentista, efetuada porNietzsche na segunda Consideração extemporânea, objetiva-se mostrarcomo ele contribui para a formação da consciência histórica. SegundoNietzsche, o excesso de consciência histórica do homem moderno é uma“doença” derivada da constituição de uma teoria galgada na idéia de jus-tiça, cujo correlato encontra-se na pretensão de neutralidade do conheci-mento científico. Através da crítica a tal tipo de objetividade, bem como àidéia de progresso, Nietzsche fala da necessidade de a história interpretara si mesma, ou seja, de uma séria reflexão da consciência e da ciênciasobre seus próprios limites.Palavras-chaves: história – consciência histórica – memória – esqueci-mento – horizonte – perspectivismo

Os resultados das investigações de Heródoto deHalicarnassos são apresentados aqui, para que amemória dos acontecimentos não se apague entre oshomens com o passar do tempo, e para que feitosmaravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbarosnão deixem de ser lembrados, inclusive as razões pe-las quais eles guerrearam. Heródoto, História (I, 1).

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Sampaio, A.

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Talvez nosso apreço pelo histórico seja apenas umpreconceito ocidental... Nietzsche, Da utilidade edesvantagem da história para a vida (§1).

1. Perspectivas da história

A especial relevância das Considerações extemporâneas sobre ahistória reflete-se no destaque atribuído por seus leitores, dentre osquais se pode mencionar, por exemplo, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Walter Benjamin, Gianni Vattimo, Michel Foucaulte Gilles Deleuze. Em parte, isso se deve à crítica radical de Nietzscheao historicismo do homem oitocentista, e também a Hegel, mas pro-vém principalmente da concepção de história subjacente à polêmicaacerca do sentido histórico do homem moderno. Em sua idéia dehistória, Nietzsche deixa entrever uma espécie de ontologia, a partirdas reflexões sobre a organização da memória em narrativas e sobreo horizonte da história. Nessa ontologia, uma dialética entre cons-ciência e inconsciência, entre lembrança e esquecimento, apresen-ta uma compreensão de temporalidade própria à existência huma-na e sua peculiaridade na cultura histórica do Ocidente. Por talmotivo, ao deter a atenção apenas em suas críticas ao historicismoou concentrar-se na metafísica do instante ou, ainda, privilegiar oseu vitalismo, o leitor acaba perdendo as implicações mais importan-tes da segunda das Considerações, a saber, a compreensão de tem-poralidade e horizonte da história. Entretanto, como estes temasnão estão separados daqueles, é preciso persegui-los conjuntamente.

Um bom e apropriado exemplo é a recepção de Martin Heideg-ger. Em Ser e tempo (§76), ele afirma que Nietzsche compreendeubem mais do que exprimiu. Para Heidegger, a classificação da his-toriografia em três tipos não é casual. Ela vincula-se à temporalidadeda pre-sença (Dasein) e é pré-lineada por sua historicidade. Tendovislumbrado, mas não inteiramente ciente, Nietzsche não expressa

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de modo claro “a necessidade dessa tríade e o fundamento de suaunidade” (Heidegger 7, p.203).

Apesar de Heidegger apontar para a importância da compreen-são do jovem Nietzsche quanto à temporalidade e à ciência históri-ca, ele não se detém nas especificidades de sua obra – afinal, estenão é seu objetivo. Porém, ao proceder desse modo, restringe umrelevante caráter das considerações sobre a tríade da história.Heidegger afirma que a historiografia deve ser a mescla da tríade:o procedimento apropriado da ciência histórica dar-se-ia pela reali-zação de suas três possibilidades em uma unidade concreta e factual.Com isso, o perspectivismo de Nietzsche é desconsiderado, pois cadauma das historiografias deve corresponder a um ambiente apropria-do, sem o qual elas se tornam nocivas à vida.

Não se trata, para Nietzsche, de pensar uma história que tradu-za melhor a temporalidade do homem. Ainda que não sejam exclu-dentes, as modulações da história não precisam convergir para umaunidade. Tal perspectiva, entretanto, não é descartada: O nascimentoda tragédia, no seu aspecto histórico, e inclusive reflexivo, consti-tui-se enquanto mescla das possibilidades da história, apresentadasna segunda das Considerações.

Se a história impele à ação transformadora do presente, é mo-numental: destaca eventos tornados significativos e, ao mesmo tem-po, indicadores da expressividade de uma época, revelando a gran-diosidade possível à atualidade. Se venera os feitos, tomando opresente a partir de sua tradição (sem, todavia, contemplar o ele-mento futuro desse presente), é antiquária: atenta para os detalhesde seu povo; valorizando o costume local, faz a comunidade encon-trar sentido em si mesma. Se impulsiona à libertação, dirige expec-tativas esperançosas ao porvir, tem uma boa “memória” para com ofuturo, ela é crítica: negando algo do passado, conduz o presenteao porvir; livra seu tempo de uma tradição que impedia novas con-figurações necessárias à vida.

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O nexo entre as diferentes narrativas encontra-se na relaçãoentre lembrança e esquecimento, que vincula o resgate dos aconte-cimentos à ação e à projeção, enquanto modos próprios e integra-dos da temporalidade. A compreensão da forma dessa relação subjazà polêmica com a consciência histórica oitocentista. A críticanietzschiana procede das possibilidades de o homem lidar com asdimensões do tempo ao rememorar eventos – ou seja, na forma comoos rememora. A polêmica não se dirige diretamente às possibilida-des da história, mas sim ao modo como o passado é factualmenteentendido. Faltavam ainda alguns anos para Nietzsche escrever asentença emblemática do perspectivismo: “não há fatos, apenas in-terpretações” (XII, 7 (60)). No período das Considerações extem-porâneas, ele ainda pensa, em certo sentido, através da divisãokantiana entre coisa-em-si e fenômeno. Porém, não ter ainda umaconcepção elaborada do perspectivismo não significa dele não ternenhuma compreensão. A partir daquela divisão, Nietzsche estáconsciente de que se o fato equivale à coisa independente da inter-pretação que dela se tem, ele é impossível de ser apreendido. Aocontemplar o fato, não se o tem às vistas, mas tão somente a interpre-tação da “realidade”, e neste caso de uma realidade anteriormentesem sentido: “o fato é tolo e foi em todas os tempos mais parecidocom um bezerro do que com um deus” (HL/Co. Ext. II, §8).

Nietzsche caracteriza três tipos de história somente na medidaem que existem três aspectos do rememorar historiográfico conve-nientes à vida. A diferença entre elas é estabelecida pela preponde-rância de um dos aspectos: é este predomínio que conduz a pers-pectivas distintas de contemplar o passado. Preocupa a Nietzsche,em cada descrição das possíveis histórias, a relação vital com o pas-sado, apropriada à atualidade e promotora de porvir. Esta relaçãofundamental entre vida e temporalidade é rechaçada pela historio-grafia do século dezenove em prol de sua cientificidade. Ela encarao tempo enquanto sucessão de acontecimentos e converte o passado

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em depositário de fatos seqüenciados cujo último efeito é o presen-te. Imaginando-se serva da verdade e da justiça de sua anelada obje-tividade, a história não permite ao passado servir como ideal ouforça motriz deste presente em que se encontra e que se projeta emfuturo. A ilusão que a conduz ao cientificismo é a de um passadofactual, passível de ser apreendido imparcialmente. A ilusão de queo passado passou.

A divisão da narrativa histórica não passa de um esquema cujafunção é descrever e acentuar as diferenças entre as perspectivashistóricas; vale lembrar, na medida em que é possível classificá-las.Importante, neste caso, é como a tríade da história revela três ma-neiras do homem moderno, o homem da cultura histórica, retomaro passado; a tríade mostra formas de a memória organizar o passa-do em relação ao presente e ao futuro, ou seja, a memória dispõeos eventos segundo uma composição das dimensões do tempo. Ostipos de história expõem suas condições: monumental, antiquária ecrítica. Nestes três aspectos, a história pertence à atualidade do exis-tente. A cada uma de suas modulações, corresponde uma atmosfe-ra, sem a qual a história é inconveniente à atualidade da vida:

Cada um dos três tipos de história existentes é válido tão-só em umsolo e sob um clima particulares: em quaisquer outros, crescem como er-va daninha devastadora. Quando o homem deseja realizar algo grandi-oso, precisa em geral do passado, então se apropria dele mediante a his-tória monumental; em contrapartida, quem prefere perpetuar o habituale de há muito venerado, cultiva o passado como historiador antiquário;e apenas àquele a quem uma necessidade presente oprime o peito e que atodo custo deseja livrar-se desse fado, carece da história crítica, que jul-ga e condena. Da transplantação imprudente dessas espécies advêmmuitas desgraças: o crítico sem necessidade, o antiquário sem piedade, oconhecedor da grandeza sem poder criador são plantas que degeneram,por terem sido arrancadas ao seu terreno. (HL/Co. Ext. II, §2).

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A história monumental narra uma cadeia sucessiva de grandeseventos da humanidade, iluminando o presente com a possibilida-de de esplendor que a imagem do passado reflete. Ela serve demodelo inspirador ao homem de ação, impedindo-o de resignar-se.A suntuosidade do que já existiu mostra-lhe a possível grandeza doexistente. O caráter repetitivo do sentido das ações marca a tendên-cia eternizante e constitui a crença fundamental dessa história: aquiloque uma vez foi grande e significativo pode e deve de novo tornar aser. Precisamente por tal tendência, provoca o protesto de tudo queficou de fora da eternização de certos modelos, incita um violentocombate no presente por parte daqueles que se sentem excluídosde sua narrativa. Sua injustiça com o passado desconsidera o quenão julga dignificante e eterno, reduzindo os aspectos próprios ecaracterísticos de cada época passada a um molde geral. Despre-zando os detalhes, as vicissitudes de cada realidade passada, a his-tória monumental esquece-se de que há uma preparação para os gran-des acontecimentos, que eles não se ligam como num passe demágica. Em sua cegueira das causas, torna-se uma coleção de “efei-tos em si”. Ela assemelha-se às ficções míticas: engana através daanalogia. Ao celebrar o passado desse modo, ditando inclusive oscânones da arte, possibilita que os impotentes e inativos, quandodela se apoderam, ditem também que nenhuma espécie elevada dearte, mesmo “re-novada”, deva surgir: castra os espíritos vigorosos,os quais se apropriam do passado para compor formas superioresde práxis.

Na história antiquária, os detalhes – tudo que é pequeno e limi-tado – recebem igual atenção e zelo. Ela é própria ao homem quequer conservar um presente, um estilo de ser, uma forma de exis-tência. De tal modo empenhado nos detalhes de sua pesquisa, tudopara ele adquire relevância. Seu espírito e história refletem o espíritoe a história do povo que busca conservar. Este é o mesmo tipo deimpulso e sensibilidade que conduziu os italianos do Renascimento

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a redescobrirem o antigo gênio itálico. A história antiquária enraízao homem à sua terra, protege-o do gosto cosmopolita incessante pelonovo. Faz do historiador e de seus leitores indivíduos pertencentesa uma comunidade fundada na tradição: na memória de seus cos-tumes e feitos. Porém, falta-lhe o poder de avaliar e, portanto, dedivisar eventos que congreguem a história, conferindo-lhe um sen-tido único e coeso. Ela acaba por tornar-se fragmentada. Novamen-te o passado é injustiçado se a história deve estar a serviço da vida.Tal história esquece-se de que a memória é seletiva e significativa,que ela valora e que a vida hierarquiza. O seu perigo é “a fúriacega do colecionador”, pois deprecia a vida em transformação. Con-servando as configurações herdadas de sua antigüidade, acaba pornão permitir seu crescimento, o que significa, no fundo, não con-servar na vida o seu aspecto essencial, a sua vitalidade: “A históriaantiquária degenera no instante em que a tenra vida do presentenão mais a anima e inspira” (§3).

A história crítica é a que tem mais em conta o presente enquan-to abertura ao futuro. Ela condena o passado na medida em que opresente necessita livrar-se de determinados preconceitos antigos.A crítica ao passado tem um lado positivo: a tentativa de conquistarum novo impulso, um estilo “jovial” – uma segunda natureza. Porseu empenho de liberdade e por sua tendência à negatividade, ahistória crítica é fruto de “homens e épocas perigosos e em perigo”.É um período conflituoso o que necessita negar seu passado, poisequivale a ir de encontro ao mais próprio da atualidade, os caracte-res e costumes herdados. Porém, se todo passado é digno de con-denação, pois é amálgama da fraqueza e da força humanas, não éraro a crítica decair em criticismo. A história crítica tende à ausên-cia de positividade, sem a qual o futuro amofina-se junto com opassado deste presente. Condenar os erros do passado não impedeque o homem atual descenda deles e não o faz isento de seu lega-do. A história crítica esquece-se de que o seu presente é herdeiro

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também dos equívocos do passado e sua consciência de erro é frutoda pertença a uma tradição. Na interpretação e avaliação do passa-do ela não se mira como intérprete e avaliadora: não interpretandoa si mesma, imagina-se afastada do erro, enganando-se com seuideal de objetividade.

Três tipos de esquecimento governam as formas de relembraros feitos históricos. Em cada um desses esquecimentos esconde-seo perigo de a história não contribuir para a vitalidade de um povo ede sua época. Nietzsche não critica o esquecimento, mas os perigospor ele tornados possíveis. Porém, se não critica, assinala: em últi-ma instância, cada esquecimento é também a tradução de uma faltade consciência histórica. Não se trata de algo negativo e que a histo-riografia deva superar; na verdade, é um elemento constituinte daperspectiva a partir da qual se narram eventos e se compreende acultura de cada época. Em todo procedimento da consciência histó-rica há algo de inconsciente que o compõe e, de certa forma, o diri-ge. Em cada olhar há uma cegueira, a qual permite ao olhar encon-trar algo, e não simplesmente o absurdo – que, como todo absurdo,não pode ser visto. Nietzsche condena outro esquecimento, o deque tudo há de ter uma atmosfera apropriada, fora da qual a histó-ria perde seu sentido de ser vital à vida. Ele censura a cegueira queconduz à falta de consciência perspectivista do homem teórico.

O passado só o é em relação a um presente – a uma atualidadeda vida. É cegueira do historiador querer encontrar um fato puro.De toda sorte, a vida mesma nada sabe da justiça – ou, pelo menos,não da justiça concebida pela filosofia: não há uma ordem préviaque governe o mundo e lhe confira sentido. É a vida, ela mesma,que se manifesta na relação – temporal – entre homem e mundo, ede modo apropriado em cultura, é ela que configura formas de exis-tência, perspectivas de percepção e costumes morais. Por issoNietzsche diz: “É preciso muita força para poder viver e esqueceraté que ponto viver e ser injusto são o mesmo” (§3). Se determina-

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dos esquecimentos podem conduzir à decadência da vida, a vidanão pode prescindir do esquecimento. Graças a ele, e graças à per-tença a um presente que é abertura ao porvir e retomada daantigüidade, os homens da história narram e analisam o passadoem harmonia com a vitalidade da vida.

2. Bruma a-histórica

Também homens da ciência prestam ações e pensamentos àvida. Entregue à ilusão de objetividade e justiça, ao contemplar opassado, o homem histórico guarda esperança no porvir – na justi-ça e felicidade apontadas pelo processo histórico como em desen-volvimento. O sentido da existência mostra-se, para ele, nesta evo-lução. Daí, na busca de compreender o presente e conquistar ofuturo, divisa o passado. O historiador pensa e atua de modo a-histórico. Sua ocupação é conveniente à vida e não a um conheci-mento puro. Ele assemelha-se ao homem de ação, vez que, gover-nado por esquecimentos, intervém no presente.

O homem de ação procede sem consciência nem conhecimen-to, de tal sorte o futuro é a sua lei. Todo grande acontecimento his-tórico deriva-se da atmosfera não-histórica, condutora do homem ede sua ação. Imerso em uma bruma a-histórica, ele procede comoum homem apaixonado, cujo estado de espírito “é um pequeno tur-bilhão de vida em um mar soturno de trevas e de esquecimento”(HL/Co. Ext. II §1). É um estado violento e circunscrito por umhorizonte limitado. Injusto com o passado, sua memória detém-seno presente e mira o futuro. Esse estado anti-histórico é o funda-mento de toda ação verdadeiramente justa, e dele provém todos osgrandes acontecimentos da história.

Se um homem percebesse que a história só é possível graças àatmosfera a-histórica, se contemplasse a cegueira e a injustiça do

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homem de ação ao longo dos tempos – sua falta de consciência e aimposição que os outros sofrem de sua “perspectiva intensa” –, eleacabaria por não mais desejar contribuir com os acontecimentoshistóricos: cessaria de agir, desistiria de fazer parte do teatro decasualidades por ele contemplado. Sua aguçada consciência con-verteria o presente e o passado em uma só coisa, pois perderia ailusão de desenvolvimento. O transcurso da história, minuciosamenteestudado, mostra que as ações que definiram seus rumos não fo-ram determinadas por uma consciência histórica, instalando entãoo ponto de vista supra-histórico (überhistorische Standpunkt). É pos-sível que esse homem conquistasse uma serenidade, mas uma sere-nidade senil: calmaria de um velho sábio, a quem ocorreu desco-brir a força da ilusão e reconhecer que esta reveste todos osfenômenos.

O excesso de história leva à desintegração da vida e da própriahistória a ela pertencente. O instinto analítico dissector “devasta opresente e torna quase impossível toda tranqüilidade, todo cresci-mento e maturação pacíficos” (HL/Co. Ext. II §6); enfraquece, en-fim, a capacidade de incorporação da cultura. A justiça da histo-riografia cientificista é uma virtude temível: seu veredicto sempredestrutivo e seu desenfreado desejo de saber desenraiza o futuro.Colocando-se acima da temporalidade histórica, a historiografia oito-centista concebe-se como ciência pura e soberana, como uma espé-cie de conclusão da existência e seu juízo final. A justiça para como passado não condiciona a saúde do povo e de sua cultura. É pre-ciso que o instinto destruidor seja conduzido por um outro constru-tivo, por uma vontade de futuro. A cultura histórica deve ser domi-nada por uma força superior, a-histórica.

Há, em Nietzsche, uma tentativa de deslocar o conceito de jus-tiça, conceito moldado ao longo dos séculos pela teoria e pelo cris-tianismo, para a perspectiva da vida – da ação vital à atualidade. Ojusto, são, grande e verdadeiramente humano provém da atmosfera

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protetora do a-histórico: nesta bruma germina a vida e sua presen-ça. Entretanto, para a humanidade do homem é necessária a apro-priação do passado conveniente à existência.

É a força superior que tem direito de julgar. O homem superior,o criador, ele deseja a verdade, verdade que brote da justiça davida: uma verdade “como juíza que ordena e pune” (HL/Co. Ext. II§6). Envolvido pela ilusão amorosa, seu saber é procriação do pre-sente e de sua tradição em futuro: “O veredicto do passado é sem-pre um veredicto de oráculo: apenas enquanto arquiteto do futuro,enquanto conhecedor do presente, poderá compreendê-lo” (§6).Com esta sentença, Nietzsche não apenas afirma todo conhecimen-to ser interpretativo, mas estabelece um valor de verdade. Valor estearraigado na vida e em sua justiça, que é, antes de tudo, apropria-ção e procriação. Se a sentença pode ser lida em sentido epistemo-lógico (vez que avalia a forma de proceder na busca do conheci-mento, determinando, se não o grau de verdade, ao menos o seuvalor), se possui tal sentido é porque, sob o ponto de vista ontológico,tudo emerge da vida. Vida eternamente insaciável, a força propul-sora de toda cultura. Assim como o futuro, o passado é uma con-quista, conforme o sentido projetivo do homem de ação. Não sepode desconsiderar esta “preponderância” do porvir na composi-ção e no valor do conhecimento. A idéia de um predomínio do pro-jetar próprio à existência perpassa toda a obra nietzschiana.

A infertilidade do historiador deriva do modo como concebe otempo, de como compreende a relação dos acontecimentos históri-cos com o presente. Atualmente, não faz mais sentido a idéia deum passado que é encontrado independente da questão que lhedirige o presente. Nicole Loraux, historiadora da Antigüidade, aofazer o Elogio do anacronismo, diz ser este o pesadelo do historiador.O “anacronismo”, ação de contemplar o passado a partir de ele-mentos e questões próprias à atualidade, se traduziria, para a auto-ra, numa célebre fórmula de Marc Bloch: “é preciso compreender

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o presente pelo passado e o passado pelo presente” (Loraux 10,p.61). O anacronismo se impõe, para ela, pois considera o presentecomo o “mais eficaz dos motores do impulso do conhecimento”,quando se pretende estudar a história da Antigüidade. Por outrolado, para a filosofia das correntes fenomenológica e hermenêutica,a temporalidade já há algum tempo não é pensada cronologicamen-te e a história deixou de ser simplesmente um saber do passado.Essa idéia está presente de um modo especial na segunda Conside-ração extemporânea. Ela pode ser evidenciada através da concep-ção de instante aí apresentada.

O instante, para Nietzsche, é a abertura própria à temporalidade:um presente que é regresso e projeto. Para usar uma expressão deEudoro de Sousa, “a história, qualquer que ela seja, refere-se apassado, presente e futuro” (Souza 18, p.10). Destarte, há uma for-ça retroativa e projetiva que possui todo presente, convertendo-oem uma presença que se estende de sua atualidade à antigüidade eengloba a projeção de um ou mais horizontes de porvir. O termogrego para “presença” é “parousía”: “atualidade”, “ocasião favorá-vel”, “chegada”, “advento”. O prefixo “par” indica uma proximi-dade, uma delimitação, algo que se avizinha ou está próximo e cor-responde ao prefixo latino “prae”, que, por sua vez, também sugereprioridade no tempo e no espaço. Tanto em grego quanto em latim,o “presente” indica uma situação favorável.

Em alemão, diz-se “Augenblick” para “instante”, ele quer di-zer, literalmente, “mirada”, “vista de olho”, é como um piscar deolhos: um tempo que mesmo sendo efêmero, destaca-se; que domi-na e demarca um horizonte restrito e fugaz. Nietzsche acentua estaforça do momento presente. Porém, o instante no qual, a cada vez,o homem se encontra não é um intervalo reduzido de tempo, poisinsta a algo, e só projeta-se porque no momento lembra-se. O ins-tante instaura, pois é impelido pelas instituições legadas pelo passa-

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do, pela tradição. Esse caráter próprio a cada presente confere aotempo um aspecto circular em oposição à linearidade da cronolo-gia. Ao divisar o passado, contemplar a atualidade ou vislumbrar oporvir, o que sempre se tem presente é a presença desse instanteque é precisamente a reunião dos imaginários, dos simbolismos, deuma disposição corpóreo-simbólica dos homens em um mundo, in-cluindo os equívocos que o atravessam. As interpretações diversasque uma época apresenta de algo habitam o mesmo horizonteinterpretativo. Horizonte, decerto, “equívoco”, isto é, com “vozesem simultâneo”.

