66
CADERNOS DE HISTÓRIA Cad. hist. Belo Horizonte v. 2 n. 2 p. 1-64 jun. 1997

CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

CADERNOS DE HISTÓRIA

Cad. hist. Belo Horizonte v. 2 n. 2 p. 1-64 jun. 1997

Page 2: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Grão-ChancelerDom Serafim Fernandes de Araújo

ReitorProf. Pe. Geraldo Magela Teixeira

Pró-reitora de Execução AdministrativaProfª. Ângela Maria Marques Cupertino

Pró-reitor de ExtensãoProf. Bonifácio José Teixeira

Pró-reitor de GraduaçãoProf. Djalma Francisco Carvalho

Pró-reitora de Pesquisa e de Pós-graduaçãoProfª. Léa Guimarães Souki

Chefe do Departamento de HistóriaProfª Maria Mascarenhas de Andrade

Colegiado de Coordenação DidáticaProfª Carla Ferretti SantiagoProf. Carlos Evangelista VerianoProfª Heloisa Guaracy MachadoProfª Maria Mascarenhas de Andrade (Coordenadora)

Tiragem1.000 exemplares

EDITORA PUC•MINASPontifícia Universidade Católica de Minas GeraisPró-reitoria de ExtensãoAv. Dom José Gaspar, 500 • Coração EucarísticoCaixa postal: 1.686 • Tel: (031) 319.1220 • Fax: (031) 319.112930535-610 • Belo Horizonte • Minas Gerais • Brasil

Page 3: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

SUMÁRIO

ApresentaçãoAlysson Parreiras Gomes ........................................................................................................ 5

Herança negra de liberdade e exclusãoYonne de Souza GrossiFábio Martins ......................................................................................................................... 7

A representação da mulher nas cantigas medievaisAna Maria Coutinho .............................................................................................................. 23

A questão nacional em Porto Rico: a busca da identidadeKátia Gerab Baggio ................................................................................................................. 31

O avesso da ordem: primeiros apontamentos de leiturade fontes criminaisMaria Tereza Pereira Cardoso ................................................................................................. 37

As armadas dos Açores na defesa dos reinos ibéricosJoão Carlos da Silva de Jesus .................................................................................................. 48

Poiésis – poder político e poder poético, uma leitura dapoesia de Agostinho NetoMarcelo José Caetano .............................................................................................................. 56

ResenhaLEFORT, Claude. Pensando o político.Liana Maria Reis .................................................................................................................... 62

Cad. hist. Belo Horizonte v. 2 n. 2 p. 1-64 jun. 1997

Page 4: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Conselho EditorialProf. Carlos Fico (Deptº de História – UFOP)Profª Eliana Fonseca Stefani (Deptº de Sociologia – PUC•Minas)Prof. Dr. Francisco Iglésias ( Faculdade de Ciências Econômicas – UFMG)Profª Liana Maria Reis (Deptº de História – PUC•Minas)Profª Drª Maria do Carmo Lana Figueiredo (Deptº de Letras – PUC•Minas)Profª Drª Maria Efigênia Lage de Rezende (Deptº de História – UFMG)

Coordenação EditorialProfª Heloisa Guaracy Machado

Coordenação GráficaCoordenadoria de Comunicação Social da PUC•Minas

RevisãoVirgínia Mata Machado

FICHA CATALOGRÁFICA(Preparada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais)

Cadernos de História. — v. 2, n. 2, jun.1997 — Belo Horizonte: PUC•Minas,

v.

Anual

1. História – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católicade Minas Gerais. Departamento de História.

CDU: 98 (05)

Page 5: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

APRESENTAÇÃO

Este é o segundo número dos Cadernos de História publicado pelo Departa-

mento de História da PUC•Minas, dando continuidade ao trabalho pioneiro

iniciado em 1995 pela professora Heloísa Guaracy Machado. Esperamos man-

ter a periodicidade anual dessa revista, garantindo a publicação de um novo número

sempre ao final do primeiro semestre letivo. Além disso, quando conveniente, preten-

demos lançar números especiais referentes a temas específicos, como a comemoração

do centenário da fundação de Belo Horizonte, que já se encontra em elaboração e de-

verá ser publicado no segundo semestre desse ano.

Os Cadernos de História representam um espaço fundamental para professores

e alunos vincularem suas idéias e o resultado do esforço individual e coletivo das

pesquisas desenvolvidas no Departamento, estando também aberto para a publicação

de trabalhos realizados por profissionais de outras instituições de ensino e pesquisa.

Mantendo a proposta inicial de interdisciplinariedade, os artigos aqui reunidos

tratam de temáticas diversas, que variam no tempo e no espaço, apresentando dife-

rentes leituras da realidade, ultrapassando os limites da análise puramente histórica e

ganhando outras dimensões – sociológica, literária e política. Deste modo, pretende-

mos oferecer ao público leitor trabalhos de qualidade sobre distintos aspectos da evo-

lução da sociedade, ampliando o mosaico de interpretações acerca da construção do co-

nhecimento histórico.

O Departamento de História, nesses últimos anos, tem buscado, através de va-

riados instrumentos e do apoio recebido da instituição, estimular o aperfeiçoamento de

seu corpo docente e fomentar a produção realizada por professores e alunos, objetivando

continuar sua trajetória na busca da qualidade acadêmica e da excelência profissional.

Desejamos que os Cadernos de História sejam um marco, refletindo o empenho do De-

partamento no sentido de criar condições para o crescimento profissional dos seus com-

ponentes e da valorização acadêmica do curso.

Page 6: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Gostaríamos de registrar, finalmente, nossos agradecimentos a todos os profissio-

nais que participaram das múltiplas etapas necessárias à publicação desse número dos

Cadernos de História. Como seria impraticável enumerar todo o pessoal envolvido nes-

se projeto, elegemos a figura de Cláudia Teles Menezes Teixeira, Coordenadora Geral

de Editoração, que através de sua simpatia e competência, sintetiza a atenção que a Pon-

tifícia Universidade Católica de Minas Gerais tem dispensado à questão da produção

acadêmica.

Alysson Parreiras GomesCoordenador Editorial

Page 7: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 7

Herança negra de liberdade e exclusão

HERANÇA NEGRA DELIBERDADE E EXCLUSÃO*

Yonne de Souza GrossiDepartamento de Sociologia da PUC•Minas

Fábio MartinsDepartamento de Comunicação da UFMG

RESUMO

Este fragmento é parte inte-grante de um projeto de pesquisaque já produziu outros trabalhospublicados. O tema refere-se a umafazenda mineira do século XIX,doada a escravos, em testamento.Este artigo constrói uma memóriada vida quotidiana da fazenda, ex-pressando o imaginário presentenos relatos pessoais dos descenden-tes de escravos. A figura mítica daex-proprietária Constança tece atrama da narrativa.

Aos heróicos tropeiros do passado, que, na poeira doirada das estradas, no compasso do guizo da madri-nha, de pousada em pousada e, ao final de cada marcha, no aconchego da lareira crepitante, cheirando atorresmo e feijão inteiro, construíram a grandeza do Serro em paiás tecidos de taquara poca, bruacas decouro cru e cambulhos de barris encharcados de genuína filha de senhor de engenho, as homenagens de

nosso povo.Placa afixada ao pé do monumento aos tropeiros da região.

Cidade do Serro-MG – 1871-1971, antiga Vila do Príncipe.

Magia de luz no interior de Minas. Fazenda do Mata-Cavalo. Município do Morro do Pilar. O som dosatabaques rompe o silêncio dos ares. Reúne sombras e martírios. Sonhos e suspiros centenários. No mais,só o resto da raça abandonada na imensa solidão dos homens. De todos os lugares, dos atalhos e estradas.

Dos altares. Das grutas. Dos cômodos escuros das almas. Dos troncos e dos currais surgem estascriaturas humildes e humilhadas. Ocultas formas, silhuetas absurdas. Entre responsos e murmúrios, a

mesma resposta surda – Cadê Mãe Tança.João Evangelista Rodrigues – texto criado para a pesquisa

Deixo livres os meus escravos, como se de ventres livres nascessem e os instituo herdeiros de meus bens,com a condição, porém, de ficarem morando e vivendo em sociedade nesta minha fazenda, sem poderem

vender nem alienar (...).Testamento de Constança Fortunata de Abreu e Lima, 1883. Conceição do Mato Dentro-MG

Oque significam terras natais, indagaGuattari, referindo-se à ausência derelações com territórios ancestrais,

considerados perdidos. Alude, assim, ao desen-raizamento e segmentação dos indivíduos, de-sassistidos pelos seus espaços identitários es-facelados (Guattari, 1992, p. 169).1 Invocamos,então, a figura de Mnemozine. Uma antigadeusa que constrói memórias, impedindo o es-

* Projeto Nas Terras de Constança, realizado pelo Grupo de Trabalho História Social de Minas Gerais do Século XIX, vinculado ao Centro deEstudos Mineiros da UFMG.

1 A respeito da problemática identitária ver também Oliveira, 1976, Levi-Strauss, 1981 e Identidade e Memória, 1988.

Page 8: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 19978

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

quecimento. Em sua esteira, vemao mundo Clio, a musa da His-tória, associada também às trans-missões da cultura. Pois, lembraBenjamim, o passado são frag-mentos, do passado só nos resta“um monte de tijolos” (Benjamimapud Matos, 1992, p. 151-152).Nas verdades fechadas do pas-sado nós ingressamos, para nar-rá-las de outra maneira. Os acon-tecimentos, necessariamente,não adquirem legibilidade noinstante de seu nascimento, exi-gindo tempo e espaço próprios.Donde o presente se torna capazde iluminar o passado. No sen-tido evocado também por Paoli,de não se perderem traços “dasservidões que custaram, nem dosconflitos neles inscritos” (Paoli,1992, p. 26-27). A construção des-ses cenários historiográficos abrepossibilidades de se arquitetar amemória dos que não só foramdespojados de poder, como davisibilidade de suas lutas e resis-tências.

Recolher experiências coleti-vas, introduzindo-as numa di-mensão histórica, enfrenta riscosque a descontinuidade e ambi-güidade das lembranças hospe-dam. Todavia, o direito ao pas-sado confere legitimidade à des-coberta de mundos silenciados,mesmos daqueles cujo valor denatureza simbólica autorizamabrigar pequenas memórias so-ciais, locais, quase residuais. Car-

regadas de continuidades queincitam a permanência, contra-cenam com rupturas cujos terri-tórios são lacunares e mais exi-gentes, no agenciamento de suastramas. Assim, são criados luga-res para a existência da memó-ria. Todavia, eles guardam seudinamismo, como assinala Hal-bwachs, referindo-se à constru-ção de uma identidade de gru-po pela manutenção de uma me-mória comum, e às possibilida-des não descartadas de mudan-ças nesse grupo (Halbwachs,1976). Fato que consideramos ca-paz de gerar uma tensão entrememória e identidade, expres-sando o dilema da diferença: opassado como depositário de si-nais de identidade pode ligar-seao presente de forma especular,quando a concepção de históriajá assinalada rompe com esta li-nearidade.

Como perceber essa questão?O que é a representação de si oudas imagens que o grupo faz desi mesmo? A imagem de si estáligada à representação que se fazdo outro ou dos vários outrosencenados em um contexto namedida em que um “eu” só sedá conta da própria existênciamediante a manifestação de um“ele”. As relações, sendo dinâmi-cas, permitem-nos a criação deum “nós coletivo”, segundo S. C.Novaes. A partir dessa evocaçãode semelhanças, torna-se possí-

vel reivindicar um espaço sociale político, porque a identidadenão é dada, mas construída his-tórica e culturalmente, lembra aautora. O “nós coletivo” pode serevocado quando o grupo mani-festa seus silêncios, “reivindicauma maior visibilidade social face aoapagamento a que foi historicamen-te submetido.” (Novaes, 1993, p.21-27.) A memória, dissemos, sãofraturas. Desta forma, torna-sepossível distinguir o sentido daidentidade nas diferenças que otempo evoca, nas quebras e pe-daços que são organizados paraconferir não só a diferença, mastambém a consistência identi-tária de ressonâncias não linea-res.

Essa discussão encena matri-zes que pretendemos inscreverna temática escravidão e heran-ça da luta pela terra. Trata-se deuma história da fazenda do Ma-ta-Cavalo, situada no municípiodo Morro do Pilar, divisa com acidade do Serro e Conceição doMato Dentro, na Zona Metalúr-gica do Estado de Minas Gerais,a 155 quilômetros da capital. Suaproprietária, Constança Fortuna-ta de Abreu e Lima, no ano de1883, por verba testamentáriadeclara livres os seus escravos eos institui herdeiros das exten-sas terras da fazenda. Cumpriadeterminação de seu pai, que atrês de março de 1857 “dispõe desua terça em benefício de seus escra-

Page 9: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 9

Herança negra de liberdade e exclusão

vos, isto é, aqueles a quem suas her-deiras julgarem dignos de liberda-de, com a condição, porém, de só go-sarem de suas liberdades depois damorte das referidas suas filhas e her-deiras” (Lima, 1857). A herançaseria para os escravos até a quin-ta geração. Constança falece a 21de agosto de 1887 e seus 43 es-cravos se tornam proprietários elibertos antes da abolição.2 En-tretanto, tensões e conflitos ar-mam a trama de um processoque culmina com a perda das ter-ras para fazendeiros poderososna região. Os negros libertos eseus descendentes tornam-seentão, sujeitos de uma dupla he-rança: herdeiros da situação deescravidão que dificulta o aces-so à cidadania, e da luta para rea-ver a terra.

Algumas questões foram for-muladas como armação desteensaio. Qual é o universo socie-tário dos descendentes dos es-cravos? Que visão de mundoherdaram de seus antepassados?Como se mobilizam face à duplaherança que carregam: a perdada fazenda e a exclusão social?Que quotidiano permeia seusguetos sociais? Como negociama senha urbana da cidadania?Enfim, que testemunho dão desua história?

Molduraspossíveis noregistrohistoriográfico

A cidade de Morro do Pilarestá situada na Zona Metalúrgi-ca, com uma área de 421 km2 ealtitude de 714m. Sua populaçãoé de 4.170 habitantes sendo 1.470na zona urbana e 2.700 na rural.O município foi criado pela Leino 1.039, de 12 de dezembro de1953, e instalado a 1º de janeirode 1954, por Laurival FerreiraCarneiro, então Intendente Mu-nicipal, em reunião presididapelo Padre Tarcísio dos SantosNogueira. (IBGE, 1982.)

Auguste Provençal de Saint-Hilaire, em seu livro Voyagedans les provinces de Rio de Ja-neiro et de Minas Gerais, des-creve sua viagem à província deMinas, em 1816 (Saint-Hilaireapud Morais, 1942, p. 155-158).Fornece informações sobre asforjas do Intendente Câmara enarra:

a alguma distância de Gaspar Soa-res, transpus o Rio Preto, que deve onome à cor que suas águas, absolu-tamente límpidas, tomam do leito emque correm, um pouco mais longe,transpus várias vezes o Picão, quecomo o Rio Preto, se lança no RioSanto Antônio, cujas águas se vãoreunir às do Rio Doce. A povoaçãodo Morro de Gaspar Soares, (...) não

é mais que uma sucursal da paró-quia de Conceição, e deve o nome aogerente de uma das antigas jazidasque foram exploradas no País. Quis-se fazê-lo denominar Morro de Nos-sa Senhora do Pilar, porque sua igre-ja foi edificada sob a invocação destasanta; o nome mais antigo, todavia,sempre prevaleceu... se bem que seencontra ainda atualmente ouro noleito do Rio Preto e na costa dos mor-ros, esse metal não é objeto de umaexploração regular e constante. So-mente quando os proprietários de es-cravos não têm ocupação a dar-lhesé que os enviam à cata de ouro. Cadaescravo é obrigado a trazer ao seu se-nhor uma certa quantidade, e é cas-tigado quando não entrega o que delese exige... As montanhas que a con-tornam pelo lado direito quando sevai à vila do Príncipe têm os flancoscobertos de relva e os cumes cober-tos de matas virgens.