O presente, exposto através da consciência, está rodeado poruma bruma, pela inconsciência e a-historicidade próprias à vida. Aexistência está sempre envolvida por uma atmosfera a-histórica. Elacompõe-se da arte e do poder de esquecer, de acondicionar a me-mória e a temporalidade em um horizonte, em um limite protetordo impulso desenfreado da ciência e do conhecimento do passado– de um desejo de pura presença sem ausências.

As forças mais próprias da “bruma” são a arte e a religião, asquais Nietzsche designa pela expressão “sobre-históricas” (über-historischen). Tais potências conduzem à supressão da consciênciade temporalidade (ao menos no sentido cronológico). Não é queestejam à parte do devir, mas põem-se acima da consciência histó-rica e conferem a uma presença o caráter de algo permanente; assim,atuam na história envolvendo-a. Elas desviam o olhar do devir paradar à existência o aspecto de eterno e imutável. Melhor: conferemao devir o caráter de eterno. Sem este poder da arte e da religião(ou, mais especificamente, do mito), o homem converter-se-ia em“discípulo de Heráclito”: condenado a não esquecer, veria tudo emmetamorfose. A realidade ruiria perante seus olhos, justamenteporque não se dispunha no presente. Em resumo, é possível viverquase sem recordar, mas não sem esquecer (HL/Co. Ext. II §1).

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Até mesmo para recordar é preciso esquecer, deixar que se apaguemas diferenças; somente assim configuram-se formas – sem as quaisnão existe memória e nem mesmo percepção.

O tempo da arte e do mito é a comemoração. Na experiência dafesta de caráter religioso rompe-se o tempo ordinário. A arte e omito não são potências sobre-históricas por não participarem do devirdos acontecimentos, mas sim porque seu tempo não é o cotidiano,porém aquele que traz a experiência de plenitude. Elas contrastamcom a história por seu caráter eternizante, de certo modo, garan-tem-na: “As festas recorrentes não são assim chamadas porque sãoregistradas numa ordem temporal, mas ao contrário, a ordem tem-poral surge a partir do retorno das festas” (Gadamer 5, p.64). Alémdisso, arte e mito evidenciam o poder formativo da memória. Semeste poder de fixar formas e ser capaz de organizá-las em movi-mentos segundo uma temporalidade própria e significativa, querdizer, em especial, o poder de forjar uma aventura, um drama, nãohaveria a narrativa histórica. A história depende do caráter modula-dor das potências sobre-históricas.

O confronto entre história e atmosfera a-histórica é um dos prin-cipais exemplos da dialética nietzschiana, e equivale aos contrastesentre consciência e inconsciência, lembrança e esquecimento, luz etreva, ou ainda, lucidez e embriaguez. É emblemática a sentençade Goethe com a qual Nietzsche começa o seu colóquio: “De resto,abomino tudo que me instrui sem aumentar e estimular imediata-mente a minha atividade”. Ela indica já a posição através da qual édirigida uma crítica à ciência histórica: seu esquecimento de quedeve ser apropriada à atualidade, que deve convir à existência; oesquecimento da obrigação de animar o presente – a atualidade davida –, de contribuir para a atividade vivificante. A inversão relati-va ao domínio entre saber e vida, realizada por Nietzsche, é resu-mida na alteração da sentença cartesiana cogito ergo sum para vivoergo cogito (HL/Co. Ext. II §10). A vida, a existência, com seus

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aspectos mais discrepantes, com seus sentidos e não-sentidos, do-minam e devem reger a teoria e a razão. O valor da ciência e dahistória não está, portanto, em seu grau de verdade, em sua cienti-ficidade, mas em sua capacidade de contribuir para a afirmaçãoincondicional da existência.

3. Horizonte

Em Nietzsche, o modelo de cultura e saber é inspirado na jovia-lidade grega. A teoria estava associada à realização da existência,não simplesmente à busca de um saber erudito: “os gregos doma-ram seu impulso do conhecimento, impulso em si mesmo insaciá-vel, através do respeito à vida, mediante uma ideal necessidade devida – pois o que aprendiam, desejavam viver imediatamente”(PHG/FT §1). Na Antigüidade, a dignidade e o reconhecimento daciência estavam diretamente vinculados à procura de virtude: “Háalgo de novo na história, quando o conhecimento quer ser mais doque um meio” (FW/GC § 123). Não mais medium da vida, a ciên-cia decai em excesso. A consciência histórica moderna de justiça everdade ataca a faculdade plástica da existência. Graças a esta fa-culdade, os gregos apoderaram-se de seu passado e da culturaalheia, convertendo-os em “seu próprio sangue”. Eles foram capa-zes de dominar o impulso do conhecimento por uma força que osunia em torno de sua cultura. Esta “força plástica” (platische Kraft– HL/Co. Ext. II §1) torna tudo que é estranho e longínquo empróximo e próprio.

Inexiste uma tal compreensão na modernidade: sua consciên-cia histórica converteu o passado em “coisa factual”, em objeto deposse da ciência. Ela encobriu o caráter mais próprio do passado, ode ser pertença de um homem, de um povo, de uma cultura. Emdesarmonia com a vida, o sentido histórico condutor da modernidade

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não permite mais nenhuma maturação lenta, que é a espécie deamadurecimento da cultura. Nietzsche utiliza, para ilustrar o pro-cesso de apropriação do novo ou daquilo que é exterior, a alegoriada serpente que ao comer coelhos vivos deita-se tranqüilamente aosol, evitando qualquer movimento além do indispensável. Há umtempo de maturação necessário às transformações geradas ougestadas no seio de uma tradição para converter o novo em costu-me e caráter. A apropriação anímica da cultura equivale à assimila-ção física dos viventes, ela requer um tempo apropriado de diges-tão – de gestação; para ser mais preciso, tal processo interior é acultura autêntica (HL/Co. Ext. II §4). Ao falar da serpente, a ima-gem não poderia ser outra senão a da alimentação, pois o animalvive apenas de modo não-histórico. Não há nenhuma projeção ouapercepção da temporalidade; nada há além do instante. Ele, as-sim como o recém-nascido, é por natureza esquecidiço: vivem am-bos, na inconsciência, em uma feliz cegueira.

Se a felicidade do animal e da criança deve-se ao esquecimentoque os mantém sempre no instante, nem esta felicidade, nem esteesquecimento, nem este instante são os do homem. O instante dohomem é a presença que circunscreve passado e futuro. O seu es-quecimento é o correlato imprescindível à memória. E a sua felici-dade é uma conquista e não um repouso no não-sentido; não é aaceitação cínica despreocupada do “mundo”. O mundo com o qualo homem se relaciona não é simplesmente dado, simplesmente pre-sente, mas um mundo simbólico e temporal. Se a felicidade dependeda “aptidão de sentir de forma a-histórica”, esta capacidade só podeexistir em um ser que compreende sua temporalidade, que a pro-nuncia em sentenças simples como “foi...”, “era...”, “será...” etc.

Entregue ao puro esquecimento, em seguida a criança

aprende a palavra “era” [“es war”], palavra-chave com a qual tem aces-so à luta, dor e fastio do homem, para recordar-lhe que sua existência

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fundamentalmente é – um imperfectum que nunca chega a aperfeiçoar-se. Quando finalmente a morte traz o anelado esquecimento, então sem-pre simultaneamente ela abate o presente e a existência, e imprime oselo deste saber de que a existência é um ininterrupto ter sido, algo quevive de negar-se e consumir-se, de contradizer-se a si mesmo. (HL/Co.Ext. II §1).

Com a palavra “era” a criança ingressa no mundo humano. Quese pode entender desta afirmação, a não ser que a memória é umtraço característico da humanidade e que esta pode ser definidapor sua relação com o tempo? Por outro lado, o que é o apelo trági-co da consciência de limite e finitude, senão uma viva aceitação damorte, do desaparecimento da individualidade? Ao ser introduzidaem um mundo cultural, ao aprender a mais imediata conjugação deverbos, a criança é humana: é um ser de temporalidade. O homeme a humanidade são históricos e a historicidade do homem perpas-sa pela linguagem; poder-se-ia dizer que a linguagem modela nossapercepção do tempo. A memória é acondicionada pela língua, oque não significa restringir-se a ela1.

A humanidade é definida por seu retorno ao passado: pela “forçade servir-se do passado para a vida e de refazer através dos aconte-cimentos passados a história presente [Geschichte], o homem torna-se homem” (HL/Co. Ext. II §1). O homem não age nem como bichoentregue ao puro esquecimento nem como discípulo de Heráclito.O contraste entre esquecimento e memória exibe a forma do ho-mem relacionar-se com o tempo. A questão que Nietzsche respon-de é a de como um ser de memória relaciona-se com o instante queé abertura de temporalidade, em outras palavras, como a vidaconforma-se em cultura a partir da relação que o presente tem comas outras duas dimensões do tempo. Esta é uma questão posta en-tre os séculos XIX e XX, pois nunca antes o olhar para o passadotinha sido tão problemático. Traço marcante do homem, o resgate

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do passado deve contribuir para a vitalidade de seu modo de serem um mundo simbólico. Este mundo não emerge apenas da lu-minosidade. Ele é claridade e escuridão. Ele mesmo é configuradoatravés da inter-relação de saber e não saber, de lembrança e es-quecimento. “Resgatar” é um termo que resulta do cruzamento entreduas palavras latinas: “reexcaptare”, que indica o movimento de algotrazido das trevas, e “recaptare”, que assinala que algo deve serconduzido às trevas ou nelas conservado. Desvelamento e velamento,que em bom português se diz “revelação”. Se a história nada maisé, mas também nada menos, do que a apropriação mnemônica dopassado, ela é lembrança e esquecimento2.

Na atualidade, no futuro e no passado há sempre coisasirrelevantes, que assim o são pois uma presença ou não vê ou fechaos olhos para não ver, desvia o olhar e recusa-se a dizer sobre aqui-lo que quando muito se assemelha a um vulto. Cada narrativa dopassado, apresentação do presente ou projeção de um futuro sãomodos de organizar a memória através de elementos simbólicos eimaginários em que o esquecimento opera de modo seletivo. O quefalta à consciência histórica do homem moderno é, segundoNietzsche, saber do caráter ativo do esquecimento. Isso, que se podechamar de “esquecimento do esquecimento”, leva o Romantismo aentregar-se à arte de colecionar e conduz o Iluminismo a um exces-so de consciência. O esquecimento é uma faculdade ativa da apro-priação, é potência do processo de incorporação próprio da vida.

O excesso da história é a desarmonia entre os elementoscontrastantes da vida. A doença histórica é a desmesura da memó-ria. Ela não é produto simplesmente de uma demasiada recorda-ção. Essa lembrança é desmedida porque é desraigada da vida –que segrega, valora, hierarquiza e significa ao esquecer. A questãonão é puramente quantitativa, mas de incorporação. A cada tipo dehistória acompanha uma espécie de esquecimento que a torna pos-sível. Assim, em vez de afirmar que a memória desenraizada da

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vida leva esta à degradação, pode-se muito bem dizer que é o es-quecimento, apartado das necessidades da existência de cada atua-lidade, que amofina a vida, tornando-a enferma.

A memória que imagina o passado como passado é excessiva,pois não incorpora a tradição. A doença da histórica não é frutopropriamente nem do cuidado com as minúcias nem da criticida-de, mas sim da vontade de verdade e justiça. Crendo ter atingi-do um tal estado de clareza, o homem oitocentista mira-se comoepigonal. Ele carece da capacidade de absorver elementos estra-nhos e transformá-los em integrantes de um único estilo. Falta-lhe,em uma palavra, um horizonte. Eis a fatalidade do homem moder-no: “A terra firme cede em incerteza para ti, tua vida já não maispossui escoras, apenas algumas teias de aranha que se rasgam acada novo jeito de teu conhecimento” (HL/Co. Ext. II §9). Sentin-do-se herdeiro de todo o passado, ele não é descendente de passa-do algum. A memória não faz sentido se não se é herdeiro daquiloque se rememora. O preconceito de ser epigonal mitiga o espíritode fazer futuro.

4. Consciência histórica

A cisão proclamada pela teoria, entre ela própria e a vida, cul-mina na consciência histórica, excedendo-se em divisão entre inte-rior e exterior. O sentido histórico, sua consciência e idéia de justi-ça são, a um só tempo, provedores e sinais da decadência doexistente, são continuadores do niilismo ocidental. Repleto de da-dos históricos, o homem não possui a pujança de conferir-lhes umsentido comum. Carece de uma coesão que assegure dignidade su-perior à existência e dê confiança ao povo e aos indivíduos; umhorizonte que mostre a propriedade conjunta de uma comunidadee congregue a diversidade em harmonia. Ele carece de cultura, que

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é, antes de tudo “unidade de estilo artístico em todas expressões davida de um povo” (DS/Co. Ext. I §1; HL/Co. Ext. II §4). Cultura nosentido grego de um princípio formativo, de paidéia, isto é, “a idéiade cultura como uma phýsis nova e aperfeiçoada, sem interior eexterior, sem dissimulação e convenção, de cultura como uma una-nimidade entre vida, pensamento, aparência e querer” (HL/Co. Ext.II §10; ver SE/Co. Ext. III §3).

Curvado sobre si, sobre sua “interioridade”, o homem moder-no contempla um amontoado de coisas apreendidas, mas nada en-contra que conduza à ação exterior: eis o reflexo de que a culturahistórica extirpa os instintos condutores da vida presente. Tal ho-mem constitui-se em conflito com a tradição, o que se revela princi-palmente em sua criticidade e nos fatos estranhos e incoerentes acu-mulados pela historiografia, sem reuni-los segundo um só sentido.Sem esta unidade de estilo estético, a arte, o mito e a ciência dei-xam de ser o desabrochar da cultura autêntica. A falta de um hori-zonte que acomode a lembrança numa vivacidade de projeto deve-se à ausência de um estilo coeso. A divisão entre exterior e interioré uma das características marcantes do que Nietzsche concebe comobarbárie moderna. Não mais a cultura suscita o saber. Agora é aidéia de cultura, um certo sentimento que se tem dela, que conduza escolhas deliberadas.

Como poderia nascer uma unidade de estilo quando os cientis-tas e os pensadores são equiparados a simples trabalhadores dasfábricas? A ciência, reduzida pela objetividade com que se busca averdade enquanto certitudo, perdeu o compromisso com sua atua-lidade. Age por ruminação e lembrança, mas sem um desejo deporvir. Jovens cientistas apropriam-se do método de trabalho, dostruques e tom superior de seus mestres, convertendo-se em merosservidores da verdade (HL/Co. Ext. II §7). Se ocorre manter umvivo pacto com a atualidade e seu porvir, o cientista o faz porquecrê em uma história necessária e universal. Acredita na utopia cris-

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tã de redenção e é governado por um sentimento, também cristão,de ser epigonal.

Tanto um quanto o outro, tanto o descompromissado quanto ocompromissado historiador, qualificam arbritariamente de“objetividade” o modo dominante com que a ciência mede as opi-niões e feitos passados, e de “subjetividade” todas as outras formascontrastantes com a sua: no momento presente, nas opiniões corri-queiras, “encontram eles o cânone de todas as verdades; sua tarefaé adaptar o passado à trivialidade atual” (§6). A vida presente devegovernar toda contemplação e ânsia de conhecimento, todavia issonão significa que deva haver um parâmetro único de contemplação.É preciso que a consciência histórica adquira também um olhar parasi mesma, e com isso despeça-se da ilusão de que a sua razão émais objetiva e justa do que as outras formas de percepção de ou-tros tempos.

O Iluminismo concebeu-se como cume do processo histórico eem ruptura com a tradição. Depois de um necessário e dramáticoprocesso, a humanidade estaria em condições de determinar seupróprio norte apenas pela “razão”. A Aufklärung, nomeando-se, fazde si um problema da modernidade e sobre a modernidade. Ela éa primeira a situar-se em relação a seu passado e futuro. Este pas-sado é a fonte de equívocos que a modernidade superou ou tentasuperar, e o futuro é a concretização dos ideais que faz destamodernidade um momento singular ante todo o passado e diantede todas outras formas de “civilização” entendidas como “atrasa-das”. Conforme diz Foucault: “Vê-se aflorar uma nova maneira decolocar a questão da modernidade, não mais numa relação longitu-dinal com os antigos, mas no que se poderia chamar uma relaçãosagital com sua própria atualidade” (Foucault 4, p.105). O presen-te aponta sua seta inquisitiva à sua própria época.

Ao lado deste universalismo do Iluminismo, que coloca a si aquestão de uma modernidade autônoma para o Ocidente e para o

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mundo, está o particularismo dos românticos, que se vincula às pes-quisas colecionadoras das tradições populares, do folclore, na ten-tativa de construir uma história e uma identidade nacional. Entreestas duas posições, Nietzsche encara o problema do Ocidente e oda Alemanha. Para ele, um e outro devem ser pensados conjunta-mente, ainda que a questão da identidade alemã não se deva res-tringir à busca de orientação do Ocidente, mas contracenar comela. Nietzsche contempla o Ocidente enquanto continuador da tra-dição grega e vê o mito como ordenador e significador da contem-poraneidade de um povo. Ele não está disposto a abandonar a cons-ciência histórica, ao contrário, pensa que a aclarando, levá-la-ia aoreconhecimento de seus limites: de que não é condutora de si e detudo o mais.

Ao alcançar a consciência histórica, o homem moderno pensaestar se despedindo da história. No deslumbramento do homemmoderno, em sua crença de justiça e redenção dos tempos há algode paralisante: um lembrar-se de que vai morrer (memento mori),um memorar a proximidade de fim dos tempos legada pela teologiacristã da Idade Média. Do ponto de vista psicológico, o empenhoem rememorar e julgar o passado traduz a autoridade outorgadapela modernidade a si mesma, é o correlato do Juízo Final conver-tido em necessidade universal da história. Com isso, dispõe-se acrença de que os homens da atualidade são epigonais, pois pensamcontemplar o envelhecimento da humanidade: “à velhice cabe afa-zeres senis, ou seja, olhar para trás, conferir, concluir, procurarconsolo no que se passou mediante recordações, enfim, eis a cultu-ra histórica” (HL/Co. Ext. II §8). O cristianismo, com sua idéia defim dos tempos e conquista do reino terrestre, transformado em re-ligião natural, junto com a crença socrática de justiça através daconsciência resultam em fé na razão e no progresso, característicosda consciência histórica. A tese defendida por Nietzsche é que ocristianismo “retroalimenta-se” da cultura histórica: o excesso da

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história tem sua origem no “memento mori medieval e na desespe-rança que o cristianismo traz em seu coração contra todos os tem-pos vindouros da existência terrena” (§8). A história não passaria,assim, de uma teologia camuflada.

O que caracteriza propriamente a consciência histórica? A idéiade que o próprio pensamento que reflete a história passada deriva-se desta e pertence à sua atualidade. Pode-se dizer que tal consciên-cia formaliza-se com Bayle e Vico, amadurece com os enciclopedistase tem em Hegel e Marx, para não sair do âmbito da filosofia, seusrepresentantes. Mas ela já se encontra em Immanuel Kant, mais ex-plicitamente no opúsculo Idéia de uma história universal de um pon-to de vista cosmopolita. Ele está consciente de que suas reflexõesnão estão fora do tempo histórico; porém, a seqüência de aconteci-mentos que constituem a história é governada por uma potência a-histórica: a dialética de contradições faz mover a humanidade rumoa um maior esclarecimento e realização da liberdade humana. Nestesentido, pode-se dizer que em Nietzsche a consciência histórica al-cança a maioridade: ele não mais imagina uma estrutura prévia per-fazendo os eventos históricos. O tempo não é derivado da eternidade,nem de uma estrutura eterna, ao contrário, o “eterno” é uma con-quista no devir da cultura. Diferente de Kant, Hegel e Marx,Nietzsche não vê uma história progressiva. Ele compreendeu o equí-voco de tal perspectiva, o de que haja uma estrutura anterior ao devir.Por isso, a interpretação da história deve interpretar a si mesma:

a origem da cultura histórica – e de sua intrínseca e totalmente radicalcontradição com o espírito de um “novo tempo”, de uma “consciênciamoderna” –, essa origem deve, ela mesma, ser reconhecida como histó-rica, a própria história deve resolver o problema da história, o saberdeve voltar o dardo contra si mesmo – esse triplo deve é o imperativo doespírito do “novo tempo”, caso haja nele algo realmente novo, podero-so, vital e original. (HL/Co. Ext. II, §8).

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Nunca se tratou de negar por completo a consciência de seutempo – ou talvez mesmo de negá-la. Importava conferir outro va-lor aos valores atuantes e renovado sentido ao mundo a partir deuma cosmovisão dionisíaca. Nietzsche combateu os aspectos maisdecisivos da modernidade, ao mesmo tempo em que buscou com-preendê-los profundamente. Este duplo movimento também podeser entendido como um dos traços marcantes da Aufklärung – oesclarecimento crítico ou a crítica que esclarece. A modernidadecaracteriza-se justamente por seu criticismo, por sua renovada to-mada de posição a partir da polêmica. Com isso não quero dizerque Nietzsche seja um típico moderno e sim assinalar que a suarelação com a modernidade não pode ser limitada a de um detrator.Na verdade, ao dirigir uma suspeita a algo que é um dos principaismotivos de orgulho da modernidade, sua consciência histórica,Nietzsche contribui para o desenvolvimento de tal consciência: “nóstodos padecemos de uma febre histórica devoradora e, ao menos,deveríamos reconhecer que padecemos dela” (HL/Co. Ext. II,Prefácio).

A exigência de reconhecimento da situação presente do homeme a vontade de expor um pensamento crítico, em outras palavras,refletir sobre as características de sua época e polemizar publica-mente com seus pares são qualidades da filosofia nietzschiana e dailuminista. A polêmica de Nietzsche não se reduz, todavia, a umaspecto da “maioridade” de que fala Kant em O que o Iluminismo?,pois pretende reconquistar o espírito “agonístico” da Antigüidade,neste presente moderno. Nietzsche imagina “novos tempos” que nãotenham como centro a razão – que estejam, portanto, conscientesde que não é a consciência quem governa ou deve governar a exis-tência. Ele pretende, por assim dizer, uma outra atualidade, outrohorizonte de possibilidades.

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5. A história e suas origens

A grande discussão, realizada na segunda Consideração extem-porânea, sobre a natureza da narrativa histórica, sobre a organiza-ção da memória e a poderosíssima força do esquecimento, é atra-vessada pela afirmação do instante, do presente, deste presentepleno que Goethe via na Antigüidade. Nietzsche faz questão de ob-servar que os antigos podiam viver sem esse louco afã pela história,e que, na verdade, viviam melhor. Apenas em um sentido restrito épossível afirmar que os gregos foram inventores da história: quantoao estilo cuja narrativa envolve um tipo de pesquisa; ele começapropriamente não com Heródoto ou com seu antecessor, Hecateu,mas com Tucídides, que se apropriou dos métodos desenvolvidospor Hipócrates e seus discípulos. O profundo senso de temporali-dade determinante da consciência histórica é, na verdade, deriva-da dos judeus e dos cristãos. Auerbach, em Mimesis, apresenta umainteressante caracterização da narrativa homérica em contraste coma narrativa judaica. Ele demonstra não haver em Homero segundosplanos: “O que ele nos narra é sempre somente presente, e preen-che completamente a cena e a consciência do leitor” (Auerbach 1,p. 3). Por outro lado, no sacrifício de Abraão não há, propriamentefalando, tempo ou espaço, mas um homem – ou, caso se prefira, ohomem – diante do deus Iahweh; o lugar e o tempo são morais enão sensíveis. E, por isso mesmo, o judeu concebe a idéia de histó-ria universal:

Os poemas homéricos fornecem um complexo de acontecimentos pre-ciso, espacial e temporalmente delimitado; independente dele, concebe-se tranqüila e facilmente outros complexos anteriores, simultâneos e pos-teriores. O Velho Testamento, porém, fornece história universal; começacom o princípio dos tempos, com a criação do mundo, e quer acabarcom o fim dos tempos, com o cumprimento da promessa, com a qual o

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mundo deverá encontrar seu fim. Tudo o mais que ainda acontece nomundo só pode ser apresentado como membro desta estrutura; tudo oque disto fica sendo conhecido, ou até interfere com a história dos ju-deus, deve ser embutido na estrutura, como parte constitutiva do planodivino... (idem, p. 13).

Qualquer acontecimento significativo, um ato terrível ou umagrande conquista, deve ter sido causado pelos deuses: este é o mododo homem antigo conferir sentido ao que, depois da Modernidade,passou a ser visto como acaso ou ato humano. Isto não basta, toda-via, ao judeu e ao cristão, pois cada ato decisivo deve ser uma cons-piração divina rumo ao telos. Eles precisam sempre lembrar de quevão morrer. Eis o memento mori da Idade Média. Contra a idéia deprocesso universal, Nietzsche afirma a vida presente.

Se o historiador atual rejeita tal idéia, cada vez mais e de modomais difundido, ele procura expor as injustiças do passado, comose suas denúncias pudessem contribuir para dissipar as injustiçasdo presente, tal qual um feiticeiro que ao pronunciar o nome de umespírito maligno acredita conjurá-lo. Esta redenção através da cons-ciência é filha de seu tempo – é ela também ressentida e niilista.Que idéia de justiça a move, se não pode ser a justiça da força? É ajustiça platônica, cristã, eterna, eqüitativa que exige o messianismodo tipo encontrado em Walter Benjamin, na suas teses Sobre o con-ceito da história. Outro princípio e outra história aparecem comNietzsche. Veja-se, por exemplo, Genealogia da moral: uma escritasob o ponto de vista da vontade de potência.

A história não se constitui apenas de acontecimentos, e os acon-tecimentos, por sua vez, não se dão apenas por motivos políticos,econômicos ou sociais. Há o imaginário, há a dimensão dos valorese das interpretações. Na verdade, a interpretação é mais do quesimplesmente uma dimensão, ela é a natureza de tudo que se fez ese faz. Já citei a sentença emblemática do perspectivismo: “não há

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fatos, apenas interpretações”, mas ela não está assim destacada; ofragmento póstumo diz na íntegra:

Contra o positivismo que fica preso ao fenômeno “só há fatos”, eudiria: não, justamente fatos é o que não há, e sim interpretações. Nãopodemos constatar nenhum fato “em si”: talvez seja um absurdo quereralgo assim. “Tudo é subjetivo”, direis vós: mas já isso é exegese, o “su-jeito” não é nada dado, porém algo inventado por acréscimo, subposto.– Será que é necessário, em última instância, colocar o intérprete aindapor trás da interpretação? Já isso é invencionice, hipótese.

Na medida em que a palavra “conhecimento” ainda tem qualquersentido, o mundo é cognoscível: mas ele é interpretável de outro modo,ele não tem nenhum sentido subjacente, porém inúmeros sentidos,“perspectivismo”.

Nossas necessidades são aquilo que interpreta o mundo; os nossosinstintos e seus prós e contras. Cada instinto é uma espécie de ânsia dedominar, cada um tem a sua perspectiva que ele gostaria de impor comonorma a todos os demais instintos. (KSA, XII, 7[60]).

Eis o mundo: sendo uma pluralidade de potências, de interpre-tações, ele é uma pletora de sentidos; porque é isto interpretação:conferir e determinar sentido e direção. Assim, o que aí se lê é ainexistência do fato sem sentido: um fato já é, por ser fato, envoltoe imerso em interpretações e, sob estas interpretações, ele próprioé interpretação. É mais do que dizer que não existe coisa sem serpercebida, rememorada, imaginada – pois a interpretação pertenceà natureza do universo e não apenas a uma dada relação entre su-jeito e objeto na qual este é representação daquele. Como diferen-ciar, então, de modo permanente e claro os acontecimentos históri-cos da narrativa histórica, Geschichte e Historie? Não é possível.Fazer e contar história não devem nem podem ser dissociados.

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Abstract: Based on Nietzsche’s critique of nineteenth-century historio-graphy in the second Untimely Meditation, this article aims to show howhe contributed to the formation of a historical consciousness. For Nietzsche,modern man’s excess of historical consciousness is a “sickness” derivedfrom a theoretical approach based on the idea of justice, whose corres-pondence is found in the pretense of scientific neutrality. By criticizingthis type of objectivity as well as the notion of progress, Nietzsche defendsthe necessity of history to interpret itself, i.e, for consciousness and scienceto seriously consider their own limits.Keywords: History – historical consciousness – memory – forgetfulness– horizon – perspectivism

notas

1 José Bragança de Miranda, em seu artigo “Nietzsche e amodernidade: considerações em torno da II Intempestiva”,chega a uma interpretação próxima à que apresento, coma diferença de uma conclusão (a qual assinalo em itálico)mais própria aos tempos atuais que a Nietzsche: “Ligar amemória ao homem e o esquecimento ao animal, numaoposição que é logo desconstruída, implica dizer que tudose passa na linguagem, tudo tem de passar pela linguagem.É ela que cria uma memória no homem, e com ela a du-plicação da voz, que é simultaneamente uma divisão dointerior e do exterior” (s.d, p.193). Na verdade, nem tudopassa pela linguagem, mas deve-se principalmente a ela aduplicação do mundo. Se o conhecimento – excessivo – éo responsável pela cisão entre exterior e interior, ele só oé na medida em que confia na ilusão da linguagem. A teo-ria converteu a linguagem em instrumento de formulaçõesconceituais da verdade, sem compreender seu caráterinventivo. Com isso, deixou-se conduzir por seus pre-conceitos.

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2 O contraste entre estas duas potências é elucidado por JesielFerreira de Oliveira Filho: “Lembrar, como sabemos, érepetir, é trazer outra vez algo à consciência, embora demaneira variadamente recombinante. Esquecer, menos doque ação oposta ao lembrar, é a operação conjugada deselecionar o repetível, segregando dentre os acontecimen-tos disseminados nas consciências e no tempo aqueles quedevem ficar ativos ou inativos. Aliás, pela etimologia latina<*excadescere>, relacionada à ação de “podar”, o es-quecer seria algo aproximável a um trabalho como o deaparar os ramos em excesso, ou demasiado espinhosos,dessa roseira rizomática que é a trama da memória. Metá-foras à parte, é pela ação de memorar que produzimosnossos campos de referência para a articulação temporalda realidade” (Oliveira Filho 18, p. 22).

referências bibliográficas

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5. GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: arte comojogo, símbolo e festa. Trad. Celeste Aida Galeão. Riode Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

6. _______. Verdade e Método: traços fundamentais de umahermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer.3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

7. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte II. Traduçãode Márcia de Sá Cavalcante. 3. ed. Petrópolis: Vozes,1993.

8. HERÔDOTOS. História. Tradução e introdução de Márioda Gama Kury. 2. ed. Brasília: UnB, 1988.

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12. NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dosgregos. Tradução de Maria Inês Madeira de Andrade.Rio de Janeiro: Elfos/ Lisboa: Edições 70, 1995.

13. _______. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácioPaulo César de Souza. São Paulo: Companhia dasLetras, 2001.

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15. _______. Fragmentos finais. Seleção, tradução e prefá-cio de Flávio R. Kothe. Brasília, UnB/ São Paulo: Im-prensa Oficial do Estado, 2002.

16. _______. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradu-ção, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Pau-lo: Companhia das Letras, 1998.

17. _______. Sobre la utilidad y los prejuicios de la historiapara la vida. Traducción: Dionisio Garzón. Madrid:EDAF, 2000.

18. OLIVEIRA FILHO, Jesiel Ferreira de. “O regresso dasmemórias”. In: Leituras pós-coloniais de comemoraçõeslusófonas. Salvador, 2003. 180f. Dissertação deMestrado em letras e lingüística do Instituto de Le-tras, Universidade Federal da Bahia.

19. SOUSA, Eudoro de. História e mito. Brasília: UNB, 1981.

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Povos e Pátrias: Wagner e a política

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* Doutor em Filosofia/Unicamp.

Povos e Pátrias:Wagner e a política

Henry Burnett*

Resumo: Este ensaio se constitui numa tentativa de interpretação das re-lações da música de Wagner com a política alemã, tais como Nietzsche assugeriu na seção “povos e pátrias” de Para além de bem e mal.Palavras-chave: arte – música – política – Wagner

Para além do bem e do mal não possui os elementos necessáriospara ser tratado como um livro que dê continuidade à linha de pen-samento estético-musical traçada entre obras como O nascimentoda tragédia (1871) e O caso Wagner (1888), embora já se encontrecronologicamente situado na chamada terceira fase, onde Nietzscheteria desenvolvido sua estética final, destilada com muita intensida-de no interior dos fragmentos póstumos. Apesar disso, os aforismossobre a arte no interior do livro possuem grande importância parauma interpretação ampla do papel da música em sua obra, poiscondensam suas idéias a este respeito num momento em que seusesforços estavam voltados para a constituição de sua doutrina davontade de potência, momento extremamente grave de seu percursoe onde os temas do niilismo e do eterno retorno são constantementefocados. Este ensaio se constitui numa tentativa de interpretação

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das relações da música de Wagner com a política alemã, tais comoNietzsche as sugeriu na seção “Povos e pátrias” de Para além debem e mal.

Temos, de início, um primeiro enigma a decifrar, na seção 240do capítulo povos e pátrias, onde estão reunidos grande parte dosaforismos ligados à música: “Ouvi, novamente pela primeira vez, aabertura de Wagner para os Mestres Cantores” (JGB/BM § 240). Oque sugere esse falso paradoxo? A obra mencionada remete a ummomento muito significativo, pois foi através de sua abertura, e ade Tristão e Isolda,1 que Nietzsche, digamos, converteu-se ao wagne-rismo quando jovem, como testemunha a carta escrita a Erwin Rodheno mesmo dia da primeira audição, 27 de outubro de 1868: “Hojeà noite estive no Euterpe, que começou seus concertos de inverno eme fortaleci tanto com a introdução à Tristão e Isolda quanto com aabertura dos Mestres Cantores. Não sou capaz de me comportar di-ante dessa música de forma criticamente fria, cada fibra, cada ner-vo estremece em mim, e há muito tempo não tenho um tal persis-tente sentimento de enlevo do que durante a abertura nomeada porúltimo” (KSB 2, p. 332).

Foi nesse mesmo período que se conheceram. Mas há uma ra-zão por trás desse retorno tardio a Wagner, Nietzsche a chamará de“patriotice” (Waterländerei) na seção seguinte, ironizando sua “recaí-da” (Rückfall) em velhos “amores e estreitezas” (Lieben und Engen).Mas essa nova audição é distinta, e vem acrescida de um aparatocrítico muito diverso daquele relatado na carta a Rohde. Ouvir amencionada abertura lendo a passagem que a ela se refere, na seção240, permite tentar reconstruir as imagens forjadas por Nietzsche.2

Há um clima, desde o início, de uma grandeza irrefreável, cujoparalelo possível com uma imagem contemporânea remete às trilhascinematográficas para filmes épicos, onde o forte acento das notascria um clima de anúncio de algo por acontecer – no caso dos épicos,de uma cena de alta intensidade emocional, ou de um desfecho

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grandioso –, mas que, em Wagner, pode servir de prenúncio doque ele imaginava ser seu drama musical: um retorno ao sentimentoou ao ambiente trágico. Nietzsche é absolutamente preciso na sínte-se da abertura que, embora não dure mais de dez minutos, permiteidentificar os elementos aparentemente subjetivos da descrição,como: “Ora nos dá uma impressão de antigüidade, ora de estranhe-za, aspereza e excessiva juventude; é tão caprichosa quanto pompo-sa-tradicional (...). Ela flui de modo amplo e cheio: e súbito há ummomento de inexplicável hesitação, como uma lacuna entre causa eefeito, um peso que leva ao sonho, quase um pesadelo” (JGB/BM §240). Há, efetivamente, uma alternância entre os ataques fortes daorquestra e um momento em suspenso, onde um estranho silênciotoma conta, é onde quase não se ouve a orquestra, é aí onde parecehaver a “hesitação” (Zögerns), a “lacuna” (Lücke). O que Nietzschequer dizer com essa descrição quase técnica da abertura?

A grandeza da obra tem uma analogia soturna com a alma ale-mã, ela é seu reflexo, um jogo narcísico que serve para pôr frente afrente a miséria de ambos, assim Nietzsche interpreta essa vinculaçãoatravés do orgulho que os alemães têm ao ouvi-la. Tanto a obraquanto a alma dos alemães se autocomprazem com as suas gigan-tescas proporções, seu deslumbramento é fruto da vontade de ex-pandir por toda a Europa seus domínios políticos e culturais. O pró-prio Wagner compôs a abertura como modo de auto-exaltação, “afelicidade do artista consigo”, como exclamação de si mesmo, “suaespantada e feliz consciência da maestria dos meios que aqui em-prega”. Nietzsche está falando da consciência de que Wagner esta-va munido quando compunha sua revolução musical – “meios ar-tísticos novos, recém-adquiridos e ainda não testados”; sua obraquase se confundia com a expansão dos domínios alemães, eNietzsche é extremamente cruel quando pressente a satisfação dosalemães e do próprio Wagner com essa irmandade. Se a seção ini-cia emblemática, encerra de modo desconcertante: “Tal espécie de

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música expressa da melhor maneira o que penso dos alemães: elessão de anteontem e do depois de amanhã – eles ainda não têm hoje”(JGB/BM § 240). Essa falta de presente está ligada de maneira es-treita com um tema central da maturidade de seu pensamento: agrande política.

Na verdade Nietzsche serve-se, ao longo de todo o capítulo, deum outro personagem além de Wagner: o estadista prussianoBismarck; se opta por omitir seu nome, é por temor à censura.3 Noentanto, essa “filosofia política” de Nietzsche não pode ser corrobo-rada com muita segurança, na medida em que, possivelmente, eledesconsidere elementos importantes nas relações de poder da épo-ca, fornecendo muito mais sua impressão pessoal do período doque um quadro fiel e irrepreensível dos acontecimentos; embora,certamente, não se trate de meras divagações, pois Nietzsche eraum aguçado leitor, e seus interesses amplos pelos mais diversos ní-veis da cultura são conhecidos. Mesmo assim, não pretendo aquitomar suas referências históricas como representação daquela rea-lidade, embora não se possa tirar delas seu valor testemunhal, pois,de outra forma, de pouco valeria sua crítica a Wagner.

A abertura de Os Mestres Cantores serve como analogia do im-pério centralizado do governante alemão, ambos grandiosos e, porisso, merecedores do orgulho da Alemanha. Não escapa a Nietzscheum elemento sutil e fundamental nessa exaltação dos alemães:“Estamos na era das massas: elas se prosternam diante de tudomaciço”. Não deve escapar aqui uma questão importante: o termoMassen remete às multidões, quer dizer, Nietzsche está dizendo quea música e a política passam a se uniformizar também por umnivelamento geral de quem ouve e de quem vive. Esse conjuntorevela, mais uma vez, o quanto Nietzsche se antecipou na condena-ção da arte conformada e oficial que vai dominar os meios de pro-dução posteriores, e que sua crítica não está ligada apenas a ele-mentos de ordem pessoal quando o assunto é Wagner.

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O diálogo forjado por Nietzsche, e já mencionado, dá-se entreum “patriota” alemão e um francês, após a fundação do estado ale-mão por Bismarck, vitorioso que foi sobre a França. Se, por umlado, a Alemanha sai vitoriosa como império político, a França emer-ge como potência cultural aos olhos de Nietzsche. Curt Paul Janztem a seguinte impressão dessa seção oitava: “Ele [Nietzsche] in-vestiga a força espiritual de quatro povos europeus, sua capacidadede opor-se à ‘loucura das nacionalidades’, que por aqueles diasparecia atravessar uma fase ascendente, sua capacidade, enfim, deopor-se à autodestruição da Europa e de colaborar com a educaçãodesse ‘europeu’ que, de sua parte, postulava o que viria retornar demodo irrefreável no século XX. Mas Nietzsche não apontava preci-samente para uma Europa unida politicamente, que não havia repre-sentado nada mais que um novo ‘nacionalismo’ europeu, um nacio-nalismo sobre uma base mais ampla, destinado com uma forçaespiritual, a um espaço cultural criador de sentido, indicador, emuma palavra, de um caminho. Desta perspectiva, Nietzsche iluminae clarifica ‘seus’ alemães, franceses, ingleses – e judeus –. E por-que ‘Europa’ vale para ele, antes de tudo, como um espaço cultu-ral, como meio de ordenar seus estudos em filosofia, literatura e,sobretudo, música!” (Janz 1, p. 466).

Nessa vinculação entre a figura de Wagner a de Bismarck, opróprio Nietzsche parece paradoxal ao achar que a lógica da almaalemã – em exaltar as conquistas de Bismarck e de adorar a obrade Wagner – valeria da mesma forma para sua própria vivência emrelação à música do maestro. A patriotice condenada antes pareceum retorno a mais, entre tantos, no percurso das relações com seudesafeto. Se parece independente politicamente – e o é – não pare-ce ter pensado no quanto de real patriotice (o nome pode ser outro,paixão, ilusão) havia em sua nova audição wagneriana, embora aabordagem aqui esteja se dando em outro nível. Minha hipótese,portanto, é que as análises de Nietzsche sobre Bismarck não podem

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ser estendidas automaticamente para Wagner, como ele parece que-rer.4 Mas é preciso estar atento para o que poderíamos chamar de“filosofia das aspas”, um recurso que Nietzsche utiliza abundante-mente no texto. A partir de um duplo viés – afastamento e aproxi-mação com o wagnerismo – espero poder encontrar um caminhoúnico, ou pelo menos um sentido não dúbio no interior do raciocí-nio de Nietzsche, pois o paroxismo aqui acaba por confundir o quetalvez seja seu propósito mais elevado, o de demonstrar como amúsica de Wagner se liga à política alemã quase como uma exten-são, mas também quero demonstrar como Nietzsche vacila ao ten-tar demonstrar sua independência, seu desapego pela arte deWagner. Vejamos como isso se dá.

Sua crítica à vontade de uniformização da Europa atinge emcheio a vontade de germanização que esse processo arrastava;Nietzsche quer tudo, menos um mundo germânico. A expressão sig-nifica que o povo alemão possui uma imagem muito multifacetada,o contrário da idéia de unidade cultural, a Alemanha possui ori-gens variadas, o que o torna vulnerável diante da necessidade deafirmação racial. Sobre esse “trauma” alemão, Nietzsche lembraque é uma característica de seu país perguntar sempre o que signi-fica ser alemão, parafraseando o famoso texto de Wagner, fruto domesmo espírito de época.5 Com esse problema de identidade – cla-ro que pode haver um exagero irônico nisso – Nietzsche pode entãotocar no ponto nuclear de seu argumento: como um povo frágil con-segue julgar-se “profundo” (tief) a ponto de pretender estender seusdomínios aos outros povos? Para explicar isso, Nietzsche recorre adois termos utilizados por ele pouco antes, no prefácio à segundaedição de Aurora, de 1886: profundidade e superfície: “Houve umtempo em que se costumava distinguir os alemães como ‘profun-dos’” (JGB/BM § 244). As aspas surgem como o primeiro princípioda ironia, mas também como incógnita, isto é, os alemães jamaisforam profundos; mas por que as aspas?

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Como “povo do meio” (“Volk der Mitte”), de origem diversa, osalemães seriam o avesso da profundidade, na mesma direção dodito prefácio, ou seja, uma raça superficial por natureza. No prefácio,superficial está empregado como sinônimo positivo de quem estáacima das tradições, alheio ao subterrâneo, ao que há de mais viciosoe fixo na cultura. No livro de 86 parece ser outro o enfoque, poisprofundo não tem uma conotação conservadora, antes parece umelogio ao que o alemão não possui de fato, pois Nietzsche está dizen-do o tempo todo que os alemães não são profundos, ora com aspas,ora sem. Temos então usos distintos para temas contemporâneos.