O bandeirante Gaspar Soares,ao descobrir Morro do Pilar, paralá levou seus escravos domésti-cos. Extraía ouro nos morros e,quando os trabalhos de minera-ção a talho aberto se aproxima-ram do arraial, trocou de lugaras casas e a igreja, cedendo ou-tra área para as novas constru-ções. As precárias condições detrabalho, às vezes, provocavamacidentes. De uma feita, 18 escra-vos morreram devido ao resva-lo de terra e pedras. Gaspar Soa-res dirigia o povoado de formaarbitrária e autocrática. Ao esco-lher o lugar para a nova capela,chegou um frade missionáriopara evangelizar. Gaspar nãogostou da tônica do discurso so-bre a “vida dissoluta dos amasia-

2 A respeito da memória da fazenda do Mata-Cavalo, ver Martins, 1989 e Grossi, 1991.

Page 10: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 199710

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

dos”. Não teve dúvida: pediu aomissionário que escolhesse o lu-gar mais apropriado para a edi-ficação da igreja, que ele achavaser uma esplanada, coberta porespessa vegetação, onde hojeestá a matriz. Entretanto, orde-nou a dois capangas que abris-sem, nesse mato, uma sepulturae, quando o padre chegasse, fos-se agarrado e enterrado “com ter-ra fina, sem quebrar osso, nem derra-mar sangue”. O que foi realizado,segundo as lendas da região.

No Município de Morro doPilar ainda são encontrados ves-tígios de objetos de ferro ali pro-duzidos por pequenas fundi-ções, a que os habitantes dãosempre o nome de “fábricas”.Não é possível indicar a quandoremontam as primeiras fundi-ções em Minas Gerais. O enge-nheiro alemão Eschwege diz queem 1811, quando chegou à Pro-víncia, verificou que a maioriados ferreiros e grandes fazendei-ros tinham também o seu forni-nho de fundição “sempre diferen-te um do outro, pois cada proprietá-rio, na construção, seguia suas pró-prias idéias.” Para os estudiosos,as primeiras fundições de ferrose devem ao conhecimento me-talúrgico de escravos africanos.De fato, “o escravo constituiu umapeça fundamental da indústria side-rúrgica mineira, até a abolição da es-cravidão.3

A fazenda do Mata-Cavaloestá situada nesse município, naregião do Serro, Diamantina eConceição do Mato-Dentro. Asprincipais atividades econômi-cas de Morro do Pilar são agri-cultura e pecuária de pequenoporte. As classes menos favore-cidas enfrentam problemas desobrevivência, e o empobreci-mento progressivo acompanhaessa população há longos anos.Rica em minério de ferro, a Com-panhia Vale do Rio Doce é pro-prietária de extensas áreas reser-vadas à exploração do solo e sub-solo. (IBGE, 1982)

No dia 3 de março de 1857,na cidade de Conceição – hojeConceição do Mato Dentro –,então Comarca do Serro, na Pro-víncia de Minas Gerais, tudo estápreparado para que seja feito otestamento público de José Perei-ra de Abreu e Lima, residente nodistrito do Morro do Pilar. Emmarço daquele ano, trigésimosexto da Independência e doImpério do Brasil, vai-se dar osurgimento de um singular ca-pítulo da história de ConstançaFortunata de Abreu e Lima. Defato, quando Francisco Honóriodos Santos, segundo TabeliãoPúblico Judicial e de Notas, abreas páginas do livro do cartóriopara registrar e dar forma ao tes-tamento, que será ditado por

José Pereira de Abreu e Lima,está começando a ser escrita umahistória da Fazenda Mata-Cava-lo (Lima, 1857). Abreu e Lima, otestador, “cristão e católico” vaidoar seus bens e suas terras àsfilhas Constança e Ana. Sua pri-meira vontade diz respeito aodestino de seu próprio corpoapós a morte. Ele o quer sepul-tado na Igreja Matriz de sua fre-guesia, envolto no hábito de SãoFrancisco. Cuidado o corpo, lem-bra-se de sua alma e pede que“se digam duzentas missas por suaintenção, com a brevidade possível”.

Abreu e Lima faz tambémuma declaração, quase em peni-tência: diz ter vivido em estadode solteiro e que, por “fragilidadehumana”, era pai de duas filhasde nomes Constança Fortunatade Abreu e Lima e Ana Ignês deAbreu e Lima, declarando-asúnicas herdeiras de seus bens.Não faz referência à mãe das fi-lhas, que permanece esquecidano testamento e na sua história.Quem a recupera é Constança,ao fazer testamento em 8 deagosto de 1883. Na peça testa-mentária, declara-se filha de Iná-cia da Silva Campos e legitima-da pelo Capitão José Pereira deAbreu e Lima; diz também queé solteira, nunca foi casada, nun-ca teve filhos. Seus pais já havi-am falecido em 1883, como sua

3 A esse respeito consultar o estudo exemplar de Libby, 1988.

Page 11: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 11

Herança negra de liberdade e exclusão

irmã Ignês, e ela manifesta o de-sejo de ser enterrada no Distritode Morro do Pilar, na Igreja Ma-triz, perto de sua irmã Ignês. Eladeseja que por sua alma se di-gam “dois oitavários de missas”.Determina que se dê aos pobresa quantia de cinqüenta mil réise mais cinqüenta mil para con-sertos da Matriz. Essas providên-cias devem ser tomadas enquan-to seu corpo estiver sobre a terra.

José Pereira de Abreu e Lima,quando dispõe de sua terça emtestamento, beneficia seus escra-vos com uma condição: seriamlibertados aqueles a quem suasherdeiras julgassem dignos daalforria. Essa liberdade, entretan-to, só poderia ser gozada quan-do da morte das duas filhas her-deiras. Conclui a declaração tes-tamentária, concedendo a Cons-tança e Ana prazo de dois anosapós o seu falecimento paraprestar contas em juízo. Cons-tança do Serro Frio, pois já nas-ceu, cuja existência é justificadapelo pai como um produto sol-teiro, resultado da “fragilidade hu-mana”, irá, no futuro, tambémsolteira, conviver com seus escra-vos, conceder-lhes liberdade,doando-lhes os bens herdados:

“Deixo todos os meus escravos livrescomo se de ventre livre nascessem eos instituo herdeiros dos meus bens,com a condição, porém, de ficaremmorando, vivendo em sociedade nes-ta minha fazenda, sem poderem ven-der nem alienar, por qualquer formae aqueles que assim o não fizerem não

terão parte alguma e serão excluí-dos”. (Lima, 1883)

Constança, a herdeira, a quemos escravos irão chamar de MãeTança, lega outros bens a um seucompadre, Tenente Jorge Bene-dito Ferreira, “pelos bons serviços”.Deixa-lhe todos os seus “trastesde prata” e “pedaço de terras de cul-tura, que estão além do rio e princi-pia pelo espigão que vem do alto doTejucal ao rio, divisando com terrasdos herdeiros do finado SalvadorMartins Correia, e outro pedaço decampos com poucas capoeiras, nolugar denominado Terra Quebrada,que divisa, por um lado, com Fran-cisco Rofino Ferreira e, por outro,com o mesmo Francisco” (Lima,1883). Redigido e aprovado o tes-tamento pelo Tabelião FernandoJosé de Heredia, foi “cozido comcinco pontos de retrós preto e outrostantos pingos de lacre vermelho porbanda, na Fazenda do Mata-Cavalo,em 8 de agosto de 1883”. (Lima, 1883)

Abreu e Lima adquirira a fa-zenda de Antônio Francisco Soa-res e emprestou o seu nome defamília a seus escravos, reprodu-zindo o costume de uso, pelosnegros, do sobrenome de seusproprietários. De fato, nas terrasda região grassavam numerososos Pereira de Abreu, libertos oucativos. José Pereira de Abreu eLima, poeta e médico, trouxeseus escravos do Arraial de Cór-regos, no princípio do séculoXIX, depois de passar por Serro

e Conceição. Naquela época, oBispo D. Viçoso fez uma visitapastoral ao Morro do Pilar, ga-nhando de José Pereira algunsversos em latim. Fidalgo da CasaImperial e Cavaleiro da Real Or-dem do Cruzeiro. Abreu e Limaera amigo de D. Pedro II, de cujaintimidade em família participa-va (Matos, 1921, p. 73). Teve tem-po e dinheiro para aperfeiçoar oseu latim e estabelecer relaçõesestreitas com à Igreja Católica.Essa proximidade se dava pelafé proclamada e laços com o cle-ro: seu irmão Lucas de Abreu eLima casou-se com a irmã do Vi-gário de Morro do Pilar, PadreAnastácio Cardoso Neves. Tal ca-samento fortaleceu os laços queuniam os Pereira de Abreu e Li-ma à “importante família do sacer-dote”, oriunda de Sabará. O Pa-dre Anastácio era pessoa influ-ente no Morro do Pilar não sópelo poder sacerdotal, mas tam-bém pelos bens que possuía:uma grande casa, um rancho detropas, uma fábrica de ferro e aFazenda do Barroso.

José Pereira de Abreu e Limalocomovia-se num meio socialem que conviviam famílias liga-das ao campo e à produção inci-piente de ferro: gente de títulose senhores de terra. Entre eles, ocitado Vigário Anastácio, que ca-sou sua sobrinha com ManoelVieira Costa, proprietário de umretiro que pertencera ao Capitão

Page 12: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 199712

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

Francisco de Paula Câmara, ir-mão do Intendente Câmara, res-ponsável pela fundação da RealFábrica de Ferro de Morro do Pi-lar (Matos, 1921, p. 15, 18, 20). Nes-sa época, residiam no arraial al-gumas famílias alemãs, empre-gadas em fábricas de ferro. Ou-tro proprietário era o CoronelAntônio José Rodrigues, donodas terras denominadas Paiol, na“Cordilheira do Cipó”, e de umafábrica de ferro, na estrada paraConceição. Familiar de José Pe-reira, Antônio Honório de Abreue Lima era latifundiário e tam-bém proprietário de uma fábri-ca de ferro, situada em um lugarchamado Coqueiro. (Matos,1921, p. 8-11)

Todos eles viveram seu tem-po nesses lugares. Deixaram ras-tros espalhados em cartórios eem igrejas das vilas por ondepassaram. Deixaram também,sepultados nas terras, seus cor-pos, misturados aos objetos deferro que fundiram, sinais de seudesejo de riqueza e de poder. Pe-lo poder e pela riqueza os ho-mens lutam. Pelo desejo, sobre-vivem.

Na cidade de Conceição doMato Dentro, em 4 de dezembrode 1930, os negros e seus descen-dentes começam a perder as ter-ras da Mata-Cavalo. Numa açãoexecutiva, movida contra o ne-

gro Benedito Pereira de Abreupara cobrança de custas, o execu-tado não oferece embargos à pe-nhora de seus bens. Residenteem Morro do Pilar, o negro Be-nedito teria de pagar a quantiade 473 mil réis. Em 8 de dezem-bro de 1930, outras terras da fa-zenda são penhoradas e postasem leilão.4 Em 9 de abril de 1932foram vendidos ao advogadoOscar Silva os bens penhorados(terras), pertencentes aos negrosManoel e Honório Nunes Perei-ra. No ano de 1935, pela carta dearrematação passada a favor domesmo advogado e extraída dosautos da ação executiva movidapor Jorge dos Santos Pereira, per-dem seus bens os negros Bene-dito Raimundo Pereira de Abreu,Manoel Nunes Pereira de Abreu,Frederico Pereira de Abreu e Be-nedito Primo Pereira de Abreu.Jorge dos Santos Pereira, embo-ra descendente dos escravos daMata-Cavalo, em conflito comseus co-proprietários negros,move contra eles uma ação exe-cutiva. No auto de penhora es-tão relacionados os seguintesbens:

“uma casa nova de vivenda cobertade telhas, com cinco compartimen-tos, sendo três assoalhados e dois tér-reos, com esteios de braúna, somen-te barreada, inclusive uma área dedois ou três litros mais ou menos,plantações de bananeiras, com unspés de café, situada na Fazenda de

Mata-Cavalo, município de Morrodo Pilar, avaliada por 600 mil réis;um casebre muito ordinário, com ba-naneiras e pés de café; uma pequenaárea de terra, na serra, no lugar de-nominado Costa, distrito de Morrodo Pilar, pertencente a Manuel Nu-nes de Abreu”.5

Todos esses bens arrematadospelo advogado Oscar Silva fo-ram vendidos a José Batista Fer-reira, fazendeiro residente emMorro do Pilar, em 26 de feve-reiro de 1941.

Teófilo Thomaz Ferreira pos-suía, na região de Morro do Pi-lar, três fazendas: das Lajes, doSalvador e do Mata-Cavalo. Elecomprou, ao longo de anos, áre-as de terras dos escravos libertosque viviam ali, trabalhando naagricultura. Aqui tem início aperda das terras deixadas por Jo-sé Pereira de Abreu e Lima àssuas filhas e posteriormente doa-das aos escravos. Em 1939, as ter-ras adquiridas por Teófilo Tho-maz são herdadas pelo filho, JoséBatista Ferreira – o Inhôzinho –,que, em 1941, as demarcou e ad-quiriu outras áreas, de pequenosproprietários e lavradores ne-gros que ainda viviam na região,ampliando assim suas proprie-dades até o ano de 1956. Duran-te esse período, isto é, entre 1939e 1956, sucederam-se conflitosjudiciais, contestações e assassi-natos pelas terras da Fazenda doMata-Cavalo. Nos cartórios da ci-

4 Anotações constantes do arquivo privado de Fernando Gomes Cardoso, Belo Horizonte.5 Idem.

Page 13: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 13

Herança negra de liberdade e exclusão

dade de Conceição do MatoDentro, Minas Gerais, estão osvários processos movidos pornegros e latifundiários envolvi-dos na luta pela propriedade daterra. Há, no Cartório do Crime,intrigantes processos sobre aquestão. Passada a etapa de lutareivindicatória, em 1957, a Fa-zenda do Mata-Cavalo, já com onome de Fazenda Cachoeira ouBom Retiro, é adquirida por Le-andro Ordones de Castro, que avende, em 1985, ao comercianteFernando Gomes Cardoso, deBelo Horizonte.6

Entreato defragmentos:itinerários damemória

A fazenda das Lages faz divi-sa com a do Mata-Cavalo e sur-giu, juntamente com a FazendaSalvador, do desdobramento deuma possível sesmaria, cujas ori-gens remontam à colônia. Ummanuscrito do neto de TeófiloThomaz Ferreira narra o quoti-diano das Lages. Sua descobertatornou-se importante, uma vezque as três fazendas pertenciamao mesmo dono. Além disto,escravos libertos e/ou descen-dentes seus, moradores da fa-

zenda do Mata-Cavalo, presta-vam serviços na fazenda dasLages. Selecionadas foram algu-mas passagens desse depoimen-to, cuja riqueza de dados, aliadaà precisão do detalhe, configuraimagens do quotidiano regionalno campo, nas primeiras déca-das deste século. (Moura)

Vim de longe. Cheguei trazendo, nasbruacas de couro cru, no lombo doburro preto estrelo, muitas coisas. Acarga estava torta, puxava mais deum lado, porque tinha um pacotãode reminiscências do tempo da me-ninice, um montão de saudades delugares. Irei tirando destas bruacasestes escritos que, na verdade, estãona memória. São histórias. Papeladapoeirenta. Memória cheia de limo.Árvore antiga. Uma janela cheia defrestas. Uma porteira pesada eesconchelada.