Ele pisava naquele momento em um terreno pouco propício avacilações, o terreno da política, daí as referências a Fichte a JeanPaul – escritor, autor do discurso Friedenspredigt an Deutschland,uma resposta aos Discursos a nação alemã, de Fichte – e a Goethe,para fazer valer seus argumentos: “Jean Paul sabia o que fazia,quando se declarou irritado com os exageros e adulações de Fichte,mendazes porém patrióticos – mas é provável que Goethe pensassediferente de Jean Paul sobre os alemães, embora lhe desse razãono tocante a Fichte” (JGB/BM § 244). Vemos então que a patrioticedeclarada no início não passava de mera figuração – desconside-rando a hipótese anterior sobre Wagner, que ainda será objeto deatenção – e que, a bem da verdade, é intolerável para Nietzscheuma defesa patriótica da Alemanha. Isso estaria marcado na almados alemães; interrogar acerca da sentença O que é alemão? é lugarcomum em alguns livros – Humano, demasiado humano, § 323 e Agaia ciência, § 357 –, sempre como contraponto ao texto de Wagner.Desclassificar a alma alemã parece ser o modo de evacuar o signifi-cado histórico de projetos não só políticos (Bismarck) e filosóficos(Hegel) como também estéticos (Wagner), que operariam em fun-ção de uma “germanização de toda Europa (...)”. Tal sentença vin-cula, pelo viés da vontade de potência, domínios distintos da cultu-ra, posto que a noção de grande política está aqui posicionada em

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plano de fundo. Arte e política são parte de um domínio mais am-plo, o domínio da cultura. Quando colocadas lado a lado – tendo amúsica como um elemento de intermediação, justamente no capítu-lo sobre os povos, onde Nietzsche antecipa a possibilidade de umaEuropa como um Estado único, uniforme (sabemos efetivamenteque a Europa unificada não se moldou pela Alemanha) – indicam adireção que toma o seu pensamento, Wagner surgindo como o ou-tro de Bismarck, seu duplo, sua representação estética.

De profundos, portanto, os alemães não teriam nada, tudo nãopassaria de uma “‘digestão’ pesada e arrastada (...). Quero dizer,seja o que for a ‘profundidade alemã’, aqui entre nós não podere-mos rir dela? (JGB/BM § 244).6 Se a figura de Wagner ainda pare-ce estar dissolvida num espectro mais amplo da cultura, é porquenão há distinção entre os domínios políticos e artísticos, e isso soaquase premonitório, dadas as conseqüências posteriores dessa es-treita vinculação. O argumento inicial – da patriotice como motorde velhas paixões – que se fecha no §245, exige algum esforço parauma correta leitura, pois Nietzsche faz um balanço da cultura musi-cal herdada de Mozart, passando por Beethoven e chegando emWagner. Tal percurso demonstra a vinculação da perda de profun-didade com a penetração devastadora do romantismo no seio dacultura européia. Se Mozart ainda permite:

(...) apelar a algum resíduo em nós! Oh!, um dia isso passará – masquem duvida que ainda antes terão fim a compreensão e o gosto porBeethoven! – que foi apenas o acorde final de uma transição e rupturade estilo, e não, como Mozart, o acorde final de um grande e seculargosto europeu. Beethoven é o evento intermediário entre uma alma ve-lha e enfraquecida, que constantemente quebra, e uma alma futura emais que jovem, que continuamente sobrevém. (JGB/BM § 245).

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Se a decadência musical vincula-se à política é, precisamente,na ligação entre a esperança, representada por Beethoven, e o so-nho em conjunto com Rousseau, “ao dançar em torno da árvore daliberdade da Revolução, ao fim quase adorar Napoleão”. Na inter-pretação de Wolfgang Müller-Lauter estão apontados os caminhosdo conceito de décadence em Nietzsche, e isso tanto sob a ótica deRichard Wagner, como da “décadence acima de tudo”. Eis um re-sumo de alguns dos principais pontos: a) Nietzsche compreende-secomo o maior especialista em décadence do seu tempo, por julgar-se ele próprio um décadent; b) a decadência da obra de Wagnerdecorre do fato de que a parte passa a ganhar importância em rela-ção ao todo, o que demonstra “falta de força organizadora”; c)Nietzsche não compreende a decadência de Wagner como apenasum fenômeno estético, mas principalmente enquanto decadênciafisiológica; d) embora Wagner acabe por transferir suas “calamida-des fisiológicas” para seus ouvintes, não se pode esquecer que, paraNietzsche, a decadência é uma possibilidade de crescimento, já quese constitui numa promotora de crise; e) por essa razão, o filósofonão poderia abrir mão de Wagner, ele fornece instrumental paraque se possa diagnosticar a decadência ocidental desde Sócrates, enão apenas como fruto do séc. XIX; f) Schopenhauer surge como oúnico refúgio possível de Wagner, sua filosofia o amparou, princi-palmente por seu apreço pela arte, em particular pela música.Nietzsche achava que “a elevação do valor da música”, promovidapor Schopenhauer, acabou elevando a “cotação do músico”, o queteria sido providencial para Wagner (ver Müller-Lauter 3, 1999).

Há, então, um movimento decadente de Mozart a Wagner, comum intermezzo de Beethoven: o que depois veio de música alemãpertence ao romantismo, ou seja, a um movimento historicamenteainda mais curto, mais fugaz, mais superficial do que aquele gran-de entreato, aquela transição européia de Rousseau a Napoleão e àascensão da democracia (JGB/BM §245). A “crítica musical” aqui

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desenvolvida por Nietzsche exige um mínimo grau de conhecimen-to dos compositores da época, pois não se trata mais de um simplesataque a Wagner, mas de um balanço do ambiente irradiador doque de mais novo se fazia em música. Assim são citados e comenta-dos, além da tríade anterior, Weber,7 autor do Freischütz e doOberon, Marchner,8 de Hans Heiling e o Vampiro Feliz Mendelssohn9

e Robert Schumann, todos representantes e herdeiros do romantis-mo, responsáveis pela debilidade da música alemã. Não podendoextrapolar os limites de uma arte em tudo assemelhada ao pathosromântico, como na imagem forjada por Nietzsche, de um Schumann“meio Werther” – o apaixonado romântico de Goethe10 –, a músicaalemã peca pelo recato, reduzindo-se à mera patriotice.

Na confrontação entre França e Alemanha, Nietzsche constróium quadro mais nítido dessa vinculação estético-política. Trata-sede distinguir a França artística, a “mais espiritual e mais refinadada Europa”, de uma política, “imbecilizada e grosseira” (verdummtesund vergröbertes). Se, por um lado, os franceses têm “uma boa von-tade em resistir à germanização espiritual”, por outro, não conse-guem fazê-lo, deixando-se influenciar poderosamente pelos alemães,num processo de romantização irrefreável que envolvia não só aFrança, mas a Europa como um todo. O pessimismo torna-se objetode culto; a poesia de Heinrich Heine penetra a carne e o sanguedos mais finos poetas de Paris; a concepção de história hegeliana,pelas mãos de Taine, exerce “uma influência quase tirânica” e, porfim, a música francesa, na medida em que pretende moldar-se deacordo com as necessidades da alma moderna, acaba por tornar-sewagneriana. Mas há três virtudes na cultura francesa que nos colo-carão diante da questão inicial: 1) a capacidade de ter paixões ar-tísticas, geradoras da l’art pour l’art, herança de três séculos, espé-cie de música de câmara da literatura que se buscará em vão noresto da Europa; 2) sua cultura moralista e, finalmente, 3) o fato dea França não se haver contaminado com os vapores da “grande

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política” (entre aspas no texto), numa alusão a Bismarck; Nietzscheexalta o fato de haverem conseguido livrar-se da patriotice, “essesmediterrâneos natos, os ‘bons europeus’. – foi para eles a músicade Bizet” (JGB/BM § 254).

Trata-se, à primeira vista, de uma nova empreitada anti-românti-ca, pois estamos no mesmo ambiente dos prefácios de 86, testemu-nhos desse embate. Se, por um lado, trata-se de exaltar uma Françaculturalmente superior, por outro, Nietzsche parece a estar compro-metendo, condenando-a por sua porção wagneriana, incluindo-a namesma germanização negativa pela qual estaria passando a Europa:

Um outro talento demagógico de nosso tempo é Richard Wagner: masele pertence à Alemanha. – Realmente? Que se dê voz, pelo menos umavez, a uma avaliação contrária. Os parisienses ainda gostariam de opor-se e obstinar-se bastante contra Richard Wagner: no fim das contas elepertence a Paris e, em todo caso, mais para lá que para qualquer outracapital européia. Supondo que este tipo de francês, que lhe é o maisaparentado, só agora está começando a escassear: – refiro-me a essanova geração do romantismo dos anos trinta, sob o qual na época maisdecisiva de sua vida, quis viver. Ali, ele próprio se sentia mais aparenta-do e em família que na Alemanha, com seu enorme apetite para odorese cores eróticos e novos desconhecidos excessos do sublime, com sua feli-cidade torturante e pobre em sol na descoberta do feio e do espantoso.Que outra coisa buscavam estes românticos, o que outra coisa encontra-ram e inventaram diferente de Richard Wagner? (XI, 37[15]).

Num outro fragmento, preparatório ao §254, ainda sobre asdiferenças entre França e Alemanha, aparece a famosa crítica deNietzsche a Baudelaire. Após tecer um tipo de genealogia a partirda figura de Stendhal, fazendo derivar dele Merimée, Taine,Flaubert, com referências a Montaigne, Charron, La Rochefoucauld,entre outros, Nietzsche refere-se assim ao poeta: “Se em seu tempo

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foi o primeiro profeta e intercessor de Delacroix: talvez viesse a serhoje o primeiro “wagneriano” de Paris. Há muito Wagner em Bau-delaire” (XI, 38[5]). A defesa de Wagner elaborada por Baudelaireno seu Richard Wagner e Tannhäuser em Paris (1861) é o testemu-nho dessa aproximação. Na verdade, o ensaio teria sido o respon-sável pelo aprofundamento do interesse francês por Wagner, se-gundo opinião de Michel Hall, no texto “O impacto de Wagner nasartes visuais”, (Millington 2, p.469). O ensaio de Baudelaire podeser lido como uma apresentação da obra de Wagner pela via doTannhäuser; não se trata de um panfleto, mas Baudelaire busca le-gitimar a obra e a pessoa de Wagner, como dignos das mais altashonras, e condena a má recepção da imprensa na França. Sua pu-blicação data de 1861, Nietzsche se refere a esse texto em carta aHeinrich Köselitz, datada de 26.02.1888 (KSB 8, p. 263). É preci-so salientar que se trata de um texto parcial, revelando, conforme aopinião de Nietzsche, um fervoroso wagneriano. É uma questão quedá o que pensar, pois justamente Baudelaire, o poeta que não acre-ditava na inspiração, ligando-se a Wagner, o compositor românticopor excelência e, por isso, crente nos poderes infinitos da inspira-ção, um casamento que não poderia estar isento de grandes confli-tos. Apesar disso, Nietzsche acredita que sua união é natural:

O que há de comum no desenvolvimento das almas européias deveser percebido, por exemplo, na comparação entre Delacroix eR<ichard> W<agner>, o primeiro peintre-poète, o outro poeta-somsegundo a diferença entre o talento francês e o alemão. Mas, fora isto,iguais. Delacroix, aliás, é também muito músico – uma abertura doCoriolano. Seu primeiro intérprete, Baudelaire, uma espécie deR<ichard> W<agner> sem música. A expressão é preferida porambos, sacrificando todo o resto. Ambos viciados em literatura, amboshomens extremamente cultos e escritores. Ambos nervosos-doentios-tor-turados, sem sol (XI, 34[166]).

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A aparição de Baudelaire em dois momentos póstumos podelevar a crer que Nietzsche estivesse obscurecendo sua importância,já que ele não é sequer mencionado em Para além do bem e domal, mas aí estaríamos minimizando a importância dos póstumos edesconsiderando suas implicações no conjunto da obra.11 Não éapenas uma preocupação cultural que está em jogo, mas uma estreitaaproximação entre domínios distintos, o da arte (principalmente damúsica) e da política. Por isso há uma insistência em fazer crer quea decadência da música alemã está em sintonia com a suposta de-cadência do Estado, por isso talvez Nietzsche dedique um aforismomuito instigante aos judeus e seu papel na constituição da Alema-nha: “ainda não encontrei um alemão que tivesse tido afeição pelosjudeus”; tal sentença serve para demonstrar a situação dos judeusem meio ao fogo cerrado, num país incapaz de absorvê-los:

Que a Alemanha tem judeus mais que o bastante, que o estômagoalemão, o sangue alemão tem dificuldade (e ainda por muito tempoterá dificuldade) para dar conta desse quantum de “judeu” – como de-ram conta o italiano, o francês, o inglês, graças a uma digestão maisvigorosa –: tal é o claro enunciado e linguagem de um instinto geral,ao qual é preciso dar ouvidos, pelo qual é preciso agir. “Não deixarentrar novos judeus! E em especial ao Oriente (e mesmo à Áustria)aferrolhar os portões!” – assim ordena o instinto de um povo cuja espé-cie ainda é fraca e indeterminada, de modo que poderia facilmenteapagar-se, poderia facilmente extinta por uma raça mais forte (JGB/BM § 251).12

A Alemanha vive então um processo degenerativo, pela via donacionalismo cego. Os políticos, incapazes de perceber que sua“política desagregadora” (auseinanderlösende Politik) não passa de“entreato” (Zwischenakts), ou seja, que algo virá e ocupará seu lu-gar, ignoram uma vontade superior, que se move lentamente nas

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entrelinhas da fachada nacionalista. Trata-se de uma ignorância queobscurece um movimento que pretende agregar a Europa – que“quer se tornar uma” –, movidos pela sanha do poder, “políticosde vista curta e mãos velozes”. Mas é preciso não deixar escapar oliame que mantém juntas a política e as artes, e aqui o psicólogoNietzsche fornece um quadro notável:

Em todos os homens mais amplos e profundos deste século, a orienta-ção geral do secreto lavor de sua alma foi preparar o caminho para essanova síntese e antecipar experimentalmente o europeu do futuro: ape-nas em sua fachada, ou nas horas mais fracas, talvez na velhice, elespertenciam às “pátrias” – apenas descansavam de si mesmos, ao se tor-nar “patriotas”. Penso em homens como Goethe, Beethoven, Stendhal,Heinrich Heine, Schopenhauer; não me reprovem se incluo tambémRichard Wagner entre eles, pois não devemos nos deixar enganar porseus próprios mal-entendidos a seu respeito – é raro que um gênio dasua espécie tenha a prerrogativa de se compreender (JGB/BM § 256).

Tal panteão de nomes célebres teria tido a missão de preparara Europa para sua unificação; tal afirmação é feita à luz da vinculaçãoentre arte e política; parece, a um primeiro olhar, que a França e aAlemanha são as culturas, que elas podem representar a Europa.Nietzsche não ignora a má recepção parisiense de Wagner:“tampouco nos deixemos enganar pelo indecoroso ruído com quena França atual se reage a Wagner” (JGB/BM § 256), mas não aleva a sério, em nenhum momento: “(...) nas alturas e profundezastodas de suas exigências eles são aparentados, radicalmente apa-rentados: é a Europa, a Europa una (...)” (JGB/BM § 256). Comovimos, Nietzsche opera exatamente o contrário, utiliza-se do ensaiode Baudelaire para acentuar as afinidades recíprocas.

Um pouco antes do desfecho da seção, no aforismo imediata-mente anterior, Nietzsche pede cuidado e cautela nas relações com

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a música alemã, e menciona a existência de uma música “supra-germânica” (überdeutschen), isto é, que está para além da músicada Alemanha, ainda, ao que tudo indica, em busca de um substitu-to para a promessa mítica de seu perdido Wagner. Ao encerrar oargumento, é como se o leque inicialmente aberto – o da patriotice– ganhasse um contorno novo, à revelia do que originalmente elepensava. Eis o trecho do importante penúltimo aforismo:

Esse meridional, não por ascendência, mas por crença, caso sonhecom o futuro da música, sonhará também com a sua libertação do Nor-te, e terá no ouvido o prelúdio a uma música mais poderosa, mais pro-funda, talvez mais misteriosa e malvada, a uma música supragermânica,que à vista do voluptuoso mar azul e da mediterrânea claridade celestenão se acanhe, não amareleça e empalideça com toda música alemã,uma música supra-européia, que se afirme também face aos fulvos po-entes do deserto, cuja alma se assemelhe à palma, e saiba vagar e sen-tir-se em casa entre belos, grandes, solitários animais de rapina... Eupoderia imaginar uma música em que a rara magia seria nada maissaber de bem e mal, sobre a qual talvez alguma saudade marinheira,sombras douradas e suaves fraquezas apenas passassem vez por outra:uma arte que de longe percebesse, fugindo em sua direção, as cores deum mundo moral declinante, já quase incompreensível, e fosse hospita-leira e profunda o bastante para acolher esses refugiados tardios. – (JGB/BM § 255).

O conceito de “supragermânico” é aqui empregado com signifi-cados múltiplos: é, antes de tudo, sinônimo de uma música paraalém de Wagner; uma música livre da teia política, isto é, desvin-culada de identidades nacionais; uma música afirmativa, que pu-desse representar as maiores ambições e pulsões da arte no momentomais intenso do niilismo exacerbado que Nietzsche diagnosticou euma música dionisíaca, cuja origem fosse o sentimento popular,

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tomado como instinto universal superior dos homens; uma músicaque não existia àquela altura, o inaudito. Mas, no aforismo seguin-te, Nietzsche empregará o mesmo conceito atribuindo-o a Wagner,num paradoxo de difícil digestão:

Que os amigos alemães de Richard Wagner discutam se em sua arteexiste algo simplesmente alemão, ou se não a distingue o fato de se ori-ginar de fontes e impulsos supragermânicos: no que não deve ser subes-timado o quanto, na formação total de seu tipo, foi indispensável justa-mente Paris, pela qual a profundidade de seus instintos o fez ansiar nomomento mais decisivo, e o quanto seu modo de apresentar-se, seuapostolado próprio, pôde consumar-se apenas à vista dos modelos dossocialistas da França (JGB/BM § 256).

Nietzsche, ao descaracterizar a pureza de uma origem germânica,mostra que outro ponto essencial de sua estética primeira se modifi-cou: o elogio da Alemanha. Ele parece claramente partidário de umamistura parisiense na música de Wagner, o que a torna, portanto,politicamente comprometida e artisticamente decadente. Ao mesmotempo, deixa permanecer, ao lado dessa origem “supragermânica”,o que é autenticamente alemão em Wagner. Nietzsche esboça a níti-da intenção de desqualificar Wagner – como cristão, devoto, etc. –mas acaba, ainda uma vez, louvando-o como anti-romântico:

Numa comparação mais sutil, talvez se venha a pensar, em favor danatureza alemã de Richard Wagner, que em tudo ele foi mais ousado,mais forte, mais elevado e mais duro que um francês do século XIX po-deria ter sido – graças à circunstância de que nós, alemãs, estamos ain-da mais próximos à barbárie que os franceses –; e talvez seja inacessí-vel, inimitável, insondável para essa inteira, tardia raça latina, parasempre e não só por hoje, a criação mais notável de Richard Wagner: afigura de Siegfried, aquele homem muito livre, que é, porventura dema-

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siado livre, demasiado duro, contente, sadio e anticatólico para o gostodos velhos e cansados povos civilizados (JGB/BM § 256).

Para dar cabo da hipótese levantada no início – de que Nietzschepoderia estar se traindo ao tentar indicar uma patriotice apenasirônica em sua audição de Os Mestres Cantores – é preciso ir maisadiante. Se, por um lado, sua intenção é reduzir o valor de Wagner,por outro é realçar seus ímpetos instintivos, fortes, anti-românticos.Mas será que é possível acreditar que Nietzsche não havia abando-nado de todo a esperança em um Wagner renovador? Este é umponto nada desprezível, já que estamos diante de uma obra central,a mais importante, segundo seu autor. Eis como ele ainda trata daobra de Wagner em um póstumo tardio: “A erupção da arte deWagner: ela segue sendo nosso último grande acontecimento naarte” (XIII, 15[6]). Mesmo que Wagner, no fundo, seja um cristãodos mais fracos, como quer às vezes nos fazer crer Nietzsche, elecarrega consigo a força de um anti-romantismo – seria agora umainversão de posições, teríamos um Wagner “influenciado” pelo po-der do pensamento de Nietzsche, tal qual esse o foi na juventude.Se nos deixarmos levar pela conclusão, então estaremos empreen-dendo uma leitura demasiadamente simplista, pois ele está opondoa uma ópera anti-romântica, Siegfried, uma cristã, o Parsifal, numaoperação bastante tendenciosa.

Wagner expiou abundantemente este pecado [a criação de Siegfried]nos dias turvos de sua velhice, quando – antecipando um gosto quedesde então se tornou política – começou, com a veemência religiosaque lhe é própria, se não a percorrer, certamente a pregar o caminhopara Roma. – Para que não me entendam mal estas últimas palavras,gostaria de recorrer a alguns versos vigorosos, que também a ouvidosmenos sutis revelarão o que é do meu gosto – o que me desgosta no“último Wagner” e na música de seu Parsifal.

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– Então isso é alemão?É de coração alemão esse estridente anelo?E de um corpo alemão esse autoflagelo?Alemães os gestos sacerdotais,As pregações aromáticas, sensuais?E alemão esse hesitar, cair, cambalearEsse mais-que-incerto bambolear?O repicar dos sinos, esse olhar entre o véu?E o falso-extático ansiar além do céu?– Então é isso alemão?Considerem! Ainda não terminaram o percurso:O que estão ouvindo é Roma – a fé de Roma sem discurso!(JGB/BM § 256).

Mas quem é Siegfried e quem é Parsifal? Nietzsche está pen-sando no último Wagner, que o desgosta por seu enfraquecimentoetc., não o Wagner criador de Siegfried... o Wagner nietzschiano!Tal quadro permite sustentar a hipótese de que há um paradoxo euma insegurança por trás dessa crítica. Há uma oposição entre as“fases” wagnerianas, pelo menos entre o primeiro e o último Wagner.Lance curioso do argumento, quando se lembra que, no mesmoano, 1886, Nietzsche sentou-se para redigir cinco prefácios à guisade introdução para cinco livros discriminados pela crítica alemã,cuja intenção principal era mostrar que a primeira fase de sua obraformava um todo com seu pensamento maduro. Bem, não se tratade uma correspondência direta, quer dizer, as duas obras não po-dem ser postas sob a mesma luz. Mas ele escreveu aqueles textospara poder dar aos leitores um guia, um fio condutor, um caminhoseguro por entre seu pensamento juvenil, a fase que ele, por vezes,renega. Por isso, também, sua crítica a Wagner não procede dentrode moldes tão rígidos, pois são momentos distintos da mesma obraque estão sendo confrontados. Mas, se há mal-entendidos, Wagner

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poderia ser um injustiçado, um incompreendido? É certo que não.A polêmica serve apenas como um recurso a mais para incrementaro que a meu ver é o mais importante: a fusão crítica operada porNietzsche entre a política e a arte. Sua crítica da uniformização daEuropa é muito singular e por que não dizer revolucionária.

Abstract: This essay attempts to interpret the relationships betweenWagner’s music and German politics, following Nietzsche’s treatment ofthem in the chapter “Peoples and fatherlands” of Beyond good and evil.Keywords: art – music – politics – Wagner

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notas

1 Die Meistersinger von Nürnberg, drama musical em 3 atos,estreou em 1868 em Munique, Wagner teve a idéia destaópera enquanto compunha Lohengrin [estréia em Weimar,1850], mas só a realizou 12 anos mais tarde. Para ele, OsMestres Cantores representava o equivalente do “dramasatírico” que, nas representações teatrais da Grécia antiga,relaxava os espectadores após a trilogia trágica. Em suaestréia, essa ópera foi dirigida por Hans von Bülow (dequem Wagner desposou mais tarde a mulher, Cosima). Acrítica julgou a obra “feia e amusical”, mas o grande públi-co fez dela um sucesso. Hoje, Os Mestres Cantores tornou-se uma espécie de ópera nacional bávara; Tristão e Isoldatem uma história que merece ser lembrada: em 1848,Wagner, crivado de dívidas, teve que deixar a Alemanha.Refugiou-se na Suíça. Em Zurique, ligou-se a um rico ne-gociante, Otto Wesendonk, que o ajudou a sobreviver. Ins-pirado pelo amor impossível e ardente que sentia porMathilde, a mulher de seu protetor, Wagner, que haviainiciado O Anel dos Nibelungos [tetralogia estreada emBayreuth, 1876], interrompeu-a para compor Tristão eIsolda, que dedicou à sua musa. Essa ópera foi criticadaem sua estréia; hoje, é considerada um ponto alto do re-pertório lírico. (extraído de Guide de l’Ópera. Edição e co-mentários Jeanne Suhamy. Marabout Belgique, 1992.Edição brasileira publicada pela L&PM, na coleção Pocket,em 1997, com tradução de Paulo Neves). Ver tambémCompêndio Wagner, com comentários aprofundados.

2 WAGNER, Richard: Die Meistersinger von Nürnberg. Em:Richard Wagner. Ouvertüren und Orchesterszenen. Germany.Decca (A Universal Music Company), 1972, Executadopela “Chicago Symphony Orquestra”.

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3 Nietzsche se refere assim a Bismarck, simulando ironicamen-te a conversa de dois patriotas alemães, onde um delesafirma: “Esse entende e pensa de filosofia tão pouco quan-to um camponês ou estudante de corporação” (JGB/BM §241). O tradutor espanhol, Andrés Sánchez Pascual, deixaregistrada essa estratégia de Nietzsche; Paulo César deSouza, por sua vez, ressalta que além da preocupação coma censura prussiana, Nietzsche pretendia que o argumentotivesse uma abrangência mais ampla, não apenas política.

4 Em outro livro, sob um outro contexto, Nietzsche recuperaesse vínculo entre Wagner e Bismarck, exatamente na IIIdissertação da Genealogia da moral, um ano depois, destafeita mostrando que a negação da sensualidade por Wagnerera resultado de uma característica alemã que se generali-zava; mais adiante comentarei esse que é um dos momen-tos mais importantes da fase madura sobre Wagner.

5 Was ist Deutsch? é o nome do título de um artigo de Wagner,publicado nos Bayreuther Blättter em fevereiro de 1878.

6 Tais idéias aparecem no Ecce Homo: “o espírito alemão éuma indigestão, de nada dá conta” (EH/EH, Por que soutão inteligente, §1); sobre a questão da profundidade: “oque na Alemanha se chama ‘profundo’ é precisamente essaimpureza de instinto consigo mesmo (...). Não poderia euquerer propor a palavra “alemão” como moeda internacio-nal para esta depravação psicológica? (...) Produziram osalemães um livro sequer que tivesse profundidade?” (EH/EH, “O caso Wagner”, § 3).

7 Carl Maria von Weber (1786-1826), compositor alemão, omais importante do pré-romantismo alemão e iniciador comsuas obras dos temas capitais da ópera romântica:popularismo, proximidade da natureza, poderes supra-sen-síveis, medievalismo e lenda (fonte: Andrés SánchezPascual).

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8 H. Marschner (1795-1861), compositor de óperas do ro-mantismo alemão. Das 14 compostas por ele, as mais cele-bradas por ele foram as citadas por Nietzsche: O Vampiro(de 1828) e Hans Heiling (de 1833) (fonte: Andrés SánchezPascual).

9 Felix Mendelssohn (1809-1847). Compositor, pianista or-ganista e regente alemão. Após um primeiro sucesso extra-ordinário, como criança prodígio, acabou assumindo car-gos de regente da Orquestra da Gewandhaus de Leipzig(1835-47) e como primeiro diretor do recém-inauguradoconservatório daquela cidade (a partir de 1843). Um pu-nhado de óperas, incluindo a inacabada Loreley (1847),dão testemunho do esforço de Mendelssohn durante todauma vida, para dominar esse meio. Mas é basicamente porsuas obras instrumentais e corais que ele é hoje lembrado.A visão popular de que as obras de Mendelssohn raramen-te emergem da superficialidade sofreu uma reavaliação emanos recentes. O preconceito de Wagner contra ele, emparte de origem anti-semita, não o impediu de ecoarMendelssohn em suas obras de juventude. (fonte: Com-pêndio Wagner).

10 Obra estopim do romantismo, Os sofrimentos do jovemWerther narra, por meio de uma troca de cartas, uma pai-xão violenta, fatal e impossível de um jovem por uma beladama.

11 A esse respeito cf. Müller-Lauter, Wolfgang: A doutrinada vontade de poder em Nietzsche (Tradução OswaldoGiacoia Junior). São Paulo: Annablume, 1997, p. 59ss.,sobre as distinções entre a interpretação de Karl Löwith ea de Heidegger sobre a questão dos póstumos.

12 Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho (Nietzsche 8,p. 298).

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referências bibliográficas

1. JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche. Biographie. Muni-que: C. Hanser Verlag, 1978.

2. MILLINGTON, Barry (org.). Wagner. Um compêndio. Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

3. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. “Décadence artística en-quanto décadence fisiológica (A propósito da críticatardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner)”.Tradução: Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche (6).São Paulo: Discurso Editorial/USP, 1999.

4. ______. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche.Tradução: Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo:Annablume, 1997.

5. NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe.Herausgegeben von Giorgio Colli und MazzinoMontinari. München, DTV/Walter de Gruyter:Neuausgabe 1999.

6. ______. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe.München/Berlim/New York: DTV/de Gruyter, 2.Auflage, 2003.

7. ______. Além do bem e do mal. Tradução: Paulo Césarde Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

8. ______. Ecce Homo. Tradução: Paulo César de Souza.São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

9. ______. Obras incompletas. Tradução: Rubens RodriguesTorres Filho. São Paulo: Abril, 1974.

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* Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Filoso-fia pela PUC-RJ.

A redenção da temporalidade:a trágica intuição do eternoretorno em Nietzsche

Tereza Cristina B. Calomeni*

Resumo: O presente artigo reflete sobre o significado do pensamento doeterno retorno na obra de Nietzsche. A partir de A gaia ciência, Assim fa-lava Zaratustra e de alguns Fragmentos Póstumos, apresenta o eterno re-torno como elemento significativo da crítica nietzschiana da Metafísica eda Modernidade e como parte integrante da filosofia experimental deNietzsche.Palavras-chave: eterno retorno – temporalidade – trágico – além-do-ho-mem – amor fati

“‘Esta vida, assim como tu a vives agora e comoviveste, terás de vivê-la ainda mais uma vez e aindainúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo,cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiroe tudo o que há de indizivelmente pequeno e de gran-de em tua vida há de te retornar, e tudo na mesmaordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha eeste luar entre as árvores, e do mesmo modo este ins-tante e eu próprio. A tua eterna ampulheta da exis-tência será sempre virada outra vez – e tu com ela,poeirinha da poeira!’” (FW/GC § 341)

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I

Entre os comentadores da obra de Nietzsche, não há unanimi-dade em relação ao significado do eterno retorno, mas há, pelo me-nos, um consenso: dentre os muitos desafios impostos pelo pensa-mento e pela linguagem de Nietzsche, o maior talvez resida natentativa de compreensão do lugar ocupado pelo eterno retorno nointerior da crítica nietzschiana da Cultura. Tal consenso é, em certamedida, justificado: de fato, a idéia de que todas as coisas retornamsem cessar aparece na obra de Nietzsche permanentemente cerca-da por uma quantidade razoável de dificuldades que acabam porconduzir os leitores a uma série de interrogações. Não é totalmentedesarrazoada ou improcedente a afirmação de que o eterno retornoobriga o próprio Nietzsche a incidir, se não em aporias, ao menosem alguns problemas de difícil solução. Tomando de empréstimouma expressão nietzschiana, a intenção de compreender a relaçãoentre o eterno retorno e a crítica da Metafísica e da Modernidadetalvez seja o “peso mais pesado” a ser suportado pelo leitor de umaobra tão singular como a de Nietzsche. Eleito como um pensamentofundamental – um pensamento que acolhe toda a crítica de Nietzscheà Cultura Ocidental –, o eterno retorno é freqüentemente proclama-do o grande mistério, o grande enigma, um pensamento constran-gedor, capaz de provocar até mesmo um certo mal-estar, um des-conforto aos comentadores e intérpretes.

A dificuldade de compreensão do eterno retorno é, talvez, moti-vada pelo próprio Nietzsche. O próprio Nietzsche parece envolver oeterno retorno em uma atmosfera um tanto enigmática e misteriosa,como se ao pensamento da repetição de todas as coisas reservasseo destino de ser segredado a poucos: aos raros, aos “mais seletos”,àqueles que, “de ouvidos finos”, podem ouvir “boa notícia”. É,portanto, no interior mesmo da obra de Nietzsche e de suas consi-derações acerca de seu “pensamento vitorioso” que se situa a razão

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das dificuldades habitualmente apontadas pelos intérpretes. Bastalembrar a descrição apresentada por Nietzsche, em 1888, em Eccehomo, um texto autobiográfico: “(...) a mais elevada forma de afir-mação que se pode em absoluto alcançar’, é de agosto de 1881: foilançado em uma página com o subescrito: ‘seis mil pés acima dohomem e do tempo’. Naquele dia eu caminhava pelos bosques (...);detive-me junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâ-mide (...). Então veio-me esse pensamento.” (EH/EH, Assim falavaZaratustra, §1). Com tal referência, Nietzsche parece reconhecer oeterno retorno como uma espécie de “intuição súbita”.

O eterno retorno, essa “súbita intuição” de 1881, aparece emobra publicada por Nietzsche em 1882, na quarta parte de A gaiaciência, precisamente no aforismo 341, intitulado O peso mais pe-sado, reaparece em Assim falava Zaratustra, escrito entre 1883 e1885 e, de modo assaz estranho, praticamente desaparece dos tex-tos publicados por Nietzsche. Depois do Zaratustra, portanto de-pois de 1885, Nietzsche não se refere explicitamente ao pensamen-to do eterno retorno a não ser no aforismo 56 de Além do bem e domal, no último capítulo de Crepúsculo dos ídolos e no capítulo desua autobiografia dedicado ao texto do Zaratustra. A presença doeterno retorno só é constante em Fragmentos Póstumos: de 1881 a1888, Nietzsche comenta o eterno retorno e, neste contexto, o pen-samento da repetição acompanha as diferentes inflexões a que sub-mete sua filosofia.

Praticamente três aparições e dois comentários em obra publi-cada. Muito pouco para um pensamento anunciado como funda-mental, muito pouco para um “pensamento abismal”, para um pen-samento que, perturbador, na opinião de seu autor, poderiadesempenhar a tarefa de dividir em duas partes a humanidade.Depois de anunciá-lo em A gaia ciência e de retomar o pensamentoem Assim falava Zaratustra, Nietzsche não dedica nenhuma aten-ção especial ao esclarecimento do sentido do eterno retorno, o que

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exige o recurso a alguns Fragmentos em que a idéia é exposta demodo um pouco mais claro.

Neste ponto, surge a primeira dificuldade, apresentam-se asprimeiras interrogações: por que Nietzsche silencia depois de anun-ciar tão gravemente o eterno retorno? Por que não se empenha emelucidar o sentido do eterno retorno e a tarefa a ele concedida juntoà crítica da Cultura? Que significam o silêncio de Nietzsche em obraspublicadas e a presença constante do eterno retorno em textos quenão publica? Mais ainda: para o encontro do significado do eternoretorno, é legítimo recorrer aos Fragmentos ou as obras publicadasseriam a melhor expressão da filosofia de Nietzsche e, neste caso, aexpressão mais adequada do que pretende alcançar com o eternoretorno?

Apesar da diversidade de interpretações a que se pode subju-gar esse estranho comportamento, não se encontram razões suficien-temente fortes para explicar o silêncio de Nietzsche; há variadosindícios aptos à formulação de algumas hipóteses, mas não se podeafirmar com convicção o motivo pelo qual Nietzsche se mantémsilente e reservado. A alternativa é considerar legítimas as indica-ções oferecidas pelos Póstumos, porque em obras publicadasNietzsche mais esconde do que revela o eterno retorno. O apelo aosFragmentos, associado às postulações de A gaia ciência e de Assimfalava Zaratustra, permite a compreensão do eterno retorno comoum artifício de que Nietzsche se utiliza para o favorecimento da re-versão do niilismo moderno e para a transvaloração de todos os va-lores, seu último programa. Ainda assim, não se decifra o mistériodo silêncio em obras publicadas: se o eterno retorno é significativoinstrumento à promoção de condições suficientes à superação doniilismo e à constituição de uma nova Cultura como quer Nietzsche,por que o silêncio, por que o mistério? É possível que Nietzschetenha dedicado maior atenção ao eterno retorno nos Fragmentos porreconhecer imperiosa à sua Filosofia a necessidade de fazer expe-

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riências com o pensamento, tanto que é sua a ponderação de que otexto do Zaratustra – reconhecido como o lugar privilegiado para aexpressão do eterno retorno – não é ainda a comunicação definitivado pensamento da repetição. De todo modo, não deixa de ser arris-cada a pretensão de elucidar a motivação do silêncio de Nietzsche.

Uma segunda dificuldade – em certa medida mais leve e demais fácil superação – é imposta pela linguagem e pela forma atra-vés das quais se anuncia o eterno retorno. Em textos publicados, aidéia do retorno eterno é quase sempre revestida de linguagem po-ética, metafórica e simbólica e, além disto, poucas vezes é pronun-ciada pelo próprio Nietzsche. Em A gaia ciência e em Assim falavaZaratustra, é sempre um personagem o responsável por falar doeterno retorno: em A gaia ciência, sob o tom exato da provocação, oeterno retorno é proclamado por um “demônio”; em Assim falavaZaratustra, texto em que Nietzsche se afasta radicalmente da lin-guagem conceitual e faz explodir e transbordar a forma poética eparabólica, é sugerido, primeiro, no Capítulo Da visão e do enigma,por um “anão” – o “espírito da gravidade”, o representante do ho-mem da Metafísica – e mais tarde, no Capítulo O convalescente,pelos “animais” de Zaratustra. Mais uma vez, somente nos Frag-mentos Nietzsche é mais explícito em relação ao eterno retorno e aele se refere sem se utilizar do disfarce ou da máscara de persona-gens imaginários.

O inusitado da linguagem e da forma de anúncio do eterno retor-no aponta para novas questões: por que a escolha da linguagem poé-tica justamente para a anunciação do pensamento reconhecido comoprimordial à definição e à distinção de sua obra, se com esse tipo delinguagem Nietzsche parece conferir ao eterno retorno a dimensãodo incomunicável? Por que outorga a determinados personagens aresponsabilidade de exprimir o “pensamento dos pensamentos”?

O apelo à linguagem poética é mais compreensível do que oinusitado silêncio: o abandono da linguagem estritamente racional

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e o recurso à linguagem metafórica para a comunicação do “pen-samento abissal” são indicativos de que, com o eterno retorno,Nietzsche critica a Metafísica também através de uma crítica da lin-guagem. A escolha da linguagem poética e metafórica e o atributoda suposta incomunicabilidade confiado ao eterno retorno são ins-trumentos estratégicos: ao reconhecer o eterno retorno como objetoda linguagem poética, mais ainda como objeto do “canto” e de “no-vas liras”, como afirma na tragédia do Zaratustra, Nietzsche criticaa linguagem conceitual que esteve, durante todo o curso do pensa-mento ocidental, a serviço da verdade, da racionalidade e da inter-pretação moral da existência. A distância vislumbrada entre a pala-vra do eterno retorno e a linguagem racional, longe de ser apenasum resultado ou um sintoma de uma experiência interior, pessoal,particular, é parte do projeto nietzschiano de rejeição da linguagemmetafísico-científica e, portanto, da idéia de verdade.

Aqui, uma primeira ponderação: o eterno retorno é um instru-mento de crítica da Metafísica, não só, mas também porque, comele, Nietzsche rejeita a linguagem habitual freqüentemente entendi-da como o lugar de abrigo da verdade. O pensamento do eternoretorno representa mais um instrumento de recusa das categoriasatravés das quais o homem ocidental pretende constituir o conheci-mento. Não por acaso, é proclamado como uma “intuição súbita”,um pensamento inesperado, não como objeto de uma rigorosa re-flexão. O eterno retorno é mais um sintoma da desconfiança – sem-pre presente na obra de Nietzsche – da linguagem como forma deexpressão adequada da realidade; mais um sinal da crítica da ver-dade, da noção moderna de sujeito e da suposta objetividade dalinguagem metafísico-científica; mais um indício da oposição esta-belecida entre a interpretação metafísico-moral e a interpretaçãotrágico-dionisíaca da existência.

Apresentadas as primeiras dificuldades, afinal, por que o pen-samento da repetição pode ser considerado instrumento de crítica

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da Cultura e, sobretudo, um artifício apto a favorecer a superaçãodo niilismo através da reversão da concepção metafísico-cristã detempo?

II

O tempo não é tema privilegiado por Nietzsche. No entanto, acrítica da noção metafísico-cristã de tempo – expressa, não só, masinclusive no eterno retorno – é um dos importantes elementos à crí-tica da Metafísica, da Religião Cristã e da Modernidade. A acusa-ção da noção metafísico-cristã de tempo e a idéia do eterno retornoinscrevem-se, portanto, no interior de uma proposta mais ampla decrítica da Cultura Ocidental, francamente influenciada pela Metafí-sica e pelo Cristianismo.

A motivação para criticar a Metafísica, inclusive através de umacrítica da noção de tempo, é compreensível: a fundação da Metafí-sica significa, para Nietzsche, a instituição do processo de desvalo-rização da existência. Desde sua inauguração, a Metafísica consoli-da-se como o tipo de interpretação e de discurso que, em nome danecessidade de conquista da verdade, procura escapar às contradi-ções e ambigüidades, daquilo que, em Ecce homo, denomina-se“estranho” e “questionável” “no existir”. Interessada na captura daverdade, a Metafísica, constituída com Sócrates sob o preço da morteda Arte trágica, dá início ao processo de decadência da CulturaOcidental e consagra a história do Ocidente como a história dasdiferentes inflexões do niilismo, porque o apego à verdade induz opensamento metafísico a revestir-se de um idealismo que nada fazsenão desmerecer a existência e consumar uma interpretação mo-ral que a concebe como objeto de juízo e correção.

Aos olhos de Nietzsche, o expediente metafísico de superesti-mação da verdade acaba por conformar um determinado modo de

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compreender o tempo e a existência. A vontade de verdade, carac-terística da Metafísica, é tributária de uma determinada concepçãode tempo e inegável expressão de desqualificação da existência. Oeterno retorno é, neste caso, mais um expediente de crítica do mora-lismo da Metafísica e da Religião Cristã: a valorização do imutávelem detrimento do fugidio, breve e ambíguo leva o homem a umarevolta contra o caráter inexorável do tempo.

É, portanto, também no pensamento do eterno retorno queNietzsche deposita a “esperança” de livrar a Cultura das postula-ções metafísico-cristãs que, ao mesmo tempo em que supostamenteconsolam o homem diante do fluir implacável do tempo, levam-no àvingança e ao ressentimento. O recurso à consideração da noção detempo é elemento primordial à crítica da Metafísica e da ReligiãoCristã: na base dos dualismos metafísico-cristãos aloja-se a vingan-ça contra o tempo, uma espécie de revolta a ser recusada em bene-fício da instituição de um novo tipo de relação entre o homem e aexistência e, por conseguinte, um novo tipo de Cultura. É deste modoque a trágica intuição do eterno retorno, em princípio, pode ser ins-trumento de uma espécie de redenção da temporalidade.

Especialmente no texto do Zaratustra, a vingança caracterizaum tipo de vontade: a vontade subjacente à moral da Metafísica eda Religião Cristã, que, na impossibilidade de contenção do fluxodo tempo, olha para fora do temporal, movida pelo desejo de con-quista da verdade, da permanência, da unidade e da identidade.Este tipo de vontade – diz Nietzsche, uma vontade negativa, res-sentida – vinga-se do tempo e da existência através da invenção ouda consolidação da dualidade: tanto a Metafísica quanto a ReligiãoCristã afirmam a existência de dois mundos e expulsam a eternida-de para fora do mundo temporal. A recusa da vingança implica,então, a recusa da revolta contra o tempo e, por conseguinte, o re-conhecimento da singularidade e da inocência da existência terrena,extraviadas por obra do apego irrestrito à idéia de verdade.

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Aparece sob suspeita a concepção linear e sucessiva de tempo.Aqui, mais uma ponderação possível: com o eterno retorno, com apostulação de que todas as coisas voltam sem cessar, Nietzsche semanifesta contrário à concepção linear que, na Modernidade, acabapor conformar um determinado modo de compreender a História econsagrar as idéias de evolução e progresso. Com o eterno retorno,Nietzsche quer libertar o Instante – na perspectiva linear, sempresubmisso e subjugado ao curso do tempo – e atribuir-lhe o predicadoda eternidade. Com o eterno retorno, contrário ao dualismo tempo/eternidade, Nietzsche acaba por pensar outra concepção de eterni-dade, incapaz de excluir o temporal. Deste ponto de vista, tempo eeternidade, no eterno retorno, se aproximam e se conjugam.