(...) Antônio Lelé grita para Artur:— Corre e abre a porteira de cima.Rápido. Olhe, como já vem apontan-do, lá na curva da terra vermelha, atropa. Zé Lino, debulhe o milho, maisou menos uns 15 litros. O JoaquimEloi já tirou um balaio e meio dopaiol.— Antônio Firmino, vem ajudar,dizia José Lino.— Não vou não.— Por quê?— Já trouxe dois feixes, de lenha. Esó vendo que lenha boa, puro muricí.— Só isto?— Só isto agora. E o dia inteiro fa-zendo cerca, toda de vara, lá na pas-sagem do campo do jardim? Não valenada? — E ocê não imagina, ondefui tirar cipó tripa de galinha, pois opatrão só queria este na cerca.

Por perto só tinha cipó de batata. Eas varas, tive que procurar somentepindaíba, muricí e cana-vistula. Asestacas, somente de candeia.

Neste meio tempo a tropa chegava.Tinha três lotes. As bestas de guia,as mais bonitas. Duas pretas e outrapinha. Esta guia trazia os cincerrosdo peitoral reluzentes, em amareloouro, e com um trim-lim-lim tão ca-denciado que o tropeiro montado nu-ma besta vermelha, e os três tocado-res sorriam de alegria e orgulho. Osol rapidamente se escondia por trásdas copas dos pinheiros e camboatásno mato da Jacutinga. Na varanda,debruçado no peitoral, seu Thomaz,o dono de tudo, com semblante car-rancudo, barba cavanhaque, gritavadando ordens:— Zé Sulino, o milho que mandeiZé Lino debulhar, é somente para atropa. O de levar para o moinho écom você. Já fez?— Não, Sinhô.— Por que não?— Fui apartar as vacas.— Você é mesmo um palerma, já po-dia ter feito todos os reparos. Carre-gamento de sal, querosene e feijão.

(...) O cozinheiro, com o fogo aceso natrempe. Já se sentia o cheiro do tor-resmo para afogar o feijão que já vi-nha cozido de véspera. Os arreios, comtodas as cangalhas enfileiradas, apro-veitando os últimos raios de sol parasecar as enxergas. Com sabugos cha-muscados os tropeiros esfregavam nospanos das enxergas os cascorões, si-nais de pisaduras no lombo dos bur-ros. O tropeiro chefe, com flanela ver-melha na mão, lustrava as cabeçadasde prata das bestas de guia. Orgulhoe vaidade também se o lote, que cons-tava de dez bestas ou burros, fosseigual na cor e no porte, como porexemplo, somente pêlo de rato, somen-te pangaré. Somente baio, somentepreto e muitas vezes somente preto cal-çado. Um negro tarrancudo, braçosfortes, tocador de um dos lotes, cha-ma o colega, de nome Jucão, para se-gurar o pé e uma mão da mula calça-da para trocar a ferradura por outranova. O menino, puxador do cavalode guia, já vinha trazendo e passandoao negão as ferraduras, os cravos, opuxavante, o martelo, a torquez, uma

6 Anotações em escrituras e registros de terras, do arquivo privado de Fernando Gomes Cardoso, Belo Horizonte. Além desses documentos,há informações verbalizadas de advogados que seguiram a tramitação dos processos. Dados obtidos em entrevistas com autoridades locais.

Page 14: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 199714

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

aziá. Este último usado nos burrosmais bravos. Tudo isto feito muito rá-pido. Ainda bem que os outros tocado-res providenciavam os embornais commilho, colocando em cada cabeça dosburros um relincho pequeno.

Aflitos para receber a ração costumei-ra de fim da marcha, distância per-corrida de um rancho de pousada aooutro diariamente, meses e meses.Voltando para o rancho, os tropeirosfindavam mais um dia de rotina. Jan-tavam. Antes, uma bebericada da-quela que Jucão trouxe no canto dabruaca do burro de coice, compradano rancho da praia em Morro do Pi-lar. Cansados, sujos, roupas remen-dadas, empoeirados, saudosos desuas famílias, relembravam casos efaziam planos para o dia seguinte,que para eles começava de madru-gada, com o pasto cheio de orvalho, ea madrugada ainda escura. Um pou-quinho mais, os primeiros pios dosinhambús, capoeiras, saracuras,anunciavam o amanhecer. Novo dia.Nova jornada. Novo pouso.

(...) Já escuro, vinda da fábrica de fer-ro onde se fabricavam ferraduras, a1km da fazenda, chegavam, com an-dares cadenciados e cansados, enfilei-rados, o fundidor João Casimiro, oferreiro Benedito Coradinho, o ma-lhador Antônio Firmino, os atarra-cadores José Diomédio, Zé Francis-co e Zé Grande. Vinham para doisquartos grandes, com camas emen-dadas em toda extensão do espaçoquadrado dos quartos.

(...) Já escuro, com lamparina numamão e na outra uma chaleira grandecheia de café, Arminda grita da va-randa.— Orozimbo! Oh Orozimbo! Vembuscar a chaleira de café prus cama-rada. Falou baixinho: ou demora da-nada. Orozimbo pegou a chaleira, comas xícaras de agal em forma de colar, efoi repartindo o café.

(...) zum, zum, final de conversa dostropeiros que ficavam um pouco abai-xo da hospedaria dos ferreiros. Do-mingo eu acerto aquela paca que estávindo comer goiaba. O trilheiro estáaté fundo. Se o Raimundo trouxer

os cachorros pequenos, muito bem.Se não, eu vou ficar de escoteiro,mesmo que for a noite inteira. Acer-to ela.

Os outros já dormiam. Sono profun-do, de um corpo cansado de trabalhopesado. Na primeira cantada do galoeles já apanhavam o caminho da fá-brica. A porteira rangia e batia aopassar. Quantas vezes eu acordava eolhava o relógio, que marcava duashoras. Mês de maio. Muito frio.Atravessavam na vargem do córre-go uma pinguela e aflitos por acen-der as forjas para esquentar no es-curo da madrugada. As forjas todasem labaredas incandescentes e fais-cantes. Usava-se para se proteger daslimalhas um avental de couro cru,quase do pescoço às canelas. Nos pés,sandálias também de couro. Ali seri-am fabricadas ferraduras de váriostamanhos para burros e cavalos.

(...) Fazia quatro ou cinco dias quenão chovia. Duas horas da tarde. Dosformigueiros próximos, saíam enxa-mes de tanajuras. Que vontade depescar. Pegar uns piaus na Catom-beira. Procuro Joaquinzinho, JoãoGomes, o carreiro. Joaquinzinho jávinha da Jacutinga. Havia feito o des-monte, juntamente com Olavo Felipee tirado o minério usado na fundi-ção do ferro da fábrica de ferraduras.— Ô Joaquinzinho, vamos chamaro João Gomes, dizia o Zé. Vamos pe-gar uma cumbuca de tanajura e daruma pescada.— João Gomes não pode ir não, Zé,disse Joaquinzinho. Além de machu-cado, está muito cansado, pois labu-tou todo dia mais o Jorge, para puxardo mato da reserva um camboatá parasubstituir o malho da Fábrica. Pude-ra. Só com duas juntas de bois, abrin-do picada. A corrente rebentava todahora. O canzil da canga da junta deguia quebrou três vezes. E tinham quetrazer a tora naquele mesmo dia. Ovelho, que estava no malho, nãoaguentava mais. Estava todo trinca-do, quase estraçalhando em lascas.

(...) vindos da capina do mandiocal,nas cabeceiras do córrego do Lucas.Semblantes tristes, cansados, empo-eirados, conversavam. Ouviam-se de

quando em quando umas gargalhadas.Rangia a porteira do grande curral debaixo. Por ela passavam os ferreiros vin-dos da fábrica. Traziam nas mãos tiçãode carvão, para a tradicional fogueira detodas as noites. Joaquinzinho passava poreles, com um saco nas costas, levandomeio alqueire de milho, para o moinhoque ficava um pouco à frente da fábrica.Seu Thomaz fez as recomendações:— Caprichar no tempero do moinho, pa-ra obter um fubá mais fino. Tirar as fo-lhas da grade do bicame, verificar as co-lheres do rodízio que estavam bambas emuito cuidado com a moega ao despejaro milho. Seu Thomaz procura por Joa-quinzinho. Quer falar com ele que da-quele meio alqueire de milho que vai moercinco litros são do João Venâncio e dezlitros do Artur da Samambaia. É paracobrar o alqueire de todos dois. Quer tam-bém que separe a ôlha que Andrelina pe-diu para fazer bolo. Amanhã é dia deajuntar as éguas para o costeio. Era umtotal de oitenta e tantas éguas.

(...) Já era noite. Seu Thomaz manda di-zer a Sinhana para trazer o café que elaacabava de coar. Café torrado e pilado na-quela hora. A Sinhana trouxe o café, ser-viu a todos e voltou apressada para aju-dar Arminda a socar mais café torrado,no pilão. Socavam de dois. Duas mãosde pilão grandes e pesadas. Da varan-da ouvia-se “tão-tum, tão-tum” do pi-lão. Pelas dez horas da noite, Zé Pena eos outros se encanhavam para a saída.Saíram pela porteira de baixo. Da va-randa ouvia-se o tropel dos cavalos, sal-tando o córrego e estalos da taca na ancados animais. Terminam assim os afaze-res daquele dia. Labuta da vida da Fa-zenda. Vida do campo. Vida da roça.Quase todos já estavam dormindo. Osúltimos, ainda de pé, se preparavam paradeitar. Na cozinha Sinhana punha a ba-cia d’água para seu Thomaz.

Este é um passado que não re-pousa. Camadas de memória re-colhem sinais que intrigam. “SeuThomaz dono de tudo...” Na verti-calidade de suas ordens, a inter-dição do diálogo. Na pretensa in-timidade do convite ao café, a se-nha do proprietário que lutou

Page 15: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 15

Herança negra de liberdade e exclusão

pela terra e venceu. No quotidia-no da fazenda, a prescrição dadiversidade e do conflito. Quemsão os que partilham com TeófiloThomaz o fim do dia de traba-lho? Que princípios ou atitudessão negociáveis entre eles? Oteatro de sombras que pesa so-bre a Mata-Cavalo acolhe seusaplausos?

Os excertos selecionados re-metem às relações entre traba-lhadores e senhor de terras. Sãoindicadores de que a sobrevivên-cia torna-se quase uma concessão.Harmonia cruel, matriz de silên-cio sobre as servidões que susten-tam o custo do trabalho. Atitu-des paternalistas que denegampossíveis espaços de direitos.

Antes queoutras vozesse calem

Espaços de direitos foram ne-gados aos ex-escravos e seus des-cendentes, na luta pela terra. Nodesenrolar do conflito face a pro-prietários com suas certidões deposse, “erguem sua própria histó-ria: nela estão inscritos seus direi-tos” (Santos, 1985, p. 124). Pordesconhecerem os caminhos aserem percorridos na busca damanutenção do patrimônio quelhes foi legado, e sem poder deforça diante de fazendeiros daregião, foram perdendo suas ter-

ras. Hoje, a maior parte deles vi-ve espalhada na região de Con-ceição do Mato Dentro, Morrodo Pilar, Serro e Diamantina.Mas ainda leva no coração a cha-ma do último grande gesto de“Mãe Tança”.

Mãe-Géia é a terra concebidacomo elemento primeiro e deu-sa cósmica, segundo J. S. Bran-dão (1986, p. 185). Como densi-dade, fixação, condensação seopõe à dissolução. Géia suporta,enquanto Urano, o Céu, a cobre.Porque Géia é mulher e mãe, de-la nascem todos os seres. Firme-za, submissão, doçura, são suasvirtudes. Ela representa a virgempenetrada pela chalua e pelo ara-do, fecundada pela chuva ou pe-lo sangue, que são sementes docéu, lembra o autor. Concede eretoma a existência. Por ser vir-gem e matriz da vida, Géia é no-meada a Grande Mãe. Géia-Mãe,Mãe Tança. Terra e mãe se identi-ficam no simbolismo da dádiva.

De fato, quando José Rai-mundo, o mais velho dos descen-dentes de escravos, postado à so-leira da porta de sua casa, esten-de seu olhar profundo sobre aimensidão das terras da fazendae afirma que “é mentira dizer quenão; essas terras são minhas”, está ex-pressando a certeza de que conti-nua dono de tudo que lhe foi dei-xado por ‘Mãe Tança’; que é mui-to mais do que os dois alqueiresque legalmente possui. Advertidode que não tem documentação le-

gal que comprove ser ele proprie-tário de toda aquela extensão deterra, responde: “não tem importân-cia. As terras foram dos escravos. Hoje énossa” (Raimundo, 1991). E acres-centa: José Pereira quando fez otestamento foi ao Rio, entregan-do a D. Pedro “um cacho de banana euma rapadura, tudo em ouro, para osescravos não pagar imposto”. Umapausa tensa busca no passado al-go precioso. De repente, com vozrouca, num tom patético, recitaum trecho do testamento deConstança, onde é sagrada a doa-ção. Trata-se de um conflito de di-reito, uma legitimidade interdita-da. Nos olhos luzidios, porémtristes, nas roupas por demaisusadas, nos pés quase semprenus, nos poucos gestos dos cor-pos maltratados, já está cunha-da a história de cada um dosdeles. Das bocas mal nutridas,saltam fragmentos do passado,relatos pungentes, folguedos dainfância, lembranças, dores, sau-dades... E assim se reconstituemparcelas da vida dessas pessoasna Fazenda do Mata-Cavalo. Osrelatos vão lhes devolver a his-tória “em suas próprias palavras”,conferindo-lhes um passado,forjando identidades. (Thomp-son, 1992, p. 337)

Em 21 de março – “o ano nãosei não” –, nasceu Jovelina MoisésPereira, hoje com cerca de 100anos. Seu pai, Moisés AntônioPereira, viveu 107 anos; era es-cravo e “fazia de tudo”. Solteira,

Page 16: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 199716

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

Jovelina lamenta que, dos seus17 irmãos, apenas 3 estejam vi-vos: “Estou aí sofrendo, sofrendomesmo”. Às vezes, toma uma ca-chaça com raízes curtidas, para“tirar o câncer do corpo”, e assegu-ra os benefícios desse tipo de be-bida: a cachaça com arnica, porexemplo, sara inflamação, que-bradura: “Cura tudo por dentro etira porqueira” (feitiço). Por suavez, José Viana, 83 anos, insisteem morar sozinho, por não gos-tar de barulho: “Eu não sou mu-lher”. Ele é filho de Vitalino Fa-gundes Pereira e de Maria Cami-la Pereira, neto de Fagundes Pe-reira e de Carlota Pereira deAbreu, nasceu e foi criado na fa-zenda, onde suas avós foram es-cravas. De “prosear” ele gosta,mas faz questão do tom ameno:“Quando ouço uma conversa muitoalta, sumo para o mato”.