Neste ponto, emergem outras interrogações: ao recusar a con-cepção de tempo linear, ao postular a necessidade de atenção àeternidade do Instante, ao rejeitar as idéias modernas de continui-dade, evolução e progresso como paradigmas à compreensão dotempo e da História, Nietzsche afirma, necessariamente, que o tempoé circular, como levam a supor o aforismo de A gaia ciência e so-bretudo alguns Fragmentos Póstumos escritos no período da “súbitaintuição” do eterno retorno? A crítica da noção metafísico-cristã detempo induz forçosamente à postulação do eterno retorno ou à afir-mação do tempo como círculo? Por que, para a criticar a concep-ção metafísico-cristã de tempo, Nietzsche recorre a um pensamen-to, em princípio, fatalista e determinista?

A oposição entre a concepção linear e a idéia de tempo comocírculo é objeto da consideração de um dos Capítulos de Assim fa-lava Zaratustra mais importantes à compreensão do eterno retorno,o Capítulo Da visão e do enigma. No Zaratustra, especialmente nes-te Capítulo e na conversa aí inventada entre Zaratustra e o “anão”,ainda que aparentemente contrário à concepção linear de tempo,Zaratustra não assegura que o tempo é circular; a afirmação do tem-po como círculo é própria do personagem representado pelo “anão”.

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No Zaratustra, ainda que venham à cena algumas metáforas e ima-gens sugestivas da idéia do círculo, a afirmação do círculo, em ne-nhum momento, provém de Zaratustra. No entanto, é curioso que,na conversa com o “anão”, Zaratustra, mesmo zangado diante dapostulação do tempo como círculo, não argumente contra a afirma-ção do “anão” de que o tempo é circular. Apesar de zangar-se porconsiderar simplista a afirmação do “anão”, quando não se dispõea discutir, Zaratustra – com alguma intenção, necessário supor –deixa em suspenso a possibilidade de o eterno retorno ser entendidocomo afirmação do movimento circular do tempo. Por que Zaratustranão dialoga se é claro que o eterno retorno a que se refere o “anão”não é idêntico ao eterno retorno que ele, Zaratustra, quer anunciar?

Na conversa com o “anão”, Nietzsche não esclarece os pressu-postos de suas ponderações sobre o tempo, mas o argumento –veladamente adotado para a contraposição entre a concepção line-ar e o eterno retorno – pode ser encontrado em alguns FragmentosPóstumos em que se afirma categoricamente o movimento circulardo tempo.

A afirmação do círculo concorre para a compreensão do eternoretorno como tese físico-cosmológica, para a admissão de uma di-mensão físico-cosmológica como peculiar ao eterno retorno. NessesFragmentos, além de afirmar o círculo, Nietzsche recorre à Ciênciapara uma espécie de prova a favor da suposta veracidade do eternoretorno, a ponto de reconhecer a hipótese da repetição como “a maiscientífica de todas as hipóteses”. Contra a concepção cristã de cria-ção, Nietzsche reconhece que o tempo, infinito, é constituído porforças finitas e insiste que, num tempo infinito constituído por for-ças finitas, exige-se a aceitação da idéia de que todas as coisasretornam sem cessar. Nesse contexto, expõe a idéia de que ao mun-do não se reservam uma finalidade a cumprir, um objetivo a atin-gir, uma teleologia a realizar. Não há um estado final em direção aoqual o mundo deve dirigir-se; se o mundo tivesse uma meta a con-

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cretizar já teria concretizado: não há um estado de equilíbrio a queo mundo se destine.

Ao manifestar a recusa das postulações cristãs, diz Nietzsche, omundo não é regido por uma Providência, não há um sentido de-terminado a ser realizado ou um programa a ser cumprido. Numtempo infinito, constituído por forças finitas, todas as coisas retornamnecessariamente e sem finalidade, posto que o número das combi-nações possíveis entre as forças componentes do mundo é finito. Ahipótese da finitude da força exige a idéia do retorno. Nietzscheatinge a idéia, cara à Religião Cristã, de finalidade, convicto danecessidade e da urgência de afastar o mundo e o próprio homemdo peso da obrigatoriedade de consecução de uma finalidade pré-determinada. Não por acaso, é freqüente a observação de que oeterno retorno é também um artifício de proclamação da inocênciado devir.

A julgar pelos Fragmentos e pelo recurso à Ciência, supõe-seque Nietzsche imprima à sua idéia de eterno retorno o caráter deuma afirmação sobre a natureza e a realidade do tempo. No entan-to, há razões suficientes para compreender a afirmação do tempocomo círculo e do eterno retorno como tese científica ou físico-cosmológica como mais uma estratégia de Nietzsche. Diante do vi-gor e da contundência de todas as críticas anteriores ao conheci-mento e à verdade, seria impertinente aceitar o eterno retorno comouma afirmação intransigente sobre o tempo porque, assim, estariapostulado o vínculo entre Nietzsche e a idéia da verdade, sempretão questionada em sua obra. Além disso, por que tais afirmaçõesseriam relacionadas apenas nos Fragmentos e não em obras publi-cadas? Por que, em obras publicadas, Nietzsche é reticente em re-lação à afirmação do círculo e, mais que reticente, acusador da su-perficialidade da concepção do círculo, como se pode pressentirtanto na conversa com o “anão” quanto no diálogo com os “ani-mais”, no Capítulo O convalescente? A postulação do eterno retorno

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e a sugestão da idéia de círculo devem ser compreendidas comoparte de um programa de acirramento do niilismo moderno – o“estranho hóspede” da Modernidade – para a promoção de suasuperação em direção a um outro tipo de Cultura.

É, pois, no interior do exame das diferentes formas do niilismocaracterístico da Cultura Ocidental que o significado do eterno retor-no como tese físico-cosmológica pode se esclarecer. Diante doniilismo moderno – o niilismo suscitado pelo maior e mais graveacontecimento da Modernidade, a morte de Deus –, Nietzsche pro-põe o eterno retorno como expediente de exacerbação do próprioniilismo. A hipótese de que tudo retorna incessantemente e semfinalidade pode ser um bom instrumento de promoção das condi-ções de superação do niilismo, porque, pensa Nietzsche, o niilismomoderno – como todas as formas anteriores de niilismo, tambémum niilismo incompleto – pode-se transformar em niilismo comple-to e ativo capaz de favorecer a constituição de novas formas de com-preensão da existência. Diante da absoluta ausência de fundamen-to ou finalidade – se Deus morre, qual é a finalidade do mundo? –e da hipótese da volta eterna de todas as coisas, restará ao homema afirmação da vida, apesar do retorno. Não é gratuita a associaçãoentre os aforismos 341 e 342 de A gaia ciência e o início da tragé-dia descrita em Assim falava Zaratustra: o eterno retorno, aos olhosde Nietzsche, deve conduzir à era trágica, à era da afirmação in-condicional da vida, à era do sim dionisíaco à existência e aos seusaspectos mais infames, dolorosos e precários, à era da afirmaçãoda existência apesar da dor e do sofrimento. O eterno retorno é,deste ponto de vista, a expressão do declínio necessário à travessiaem direção a uma nova Cultura – uma Cultura trágica – e a umnovo tipo de homem – o além-do-homem. Depois da morte de Deus,resta ao homem superar-se a si próprio e ao niilismo provocado pelaperda do fundamento divino para proclamar um eterno sim de apro-vação da existência.

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Importa observar que Nietzsche não propõe uma substituição:o eterno retorno não é solução imediata ou definitiva para o preen-chimento do lugar outrora ocupado por Deus e pelos ideais transcen-dentes. Não há como superar o niilismo e a influência do Cristianis-mo apenas com a proclamação de uma nova doutrina. A influênciada Religião Cristã ainda há de ser percebida por longo tempo naCultura Ocidental. O impacto causado pela morte de Deus é grande,é grave, mas ultrapassar sua moral niilista exige bom tempo deamadurecimento. O eterno retorno é, então, um dos instrumentos –pedagógicos – necessários à preparação da Cultura para o adventodo super-homem e de uma nova hierarquia de valores.

Permanece, intrigante, outra interrogação: por que, nos Frag-mentos, Nietzsche recorre à Ciência para falar do eterno retorno?Comportamento inusitado para um crítico “farejador”, a hipótesemais viável é a de que Nietzsche obedece à sua própria exigênciade fazer experiências com o pensamento: o eterno retorno é parte doque Nietzsche reconhece como filosofia experimental.

III

Se o eterno retorno como tese físico-cosmológica pode-se expli-car como estratégia de acirramento do niilismo, algumas interroga-ções ainda se impõem.

Ao reconhecer a vingança característica de um tipo de vonta-de, Nietzsche admite a possibilidade de existência de um outro tipode vontade e, portanto, de um outro modo de relação com o tempo.Conclui-se, então, pela existência de dois tipos de vontade associa-dos a duas concepções de tempo e, mais ainda, aos dois tipos hu-manos tão bem caracterizados sobretudo em Genealogia da moral:uma vontade negativa, ressentida, rancorosa e uma vontade afirma-tiva, não-rebelada; uma vontade de negação da existência e uma

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vontade de afirmação; de um lado, os fracos e escravizados, de ou-tro, os fortes, os nobres, os senhores, os criadores.

Os dois tipos de vontade aparecem sugeridos no aforismo 341de A gaia ciência, o aforismo de anúncio do eterno retorno: a vonta-de revoltada não suporta a idéia de repetição eterna de todas ascoisas e se “lança ao chão” “rangendo os dentes” diante da inabitualproclamação do “demônio” de que tudo se repete; ao contrário, avontade não-rebelada aceita e, mais que isto, deseja a volta eternade todas as coisas por já ser uma vontade que afirma a vida incon-dicionalmente. A julgar pelo aforismo de A gaia ciência, duasreações se manifestam diante da fatalidade da repetição: o eternoretorno pode ser motivo de júbilo e de alegria ou de dor e desespe-ro; o homem pode amaldiçoar a palavra do “demônio” que anunciao eterno retorno ou bendizer a proclamação demoníaca do retornoeterno de todas as coisas.

A vontade de afirmação incondicional da existência é, em prin-cípio, uma vontade forte o bastante para não se deixar impressio-nar pela culpa e pelo ressentimento – afinal, é uma vontade querecusa a interpretação da Metafísica e da Religião Cristã. Enquantoa vontade metafísico-cristã tem o propósito de difamar a existênciaterrena com a proclamação da existência de um outro mundo, avontade não-rebelada nega-se a crer na existência de um mundosuperior ao mundo terreno. Não por acaso, “Permanecei fiéis à ter-ra!” é o primeiro mandamento da “nova tábua de valores” sugeridapor Zaratustra.

Ora, se há dois tipos de vontade e se aparece sugerida a possi-bilidade de reversão da vontade rebelada, como ultrapassar a von-tade de vingança? Para a reversão do espírito de vingança, é ne-cessário haver uma nova relação com o tempo. A julgar pelo CapítuloDa redenção e, em certa medida, pelo aforismo de A gaia ciência,há de se supor que o eterno retorno tem um caráter exortativo.Nietzsche dá a impressão de querer causar uma espécie de impacto

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com a postulação do eterno retorno. Neste caso, os argumentos quesustentam a hipótese de ser o eterno retorno uma tese físico-cosmo-lógica ou científica não têm a menor importância: em A gaia ciên-cia, importam a reação humana diante do impacto que Nietzscheespera provocar com a proclamação de que todas as coisas retornamincessantemente e a sugestão da possibilidade de existência de umoutro modo de relação com o tempo e a existência. Preocupado emevidenciar o caráter exortativo ou provocativo do eterno retorno,Nietzsche deixa espaço à interpretação do eterno retorno como teseética, como um pensamento capaz de estabelecer a diferença entreos fortes – aqueles que se sentiriam felizes com a suposição do eter-no retorno – e os fracos – aqueles que, de nenhuma forma, gostariamde ver confirmada sugestão tão terrível.

Aqui, mais uma vez, alguns problemas se apresentam, insisten-tes: se as duas reações diante da proclamação do eterno retornocorrespondem a dois tipos humanos e, portanto, a dois tipos de von-tade, que valor teria o eterno retorno para a vontade que já não ex-pressa a revolta? Aquele que já mantém com a existência uma rela-ção de afirmação, que celebra a vida e bendiz a volta de todas ascoisas apesar da dor e do sofrimento e, portanto, conhece o impe-rativo do amor fati tem necessidade de um pensamento aparente-mente tão fatalista como o eterno retorno? Para quem já afirma avida, pouco importa se o eterno retorno é ou não verdadeiro e, en-tão, tanto a tentativa de prová-lo cientificamente quanto a exaltaçãode sua dimensão exortativa parecem inúteis. O eterno retorno nãoprovocaria propriamente a distinção entre fortes e fracos; ao con-trário, apenas consumaria uma distinção já pressuposta. Então, paraque o eterno retorno? Para uma vontade não-rebelada o eterno retor-no só pode reiterar o prazer da existência e consagrar uma relaçãoestética com a existência.

Se é admitida a possibilidade de que o eterno retorno só teriavalor para os fracos e para a reversão da vontade rebelada, mais

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uma indagação: por que Nietzsche supõe que o eterno retorno seriacapaz de provocar, não uma revolta ainda maior, mas, ao contrário,a aceitação e a afirmação da existência? Supõe Nietzsche que a idéiado eterno retorno é suficientemente forte para modificar a vontaderevoltada a ponto de fazê-la libertar-se do peso do ressentimento eda vingança? Se o eterno retorno não é uma afirmação sobre a natu-reza e a realidade do tempo, Nietzsche estaria afirmando o eternoretorno como objeto de crença? Bastaria crer na hipótese de quetodas as coisas retornam sem cessar para a promoção da reversãoda vontade ressentida? Nietzsche estaria dizendo que o homem deveviver como se fosse verdadeiro o eterno retorno? Justifica-se assim aforma condicional exposta no aforismo de anúncio do eterno retorno?

Vem à cena o mais grave problema que enfrenta o leitor deNietzsche diante da postulação do eterno retorno: só o homem quecelebra a existência pode querer de volta o que passou; por outrolado, só o pensamento de que tudo retorna pode ensinar o homema querer de volta os momentos de sua existência e levá-lo a zelarpelos instantes performadores de sua existência; só pode querer oeterno retorno quem já mantém com a vida uma relação estética ecuida dos momentos da existência como obra de arte; ao mesmotempo, é a aceitação do eterno retorno o que induz o homem a afir-mar a existência. Como escapar ao impasse? Estaria aí justificado osilêncio posterior ao Zaratustra?

Longe de admitir necessária a resolução dos problemas suscita-dos pela leitura do pensamento nietzschiano, pode-se concluir pelocaráter experimental do eterno retorno – por sua natureza experi-mental, o eterno retorno talvez possa assumir funções diversas: paraos fracos pode soar como exortação ética capaz de promover a con-versão, a travessia; para os fortes, como uma confirmação de seumodo trágico de viver a existência e, portanto, como reafirmaçãodo caráter estético de sua relação com a vida. Solução insuficiente?Expediente de salvação de um pensamento controvertido? Ou exi-

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gência imposta pelo próprio eterno retorno e, sobretudo, pelo caráterexperimental da filosofia de Nietzsche?

A despeito das interrogações – talvez o eterno retorno seja mes-mo um pensamento destinado, se não à incompreensão, ao menosà ambivalência e à ambigüidade –, pode-se arriscar, com certa dosede segurança: o eterno retorno é sintoma de uma filosofia trágicaapta à rejeição de todas as injustas expressões de uma vontade ne-gativa de potência que pretende a desvalorização, a desqualificaçãoe a correção, em lugar da promoção de uma vida ascendente. Dian-te da oscilação, própria da existência, entre a precariedade e o gozo,com o eterno retorno, resta ao homem amar e afirmar o seu destino.

Abstract: The current article ponders on the significance of the eternalrecurrence reasoning on Nietzsche’s work. Starting from the Gay Science,Also Spoke Zaratustra and some posthumous fragments, it presents theeternal recurrence as significant element of Nietzschian criticism of Me-taphysics and Modernity as integrating part of Nietzsche’s experimentalphilosophy.Keywords: eternal recorrence – temporality – tragic – overman – amorfati

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referências bibliográficas

1. CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporali-dade; a trágica intuição do eterno retorno em Nietzsche.Tese de Doutorado apresentada à Pontifícia Universi-dade Católica do Rio de Janeiro em Agosto de 2000.

2. NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Um livro para to-dos e para ninguém. 9ª ed. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 1998.

3. _______. Ecce homo. Como alguém se torna o que é. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1995.

4. _______. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Le-tras, 2001.

5. _______. Oeuvres Philosophiques Complètes. Paris:Gallimard, 1977.

6. _______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe.Berlim/Munique: Walter de Gruyter/DTV, 1980.

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* Tradução de Wilson Antonio Frezzatti Jr.** Professor do Instituto de Filosofia da Universidade de Antioquia (Medellín /

Colômbia).

A aparência embriagada*

Carlos Vasquez**

Resumo: O autor seleciona quatro temas que reúnem, segundo sua opi-nião, a interpretação nietzschiana da arte e a posição central que esta idéiaocupa em sua filosofia: a embriaguez, a tensão força–forma, as noçõesclássico e romântico e o trágico.Palavras–chave: aparência – arte – forma – trágico

Embriaguez

A fim de distinguir uma obra de arte clássica de uma românti-ca, Nietzsche introduz (XIII, 14 (165)) um matiz acerca dos moti-vos de criar: por um lado, o desejo de ser rigoroso, de “eternizar”;pelo outro, o desejo de destruir, mudar, “vir-a-ser”.

Como fazer para que estes dois desejos não caiam em equívocoquando da determinação de valores estéticos? Nietzsche se vale deuma distinção de tipos, dado que, “por um lado”, o segundo desejopode expressar a exuberância das forças, ser signo de uma consti-tuição estuante (ativo), mas, “por outro lado”, pode expressar debi-lidade e ser signo de um ressentimento que obriga destruir o que seodeia (reativo).

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Do mesmo modo, o primeiro desejo, a vontade de eternizar edar forma: expressão de amor e gratidão e signo de um caráter flo-rescente (ativo). Mas, talvez, de um sofrimento exacerbado de al-guém que necessita imprimir seu selo tortuoso (reativo).

Nietzsche denomina o primeiro artista dionisíaco e atribui à suaarte o caráter clássico. Denomina o segundo pessimista, e sua obraassume o caráter romântico. Na questão dos tipos, as coisas podemchegar a estar muito misturadas e Nietzsche esforça-se para fazervisíveis as distinções.

Esta análise tipológica apóia-se no fisiológico. Encontramos na“embriaguez” o impulso próprio do criar. É um sentimento de volup-tuosidade que, segundo Nietzsche, se materializa tanto na criaçãodionisíaca como na apolínea. A distinção é de freqüência, de ritmo,de coloração, talvez de intensidade. O diferencial marca-se tambémnas formas.

Tal impulso alcança sua perfeição no repouso. Depois de retar-dar as formas do tempo e do espaço (XIII, 11 (152)), torna-se entãovisão, contemplação da forma perfeita medida em beleza. O repou-so não significa uma supressão daquele estado, mas seu equilíbrioe harmonização.

Nessa plenitude, a embriaguez chega ao ápice e se converte emlúcida sensualidade, espiritualização extrema dos sentidos, aguça-mento dos poderes da visão (XIII, 14 (169)). O impulso levado aoápice, que repousa na forma simples e abreviada, é o clássico. Nãoé concebível um sentimento maior de potência.

A consciência, encarregada de abreviar e fixada nos convencio-nalismos, adota a forma de consciência embriagada. O sentimentode embriaguez não é um estado, mas uma variação. Um querer eum aspirar a mais. Na presença do novo, a força aumenta, e vice-versa. É tal aumento que cria o novo.

A beleza é signo de uma vitória. Quando isso ocorre, as formasse coordenam, as violências se harmonizam. O aumento das forças

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traduz-se em simplificação. Nietzsche chama esse “vértice da evo-lução” de “arte do grande estilo” (idem). E, ao contrário, o feio apon-ta para o descoordenado, para o inarmônico. Resulta do rebaixa-mento das forças. A beleza é signo do enaltecimento de um tipo. Ofeio, de seu rebaixamento.

O prazer próprio da embriaguez provém do sentimento de po-der. Signos desse estado: a amplitude do olhar, o desinteresse pelodetalhe; a capacidade de penetrar por adivinhação, de compreen-der de relance e analisar sem mediações (idem). Em suma, o au-mento da inteligência sensual.

O aumento da força induz à dança. Exemplo por excelência deuma arte embriagada. Plenitude no movimento, exatidão na subidae na descida. A força aumenta no prazer de fazê-la visível. Os estadosde elevação contagiam-se uns aos outros. Cria-se uma cadeia decomunicação que passa de um ser ao outro (idem). As imagens deum se convertem em sugestão para o outro. Chegam a cruzarem-se,ainda, coisas que em condições normais permanecem separadas: acompaixão e a crueldade, o impulso religioso e o sexual (idem).

A embriaguez é o impulso a partir do qual se pode determinaro valor de um artista. É daí que se extrai um poder ver mais plenoe mais simples. A embriaguez comunica perfeição, a fim de que ascoisas reflitam a plenitude da força conformadora (XII, 2 (66)).

Estas, por sua vez, são espelho da alegria de viver. A arte trans-figura. Agrega algo, imprime seu selo. A arte é o grande estimulan-te. A embriaguez assemelha-se ao impulso sexual e à crueldade.Costumam ir juntos quando uma comunidade se introduz na festa(idem).

O estado estético é definido por Nietzsche como “a mistura des-sas delicadíssimas gradações de sentimentos de bem-estar animalcom desejos” (idem). O sentimento estético é próprio das naturezastransbordantes. Aquelas que superam a exigência conservadora. Aforça primordial da arte radica-se no dar (idem). Trata-se de um es-

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tado de prodigalidade. Que não é um esbanjamento sem custo, masé regulado por sua própria constrição, tensão entre dar e estar cons-trangido, da qual nasce a perfeição e na qual se consome o estadode aumento da força, o crescimento da riqueza que resulta de dar.

A vida intensificou-se em um relance. A arte faz entrar no do-mínio da intensidade, na forma de um dominar. A embriaguez trans-figura o artista, converte-o em alguém mais perfeito. Isso se trans-forma “em realidade”, esse incremento de vida, essa variação naconsideração do valor.

A arte falsifica e, assim, glorifica. Não apenas imagina a glória,leva-a a cabo. Por sua causa, mudam-se os valores. O princípiomesmo do qual nasce o valor é a arte. Por isso, Nietzsche fala aartistas ao formular o delicado tema dos valores. Com isso, o artistaassume a tarefa de criar valores.

O artista cria e crê no que cria, com uma atitude que não temnada de piedosa. É uma crença desprendida, que não mistifica acriatura. As obras de arte atuam como sugestão. Isso, segundoNietzsche, somente para o artista: aquele que no fazer e no obser-var é artista, ou seja, está sob o influxo dessa intensificação. A idéiade um observador “profano”, desse modo, é um contra-senso (XII,10 (167)).

As artes têm o efeito de um tônico: aumentam e dilatam as for-ças comprometidas com o criar e o contemplar. Intensificam a inte-ligência sensorial. Aguçam, por sua vez, a memória. As sensaçõesse aproximam, se comunicam, se contagiam, acima das distânciastemporais (idem). Somente tal pessoa pode com justiça determinaro valor do belo. Seu instinto julga desse modo. E também seu inte-lecto. Um outro fazendo espetáculo da rapidez e da precipitação.Este, em um tempo mais lento e profundo (XIII, 14 (36)).

De ambas perspectivas o instinto do belo diz sim e o do feio,não. O instinto é motor de seus juízos. O belo exalta e tonifica. Sur-ge da exaltação. O feio deprime e adormece. Surge da depressão.

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Faz parte do estado de embriaguez do estético a intensificaçãodos poderes da comunicação (XII, 10 (167)). A arte aponta ao aber-to. Aquele estado de transbordamento, disposição para entrar nooutro ser, propensão a comunicar-se com liberdade rompendo oslimites do indivíduo.

Por sua vez, do estado de embriaguez podemos derivar umahipótese acerca da origem da linguagem. Para o artista embriaga-do, tudo se torna signo. Os meios multiplicam-se, os canais de co-municação abrem-se. Nietzsche diz que “o estado de ânimo estéti-co é a fonte da linguagem” (XII, 10 (167)). A linguagem provém daplenitude e do estado exaltado, em aparente contraste com aquelaidéia expressa por Nietzsche da miséria deste invento, enquantoocorre como forma de nivelar e fazer comunicável os estados maispobres (cf. FW/GC § 354 e JGB/BM § 268).

Dupla origem da linguagem de acordo com um corte tipológicoprofundo. Dado que as regras de algo, neste caso, a linguagem,dispõem-se de acordo com quem se aproveita delas conforme cer-tos fins. O que ocorre é que outras faculdades se apoderam do quebrota da plenitude, tornando-o algo mais sutil.

O que Nietzsche afirma é que “toda elevação da vida aumentaa força comunicativa e também a força de compreensão do homem”(XII, 10 (167)). O que o leva, ainda, a viver em outro ser, a sair desi e comunicar-se mimeticamente. Esse aumento extraordinário dospoderes de imitação tem como pressuposto o estado de embriaguez.A mímesis supõe um crescimento dos poderes e das forças. Imitarnão é repetir ou refletir.

A arte é um apoderar-se. Um transformar. Um invadir, imprimire mandar. Estados em que se aguça o poder de compor e combinarsignos. São os sentidos assim aguçados os que lêem e falam. Aguça-mento de signo que leva a encontrar-se em estado de extroversão ecomunicabilidade. É o que Nietzsche atribui aos estados dionisíacos:

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a propensão a esquecer de si mesmo em função de uma comunida-de de visão.

O si mesmo não é mais do que semelhante estado explosivo.O que dizemos do sujeito não é senão o adormecer de tudo isso. Oestado não estético. Estímulos fortes que se misturam internamen-te. Sendo esse interior o ponto de giro. A maleabilidade. A propen-são a estar fora.

A consciência é o ponto em que se condensa essa força explosi-va, que se coordena de modo involuntário e sem quase opor resis-tência. Os sentimentos, as paixões, os pensamentos movem-se aoritmo das variações do corpo. Surge disso uma semiótica pulsional.

Diz Nietzsche que o estado de ânimo estético supõe uma sus-pensão da intimidade (XII, 8 (1)). Ao mesmo tempo, produz-se umaseleção de imagens, não se reage indiferentemente. São limitadosos estímulos que alguém se permite. Disso deriva-se uma distinçãoentre o artista e o observador: este se predispõe para receber a arte.Aquele se caracteriza por dar e criar. A diferença é de óptica. Con-vém, é até necessário, não confundir os domínios.

As distintas combinações de estímulos apontam em alguns ca-sos em uma direção, em outros em outra. Não se deve exigir docriador que se comporte como crítico. Isso leva ao empobrecimentodos impulsos que lhe são próprios. No artista trata-se, como foi dito,mais de dar do que de receber. Esse dar enriquece. Não está segui-do de estados de relaxamento. Estimula em lugar de empobrecer.Nietzsche situa-o ao lado das atividades reguladoras (XIII, 17 (5)).

A arte afirma. Não lhe é dado negar. Acrescenta. Não lhe édado administrar. Por contraste, aquela embriaguez liga-se com umaconstrição reguladora. Aquele dar não tem o caráter de um fluir noindeterminado. A riqueza no artista está temperada na justa medi-da de sua arte. A queda no dionisismo sem réplica significa deca-dência. A absolutização traduz-se no desgaste da embriaguez, quese supera naquilo que lhe resiste.

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Meios de resistência de que se vale a embriaguez: a finura e oesplendor da cor, o contorno e a claridade das linhas, a gradaçãodos sons. Meios que materializam as tensões de força que se deri-vam dela (XIII, 14 (84)). A obra que assim modera o que a exce-de, excita-se ao mesmo tempo. Diz Nietzsche que “o fim da obrade arte é provocar o estado de ânimo que a determina” (idem). Aarte aspira a materializar a plenitude: “afirma, bendiz, divinizaa existência”.

É um contra-senso uma arte pessimista. Enquanto tragédia aarte é antipessimista. Ainda e sobretudo no representar alegremen-te aquilo que aniquila.

Força-Forma

O artista é indiferente a si mesmo (812). Concede valor infini-tamente maior a um som, a uma forma, a um acento. Esse despren-dimento dá o que pensar. Aponta a sua força conformadora, quelhe leva a atribuir valor à forma que é capaz de dominar.

O que não pode chegar a fazer-se forma, carece de valor paraele. Em contrapartida: somente tem interesse aquilo que entra emsua esfera, que passa por seus sentidos e adquire ali contorno eclaridade. Afirma Nietzsche que “é-se artista com a condição deconsiderar e sentir como conteúdo [...] aquilo que os não artistaschamam forma. Em conseqüência, pertencem a um mundo inverti-do; [...] desde que ocorra o que foi dito, o conteúdo se torna algopuramente formal, incluída nossa vida” (XIII, 16 (89)).

Para o artista, o único conteúdo é a forma. O risco disso está naformalização e em incidir em artifício. Há artistas com os quais issonão ocorre. Sobretudo aqueles em que não há vivência abismal.Artistas do pessimismo niilista que se dedicam a combinar mais oumenos habilidosamente algumas formas. Tal arte não diz nada. Não

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há vida para ser afirmada ali. Nesse caso, o conteúdo (que não exis-te) não se converte em forma (que não chega a lograr).

Que o único conteúdo seja o que os não artistas chamam formaaponta para a condição mesma da arte entendida como forma su-prema da vontade de potência, que não é senão vontade dionisíacade forma. E que como tal reflete a condição mesma da vida: buscada forma, multiplicação e plenitude da forma.

Para a arte não há senão forma. O impulso que encarna é aque-le da forma. Ali se joga tudo. O que ocorre é que a distinção deforma e conteúdo deixa de ser útil. Uma espécie de homem, o artis-ta que supera o niilismo, não se basta com essa distinção, solidáriacomo é das dualidades próprias do mundo verdadeiro: verdade –erro, realidade – ilusão, aparência – essência, acidente – substân-cia, sujeito – objeto, etc.

Uma vez destituído aquele mundo, resta somente um mundo, eesse mundo é pura forma, vontade dionisíaca de aparência, ilusão,conflito, contradição. Esse mundo se oferece aos sentidos, que, porsua vez, agregam sua própria vontade. A vontade criadora do artis-ta, uma vez desprezado o particular, “põe seu gozo e sua força nocompreender o típico”. Ali onde há plenitude domina a vontade demedida (XII, 10 (33)). Esse olhar despreza o “demasiado vivo”,signo de uma necessidade de elementos narcóticos.

O artista põe em relevo o simples, o caso geral, aquela liberda-de sob a lei. Permanece somente o fixo, o poderoso, o sólido. Orepouso em que a força descansa na visão da criatura perfeita. É aíque a obra reflete um estado de sensualidade estuante.

O artista ama os meios que sabem captar o estado de embria-guez: a finura da forma, a claridade do contorno, a simplicidade eprecisão dos traços. Essa vontade de forma perfeita que não fazparte dos estados em que aquela está ausente (XII, 14 (84)).

Surpreende que Vattimo não saiba reconhecer nessa vontadede forma um signo de vida estuante. Que desapareça ante seus olhos

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o jugo que impõe a embriaguez que não sabe afirmar-se senão na-quilo que lhe resiste. E que termine pensando nela como uma meraforça desestruturante.

Quem não sabe reconhecer em Nietzsche a tensão entre força eforma não tem acesso à particularidade de sua estética. Terminapreso na absolutização de um dos termos. O que não passa de umaabstração. Assim como termina reduzindo o outro, neste caso a afir-mação da forma, a uma leitura unilateral que lhe faz pensar na artesubsidiária de uma razão niveladora.

A forma em que Nietzsche está pensando é a síntese da tensãode forças que a distingue. Resulta da embriaguez, tempera-a emuma forma que a incita. Como tal vontade, a arte transfigura, afir-ma, imprime o selo de sua força doadora. O fazer artístico gastaforma, expressa a vida como luxo e vontade de potência. O gasto deforma glorifica e diviniza a condição da figura perfeita.

Trata-se da forma bela, a qual mede o desmesurado de acordocom a lei das proporções. Este artista o é no domínio de seus meios.Não necessita imitar outras artes, sair de sua esfera (XII, 10 (24)).Não se dá o luxo de ser pintor enquanto poeta. Menos ainda teóricoenquanto artista. Mantém-se dentro das leis do material. Fiel à agu-deza dos sentidos que aplica.

Nada mais distante do artista dionisíaco do que o erudito, ohomem culto que está cheio de idéias gerais, e, ao mesmo tempo,muito pouco dotado para as exigências de seu ofício. O artistadionisíaco é um mestre apolíneo. Para que na arte termine falandoApolo a língua de Dioniso, este terá que dominar a língua daquele.

Nietzsche dá esta lição, em geral tão pouco assimilada, aos ar-tistas: amem a forma pelo que é, não pelo que expressa (idem). Oúnico conteúdo é a forma: pura ética de artistas. Tratem a formacomo se fosse o único conteúdo. O restante virá por conseqüência.

Dá o que pensar que um artista pense tanto no que tenha queexpressar. No geral, isso leva a um descuido fatal no tratamento do

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material. Na arte não há nenhuma separação entre o que se diz e aforma em que se diz. A forma não é um meio. É fim em si mesmo.O fim é os meios com que alguém trabalha, os materiais com osquais forceja. O perigo é pôr a forma como mensageira. Perde-se aarte. O especificamente artístico desaparece e, como por encanto,termina servindo ideais.

Isso não quer dizer que Nietzsche defenda a arte pela arte. Oestado estético é muito interesseiro para isso. O único senhor é avida, sua afirmação enquanto vontade dionisíaca de aparência.

Nietzsche pensa nos grandes mestres, que não fazem nada anão ser insistir nisso. Evoco Balthus (memórias): a luta com os ma-teriais. Os impulsos concentrados ali. A perfeição da figura como atêmpera que se põe para não perecer por idéias gerais. Em contra-posição a Wagner: a música como expressão (XIII, 11 (330)).

À vontade de forma opõe-se a função expressiva na arte: a for-ma como instrumento. De mensagens que terminam sendo externasà arte. Não há nada que Nietzsche desdenhe mais que a interpreta-ção da arte segundo motivações exteriores: morais, políticas (XII,10 (117)). É uma dupla traição: à arte, enquanto interpretação-ex-perimentação do mundo. E à vida, que termina sendo presa de in-terpretações rebaixadoras.

Resta talvez a figura do filósofo artista: aquele que sabe poten-cializar o poder cognoscitivo da arte, que leva seu trabalho com aforma ao cume da lucidez pensativa. Aquele que cria mundo e con-templa mundo nas formas medidas de sua arte. O filósofo artista,que supera em muito os filósofos anteriores, que não tiveram ne-nhum respeito pela forma e se valeram da arte com fins morais.

Um filósofo imoralista, diz Nietzsche, que sabe interpretar omundo desde a perspectiva de seus sentidos espiritualizados. Umfilósofo artista, capaz talvez de opor um contra-ideal ao ideal ascético,que leva a arte a ser um “contra-movimento” da metafísica. Apegoao mundo, fidelidade. Compromisso com o único sentido que o

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mundo reclama. Para isso, total amor pelos sentidos, que sabe apro-ximar sentidos e espírito. Que se atreve a oferecer o melhor de seuespírito aos sentidos devido a sua finura, sua força, sua perfeiçãoembriagada (XIII, 23 (2)).

A mania pela forma converte-se, assim, na mais refinada luci-dez dionisíaca. Aquela que permite à arte evitar que pereçamos pelaverdade (XII, 10 (40)). Essa mania plasma-se em “beleza”. Algoque, segundo Nietzsche, “está acima de todas as hierarquias, por-que nela se superam os contrastes, a mais alta forma de potênciaque sabe reinar sobre coisas contrapostas” (XII, 2 (130)). Potênciaque o artista acha sem esforçar-se. Como manifestação de sua pró-pria exuberância. A beleza não resulta de uma busca. E, parado-xalmente, não se dá se ela não for buscada. O caráter obediente dabeleza “diviniza a força de vontade do artista” (idem).

Romântico – Clássico

Signos de uma arte “romântica”: a tendência “expressiva”, opitoresco, o naturalismo (XIII, 14[47]). A propensão ao “drama”.A forma zelosa de combinar música e texto. Adorno e ilustração.Tudo isso em função de exteriorizar emoções.

Nietzsche opõe a grande paixão à “paixão”. Neste caso, a exci-tação dos nervos, signo de fadiga e embotamento. Vontade de agi-tação e deserto. Voluptuosidade não passível de ser contida. Buscado pétreo e do maciço. A toda essa exibição das emoções, Nietzscheassinala o termo “romântico”. Arte sem harmonia, arte inquieta emovediça.

O artista clássico nada tem a ver com essas efusões. Ancoradaem uma individualidade exacerbada, tal arte oferece-se como nar-cótico. Naturezas irriáveis acham aí seu fármaco. É uma arte daspoções e dos remédios. Nisso Nietzsche vê tão-somente uma função

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ascética. É a arte como consolo, distração, calmante. Arte da épocado trabalho, feita para o descanso e a distração.

Nietzsche está pensando a música como problema. Por que nãochega a ser uma arte do “grande estilo”. A música aspira a ser gran-de, deve romper o vínculo com a expressão de sentimentos. Quenada têm a ver com a grande paixão. O que temos em troca? Umamúsica desejosa de agradar e que, por conseqüência, busca con-vencer, doutrinar, tecer um argumento.

A grande paixão aspira à potência. A potência quer mais potên-cia. A potência não é o que se quer, mas aquilo que quer. O essen-cial é dominar-se, limitar-se, não se deixar arrastar. Fazer do pró-prio caos forma. Isso nada tem a ver com efusões patéticas.

O artista aspira a fazer-se simples e claro, aproximar o impulsoao rigor e à lei, subjugar.

Nietzsche supõe que são artistas aqueles que não são favoreci-dos com facilidade. Não respondem às necessidades do público sepor isso entendemos o que se espera habitualmente da arte: quetraduza o que somos e que nos sature do que queremos. Há aí umevitar por necessidade o gosto dominante, sobretudo se se trata deum gosto a favor da reprodução do que é dado.

Pelo contrário, a arte da grande paixão será sempre um desa-fio, evita as formas habituais em que se incuba um gosto conserva-dor. É frio, lógico e equilibrado. Reivindica para si lucidez e dure-za. O que surpreende Nietzsche é que tal afirmação do grande estilofalte na música, que seja uma arte tão propensa à dramatização.Acha-se presa na necessidade de agradar, de cumular necessida-des. É na música que com mais ofensas se sente a tirania de seupúblico. A esta termina servindo o artista, disposto a responder àsexigências de um senhor.

A tensão entre o clássico e o romântico materializa-se paraNietzsche na posição que ocupa a música. Na busca de uma arteque responda ao destino geral da arte, que é o de ser uma forma de

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conhecimento em que já não cabe o mundo verdadeiro, em nomedo qual a arte suportou a suspensão negadora.

Mas que arte é essa? Arte do niilismo dominado. Alegre men-sageira da superação do niilismo. Na música que conhece, nada aoredor. Apenas música romântica. Música que serve ao ideal ascético.Música medicinal para um corpo social enfermo. Se a arte deve sercontra-movimento, deveria tentar sê-lo como música. Ou mais ain-da, talvez somente enquanto tal, a arte possa ser alternativa aoniilismo.

Com o que nos deparamos? Com uma música que é a não sercontra-renascimento, romanticismo do princípio ao fim. A fim dedistinguir-se de uma falsa afirmação do grande, de uma encarnaçãoacomodada do dionisismo, Nietzsche resiste ao romanticismo namúsica. Síntese de todo o equívoco. Daquela agitação emocionalque em lugar de aproximar ao deus, o afasta e o perde.

Se o romanticismo em Nietzsche não tem nada em comum coma arte em que pensa, também se faz necessário revisar o paradigmade clássico. É bem certo que seus traços parecem coincidir com opensamento ordinário. Mas a respeito disso Nietzsche é inequívoco.Aí a forma é uma conquista. Todo aquele empenho e aquela maniapela forma não surgem somente de uma propensão contrária, comoresultado de um dominar e temerar, mas também, ao mesmo tem-po, resultam de uma vitória sobre a propensão natural.

Nisso os artistas da grande paixão são inconfundíveis. Termi-nam inventando uma barreira à sua tendência mais própria. A sín-tese a que chegam não poderia ter sido mais bela. No resistir a simesmos, e vencer, acham a justa medida de sua arte. A beleza sur-ge como vitória sobre sua natural tendência desagregante.

E o artista de hoje? Acha-se ante uma exigência semelhante.Pertence a um mundo em crise, a um mundo não-fundado e semfundamento. Deve recolher os restos de um desmoronamento. Aque-le do mundo verdadeiro. Esses restos são os pedaços desarticulados

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do discurso predicativo. O que fazer com isso? Afirmar a forma semsuporte. A lei na ausência de toda lei. O império da medida quan-do irrompe o desmesurado. Determinação e claridade em meio atanta indeterminação. Paixão pela forma sem fundamento. Irrompeo informe. Espreita o caos. O artista triunfa sobre si e conquista aforma. Forma gratuita na qual cumula de gratidão o mundo. Entregaagradecida do que se é como afirmação daquele que é (XII, 2[114]).

Temos a arte para não perecer à verdade. Em nenhuna partecomo na música esse ter é menos um possuir e dominar. Temos emnossas mãos a música. Jogo perigoso e arriscado, em um mundosem sentido e sem metas. Um mundo que brota das ruínas do cos-mos teológico.

Temos a arte? Sabemos já a que música aponta? Ou talvez sejamelhor não saber aquela que se ocupa conosco. A relação com essaarte é bem insegura. É por enquanto uma arte que não se domina,na qual ninguém mostra ser mestre. Espera desencantada da músi-ca que toma a exigência que busca medida.

Esta afirmação da arte como reflexo de uma relação liberadade mundo, Nietzsche tem que fazê-la quase sem artistas e sem arte.Qual deve ser nesse caso a arte do deserto? Mais grave ainda se amúsica, em lugar de ser contra-movimento da metafísica, encarnaruma reação contra o clássico.

O clássico em arte resulta do desmembramento de um mundo.Encontra-se onde é imensamente valioso ser medido e solar, claro esimples. Em contraposição àquela idéia do classicismo como seguran-ça natural, serenidade acomodada, plenitude ingênua e primordial.

Surpreende que Vattimo não sinta nada dessa inconsistência.O classicismo é um estado de imensa tensão, uma propensão mor-tal em direção à forma. Nesse caso, quão ingênuo resulta que àbusca de síntese e forma se oponha aquele impulso desestruturante.Que, com muita facilidade, termina preso em um sintomático tomromântico.

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O que se busca é um artista que, de relance, esteja preparadopara assumir, ante o desmoronamento das formas conhecidas, umanova vontade de forma. Alguém capaz de valorar de outro modo,de criar outro tipo de valores segundo um novo princípio.

Assim, a arte clássica não responde ao já conhecido. Ao contrá-rio, trata-se de uma busca da forma fora do império do logos predi-cativo. Uma forma sem antecedentes, conforme uma lei que estápara ser definida. E extrair daí uma arte que encarne a vitória so-bre o vazio.

O artista clássico converte sua força em satisfação. O românti-co, em desconfiança. Aquele afirma o mundo ao criá-lo. Este diri-ge-se ao que está atrás do mundo (XIII, 14[42]). Que mundo é esteque marca assim as diferenças? Um mundo vazio de sentido. Ummundo em ruínas no qual resta à arte consolar ou estimular, afir-mar ou ajudar a resignar-se. O matiz é chave e Nietzsche celebraessa distinção como uma conquista.

Romantismo é aqui aquela arte que significa descontentamen-to. Classicismo aquela na qual a felicidade se conquista no terrívele no incerto. Submeter a arte a uma interpretação transmundana éna prática aboli-la. É o que ocorre com a arte romântica que terminasendo religião, um veículo para expressar um credo, um fármacopara curar uma afecção.

A arte clássica ativa potencializa, transfigura. A arte românticaserve à conservação. Aquela é libertadora e faz da vontade de for-ma signo de um remontar após sínteses cada vez mais plenas. É porisso que Nietzsche diz que atrás da distinção clássico-romântico seesconde a distinção ativo-reativo (XII, 9[112]).