Uma boa lembrança embalaMarta Francisca de Jesus, 76anos: quando menina, em noi-tes de “lua bem clara”, reunia ascompanheiras para jogar peteca,feita de palha de milho. Neta deescravos – Regina e Diniz, Ru-fino e Bona –, ela foi criada poruma das avós, pois a mãe mor-rera cedo. Dos 5 filhos do primei-ro casamento do pai, FranciscoDiniz Pereira, apenas ela está vi-va. Dos 5 filhos do segundo casa-mento, 4 moram em Belo Hori-zonte, e uma em Morro do Pilar.É Maria Raimunda, hoje commais de 65 anos. Viveu na fazen-

da até os 11, 12 anos, e, ao con-trário da irmã, não teve tempopara brincar nem se lembra deter ido a festas: a mãe ficara viú-va, e eles viviam com “muito sa-crifício”. A austeridade tambémmarcou a vida de Sebastiana Ca-mila de Jesus, que não gosta dedança nem de festa – “de vez emquando, apenas olho”. Hoje com 60anos, Sebastiana nasceu e viveuno Mata-Cavalo, assim comoseus pais, Vitalino Fagundes Pe-reira e Maria Francelina Pereira,e avós, Fagundes Pereira e Fran-celina Pereira.

Maria Ramira, 72 anos, contaque seu bisavô Eugênio já viviana fazenda. Emília Cândida erao nome de sua avó; Leonel Perei-ra Soares e Jovelina Cândida Oli-veira eram seus pais. João Viana,67 anos, assegura ter documen-tos que comprovam sua idade.Seus pais eram Maria Camila deJesus e Vitalino (“Viana é apelido”)Pereira. A avó Francelina Perei-ra fora escrava na fazenda.

O sofrimento que emerge dosrelatos parece não incitar pertur-bações. Na vida primária, maispróxima à natureza, há comoque uma acomodação às suasdeterminações, quer de doençasou perdas familiares. Por outrolado, ouvimos os ecos das “ter-ras natais” quando o entrevista-do, em estado de desconforto,revela seu segredo: “Sumo para omato”. Lugares de sociabilidadessão evocados nas lembranças,

bem como constrangimentos,quem sabe, pudores disfarçadosem ecos: “Não gosto de dança nemde festa”.

A fala pausada de João Vianamarca os compassos da tarde. Nacadência das frases, ecoam vozesantigas. Ali está um escravo,aboiando; acolá, uma negra, de-bulhando milho; mais à frente,uma antiga escrava, ralhandocom o bando de moleques queinsiste em brincar perto do va-ral. A lavoura ensolarada coloreo sorriso do poeta-fazendeiro Jo-sé Pereira de Abreu e Lima, pordemais amante da natureza e daalegria para tomar os caminhosque o diploma de medicina lheindicara. A seu lado, a filhaConstança observa o movimen-to – cargueiros de milho e de cafése preparam para mais uma via-gem a Morro do Pilar. João Vianaretrocede ainda mais no tempoe nos conduz ao início do núcleoescravo: “a história do povo do Ma-ta-Cavalo” começou na África;eram de lá os dois casais de ne-gros que José Pereira comprarapara trabalhar na fazenda. E osmais velhos explicavam sua con-dição de escravos pelo fato detrabalharem “muito e com o chico-te em cima”.

O depoimento de Maria Fran-cisca aponta no sentido contrá-rio: os escravos do Mata-Cavalo“nunca fora maltratados... foramcriados que nem filho com pai”. Ofato é que eles ali viveram, tive-

Page 17: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 17

Herança negra de liberdade e exclusão

ram seus filhos, netos, bisnetos,e o sobrenome Pereira, do pri-meiro dono da fazenda, foi poreles adotado, como se constituís-sem uma só família.

Já é noitinha quando um ne-gro passa defronte à igreja e fazo sinal da cruz. Na casa de co-mércio – a venda – os últimos fre-gueses se despedindo. Nascidoe criado em Mata-Cavalo, ele aconsidera a sua “cidade natal”. Namemória, ecos das numerosas e“juntinhas” casas dos escravosque se espicham em lânguidoscordões, arremedando ruas.Bem adiante, vozes de criançasrecitam “pontos” na escola. Sen-tada à porta da casa, uma negraexplica ao filho que, por haver“muita gente ruim”, foi levantadaa forca: os que matavam, nelaeram enforcados – e na hora. Vê-em passar um mestre de catopê:em dia de festa, a população da“cidade” aumentava, e Mata-Ca-valo “escurecia de gente”.

Maria Francisca é quem nar-ra: “a fazenda era muito bonita”. Pa-ra além do horizonte, estendi-am-se as plantações de milho, demandioca, os pés de banana, decafé... Saíam de lá cargueiros emais cargueiros de café e de mi-lho, para serem vendidos emMorro do Pilar, cidadezinha pró-xima, onde também eram enter-rados os mortos do Mata-Cava-lo. Sim, os mortos é que saíampara ser enterrados, pois os vi-vos permaneciam circunscritos

ao universo da fazenda. A práti-ca dos casamentos em família erausual: os pais de Maria Francisca,por exemplo, eram primos; Se-bastiana conta que havia até ca-samento de “irmão com irmã”. Oscostumes eram severos, lembraMaria Raimunda, e passa a rela-tar seu namoro: tímido, o rapaz,um trabalhador da fazenda,aproximava-se da porta da casa.Ali permanecia em silêncio. Nãofalava sobre o dia que tivera, osol, o cabo da enxada, a colheita,a poda, outra coisa qualquer.Não falava do amor que sentia,dos sonhos que alimentava – seé que os tinha. A resposta era,também, sem palavras: dentroda casa, sentada num banco, Ma-ria Raimunda sonhava em silên-cio. Namoravam “só olhando”,não tinham permissão para ficar“na sala, conversando”. Mais tarde,o rapaz ia embora, ela ia dormir.Tempos depois, eles se casaram.

No Mata-Cavalo, a vida bro-tava da terra. Muitos tinham“chácaras boas”, onde plantavambanana, café, milho, cana, e, co-mo produziam mantimentos,não precisavam de comprarmuitas coisas. Jovelina lembra ocheiro de café moído esquadri-nhando a casa. Na madrugadafresca, o galo despertava o man-diocal esguio, enquanto as bana-neiras arfavam pesadas comomulheres prenhes; um resto devento noturno esbarrava em túr-gidas laranjas, encharcadas de

sono. A irmã mais velha já ia pre-parar a mandioca para fazer fa-rinha. Jovelina ia cuidar da hor-ta. Hoje, tudo é muito diferente.Jovelina já não vive da terra, masdo pagamento que recebe men-salmente do FUNRURAL, e afir-ma, direta e perplexa: “Estou aí,à toa”.

Na manhãzinha inda escura,a menina corre até o terreiro,atrás do pai. Ele, porém, já vailonge. Maria Francisca passarialongos anos vendo o pai traba-lhar continuamente, entre os pésde cana, de mandioca, de bana-na, pelos alqueires de milho. Àsvezes, produzia além do gasto,e sobrava para vender em Mor-ro do Pilar. De lá, ele trazia osmantimentos de que não dispu-nha no Mata-Cavalo. TambémJosé Viana trabalhou muito – “eduro”. Indagado sobre a vida emMata-Cavalo, ele resume: “Nãoaprendi quase nada de dentro de ca-sa, de conversa, de fazenda”.

A madrugada acordava o me-nino de 8 anos, para ir trabalhar.Em troca de “um tostão”, ele pas-sava o dia fora, plantando bana-na, cuidando de criação, traba-lhando para os outros. Tangidos,os ciclos de muitas vidas, no Ma-ta-Cavalo, se arremessavam so-bre o tempo, atiçados pela neces-sidade de sobreviver.

Não era muito diferente nacasa de Maria Raimunda. Ali,atingir os 7 anos de idade signi-ficava começar dupla jornada: as

Page 18: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 199718

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

crianças trabalhavam tanto emcasa, quanto fora, “na enxada”. Afamília plantava muito – “era ba-tata, cana, mandioca, era banana, erainhame”... A vida do pai de Ma-ria Raimunda se estendeu poruma bela “lavoura formada”, quese espalhava pelas terras que elefora adquirindo de famílias aquem prestara alguma forma deajuda. Chegou a ser dono de 5ou 6 quadras de terra, “na mata ecá embaixo também”. Nessa altu-ra, Mata-Cavalo já estava no seusegundo dono, Teófilo Thomaz.Ele recomendou ao pai de Ma-ria Raimunda que “descesse” paraplantar, e as terras de cima “fica-ram para lá”. Além disso, emborativesse o registro das terras, seupai “não ligava”. Depois que elemorreu, o gado entrou na lavou-ra e destruiu tudo. A viúva mu-dou-se para Belo Horizonte. Ma-ria Raimunda permaneceu emMata-Cavalo e voltou-se inteira-mente para a terra. Por trás dasdificuldades, viu brotar de novoo mandiocal, multiplicarem-seos cachos de banana, apontaremnovamente as espigas de milho,assentarem-se as batatas sob aterra. “Tudo na terça”.

A lembrança da luta pela so-brevivência entristece Sebastia-na. Muitas vezes, ela e os irmãostiveram de beber água com salpara não morrer, enquanto aguar-davam ajuda. O pai era doente.A mãe ia, toda esfarrapada, tra-balhar na roça. Tão esfarrapada

que uma pessoa amiga, a Zina,chegou a costurar para ela algu-mas roupas. À tardinha, a mãevoltava trazendo comida. No ter-reno, que “era de todo o mundo”,havia banana, mandioca, milho;às vezes, chegavam a vender pe-quenas quantidades (quartas) defarinha de mandioca, feita arte-sanalmente. O amigo ManoelNunes também ajudava – “a gen-te ia lá, pequenininho, pedir bana-na” –, assim como a Benedita,que cozinhava batata, inhame,mandava café – “mulher boa quesó vendo”. A situação era muitodifícil. Sebastiana acabou indotrabalhar e morar na casa do pa-trão, na cidade, “Nhozinho” Tho-maz, que criava “uma porção degente”. Era casado com D. Rosa,que nascera em Pará de Minas.Sebastiana foi para lá com 11anos e o “dinheirinho” que ganha-va era todo entregue à mãe. Elanão sabia que mais de 50 anosde sua vida se passariam sobaquele teto, onde ajudaria a cri-ar o professor José Batista e seusirmãos; depois, seus filhos, “Têmmuita consideração comigo”, afirmaSebastiana, e, tímida, conclui:“Tenho até vergonha”.

A par da luta pela sobrevivên-cia, havia o esforço para adqui-rir um mínimo de instrução: a es-cola implantada pelo primeirodono da fazenda era freqüenta-da pelos escravos; a maioria, noentanto, tinha dificuldade paraaprender. Jovelina lembra a lo-

calização da escola – “ficava nosesteios, no mato” –, mas já não serecorda de nada do que estudou.D. Rosário era o nome da pro-fessora no tempo de Maria Rai-munda, que já estava casadaquando procurou a escola; ape-sar do esforço, ela não conseguiuaprender quase nada. MariaFrancisca não chegou a aprendera ler, por causa de problemas devista; aprendeu apenas a fazercontas simples. No seu tempo,acrescenta, eram poucos os quesabiam ler.

Ana e Constança se aproxi-mam da fogueira, ecoa uma lem-brança solta das histórias ouvi-das na infância. O pai não des-gruda os olhos da dança, que va-ra a madrugada. Toninho e Amé-lia também não: seus filhos,Francelino e Carlota, reinam noterreiro, junto com os de Patrícioe Mafalda. Na solidão da fazen-da, aumentava, dia-a-dia, a pro-le dos escravos. Com o endossoda família do patrão, os negroscortavam a noite com o ritmo deuma dança dramática, a qual res-suscitava danças e cantos nasci-dos na África: era o catopê. Maisde uma versão sobre ele rolava,de boca em boca, no Mata-Cava-lo. Segundo João Viana, sua avóé quem mandou fazer os caxam-bus, instrumentos de percussãodo catopê, a fim de que, nas fol-gas, as moças e os rapazes da fa-zenda não saíssem “para passearna cidade, em parte nenhuma... para

Page 19: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 19

Herança negra de liberdade e exclusão

ficarem brincando ali, em volta dacasa, à noite; a maioria ficava fian-do algodão no tear e batendo catopê”.Há, também, a versão religiosa:Deus morava na Terra. Fez estemundo em 5 dias, por isso nin-guém trabalha sábado. “QuandoDeus mais Nossa Senhora morrerame mudaram para o céu, já subiramcom o catopê batendo” para levá-los.

Nos terreirões do Mata-Cava-lo, surgiram, então, os gruposque, no antigo arraial de Morrodo Pilar, integravam as comemo-rações de Nossa Senhora do Ro-sário e de São Benedito. “Dessesnegros, restam seus descendentes,netos, bisnetos e tataranetos, queconservam muito da linguagem afri-cana” (Piló, 1980). Diz João Vianaque esses dois santos negros fo-ram escolhidos como protetoresdos escravos do Mata-Cavalo.

Lá, nos “tempos antigos” batia-se catopê na fazenda quase to-dos os sábados e em espaços di-versos: dentro de casa, nos ter-reiros, na rua: “chegava na casa dosinhô, batia um tempo; chegava nacasa de outro, batia também um tem-po”. Alguns cantos iam surgindona hora; outros eram passadosaos jovens pelos mais velhos:

“Eu chorei a noite inteira p’ra aju-dar meus filhos,ninguém te deu a mão.Tu tratou aí da cozinha, e a mesaarrumada,todos comemos.E agora ‘tô aí: tirei um, não quer, ooutro não me quer.

Eu fechei a minha porta e entrei p’racasa adentro”.

“Sai, sai, não saiu. Sai, sai, não saiu.Sai, sai.Ô, cadê marimbondo? Ele me mordeu.Ô, cadê marimbondo? Ele me mordeu”.

“O menino pequetito, com ‘quiçom-ba’ na carcunda,perguntaram onde vai, vô em ‘sam-ba’ de Macota.Ai, ai, ai, ai, ai, ai.Macacu assobiou, o macaco levantou.Ai, ai, ai, ai, ai, ai”.

“Ô candinha na horta não come couve,candinha na horta não come couve.Êeeeee... ei – eieiê...candinha da horta não come coyve”.

No terreiro cheio de lua, os ca-xambus conversam: “José, o menor,‘fala mais fino’, ‘Maria’, o maior ‘falamais grosso’.” O ritmo conduz osquatro negros que iniciam a dan-ça e vai contagiando a pequenamultidão. Um se achega, maisoutro e outro, uma grande rodase forma no centro do terreiro.Um mais velho se levanta e seposta atento: quando há muitosdançando, é necessário que al-guém fique de fora, para ver setudo está de acordo, pois não sepode quebrar o ambiente de fé.“À toa ninguém dança” – avisa JoséViana. “É um canto de louvação. Sea pessoa está mal, faz promessa defestejar São Benedito e sara”. Nafesta desse santo, bate-se catopêna bandeira e na casa do festeiro;um canta, outro responde, e adança vai “esquentando... pode to-mar uma miudinha [cachaça], maspouquinha”. Entretanto, MariaRamira garante: “Danço com o juí-

zo perfeito”. Já na festa de NossaSenhora do Rosário, bate-se ca-topê durante a procissão. Hojeporém, não há procissão – a ruaficou “grande” e é preciso ser for-te para agüentar o peso dos ca-xambus.

Maria Francisca conta que, jáde madrugada, na hora da des-pedida, “eles cantavam muito bo-nito... um verso para o padre. Sinhôpadre, vestido de resplendores,/umdia inda lhe vemos/como um santonos andores. Eles agachavam nochão para cantar, todo o mundo ad-mirara e ficava impressionado”.

José Viana relata a históriados dois caxambus que guardacom carinho: ao cavar o chão pa-ra fazer os alicerces de sua casa,ele deu com pedaços de madei-ra de antigos caxambus. Naque-le local, muitos anos antes, ha-via os restos de um barracão on-de morara um tio seu, provavel-mente o dono dos instrumentos.“Então, os meninos do camarada‘Quinzinho’ apanharam direitinho,arrumaram para mim, José Tomásarrumou, me vendeu, eu oleei”. Há30 anos Viana guarda os instru-mentos; hoje, afirma: “No dia queeu estiver para morrer, faço um bu-raco, enterro eles para ninguém maisver”. De cedro, “madeira cara”, éque se faziam os caxambus. Cou-ro de cotia, de porco, de bezerronovo eram, originalmente, usa-dos nos instrumentos. Nos ca-xambus de José Viana, foi colo-cado couro de boi; na última fes-

Page 20: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 199720

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

ta, como o couro havia furado, foicolocado couro de bezerro velho,mesmo. “Todo ano, arrumo tudo”.

No tempo de Sebastiana e deMaria Francisca, quando se ba-tia catopê, elas não dançavam;Maria Raimunda gostava apenasde ver; Jovelina conta que “só osgrandes dançavam”. Maria Ramirasente: “Agora tem pouca gente – fo-ram morrendo”. No Mata-Cavalode hoje, vez ou outra, os poucosque sabem bater catopê reúnem-se para dançar. Já não o fazem àluz do dia nem nos espaços aber-tos, mas dentro de casa e à noi-te, e justificam: “É melhor... por-que, de dia, a gente fica com vergo-nha”. “Foi-se acabando tudo, nin-guém sabe de que jeito foi”, narraSebastiana. Quem permaneceuno Mata-Cavalo foi José Raimun-do, que “procurou advogado na co-marca de Conceição do Mato Den-tro e continuou a demanda”. Entre-tanto, “ele também não está poden-do mais nada”. Só se “a coisa ficarcom os que estão vindo”.

O eixo dessa narrativa nãotrata de ex-escravos e descen-dentes em busca da liberdade deescolha de emprego, na singu-lar conjuntura do pós-abolição eprimeiros anos de assentamen-to mais preciso de relações capi-talistas de produção. Mas apon-ta na direção de tensão e confli-to na luta pela terra. Todavia, amemória da propriedade forma-lizada juridicamente permaneceativa, com riqueza de desdobra-

mentos. Enquanto a memóriados ‘deserdados’, prenhada naexperiência dos descendentes,configura estreitas frestas, lem-branças encolhidas que, não ra-ro, recusam-se a aflorar.

A perda deixou marcas cujalegibilidade, contraditoriamente,incide na própria perda das lem-branças. Fala-se em assassinatos,expulsões. Porém, são murmúri-os, quase inaudíveis, dado o cir-cuito fechado do poder de domi-nação sobre a trajetória dos her-deiros. Pequenos sinais, imagenssoltas, gestos esboçados deci-fram textos não elaborados. É co-mo se as lembranças se encolhes-sem à moda da vida dessas “cria-turas humildes e humilhadas”. En-tretanto, algumas rememoraçõesnos conduzem, por atalhos, à ex-periência de vida na fazenda.

Roças e hortas são plantadasem regimes, também, de parce-rias. São cultivados milho, café,algodão, mandioca, banana e ca-na. Transportados em carguei-ros, são comercializados na cida-de milho e café. Segundo C. F.Cardoso, tais regimes no interi-or do sistema escravista visavamdiminuir os custos com a manu-tenção e reprodução da mão-de-obra (Cardoso, 1987). O que sepode inferir da continuidade daprática, para minimizar gastoscom os trabalhadores, após aabolição. Esses lugares de traba-lho (Reberioux, 1992, 49), repre-sentam, ainda, uma dimensão

simbólica, pois configuram suaposição face à propriedade e aocapital. Costumam selar pactosde companheirismo, mesmoquando “com chicote em cima”, ousem “maltratos”. As negociaçõesentre escravos e senhores já fa-zem parte integrante da literatu-ra historiográfica contemporânea.

Todavia, há outros lugaressimbólicos, cujo estatuto expres-sa a moral vigente repressiva ede caráter punitivo privado. É ocaso da forca, cuja ameaça osten-siva já pode coibir ações. Tam-bém o corpo, interditado emseus desejos, torna-se simulacrode virtude e honradez. Domes-ticado para o trabalho, assumeatitudes de constrangimento,quando reconhecida sua capaci-dade de prestar “bons serviços”.Talvez, o contato face a face en-gendre um sentido de “vergonha”diante de autoridades instituí-das. Ou pode ser a internaliza-ção de um padrão de modéstia.

A religiosidade matiza as rela-ções entre Igreja e manifestaçõesde origem na África imemorial.Santos católicos são sagradosprotetores dos negros e festeja-dos com atabaques (caxambus),em procissões. Deste modo, fes-tas e danças instituem lugares desociabilidade que acolhem en-contros solidários. Mas, o que nosinformam suas cantigas? Que re-gistro de interações comunicam?O que mudou? O que permanece?

Se não é possível presentificar

Page 21: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 1997 21

Herança negra de liberdade e exclusão

o passado, porque a rua ficou“grande” ou “foi-se acabando tudo”,essas lembranças valem pelo quecriam. Produzem vínculos iden-titários e perfilam o fazer-se su-jeito, através das próprias pala-vras que vão construindo suahistória.

Concebemos uma memóriados descendentes de escravos daFazenda do Mata-Cavalo. Tenta-mos cavar fundo o subterrâneode suas experiências ancestrais,representantes de seu elo iden-titário com o passado. Seduzidosficamos “pelas nascentes, aquela es-cura e misteriosa região das ‘Madres’– de onde ascende à superfície da ter-ra tudo que tem figura e vida” (Ho-landa, 1991, p. 453). Mas a conti-nuidade do silêncio provoca apermanência de uma situaçãocristalizada. Então, rompermoseste amálgama de impossíveisinterseções, criando senhas de

intervenção. Sobre um fundo deidentidades fragmentadas des-cobrimos fios rotos, trançadosnuma dupla interdição. A da ter-ra herdada e perdida; a das mar-cas sociais excludentes: cor dapele, desqualificação profissio-nal, miséria, etc. Tal herança ins-creve-se numa instância simbó-lica de relação com o outro, emque conotações de resto, de so-bra, de refugo representam o iti-nerário das jornadas sociais dogrupo.

Para Le Goff, “... a memória co-letiva foi posta em jogo de forma im-portante na luta das forças sociais pe-lo poder. Tornar-se senhores da memó-ria e do esquecimento é uma das gran-des preocupações das classes, dos gru-pos, dos indivíduos que dominaram edominam as sociedades históricas. Osesquecimentos e silêncios da históriasão reveladores desses mecanismos demanipulação da memória coletiva”

(Le Goff apud Garcia, 1992, p.172). Desta forma, a servidãoanônima das classes subalternasparece exigir habitações ondememória e identidades incitemo espaço político da diferença,negando formulações culturaishegemônicas. Assim, a históriaque só nos permitia “chorar pelorei Carlos I sobre o cadafalso”, con-vida-nos a partilhar o sofrimen-to dos excluídos da memória dopoder (Thompson, 1992, p. 335).Mas, como articular relações no-vas entre passado e presente, ca-pazes de engendrar identidadescoletivas diferençadas, e mesmocontraditórias? Como interpelaro tempo e a história, interrogan-do sobre a construção “de identi-dades coletivas que sejam o territórioda diversidade, do conflito e da cria-ção incessante de novos direitos”?(Garcia, 1992, p. 174). Em discus-são, a cidadania.

Page 22: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 7-22, jun. 199722

Yonne de Souza Grossi; Fábio Martins

Referências bibliográficas1. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1986. v. 1.

2. CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravos ou camponeses? O protocampesinato negro das Américas. São Paulo:Brasiliense, 1987.

3. GARCIA, Marco Aurélio. Tradição, memória e história dos trabalhadores. In: DIREITO à memória. São Paulo:DPH, 1992.

4. GROSSI, Yonne de Souza. Constança do Serro Frio. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte,1991.

5. GUATTARI, Félix. Caosmose. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

6. HALBWACHS, Maurice. Les cades sociaux de la mémoire. Paris: Mouton, 1976.

7. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Posfácio à edição de Fausto. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991.

8. IBGE. Informações básicas. Belo Horizonte: IBGE, 1982.

9. IDENTIDADE e memória. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 95, out./nov. 1988.

10. LEVI-STRAUS, Claude. La identidad; seminário. Barcelona: Petrel, 1981.

11. LIBBY, Douglas Cole. Transformações e trabalho em uma economia escravista; Minas Gerais no século XIX.São Paulo: Brasiliense, 1988.

12. LIMA, Constança Fortunata de Abreu e. Testamento e inventário. Conceição do Mato Dentro: Cartório do 2ºOfício, 1883.

13. LIMA, José Pereira de Abreu e. Testamento. Conceição do Mato Dentro: Cartório do 2º Ofício, 1857.

14. MARTINS, Fábio. Os negros da Fazenda Mata-Cavalo e o sonho de Mãe Tança. Revista Minas Gerais, n. 20, 10out. 1989.

15. MATOS, C. A. V. Indagações e notícias sobre Morro de Gaspar Soares. Diamantina: G. A. Estrela Polar, 1921.

16. MATOS, Olgária. Memória e história em Walter Benjamim. In: DIREITO à memória. São Paulo: DPH, 1992.

17. MORAIS, Geraldo Dutra de. História de Conceição do Mato Dentro. [s. l.]: [s. n.], 1942.

18. MOURA, José Batista de. Nestas bruacas de couro cru; lembranças do cotidiano de uma fazenda mineira.(Manuscrito cedido pela família)

19. NOVAES, Sylvia Caiuby. Jogos de espelhos. São Paulo: EDUSP, 1993.

20. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976.

21. PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania; o direito ao passado. In: DIREITO à memória. São Paulo:DPH, 1992.

22. PILÓ, Conceição. Cultos e tradições de Conceição do Mato Dentro. [s. l.]: Gráfica Editora de Engenharia, 1980.

23. RAIMUNDO, José. Relatos pessoais. [s. l.]: [s. n.], 1991. (Trabalho de campo – Histórias orais coletadas dosdescendentes dos escravos)

24. RÉBÉRIOUX, Madeleine. Lugares da memória operária. In: DIREITO à memória. São Paulo: DPH, 1992.

25. SANTOS, Sônia Nicolau. A procura da terra perdida; para uma reconstituicão do conflito de Cachoeirinha.Belo Horizonte: Departamento de Ciência Política UFMG, 1985. (Dissertação de Mestrado)

26. THOMPSON, Paul. A voz do passado; história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Page 23: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 1997 23

A representação da mulher nas cantigas medievais

A REPRESENTAÇÃO DA MULHERNAS CANTIGAS MEDIEVAIS

Ana Maria CoutinhoDepartamento de História da PUC•Minas

Mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC•Minas

RESUMO

O presente trabalho tem como ob-jetivo a análise de duas cantigas deJuyão Bolseiro, uma de amor e outrade amigo, e de uma cantiga de mal-dizer de Rui País de Ribela.

O estudo tem a preocupação deobservar a representação da mulhercantada pelos trovadores, evidenci-ando as suas diversas facetas.

“... amar é uma obrigação;e quem não ama não passa de um morto-vivo ...”

Bernard de Ventadour

Omundo medieval é construção doshomens, do guerreiro, do comba-tente. Marcado pela ótica masculi-

na, com conceitos e valores determinados pelaarte de guerrear, pela institucionalização da leida força e do mando. Criação de relações entrehomens/mulheres, apenas sacramentadas paralegitimar a procriação.

Os homens decidem e ordenam à revelia das mulheres. Um dessessinais de submissão já foi indicado por um historiador da questão femi-nina: “(...) em sinal de submissão deveria manter sempre os cabelos longos.Não podia até mesmo falar nos lugares de culto”. (Macedo, 1990)

O universo medieval construiu a imagem da mulher de duas manei-ras distintas: como a santa, pura e imaculada, ou como a prostituta, aEva que um dia traiu a humanidade. Pois bem, por conta dessa mentali-dade dos homens e da Igreja, a mulher não era tratada com respeito.

Page 24: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 199724

Ana Maria Coutinho

Era até mesmo desprezada porsua incapacidade de organizar aguerra e por sua incompetênciapara administrar não apenas ascoisas que diziam respeito ao mun-do dos homens, como também assuas próprias vidas. À mulher éreservado o mundo da procriaçãoe educação de filhos: “(...) finalmen-te, tudo converge para que a mulhersó seja levada em consideração en-quanto mãe, enquanto genitrix”. (Du-by, 1989, p. 228)

Com o advento de melhorescondições de vida decorrentes dodesenvolvimento da produçãoagrícola, do crescimento do co-mércio e do aumento popula-cional, a sociedade medieval pos-sibilita o aparecimento da arte tro-vadoresca em seu interior. Com afunção de fortalecer mais e maiso poder do senhor feudal juntoaos seus pares, e ainda com a fun-ção de agradar as reuniões soci-ais, o trovador canta e enaltece afigura feminina. Mas é a senhora-dama, a “mulher proibida” quetanto seduz as rodas e saraus, queserá cantada pelo trovador. A ci-tação que se segue esclarece umpouco melhor isso: “É um amoradulterino. O seu objetivo só pode seruma mulher casada”. (Bonnassie,1985, p. 31)

A partir do século XII, então, aimagem da mulher “desconheci-da”, “velada”, ganhará um espa-ço novo na sociedade em estudo.Dela se fará um traçado dife-

renciado ou, quem sabe, uma no-va construção do que de fato amulher representa. É com o in-tuito de detalhar e apresentar me-lhor o que foi a criação da mulhermedieval, que tomarei como obje-to de estudo as cantigas trovado-rescas.

A poesia galego-portuguesapossibilita apreender, através docantar dos trovadores, a mentali-dade da sociedade da época me-dieval e permite compreender aevolução da própria literatura mo-derna. Nas cantigas medievais,observa-se a figura feminina sen-do apresentada e representadanas suas múltiplas facetas.

Desta maneira, percebe-semuitas vezes nas cantigas de ami-go o trovador falando em nomeda mulher e, geralmente, do sen-timento de paixão, amor, sauda-de, etc., do namorado, permitin-do-nos, inclusive, pensar a mu-lher sem direito a voz.

Já nas cantigas de amor, o tro-vador empreende a confissão do-lorosa, e quase elegíaca, de sua an-gustiante experiência passionalfrente a uma dama inacessível aosseus apelos, entre outras razõespor ser ela de superior estirpe so-cial, enquanto o homem era,quando muito, um cavaleiro a ser-viço do seu senhor ou um fidalgodecaído.

As cantigas de escárnio e mal-dizer contam, de maneira irônicae às vezes grotesca, aspectos par-

ticulares da vida da corte e da boê-mia jogralesca. A sua linguagemrevela-nos uma sociedade consti-tuída por jograis da corte, canta-deiras, soldadeiras (bailarinas), fi-dalgos e boêmios. Parece que é damulher “livre” e “descompromissa-da” que fala o próprio texto.

O presente trabalho tem comoobjetivo a análise de duas canti-gas de Juyão Bolseiro, considera-do um dos maiores poetas do sé-culo XIII, sendo uma de Amor eoutra de Amigo, e de uma canti-ga de Maldizer de Rui Pais de Ri-bela, conhecido como freqüenta-dor da corte de Afonso X. O estu-do tem a preocupação de obser-var a mulher que é cantada pelostrovadores, bem como suas pos-síveis facetas que afloram dos co-rações destes, que tanto encanta-ram os salões dos senhores feu-dais. Estou ciente, no entanto, deque a amostragem é bastante limi-tada para as nossas pretensões.

Desenvolverei o trabalho par-tindo de considerações e observa-ções quer do âmbito da estruturado significante, quer do âmbito daestrutura do significado. Como di-retriz metodológica, recorro a as-pectos referentes à psicanálise, noque diz respeito ao desejo, à falta,à sedução, à paixão não corres-pondida, entre outros.