Trata-se de forças. Forças que ativam a vida, que afirmam ovir-a-ser no perecer. Formas de arte em que se dá a “sobrevivênciana representação de um perecimento” (Jahnig). Diferentes das for-mas para o anquilosamento e para a conservação. Sobreviventesdaquele logos negador da arte, arte imitação da lógica predicativa e

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de sua moral. Que se disfarçam com o novo e o exótico. O própriode uma arte clássica é ser autêntico. A forma lavrada não tem ocaráter de uma imitacão, de uma ânsia de coisas novas e distantes(XII, 9[170]).

A arte clássica é simples e desnuda. Sóbria e elementar. Nadadaquele barroquismo rico em adornos. É “realista” e austera. Veraze clara em sua composição. Nada daquela fantasmagoria e prolife-ração. A arte clássica assenta-se na realidade. É uma arte diurna,prefere a luz matinal às sombras fantasmagóricas.

O artista clássico deve ser um gênio se por isso entendemos “amais ampla liberdade sob a lei” (XIII, 16[34]). Nada daquela falsaliberdade que se perde nos confins. Ligeireza e facilidade no difí-cil. Nada daquele elogio da dificultade que leva a obscurecer demodo artificial. Nenhum peso. Nenhuma atitude pessimista e obse-dante. Nietzsche pensa em uma arte de puras superfícies. Uma artepetulante e meridional.

Talvez faça falta alguém que nesse terreno imponha novas leis.Alguém que defina princípios na ausência radical de princípios. Oque significam a partir de agora “perfeição e medida”, “lei e or-dem”, “cor e ritmo”, “melodia e contorno”? A pergunta torna-seimportante à luz de nosso niilismo. O homem artista deve ser proboe austero, simples e silencioso, discreto e temerário. Antes de tudodeve ser capaz de viver em meio a uma alta dose de absurdo. E,nessas condições, impor a si mesmo uma nova lei e medida, assimcomo a sua arte, em um mundo livre de fundamento.

Já em O nascimento da tragédia Nietzsche acusava os homensmodernos de não poder pensar na arte enquanto tal, a necessidadede suprimir o estado de ânimo estético. Isso se deve ao desapareci-mento da consciência da arte. Ainda nos artistas que não podemser senão pintores enquanto músicos, enquanto músicos poetas.

Quão difícil resulta manter-se nos limites da arte. Alguém seserve dela com fins expressivos e, entrementes, perde sua lei. Fide-

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lidade de cada arte a seus próprios materiais. Somente assim semantém sua racionalidade, sua espiritualidade, a conformidade comsuas próprias leis.

A arte e somente a arte. Talvez a arte do futuro seja a música? Oque se requer para chegar a ser clássico em música? Desejos fortes,embora se contradigam, levados todos por um jugo único. Um espí-rito que conclui e guia no avanço e que, em todos os casos, afirma.

Em condições de dissolução convém talvez reiterar alguns dostraços do gosto clássico: frieza, lucidez, dureza; gozo na lógica e aexpansão do espírito; concentração de todas as faculdades; despre-zo pelo sentimental, pelo múltiplo, pelo vago e incerto. Trata-se deum ideal que deve se manter separado de qualquer imagemparadisíaca. Nenhum retorno à natureza. Nenhum refúgio primor-dial. Pelo contrário, compromisso extremo com o presente e o futu-ro, embora nisso a arte se arrisque como utopia (Cacciari).

O trágico

Nietzsche rechaça a interpretação catártica da tragédia, sobre-tudo o fato de colocar a depressão de emoções como propósito, as-sim como a escolha de emoções (eleos, fobos) em si deprimentes.

A tragédia é um estimulante. Não leva à resignação. Isso exigepensar não somente em sua natureza enquanto obra de arte, mastambém no espectador, no tipo de público a que se dirige, no esta-do de ânimo estético. A têmpera de um povo decide em último caso.

Nietzsche pensa em um povo para o qual a arte seja um estímulopara a vontade de vida. A posição ante o trágico leva-lhe a fazer umuso ambivalente do termo “pessimismo”. Se for “pessimista”, a tra-gédia é um perigo. Supõe, pelo contrário, um pessimismo da força.Ante o terrível, um povo manifesta sua têmpera e glorifica a existên-cia. A tensão entre duas formas de pessimismo decide em último caso.

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As emoções trágicas postas por Aristóteles na definição de tra-gédia (terror, compaixão) comportariam um efeito desestabilizadore não poderiam constituir emoções trágicas. Debilitariam, desorga-nizariam, desalentariam. A tragédia negar-se-ia a si mesma comoarte, conduziria a vida à renúncia.

“Nesse caso, a tragédia suporia um processo de dissolução, oinstinto da vida destruindo-se a si mesmo no instinto da arte”. Arteniilista, vida contra vida, dissolução do instinto da arte.

Porém, por acaso com justiça podemos afirmar que o efeito trá-gico é desse tipo? Que recorre a anular essas emoções? Que nabase vale supor um declínio do tipo, que estaríamos ante emoçõesreativas, sentimentos deprimentes? Pelo contrário, dirá Nietzsche.E, para isso, dirijamos nosso olhar àquele povo. Aquele que se de-leita ante a vista da dissolução de seus tipos mais altos.

Para um povo como esse, a tragédia é um tônico. Não vê naarte a possibilidade de purgar um excesso de emoções, na direçãodo apaziguamento do aparato pulsional. Não é lícito esperar dela adepressão coletiva na qual a arte atuaria como narcótico. A tragé-dia incita a viver, em meio ao terrível e ao incerto. Somente o bemdotado pode achar aí motivos de satisfação. Por isso, afirmaNietzsche, em Crepúsculo dos ídolos, que, além do terror e da com-paixão, chegamos a ser o eterno prazer de vir-a-ser.

Dois tipos de pessimismo: um que se resigna ante a dor e buscaconsolo e outro que se coloca a sua altura e afirma a vida (FW/GC,§370). A têmpera de um povo nos dá a medida de sua arte. Trata-se de tipos. O que conta é a constituição coletiva. Depende da forçaque se chegue a formar o juízo de beleza. Que se imprime a partirdo terrível. Os traços são extraídos do que causa horror e do queretira o alento.

A beleza se conquista, tem os traços do que aniquila. Deve olharo terrível e aí desenhar o traço perfeito. A plenitude faz que alguém

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veja como beleza aquilo ante o qual outro afasta o olhar. Trata-sede óptica. Toda óptica se forma como síntese de forças. A idéia de“serenidade” é também ambivalente. Permite a Nietzsche afirmarum estado de repouso conquistado, uma contemplação como vitó-ria, diferente daquela serenidade acomodadora que certos homensesperam da arte.

O sentimiento de potência afirma beleza. A beleza aqui aludidaresulta da harmonização de tendências contrapostas. A vontade deforma brota de uma vida transbordante. Alguém diz “feio” ondealguém afirma beleza.

Como se situa alguém ante ao risco e a aniquilação? Como as-sume o sem sentido e o terrível? Está preparado para ir mais longe,justificar, transfigurar? É capaz de concluir a partir disso o harmô-nico e o solar?

A predileção pelo terrível e abominável é signo de força. Re-correr ao decorativo e gracioso indica debilidade. “O gosto pela tra-gédia distingue as épocas e os caráteres fortes... São os espíritosheróicos os que afirmam a si mesmos na crueldade trágica: são su-ficientemente duros para sentir o sofrimento como prazer” (XII,10[168]).

A vida minguada vê-se impelida a traduzir o trágico. É o que,afirma Nietzsche, se dá na interpretação aristotélica. Mais ainda nainterpretação moderna, que se vê obrigada a transladar essa artepara fora de sua esfera. Manter-se na esfera do estético é o maisdifícil. Supõe o talento para afirmar o mundo como fenômenoestético.

Toda apreciação externa à arte provém da incapacidade de in-terpretar o mundo como obra de arte. Isso supõe uma perda demundo. O império de uma interpretação evasiva. O qual está patentena forma habitual de ver o trágico: triunfo da ordem moral, buscade soluções finais, convite à resignação ante uma realidade sem

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sentido. Ainda, em certas naturezas, a visão do terrível pode indu-zir descargas nervosas, estimular o sistema, remover a atrofia. Nes-te caso, a arte atua como fármaco em naturezas esgotadas.

Trata-se de interpretações que saem da esfera “estética”. Emque um povo enlevado intensifica seus poderes de visão e extraiconclusões glorificadoras. Nietzsche ressalta uma grande quantida-de de matizes ante o trágico, distintos graus e tipos de pessimismo:o religioso que se lamenta do estado de corrupção e busca soluçõesfinais; o olhar daquele que não se sacia a não ser com visões fasci-nantes, com estampas beatíficas que o ajudem a suportar; o artistaniilista que se refugia na forma.

Nada daquela capacidade de situar-se ante o terrível, de estar asua altura, de tirar conclusões que não suponham desviar o olhar.Aquele ingênuo criar e deduzir, aquele sereno dar forma a partirde matérias explosivas.

O artista trágico é capaz de subjugar. Imprime seu selo afirmadorem matérias desiguais. Faz a dissonância ser consonante. “Afirmaa economia com luxo, justifica o terrível, o enigmático e não se con-tenta, contudo, em justificá-lo”. O que é esse mais que não se re-duz à justificação? Já que nesse mais se materializa a peculiaridadedo tipo. Um mais que lhe faz agregar menos que outros na hora deinterpretar o mundo.

São mais eloqüentes os que menos ordenam. Chegam a ser obri-gados a pôr mais véus. Estes, em compensação, os arrancam. Bas-ta-lhes um único véu. E nesse despojamento é muito mais o queoutorgam, o que glorificam, o que bendizem, o que criam. O que é,portanto, esse mais que não tem a forma de um agregado, de umaaglomeração de formas e sentidos?

Já sabemos que se trata de uma arte do justo e do medido, umaarte pobre e austera se ela for comparada com outras eloqüências.Uma arte breve e contida, clara e contundente. Exceder-se na for-ma faz perder o brilho do terrível. Por exemplo, se os sentimentos

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são ruidosos, as emoções podem chegar a perder o sentido do pâni-co. Uma arte “expressiva e emocional” não é uma arte trágica.

A tragédia é breve e silenciosa, faz-se de fórmulas muito preci-sas. A justeza no dizer deriva-se de uma vivência da dor que esqui-va o patético. O juiz da arte é uma dor sem afetação. Estar à alturada própria dor é o mais difícil. Nisso nossos mestres são alguns ra-ros artistas (no terreno da tragédia pensamos em Sófocles, no quedele afirma Schadewaldt).

O que se agradece da arte é que ensina a viver a dor comofenômeno estético. Protege de interpretações em que a dor se elude,se desvia, ou se consome em sua própria intensidade não assimilada.A dor interpretada artisticamente leva a achar prazer no sofrimen-to. A interpretar com inteira precisão o alcance da dor na economiado ser. Se alguém exagerar esse papel, cai no patético. Ou, piorainda, cristianiza sua interpretação em soluções transcendentes1.

A harmonia entre dor e beleza é a aspiração suprema dessaarte. Trata-se de uma relação que não é sublimante. Não tem ocaráter de uma ocultação. Apesar das fórmulas equívocas do pró-prio Nietzsche. Para mim, essa equivocidade na linguagem em re-lação com a tensão entre verdade e beleza não pode ser soluciona-da como um problema meramente filológico. Como não se reduztampouco a uma questão de influências. Aponta a algo mais sério, auma semiótica dos impulsos em um pensamento tão arraigado emconflitos do corpo.

A questão do trágico é, em Nietzsche, uma profunda vivên-cia. Como são em todo pensador autêntico suas idéias diretrizes.Forma aguda de pessimismo, nossa consideração trágica, ampara-da em nosso atual niilismo, tem como pressuposto a supressão domundo verdadeiro. A perda total do mundo, pois desaparecido omundo verdadeiro, desaparece o mundo aparente.

Não permanece senão um mundo. Nosso mundo: um mundocruel e contraditório, falso e carente de sentido. Esse desapossa-

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mento do mundo me parece o mais essencial. Na hora de afirmarpara nós uma arte trágica. Que arte convém a nosso mundo-deserto?

Para extremar sua malignidade, o pessimismo afirma que ummundo assim é o verdadeiro. Que “verdade” é essa que supõe asupressão do mundo verdadeiro? Que exige a arte para não pere-cer à verdade? E, mais importante ainda: que riscos implica a ex-perimentação com a verdade?

Trata-se de um experimentar com a verdade para o que nãocontamos com a proteção do mundo verdadeiro. Não nos apresse-mos a qualificar essa verdade de algum modo. Deixemos isso emsuspenso, com o risco de que isso caia sobre nós com o peso de suaevidência mortal.

O que se deduz do livro da juventude de Nietzsche é que anteuma experiência tal de mundo temos necessidade da arte para nãoperecer à verdade. À verdade como mentira absolutizada. À qualse opõe um experimentar com a “verdade” na desfundamentaçãode qualquer pressuposto.

Ameaça-nos a dupla tenaz da verdade. E para isso temos a arte.Mas temos a arte? Não é talvez melhor que se entretenha conoscocomo estimulante experimentação com a mentira em um mundo semfundamento?

“Temos a arte para não perecer à verdade. Frase que seria amais depreciativa para a arte, se não se invertesse em seguida paradizer: Mas temos a arte? E temos a verdade embora fosse para pe-recer? E é que ao morrer perecemos? ‘Mas a arte é de uma serie-dade terrível’” (Blanchot).

Apelemos a essa seriedade, a essa terrível malignidade. A arteafirma-se como mentira em um mundo em que não opera a distin-ção verdade-mentira, um mundo que não requer mais uma hipóte-se moral extrema. O trágico apóia-se no que podemos viver sem talinterpretação, ao abrigo do absurdo e do acaso.

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O homem trágico encarna uma têmpera de ânimo ante a ausên-cia de sentido e de metas. Comporta-se de modo discreto e valoro-so, não faz ruído, vai silenciosamente longe. O pessimismo aludidoafirma todas as formas existentes derivadas da vontade falsificante.Exteriorizações da vontade de arte. Incluída aquela vontade de ver-dade com aparência incondicional.

Enquanto mestre da mentira e glorificador da forma, o homemé artista. Bendiz a forma, afirma o mundo como proliferação deforma. Efeito do desmoronamento daquele mundo e de sua notóriatemporalidade, o homem artista assume a vida como jogo. Em cadajogada, a forma acaso como glorificação do instante acontecimento.

As formas aludidas (ainda aquelas que negam o acaso e dizembrotar de um tempo providencial) resultam de sua vontade de arte,forma muito sua de fugir da “verdade”. A arte é um agregar, umviolentar, em um mundo vazio, sem fatos. Um mundo sem realida-de, no qual tudo é fábula. Porque não há mundo, somente o quesomos capazes de inventar. O mundo é arte e nada mais.

Que a verdade nos seja por necessidade desconhecida, que nãopodemos viver senão basicamente nessa ignorância, isso forma par-te do caráter trágico da existência. Temos a arte para experimentarcom a verdade. A arte é trágica na medida em que nosso contatocom o risco de perecer ocorre pela via do conhecimento.

Este conhecimento será de agora em diante guiado pela arte.Sempre e quando seja pensado em sua terrível seriedade: “A artecomo redenção do homem do conhecimento, daquele que vê ocaráter terrível e enigmático da existência, daquele que quer vê-lo,daquele que investiga tragicamente”.

Não na forma banal das capelas da arte. Ou das efusões poucopensativas dos artistas. A arte lúcida é um acontecimento raro. Comotodo acontecimento. As formas aludidas são também escassas. Naverdade o mundo está bastante despovoado. Trata-se de um mundo

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com alguns poucos acontecimentos afortunados. O mundo trágico éum mundo austero, algumas poucas formas. Opõe-se à imagem deum mundo superpovoado. Aquele que impõe os meios.

Um mundo quase vazio no qual a mentira é selecionada. Pou-cas coisas e não muitas. No jogo quase nunca se ganha. A formaacaso, a forma indivíduo singular, a forma instante que resulta dotempo retorno, é uma forma rara. Mas basta uma. Pode-se esperarpor ela toda a vida. O que é uma vida para esperar. Entretanto,vive-se sem esperança. A arte trágica se faz na espera sem esperan-ça do que talvez nem chegue.

O artista, a força da mentira, reina sobre a verdade. “Alegra-secomo artista, desfruta de si mesmo como potência”. “A mentira é apotência”. “A arte e nada mais que a arte. Ela é a grande possibili-tadora da vida, a grande sedutora que incita a viver, o grande esti-mulante para viver” (XIII, 11[415]).

O homem trágico é artista não somente porque vê isso, mas querseguir vendo. Não somente vive assim, mas quer sempre viver as-sim. Não deseja outra coisa. Ter vivido sempre assim. Viver sem-pre assim. Se alguém lhe disser que seu tempo trará somente ter-ror, ele dirá que aquele que fala só pode ser um deus. Se alguémlhe disser que essa visão terrível voltará uma e outra vez, ele diráque quer isso e somente isso. Se alguém lhe advertir que ele seráisso por toda a eternidade, ele dirá que quer eternizar-se assim.Jogar ser eterno.

A doutrina do eterno retorno do mesmo supõe o ingresso emum tempo trágico. Mas isso não é sentido como um peso. O tempoque pesa é aquele que conduz um deus. E que leva até deus. Masesse deus morreu. Permanece o tempo ligeiro habitado por deusesque jogam dados. Permanece o tempo do homem que diviniza aexistência ao apostar aparências-acaso na mesa da arte.

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A aparência embriagada

135cadernos Nietzsche 18, 2005 |

Abstract: The author selects four themes that in his opinion embraceNietzsche’s interpretation of art and its central role in his philosophy:drunkenness, the tension between force and form, the notions of classicand romantic, and the tragic.Keywords: appearance – art – form – tragic

notas

1 N.T.: Na tradução que fizemos, perde-se o forte significadomarcado pelo autor: a palavra original é “allendistas”, sen-do derivada de “allende”, advérbio que significa “do outrolado”, “do lado de lá”. A palavra “transcendente” tem tam-bém as acepções, em português, de superior e sublime.Tais sentidos não estão presentes no termo utilizado peloautor.

referências bibliográficas

1. CACCIARI, M. El dios que baila. Buenos Aires: EditorialPaidós, 2000.

2. JÄHNIG, D. Historia del mundo: historia del arte. México:Fondo de Cultura Económica, 1993.

3. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studien-ausgabe. Berlim/Munique: Walter de Gruyter/dtv,1988.

4. VATTIMO, G. Las aventuras de la diferencia. Barcelona:Editorial Península, 1990.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

137cadernos Nietzsche 18, 2005 |

Convenção para a citaçãodas obras de Nietzsche

Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela ediçãoColli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em portuguêsacompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalhode leitores pouco familiarizados com os textos originais.

I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:

I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:

GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:

Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:David Strauss, o devoto e o escritor)

HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzenund Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneasII: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)

SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopen-hauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauercomo educador)

WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: RichardWagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagnerem Bayreuth)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiadohumano (vol. 1))

VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen(Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sen-tenças)

WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und seinSchatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e suasombra)

M/A – Morgenröte (Aurora)IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)NW/NW – Nietzsche contra Wagner

I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:

AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)EH/EH – Ecce homoDD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)

II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:

GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia)DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensa-

mento trágico)BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de

nossos estabelecimentos de ensino)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefáciosa cinco livros não escritos)

PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofiana época trágica dos gregos)

WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre ver-dade e mentira no sentido extramoral)

Edições:Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas

por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Stu-dienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.

Forma de citação:Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará

o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábicoremeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remete-rá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,indicará o aforismo.

Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,conforme o caso, indicará a parte do texto.

Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volumee os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

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Contents

Nietzsche:outlines of a politic perspectivism 7Miguel Angel Rossi

Boundaries of History 37Alan Sampaio

Peoples and fatherlands:Wagner and politics 69Henry Burnett

The redemption of temporality,the tragic intuition of theeternal recurrence in Nietzsche 93Tereza Cristina B. Calomeni

The drunken appearance 111Carlos Vasquez

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

141cadernos Nietzsche 18, 2005 |

NOTES TO CONTRIBUTORS

the author’s last name, initials,followed by the year of publi-cation in parentheses, should beheaded ‘References’ and placedon a separate sheet in alphabe-tical order.

3. All articles will be strictly refer-eed, but only those with strictilyfollowed the convention ruleshere adopted for the Nietzsche’sworks.

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

1. Os trabalhos enviados parapublicação devem ser inéditos,conter no máximo 55.000caracteres (incluindo espaços) eobedecer às normas técnicas daABNT (NB 61 e NB 65) adapta-das para textos filosóficos.

2. Os artigos devem ser acompa-nhados de resumo de até 100palavras, em português e inglês(abstract), palavras-chave emportuguês e inglês e referênciasbibliográficas, de que devemconstar apenas as obras citadas.Os títulos dessas obras devem

ser ordenados alfabeticamentepelo sobrenome do autor enumerados em ordem cres-cente, obedecendo às normasde referência bibliográfica daABNT (NBR 6023).

3. Reserva-se o direito de aceitar,recusar ou reapresentar o origi-nal ao autor com sugestões demudanças. Os relatores de pa-recer permanecerão em sigilo.Só serão considerados para apre-ciação os artigos que seguirema convenção da citação das obrasde Nietzsche aqui adotada.

1. Articles are considered on theassumption that they have notbeen published wholly or in parte lse-where. Contr ibut ionsshould not normally exceed55.000 characters (includingspaces).

2. A summary abstract of up to 100words should be attached to thearticle. A bibliographical list ofcited references beginning with

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

142 | cadernos Nietzsche 18, 2005

Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates emtorno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexãonietzschiana.

Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrom-peu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à sua figu-ra, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudopor filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos, Nietzsche,um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obrapolêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidadedestes cadernos.

Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernosNietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéiasdo filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consa-gram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos quecomparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros auto-res, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame dequestões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todoa atualidade do pensamento nietzschiano.

Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto aoDepartamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam difundirensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de autores es-trangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos emestrandos ou mesmo graduandos.

Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernosNietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

143cadernos Nietzsche 18, 2005 |

Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly - ev-ery May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in aprofessional Brazilian context for contemporay readings of Nietzsche. In par-ticular, the journal is actively committed to publishing translations of contem-porary European and American scholarship, original articles of Brazilian re-searchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’sphilosophy.

Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internation-ally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal hasalready made its mark as a forum for innovative work by both new and estab-lished scholars. Contributors to the journal have included Wolfgang Müller-Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel Haar, and Richard Rorty.

Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes placeat the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernosNietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a cur-rent circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expandingits base, especially to university libraries. And it has been sent free of chargeto the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries and researchinstituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects andparticularly on Nietzsche’s thought.

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