Especificando o corpus de mi-nha análise, as cantigas em estu-do são as seguintes:

Page 25: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 1997 25

A representação da mulher nas cantigas medievais

A) Cantiga de amorSenhor fremosa, des aquel diaque vus eu vi primeyro, des entonnunca dormi com’ante dormianem ar dor fui

le’e vedes porqunon: cuydand’en vós e non en outra rene desejando sempr’o vosso ben.

E sabe Deus e Santa Mariaque non am’eu tant’al eno coraçonQuant’amo vós , nen ar poderia,e se morrer, poren farey razoncuydand’en vós, e non en outra rene desejando sempr’o vosso ben.

E ant’eu já (a) morte querryaca vyver com’eu viv’à gran sazone mnha mor-

te melhor mi seriaca vyver mays assy Deus mi perdoncuydand’en vós, e non en outra rene desejando sempr’o vosso ben.Ca vós sodes mnha coyta e meu beme por vós ey quanta coyta mi ven.

Tradução:Senhora formosa, desde aquele diaem que eu vos vi primeiro, desde entãonunca dormi como antes dormianem tão pouco fui alegre e vedes porque não:Pensando em vós e em nenhuma outra coisae desejando sempre o vosso bem.

E sabe Deus e Santa Mariaque não amei eu tanto outra pessoa no coraçãoquanto vos amo, nem tão pouco poderia,e se morrer, por isso terei razãoPensando em vós e em nenhuma outra coisae desejando sempre o vosso bem.

E antes eu desejaria a mortedo que viver como eu vivo há muito tempoSeria melhor a minha mortedo que viver mais assim, Deus me perdoePensando em vós e em nenhuma outra coisae desejando sempre o vosso bem.Pois vós sois meu mal e meu beme por vós tenho todo o sofrimento que me vem.

Tradução:Sem o meu amigo sinto-me sozinhae não adormecem estes olhos meus.Tanto quanto posso peço a luz a Deuse Deus não permite que a luz seja minha.Mas se eu ficasse com o meu amigoa luz agora estaria comigo.

Quando eu a seu lado folgava e dormia,depressa passavam as noites; agoravai e vem a noite, a manhã demora;demora-se a luz e não nasce o dia.Mas se eu ficasse com o meu amigoa luz agora estaria comigo.

B) Cantiga de amigoSen meu amigo manh’eu senlheirae sol non dormen estes olhos meue, quant’eu posso, peç’a luz a Deuse non mi-a dá per nulha maneira,mais, se masesse con meu amigo,a luz agora seria migo.

Quand’eu con meu amigo dormia,a noite non durava nulha ren,e ora dur’a noit’e vai e ven,non ven (a) luz, nem pareç’o dia,mais, se masesse con meu amigoa luz agora seria migo.

Page 26: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 199726

Ana Maria Coutinho

A cantiga de amor em desta-que trata do sofrimento decorren-te do amor, da paixão e do desejodo trovador pela mulher amada.O poeta estrutura os versos dopoema realçando o próprio clímaxde sua dor de amor. Intercala ver-sos eneassílabos com decassílabos,produzindo efeitos de encanta-mento e, ao mesmo tempo, umacerta tensão rítmica, enfatizadapela presença de versos decassíla-bos no refrão e na fiinda. A estru-

E, segundo, com’a mi parece,comigo man meu lum’e meu senhor,ven log’a luz, de que non ei sabor,e ora vai (a) noit’e ven e cresce,mais, se masesse con meu amigo,a luz agora seria migo.

Pater nostrus rez’eu mais de centopor aquel que morreu na vera cruz,que el mi mostre mui ced(o) a luz,mais mostra-mi as noites d’avento,mais, se masesse con meu amigo,a luz agora seria migo.

C) Cantiga de maldizerA donzela de Biscaiaainda mi a preito saiade noit’ ou luar!

Pois m’ agora assi desdenha,ainda mi a preito venhade noit’ ou luar!

Pois dela sõo maltreito,ainda mi venha a preitode noit’ ou luar!

Tradução:A donzela de Biscaia,nunca ao meu encontro saiade noite, ao luar!

Se ela agora me desdenha,nunca ao meu encontro venhade noite, ao luar!

Se ela agora me amesquinha,nunca a encontre eu sozinhade noite, ao luar

tura rítmica do poema é compos-ta com cuidado e habilidade, a fimde o tornar mais melodioso e se-dutor a quem o ouve, cumprindoum dos propósitos da cantiga. Porisso, as rimas observadas nas can-tigas embelezam e dão harmoniaao poema.

Em relação à estrutura das es-trofes, observa-se na cantiga deamor a ausência de paralelismose de encadeamentos. Por outro la-do, a presença do refrão auxilia na

compreensão da mesma, enquan-to a fiinda é apenas um acabamen-to usado pelos trovadores para fi-nalizar e concluir melhor as suascantigas.

A cantiga de amigo de JuyãoBolseiro apresenta versos decas-sílabos em todas as suas estrofes,demonstrando uma certa tensãorítmica, enquanto o refrão é com-posto de versos eneassílabos, su-gerindo um efeito atrativo, bemcomo a proposta de uma alterna-

Diferente é a noite quando me aparecemeu lume e senhor e o dia me traz;pois apenas chega logo a luz se faz.Vai-se agora a noite, vem de novo e cresce.Mas se eu ficasse com o meu amigoa luz agora estaria comigo.

Padres nossos já rezei mais de um centoimplorando àquele que morreu na cruzque cedo me mostre novamente a luzem vez destas longas noites de advento.Mas se eu ficasse com o meu amigoa luz agora estaria comigo.

Page 27: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 1997 27

A representação da mulher nas cantigas medievais

tiva para a situação aflitiva daamada.

As rimas das estrofes estão dis-postas dentro do seguinte esque-ma: ABBA. Trata-se de rimas em-parelhadas, como no caso dos se-gundos e terceiros versos (BB), einterpoladas, já no caso dos pri-meiros e quartos versos (AA). Su-gerem, quem sabe, aproximaçõese distanciamentos entre os própri-os amados.

A cantiga de maldizer, de RuiPais de Ribela, apresenta três es-trofes formadas por versos, hep-tassílabos, tão comuns nas canti-gas populares medievais.

É interessante observar que,apesar da simplicidade da canti-ga, ela propõe um jogo em que oamado, embora desprezado pelaamada, busca estratégias para pos-suí-la.

As cantigas de amor, de amigoe de maldizer, em estudo, colocama mulher como centro da atenção,com suas inúmeras máscaras, orareveladas aos nossos olhos, ora ve-ladas pelo próprio cantar dos tro-vadores. Elas têm, como um deseus objetivos, enaltecer a mulheramada, cantar os seus desejosfrente ao amante e namorado. Eainda maldizer a mulher que tan-to relegou a um último plano oamado. Dentro dessa linha depensamento, pretendo desenvol-ver a presente análise, na perspec-tiva de tentar conhecer e compre-ender a mulher que encanta, en-feitiça e até mata o homem de tan-

to amor. E, nesse sentido, deter-me-ei no estudo da cantiga deamor, num primeiro momento, eda cantiga de amigo num segun-do momento, concluindo com acantiga de maldizer.

Através da voz do trovador,percebe-se, na cantiga de amor, osentimento de aflição, incômodoe melancolia, diante da falta quea amada provocou em todo o seuser. A falta da amada parece se re-lacionar com o momento em queos olhares do amado se depositamsobre ela, para dela nunca maisquerer esquecer e, quem sabe,nunca substituí-la por outro obje-to de desejo: “Tudo começa por umolhar lançado. A metáfora é a de umaflecha que penetra pelos olhos, crava-se até o coração, incendeia-o, traz-lheo fogo do desejo” (Duby, 1990, p.228). Na primeira estrofe fica bemvisível tal momento:

“Senhor fremosa, des aquel diaque vus eu vi primeyro, des entonnunca dormi com’ante dormianem ar fui le’e vedes porqu’ non:cuydand’en vós e non en outra rene desejando sempr’o vosso ben.”

Observa-se também, ao longodo poema, a relação passado epresente, estabelecida no instan-te em que o amado reteve na suamemória a imagem do primeirodia em que viu a amada. E de-monstra, no tempo presente, a suadeterminação e jura de jamaisamar outra mulher que não esta

por quem tanto sofre. Prefere amorte a viver sem a presença daamada. Aliás, não pensa o amadoem buscar novos estímulos e subs-titutos deste objeto de desejo, re-velando uma atitude obsessiva.

Deve-se realçar a ambigüida-de instalada no poema com a fi-inda: “Ca vós sodes mnha coyta e meuben/e por vós ey quanta coyta mi ven.”Com efeito, o amor, que é o espa-ço do bem, da euforia, do êxtase,da luminosidade e dos anseios doamado frente à mulher amada,converte-se no espaço da dor, dastrevas e do desejo de morte. En-tretanto, mesmo com a falta daamada, não lhe quer o amado malnenhum, desejando-lhe, ao con-trário, todo o bem.

É interessante destacar que atristeza e todo o sofrimento doamado fazem da cantiga um ritode penitência. Provavelmente, es-te ato de penitência a que se sub-mete o amado reforça ainda maiso seu desejo de amor e o retratoidealizado da mulher amada. Ainfiltração da ideologia religiosana sociedade medieval foi bastan-te acirrada. E daí a forte presençado divino nas relações amorosase nos sofrimentos de amor. Aliás,o sentimento de amor é sagrado esublime; portanto, passível demorte.

As questões que me coloco são:quem é esta mulher tão desejadapelo amado, a ponto de fazê-lopreferir a morte a viver sem ela?Até que ponto o sentimento de fal-

Page 28: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 199728

Ana Maria Coutinho

ta e a incompletude fortalecem es-te desejo de amor?

A cantiga em estudo pouco meesclarece acerca de quem é estamulher, todavia insinua, por meiodo sofrimento do amado, ser umamulher altiva, distante, idealiza-da ou, quem sabe, proibida. Emcontrapartida, a mulher simboli-zaria o diabo, um ente ameaçador,à medida que encanta e enfeitiçao coração do amado. E o ho-mem,provavelmente, seria mais um dosmortais, com sua fragi-lidade e im-potência diante de seus vazios,submisso não só à mulher ama-da, como também ao seu objetode desejo que, na cantiga em aná-lise, é uma única mulher. Mulheresta que, talvez, represente a figu-ra da própria mãe. Daí a inviabi-lidade de substituí-la por uma ou-tra mulher, optando pela morte.

De maneira mais cuidadosa,detenho-me na análise da canti-ga de amigo, por ser uma cantigana perspectiva das mulheres, ain-da que expressa pela voz do tro-vador. Provavelmente, o homem,travestido de mulher, dê um novotoque e pincelada na mesma, ca-racterizando-a com mais ênfaseno aspecto da paixão.

A cantiga de amigo apresentaa declaração de amor feita pelamulher ao seu amigo-namorado.De tanta saudade e falta, ela sen-te tristeza e o incômodo de nãopoder tê-lo junto de si. Acreditoque esta louca saudade traduza ailusão de completude.

A cantiga demonstra clara-mente, na sua estrutura, a oposi-ção entre dia – simbolizando otempo de luz, da presença doamado, do carinho, do prazer e doamor – e noite – significando otempo das trevas, da saudade, dodesejo não realizado e da ausên-cia do amado. Percebe-se, de ma-neira muito enfática, a lembran-ça, na memória da amada, dosmomentos de amor vividos ante-riormente com o seu namorado,e que estas tão belas e prazerosasrecordações fazem com que elaanseie eternamente por todo esteprazer. Creio mesmo que a ama-da esteja idealizando em muito oamor, haja vista os seus pedidos aDeus para que lhe devolva a luzdo amor, por não suportar as noi-tes de escuridão e de carência. De-ve-se refletir, todavia, acerca do as-pecto divino como intermediárionas relações amorosas, a fim de secamuflar um desejo que se querviver no plano carnal e, talvez pa-ra a época, ilícito aos olhos da so-ciedade e, principalmente, proibi-do de ser vivenciado pelas mulhe-res. Por sinal, a própria cantigacontém o termo lume, que podesignificar luz, fogo, fulgor, falo,simbolizando também o fogo doamor sexual, da paixão, da volúpiado desejo carnal pelo amado. Co-mo exemplificam os seguintes ver-sos: “E, segundo, com’a mi parece/co-migo man meu lum’e meu senhor”.E ainda o termo “Advento”, que sig-nifica as quatro semanas antece-

dentes ao Natal, parecendo alu-dir ao tempo em que a amada teráde se penitenciar, para só então re-alizar os seus desejos de amor.

No segundo verso da cantiga –“e sol non dormem estes olhos meus” –,depreende-se a postura de vigíliae espera por parte da amada, quese estende pelas noites de peni-tência do Advento, como expres-so no último verso: “mais mostramias noites d’advento”.

Alguns aspectos da cantiga, re-ferentes à representação da mu-lher, inquietam-me. Bem como asatitudes aparentemente liberaisnum contexto de rígida moral. AIgreja é quem controla a vida e ospensamentos das pessoas. Tudo éproibido. Tudo é pecado. É o quese nota nos seguintes versos:

“Quand‘eu con meu amigo dor-mia,

a noite non durava nulha ren,”“E, segundo, com’a mi parececomigo man meu lum’e meu se-

nhor,ven log’a luz, de que non ei sabor.”

De minha análise da cantiga fi-cam ainda alguns questionamen-tos. Até que ponto as cantigas fo-ram apropriadas pelos trovadoresàs mulheres, sem muitas altera-ções nos seus dizeres? Será que asmulheres, que compuseram ascantigas, não se inseriam na socie-dade, estando à margem da mo-ral vigente? Seriam elas prostitu-tas? Encarnação do mal? Com efei-

Page 29: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 1997 29

A representação da mulher nas cantigas medievais

to, o clamor frente ao desejo car-nal pelo amado é explícito ao lon-go do poema e, até mesmo, coroa-do no próprio refrão: “mais se ma-sesse com meu amigo/a luz agora se-ria migo.”

Finalmente, há que se destacara identificação da amada com a fi-gura de Jesus Cristo na cruz, ex-pressando o sofrimento de ambos.Razão por que ora tantos padre-nossos. Afinal, é no sofrimentoque ela concretiza os seus desejos.

Detenho-me, por fim, no exa-me do significado da cantiga demaldizer. Ela revela o cantar dotrovador apaixonado e, ao mesmotempo, raivoso por ter sido des-denhado pela mulher amada. Osentimento do amado para com amulher amada contém ambigüi-dades, visto que faz chantagem,ameaça, mas a deseja, sente suafalta e almeja encontrá-la. É umjogo de esconde-esconde, ou ape-nas um jogo de vida ou morte?

A cantiga deixa bem claro queo espaço da noite-trevas simboli-za o espaço da falta, da ausência eda tristeza, e o luar-claridade ex-pressa o espaço do amor, do en-cantamento, da idealização do en-contro amoroso. Nesse sentido, arepetição existente nos segundosversos das três estrofes insinua um

não querer por parte do amado,provavelmente por não revelar defato o seu desejo de amor; e, quemsabe, foi a maneira que ele encon-trou para tentar camuflar tantodesejo.

Há de se considerar também,a oposição apresentada no refrão“de noit’ ou luar!”, em que a noiterepresenta um momento de ame-aça, de medo e de dor, enquantoque ao luar tudo parece explícito,tranqüilo, encantador e claro. Seráa noite o momento propício paramatar a amada que o desdenhoue fez sofrer? Assim sendo, a repe-tição significaria um aviso de mor-te e não mais o desejo que se ten-tava ocultar.

Prosseguindo a minha linha deanálise, a pergunta: “quem é estamulher?” se faz necessária. Cabesaber a qual segmento social per-tence a mulher. É ela mulher dosenhor feudal? Ou, simplesmen-te, é mais uma mulher que, de re-pente, encanta os olhares do apai-xonado, fazendo-o declarar publi-camente seus sentimentos? Vejoa mulher cantada pelo trovadorencarnando uma figura de aurasimultaneamente divina e diabó-lica, pois representa o papel demulher difícil, altiva e majestosa,a fim de seduzir e enfeitiçar os ho-

mens. É sabido que a cantiga demaldizer é caracterizada pelo seuaspecto cômico e crítico-social.Dessa forma, na declaração de pai-xão e amor a uma mulher da cor-te, estaria o trovador cumprindoo seu objetivo satírico.

A mulher representada nascantigas medievais em estudo pa-rece encarnar a figura da mãe aosolhos do amado, visto que esteidentifica a mulher à mãe, concor-rendo para tornar mais obsessivosa sua paixão e seus desejos pelaamada.

Creio que o sentimento de dorexperimentado pelo amado dian-te da ausência da mulher seja omesmo vivenciado no momentode seu nascimento. Trata-se desentimento que revela o vazio, aruptura, os cortes e as incompletu-des humanas. Dessa maneira, oamado irá resgatar a mãe na figu-ra da mulher amada, tentandopreencher a falta. Daí tanta fúriade paixão e de seu sofrer de amor.

A figura da mulher represen-tada nas cantigas é altiva, majes-tosa, distante e grandiosa aosolhos do amado. Não só porqueela ocupe essa posição, mas tam-bém por ser a maneira como o ho-mem a vê, plena e inatingível, co-mo a própria figura materna.

Page 30: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 23-30, jun. 199730

Ana Maria Coutinho

Referências bibliográficas1. ANDRÉS, S. O que quer uma mulher? Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

2. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Glossário etimológico. In: AS CANTIGAS de Pero Meogo. Rio de Janei-ro: Tempo Brasileiro, 1981.

3. BONNASSIE, Pierre. Dicionário de história medieval. Lisboa: Dom Quixote, 1985.

4. CARDOSO, Wilton. Da cantiga de seguir no cancioneiro peninsular na idade média. Belo Horizonte: UFMG,1977.

5. CHNAIDERMAN, Miriam. O hiato convexo: literatura e psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1989.

6. CORREIA, Natália. Tradução das cantigas de amigo e maldizer. In: CANTARES dos trovadores galego-portu-gueses. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1978.

7. DUBY, Georges. O modelo cortês. In: HISTÓRIA das mulheres; a idade média. Porto: Afrontamento, 1990.

8. FAGES, J. B. A linguagem, da necessidade à demanda. In: PARA compreender Lacan. Rio de Janeiro: EditoraRio, 1977.

9. FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In: OBRAS completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 9.

10. __________. Escritores criativos e devaneios. In: OBRAS completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 9.

11. __________. O estranho. In: OBRAS completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 17.

12. __________. BREUER, Joseph. In: OBRAS completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 2.

13. KRISTEVA, Júlia. As especulações medievais. In: HISTÓRIA da linguagem. Lisboa: Edições 70,1969.

14. MACEDO, José Rivair de. A mulher na idade média. São Paulo: Contexto. 1990.

15. POMMIER, Gérard. A exceção feminina: os impasses do gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.

16. SAFADY, Naief. Introdução à análise de texto. São Paulo: Francisco Alves, 1965.

17. TAVARES, Hênio. Poética. In: TEORIA literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.

18. VALLEJO, Américo, MAGALHÃES, Lígia. Lacan: operadores e leitura. São Paulo: Perspectiva, 1979. (ColeçãoDebates, 109).

19. VASCONCELLOS, J. Leite. Textos arcaicos. Lisboa: Clássica, 1922.

Page 31: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 31-36, jun. 1997 31

A questão nacional em Porto Rico: a busca da identidade

A QUESTÃO NACIONAL EM PORTORICO: A BUSCA DA IDENTIDADE*

Kátia Gerab BaggioDepartamento de História – FAFICH – UFMG

Mestre e doutoranda em História Social pela USP

RESUMO

Este trabalho pretende analisar abusca da identidade nacional porparte de alguns expoentes da inte-lectualidade de Porto Rico, um paísque ainda hoje não se constituiu en-quanto Estado Nacional. Mostrare-mos, a partir de obras de quatroensaístas deste século – Antônio S.Pedreira, Tomás Blanco, Renê Mar-qués e José Luis González – como oproblema da afirmação da identidadeé central no pensamento porto-rique-nho, a despeito das diferentes inter-pretações que suscita.

Na América Latina, a questão nacio-nal é de vital importância quandopretendemos investigar a trajetória

política, os movimentos sociais, a estrutura eco-nômica e os problemas relativos à identidadecultural dos países que a compõem. A diversi-dade étnica, o processo de formação dos Esta-dos Nacionais, o problema do desenvolvimen-to econômico e vários outros temas essenciais

estão diretamente relacionados com a chamada questão nacional.No Caribe, o domínio externo é a marca registrada da sua história

política e econômica. Como afirma Juan Bosch, o Caribe é a fronteirados vários impérios que durante cinco séculos vêm controlando e explo-rando os países antilhanos (Bosch, 1983). Como reação ao colonialismoe ao imperialismo, movimentos de libertação nacional se organizaramem vários desses países.

* Este trabalho é parte adaptada da introdução e do segundo capítulo (item 2) de minha dissertação de mestrado, intitulada A questãonacional em Porto Rico: o Partido Nacionalista (l922-1954). São Paulo, FFLCH-USP, 1992.

Page 32: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 31-36, jun. 199732

Kátia Gerab Baggio

A ilha caribenha de Porto Ricofoi colônia da Espanha de 1493(descoberta na segunda viagemde Colombo) até 1898, quando aEspanha, derrotada pelos Esta-dos Unidos na guerra de inde-pendência de Cuba, foi obriga-da a ceder aos norte-americanosPorto Rico, as Filipinas e a ilhade Guam, no Pacífico, como in-denização de guerra. Porto Rico,a mais oriental e a menor dasGrandes Antilhas, sempre teveum importante papel estratégi-co, dada sua posição de “portado Caribe”.

Ao longo do domínio norte-americano, Porto Rico foi trans-formado numa peça-chave napolítica militarista e intervencio-nista dos Estados Unidos, devi-do às seguintes razões: a necessi-dade de defender o Canal do Pa-namá e seus acessos marítimos,as intervenções militares na re-gião do Caribe, o controle das ati-vidades navais e das rotas marí-timas no Atlântico Sul, a criaçãode um centro de treinamento ede um campo de provas para ar-mamentos e, finalmente, a con-vocação de porto-riquenhos pa-ra o serviço militar nas Forças Ar-madas dos Estados Unidos.1 EmPorto Rico está localizado o com-plexo naval de Roosevelt Roads,

o maior fora dos Estados Unidos,que ocupa uma área de 36 milacres em Ceiba e na Ilha de Vie-ques (território porto-riquenho)e também compreende instala-ções nas Ilhas Virgens norte-ame-ricanas (Rodríguez Beruff, 1988,p. 184). Não é por acaso que, de1909 a 1934, a orientação da po-lítica colonial era de responsabi-lidade do Departamento de As-suntos Insulares,2 subordinadoao Departamento de Guerra.

Desde 1898, portanto, PortoRico vive sob o domínio dos Es-tados Unidos. Colônia até 1952,ganhou, a partir de então, umnovo status político: o de EstadoLivre Associado (ELA). O novostatus jurídico-político possibili-tou uma maior autonomia na ad-ministração dos problemas lo-cais, mas não rompeu com a con-dição colonial. Porto Rico nãoconseguiu constituir-se em umEstado Nacional soberano.

A questão do status é centralno debate político porto-rique-nho, pois sua definição é essen-cial para a resolução de qualquerprojeto para o país, que devepassar necessariamente por umadas três vias que se apresentamno cenário político: a transfor-mação de Porto Rico em mais umestado (o qüinquagésimo pri-

meiro) da União norte-america-na, a manutenção do Estado Li-vre Associado ou a independên-cia. Pensar no futuro de Porto Ri-co, portanto, é pensar no proble-ma nacional.

A ausência de soberania polí-tica fez de Porto Rico um país embusca de sua identidade. Paraum estrangeiro, salta à vista a de-fesa intensa dos valores culturaisporto-riquenhos e caribenhos e,ao mesmo tempo, a permanên-cia da situação colonial. É possí-vel levantar alguns elementospara explicar a relação de subor-dinação de Porto Rico aos Es-tados Unidos até o presente: porum lado, a manutenção, por par-te do governo norte-americano,de um sistema assistencialistaque se concretiza pela distribui-ção de cheques de alimentospara um milhão e meio de habi-tantes (cerca de 45% da popula-ção), o que dificulta – quandonão impede – o apoio popular àindependência.3 Devemos tam-bém levar em consideração quemais de dois milhões de porto-riquenhos vivem nos EstadosUnidos. Além disso, apesar depossuir o PNB per capita mais bai-xo do que todos os estados nor-te-americanos, é o mais alto naAmérica Latina.4 Por outro lado,

1 Os soldados porto-riquenhos lutaram na Segunda Guerra Mundial, na Coréia, no Vietnã, na invasão da República Dominicana em 1965, narecente guerra no Golfo Pérsico contra o Iraque, etc. Mais de 200 mil porto-riquenhos já fizeram parte das tropas norte-americanas. VerRODRÍGUEZ BERUFF, 1988, p. 145 e 154.

2 Em inglês, Bureau of Insular Affairs.3 Ver: GARCÍA, 1989, p. 29-33. O desemprego atinge cerca de 20% da população trabalhadora, sem contar aqueles que decidiram nem se-quer

procurar emprego, convencidos de que não conseguiriam nada.

Page 33: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 31-36, jun. 1997 33

A questão nacional em Porto Rico: a busca da identidade

a situação extremamente críticados vizinhos caribenhos e cen-tro-americanos – República Do-minicana, Haiti, Cuba (atual-mente vivenciando os proble-mas advindos da derrocada doregime socialista da ex-URSS edos países do leste europeu), etc.– também não estimula qualquerperspectiva otimista em relaçãoao futuro de Porto Rico, caso ve-nha a obter o status de indepen-dência política.

O independentismo foi sem-pre uma força política influente,apesar de não ter alcançado seuobjetivo. Os independentistasmantiveram uma forte presençapara interferir decisivamentenos embates entre as diferentescorrentes ideológicas e para in-tervir nos caminhos percorridospela política porto-riquenha.

A busca daidentidadenacional

Se a questão do status é essen-cial para o debate político, o temada identidade é seu correspon-dente para o debate cultural. Abusca do ser porto-riquenho, dos

caracteres que definem a perso-nalidade nacional, é o eixo cen-tral do debate em torno da iden-tidade, ponto crucial na defesada nacionalidade porto-rique-nha frente ao colonizador.

Nos anos 30, a produção lite-rária e ensaística buscou respos-tas para a crise econômica, osproblemas políticos e a identida-de cultural porto-riquenha. Nes-sa busca do nacional, duas obrasse destacam particularmente naprodução intelectual da ilha: oensaio de Antonio S. Pedreira, in-titulado Insularismo, de 1934, eo livro de Tomás Blanco, Pron-tuario Histórico de Puerto Rico,cuja primeira edição foi publica-da em Madri em 1935.5

Pedreira foi jornalista, ensaís-ta, crítico literário e professor deliteratura. Em 1929, juntamentecom outros jovens escritores, fun-dou a revista Índice, cujo primei-ro número, em editorial, propu-nha as seguintes questões: “Estádefinida nossa personalidade de povo?Existe uma maneira de ser inconfun-dível e genuinamente porto-riquenha?Quais são os signos definidores denosso caráter?”6

Insularismo é a resposta de Pe-dreira a essas questões. O autorafirma que sua intenção foi “reco-

lher os elementos dispersos, latentesno fundo de nossa cultura, e surpre-ender os pontos culminantes de nossapsicologia coletiva”. (Pedreira, 1988,p. 21)

Identifica o momento em quevive como de indecisão e transi-ção. Para Pedreira, 1898 repre-sentou um corte brusco na his-tória do país. Diz ele:

“... quando logramos tomar em nos-sas próprias mãos as rédeas de nos-so destino coletivo, a guerra hispano-americana malogrou a intenção, dei-xando-nos a meio caminho e com oproblemático inconveniente de come-çar a ser outra coisa”. (Pedreira,1988, p. 73-4)

Apesar dessa “outra coisa”que invade a ilha, Pedreira crê naexistência da personalidade por-to-riquenha e vai em sua busca.Enfatiza o que ele chama de ca-ráter “dócil, pacífico, resignado”do borinquenho.7 Diz que as re-beldias são momentâneas e a do-cilidade permanente. E esse ca-ráter “mesclado e equívoco” te-ria origem na mestiçagem, nes-tas “forças desagregadoras e contrá-rias que retardaram a formação de-finitiva do povo porto-riquenho”.(Pedreira, 1988, p. 32 e 36)

A utilização do argumento ra-cial como explicativo do caráter

4 O PNB per capita de Porto Rico é de cerca de seis mil dólares, enquanto que no estado mais pobre dos Estados Unidos, o Mississipi, o PNB percapita atinge o dobro desse valor.

5 Os anos 30 foram pródigos na América Latina em ensaios que buscaram o “caráter nacional”. Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holan-da, por exemplo, é de 1936.

6 Revista Índice, número I, 1929, apud Margot Arce de Vázquez, “Prólogo”. In: Tomás Blanco, Prontuario Histórico de Puerto Rico, 7. ed., RíoPiedras, Huracán, 1981.

7 Borinquén ou Boriquén é o nome que os taínos (índios que habitavam a ilha antes de 1493) davam a Porto Rico. Por isso, os porto-riquenhostambém são chamados de borinquenhos, borincanos ou borícuas.

Page 34: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 31-36, jun. 199734

Kátia Gerab Baggio

nacional foi freqüente na produ-ção intelectual latino-americanada segunda metade do sé-culoXIX e primeiras décadas do XX,assim como as interpretações so-bre o homem como produto domeio. Pedreira diz, nesse senti-do, que o calor e a ameaça cons-tante de terremotos e furacõesentorpeciam as ações e as inicia-tivas.

Mas o que realmente particu-lariza Porto Rico, na visão de Pe-dreira, é a posição insular, deter-minante da sua fraqueza. Algu-mas frases suas explicam o queele entende por insularismo:

“A posição geográfica de Porto Ricodeterminou o rumo de nossa histó-ria e de nosso caráter. O ponto devista da soberania espanhola era ocomércio, e o da norte-americana, aestratégia. (...) Para cúmulo do de-sespero coube a nós a desgraça de cairisolados do mundo e ser entre asGrandes, a menor das Antilhas. Istonos privou da autoridade que dão asgrandes massas (territoriais) às de-mandas do respeito universal. (...)Não somos continentais, nem sequerantilhanos: somos simplesmente in-sulares, que é como dizer insuladosem casa estreita. (...) Esta reduçãogeológica, unida à difícil posição geo-gráfica, ao clima enervador, à nossaconstituição biológica e à perpétuacondição feudatária, opera em nossapsicologia coletiva com um sentidoestreito e deprimente”. (Pedreira,1988, p. 43-4)

Para Pedreira, insularismo éisolamento, pequenez, debilida-de. Mas ele não se considera umpessimista, e sim um realista. Cri-tica o retoricismo, o patriotismoemocional, o ufanismo.

Em relação ao domínio dosEstados Unidos sobre Porto Rico,vê grande incompatibilidadecultural: duas formações, duastradições, duas heranças contrá-rias. Pedreira recebeu uma níti-da influência do uruguaio JoséEnrique Rodó – autor do famo-so ensaio Ariel, publicado origi-nalmente em 1900 –, pois vê nosEstados Unidos o progresso ma-terial, a riqueza em contraposi-ção com a mediocridade cultu-ral. Preocupa-se com a defesa dacultura de tradição hispânica eacredita na educação, mas umaeducação voltada para a consci-entização em relação ao statuspolítico da ilha.

Tomás Blanco, por sua vez, es-creveu o Prontuario Históricode Puerto Rico estimulado pelaleitura de Insularismo, segundoele próprio reconheceu.

A análise de Blanco volta-separa as questões socioeconômi-cas: manifesta-se contra o mono-pólio do comércio porto-rique-nho pela metrópole, a concen-tração das terras pelas compa-nhias norte-americanas, a ame-ricanização dos porto-rique-nhos, enfim, declara-se anti-im-perialista. Sua posição sobre es-ses problemas aproxima-se à dePedro Albizu Campos – líder doPartido Nacionalista de Porto Ri-co, fundado em 1922 e com umaimportante atuação política a fa-vor da independência, principal-mente nos anos 30. Blanco afir-

ma ainda que os porto-rique-nhos têm problemas próprios erecursos modestos, “mas suficien-tes, se administrados em proveito desua população”. A desorganizaçãoadvém dos “males econômicos emorais inerentes ao colonialismo”.(Blanco, 1981, p. 109)

O determinismo racial e geo-gráfico não aparece na obra deBlanco. Manifesta-se contrárioaos preconceitos raciais e acredi-ta que o clima tropical possa ser“domesticado” pelos recursostécnicos, a favor do povo isle-nho. Acredita que, com recursospróprios, adaptados à realidadeporto-riquenha, seria possível odesenvolvimento. Reclama a ne-cessidade de independência ad-ministrativa plena e liberdadeeconômica. Conclui dizendo quea única alternativa era “pôr emmarcha um programa próprio de re-construção nacional”. (Blanco,1981, p. 109-113)

As idéias de Pedreira sobre adocilidade do porto-riquenhoinspiraram um ensaio bastantepolêmico do escritor e dramatur-go René Marqués: El puertorri-queño dócil, do início dos anos60. (Marqués, 1963)

Nesse trabalho, Marqués fazuma interpretação psicológicado “caráter porto-riquenho”,marcado, segundo ele, pela “do-cilidade”. Através de uma análi-se da vida política, das relaçõescom os Estados Unidos e da pro-dução cultural do país, Marqués

Page 35: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 31-36, jun. 1997 35

A questão nacional em Porto Rico: a busca da identidade

procura confirmar sua hipótese.Segundo o autor, há no porto-ri-quenho uma tendência de repri-mir o impulso agressor aos ou-tros e dirigi-lo contra si mesmo.Neste sentido, o Estado LivreAssociado representaria a sínte-se da psicologia porto-riquenha,marcada pela “docilidade”, en-tendida como submissão. (Mar-qués, 1963, p. 70)

Em ensaio intitulado El paísde cuatro pisos, de 1979, o escri-tor José Luis González discute aformação da cultura porto-rique-nha. O autor critica a idéia deuma sociedade porto-riquenhahomogênea durante o períodode domínio espanhol:

“... em Porto Rico, durante mais demeio século, nos ‘venderam’ o mitode uma homogeneidade social, raci-al e cultural que já é tempo de come-çar a desmontar, não para ‘dividir’ opaís, como pensam com temor al-guns, mas para entendê-lo correta-mente em sua objetiva e real diver-sidade (...). O que Porto Rico era, em1898, só podemos definir, mitologi-as à parte, como uma nação em for-mação...”. (González, 1987, p. 25-6)

A cultura porto-riquenha, se-gundo González, foi adquirindonovos elementos formativos aolongo do tempo. São os quatropisos a que ele se refere. Em pri-meiro lugar, durante os três sé-culos iniciais da colonização es-

panhola, destaca a contribuiçãodo elemento africano e o “ingre-diente espanhol”, constituídoprincipalmente por lavradorespobres (vindos, na sua maioria,das ilhas Canárias).8 Para o au-tor, “Se a sociedade porto-riquenhativesse evoluído daí em diante da mes-ma maneira que as outras ilhas do Ca-ribe, a atual ‘cultura nacional’ seriaessa cultura popular e mestiça, pri-mordialmente afro-antilhana”. (Gon-zález, 1987, p. 22)

Entretanto, outros elementosse juntaram a essa cultura. No sé-culo XIX, Porto Rico foi ponto dechegada de imigrantes: o segundopiso da cultura porto-riquenha.No início do século, vieram hispa-no-americanos refugiados dospaíses em luta pela independên-cia na América Latina; mais tarde,chegaram imigrantes europeus –corsos, maiorquinos, catalães, ita-lianos e outros.

O terceiro piso da cultura por-to-riquenha foi se constituindo apartir da invasão norte-america-na, em 1898. González diz que apenetração cultural norte-ameri-cana em Porto Rico é um fato, masnão aceita a idéia de uma “norte-americanização” da cultura porto-riquenha. Considera que, com odomínio norte-americano, “... o va-zio criado pelo desmantelamento dacultura dos porto-riquenhos ‘de cima’

não foi ocupado (...) pela cultura nor-te-americana, mas pela ascensão cadavez mais evidente da cultura dos por-to-riquenhos ‘de baixo’”. (González,1987, p. 30)9

González valoriza a raiz africa-na como a fonte mais importanteda cultura porto-riquenha. E essacultura afro-antilhana, segundoele, não foi destruída pela domi-nação norte-americana mas, aocontrário, fortaleceu-se.

O quarto piso na formação cul-tural de Porto Rico é localizado apartir dos anos 40, com a ascen-são do Partido Popular Democrá-tico e de seu principal líder, LuisMuñoz Marín (primeiro governa-dor porto-riquenho eleito, em1948), a posterior inauguração doEstado Livre Associado e com oque o autor chama de a “moder-nização na dependência”. Gonzá-lez considera, finalmente, que ocolonialismo é inviável a longoprazo e aposta na independênciacomo solução para o problema dostatus político.

¬"¬"¬

O Insularismo de Antonio S.Pedreira e o Prontuario Históri-co de Puerto Rico de Tomás Blan-co, marcos na ensaística porto-riquenha, apontam e analisamproblemas vitais de Porto Rico

8 Os indígenas foram dizimados nas primeiras décadas da colonização espanhola. Ainda que González reconheça a presença de elementos in-dígenas na formação da cultura porto-riquenha, esta presença não tem, para ele, a mesma importância que a raiz afro-antilhana desta cul-tura.

9 Os grifos são de González.

Page 36: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 31-36, jun. 199736

Kátia Gerab Baggio

nos anos 30, que aliás não foramresolvidos até o presente: iden-tidade, anti-colonialismo, anti-imperialismo, desenvolvimentoautônomo.

As interpretações de cunhopsicológico – que vêem no cará-ter “dócil” do porto-riquenho arazão para a permanência da co-lônia – não são predominantes.Entretanto, o fato de que este ti-po de explicação tenha sido re-cuperado por René Marqués trêsdécadas depois, mostra, por umlado, a força da análise de Pedrei-ra e, por outro, a necessidade detentar explicar por todos os cami-nhos possíveis – ainda que bas-tante discutíveis – a manutençãoda condição colonial de Porto Rico.

González, por sua vez, pro-cura mostrar, através da imagem

dos quatro pisos constitutivos dasociedade e da cultura porto-ri-quenhas, a complexidade do pro-cesso histórico do país. Valorizaa cultura popular e mestiça e ne-ga a existência de uma sociedadee de uma cultura homogêneas.

A realidade porto-riquenhapossui elementos particulares den-tro do contexto latino-americano:um país duplamente colonizado,em diferentes momentos, por paí-ses com culturas diversas. PortoRico é marcado por uma profun-da contradição: a manutenção deuma cultura mestiça, com fortesraízes hispânicas e africanas, aolado da subordinação econômicae política aos Estados Unidos. Co-mo permanecer sendo porto-ri-quenho, sem alcançar a soberaniapolítica?

A busca dessa resposta estáno debate político porto-rique-nho e em toda a produção inte-lectual. O impressionante do ca-so de Porto Rico é a manutençãoe a valorização das tradições cul-turais do país: os porto-rique-nhos não são norte-americanose nunca se sentirão norte-ame-ricanos, independentemente dostatus político. Apesar da certe-za de possuírem uma cultura euma expressão próprias, os por-to-riquenhos sentem uma con-tínua necessidade de reafirmaressa cultura, a fim de impor suanacionalidade. Conseqüente-mente, o nacionalismo é um te-ma sempre presente no cotidia-no do porto-riquenho.

Referências bibliográficas1. BLANCO, Tomás. Prontuário histórico de Puerto Rico. 7. ed. Rio Piedras: Huracán, 1981.

2. BOSCHI, Juan. De Cristóbal Colón a Fidel Castro; el Caribe, fontera imperial. La Habana: Ediciones de CienciasSociales, 1983.

3. GARCIA, Gervásio Luis. Armar la historia. Rio Piedras: Huracán, 1989.

4. GERAB, Kátia. A questão nacional em Porto Rico: o Partido nacionalista (1922-1954). São Paulo: FFLCH/USP,1992. (Dissertação, Mestrado)

5. GONZÁLEZ, José Luis. El país de cuatro pisos y otros ensayos. 6. ed. Rio Piedras: Huracán, 1987.

6. MARQUÉS, René. El puertorriqueno dócil. Revista de Ciencias Sociales, Puerto Rico, v. 7, n. 1/2, p. 35-78, mar./jun. 1963.

7. PEDREIRA, Antonio S. Insularismo. Rio Piedras: Edil, 1988.

8. RODÓ, José Enrique. Ariel. Campinas: Editora UNICAMP, 1991.

9. RODRIGUEZ BERUFF, Jorge. Política militar y dominación: Puerto Rico en el contexto latinoamericano. RioPiedras: Huracán, 1988.

Page 37: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 1997 37

O avesso da ordem: primeiros apontamentos de leitura de fontes criminais

O AVESSO DA ORDEM: PRIMEIROSAPONTAMENTOS DE LEITURA

DE FONTES CRIMINAIS

Maria Tereza Pereira CardosoDepartamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas – FUNREI

Mestre em Sociologia pela UFMG

RESUMO

Este artigo procura apresentaruma primeira leitura das fontes cri-minais pertencentes ao Arquivo doMuseu Regional de São João del-Rei, anotando a relação entre cri-me e cotidiano, observando padrõesde criminalidade e ressaltando aspossibilidades de pesquisa.

Introdução

O s historiadores que pesquisam otema da criminalidade têm enfa-tizado a relação entre crime e vida

cotidiana, indicando a possibilidade de, atra-vés da análise de inquéritos policiais e proces-

sos criminais, perceberem-se as representações, valores e comportamen-tos dos contraventores da norma penal. Ao traduzir tensões e conflitossociais, o comportamento delitivo e os procedimentos que buscam cri-minalizá-lo indicariam contradições entre concepções distintas de cri-me, ordem, honra, liberdade e justiça, reveladas, nos processos crimi-nais, através das diversas falas dos personagens envolvidos.

Além da possibilidade de recuperar as experiências históricas dedeterminados grupos sociais, a análise das fontes que retratam proce-dimentos policiais e processuais permitiria a compreensão do processode construção e imposição de uma ordem policial e jurídica em determi-

Page 38: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 199738

Maria Tereza Pereira Cardoso

1 Ver Quadro 1.2 A respeito, veja o trabalho clássico de Franco (1983).

nados períodos da história e emdeterminadas conjunturas regi-onais. Vários autores trabalhamnessa perspectiva, ainda quecom objetivos distintos.

Fausto (1984), ao se propor aanalisar os padrões de crimina-lidade em São Paulo entre 1880e 1924, observa que dados frag-mentários, recolhidos através doexame das fontes documentais,dificilmente nos permitem vi-sualizar a criminalidade em umdeterminado período. As infor-mações coligidas, principalmen-te as estatísticas criminais, são,muitas vezes, mascaradas porpráticas repressivas que revelamatitudes de discriminação social.Por outro lado, há uma sub-re-presentação de diversos crimes,como os crimes contra a mulher,ou crimes cometidos por escra-vos até a primeira metade do sé-culo XIX, como relata Machado(1987).

A partir dessas referências,consideramos que as fontes cri-minais cuja leitura é objeto des-te artigo, embora não traduzama criminalidade no Termo da Vilade São João del-Rei e arredores,são boas para pensar, como diriaLévi-Strauss, já que revelam, aomenos em parte, os conflitos etensões sociais que marcaram aprovíncia mineira oitocentista.

Crime ecriminalidade

Uma primeira análise do qua-dro geral da composição dosprocessos-crime pertencentes aofundo do Cartório do Crime doAcervo do Museu Regional deSão João del-Rei, entre 1770-1900,1 indica aspectos semelhan-tes aos tratados pela literaturasobre o tema. Em primeiro lugar,o número de processos perten-centes a esse fundo não traduz,de modo nenhum, a criminali-dade do período. Trata-se de1.122 documentos correspon-dentes a 130 anos, referentes àstransgressões que se transforma-ram em processos criminais. Ointeresse por analisar a crimina-lidade de forma mais abrangen-te nos remeteria a fontes comple-mentares, como inquéritos e re-latórios de prisões efetuados porórgãos policiais.

Entretanto, ao observarmos oQuadro 1, podemos perceber al-gumas tendências acerca da mai-or ou menor incidência nastransgressões da norma social ede sua criminalização. Assim, ésignificativo o fato de que, emum período de transição nas re-lações de produção em que astensões sociais gradativamente

se explicitam, haja uma preva-lência de crimes contra a pessoa.

Segundo Fausto (1984), as so-ciedades tradicionais se caracte-rizam por uma maior incidênciade crimes contra a pessoa, prin-cipalmente os “crimes de san-gue”, ao contrário das socieda-des modernas, nas quais os “cri-mes contra a propriedade” sãoem maior número. A respeito,podemos arriscar algumas inter-pretações.

Há que se considerar que si-tuações de extrema carência po-dem produzir relações que osci-lam entre solidariedade e violên-cia.2 Classificados nos termos doQuadro 1 como “homicídio etentativa de homicídio” e “agres-sões físicas”, esses processos cor-respondem a 86,75% do conjun-to dos documentos referentesaos “crimes contra a pessoa”,perfazendo 51,16% do total dosprocessos arrolados. Em uma or-dem social marcada pela violên-cia, é compreensível a grandeincidência de crimes desse tipo.Muitos desses processos relatamo rompimento de relações de so-lidariedade entre aqueles que,vivendo nas fímbrias do sistema,disputam entre si bens materiais,relações afetivas estruturantes ebens simbólicos, derivando mui-tas vezes em situações de extre-

Page 39: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 1997 39

O avesso da ordem: primeiros apontamentos de leitura de fontes criminais

ma agressão. Este parece ter sidoo caso dos escravos José Reboloe Miguel Benguela.3 Em 1831,em uma fazenda localizada naparóquia de Bom Sucesso, Ter-mo da Vila de São João del-Rei,as desavenças entre os dois, porcausa da mulher de Miguel, queandava namorando José, termi-naram em morte. Ainda no mes-mo ano e nos subúrbios daquelaVila, a escrava Ana, crioula, agri-de a Dâmaso Moreira Ribeiro,mestiço, forro, acusando-o dehaver maltratado um porco quelhe pertencia. Segundo depoi-mentos das testemunhas, o ofen-dido teria afirmado que se sou-besse que o animal pertencia àescrava o teria matado.4

Como indicam Machado (1987)e Algranti (1988), a busca de ma-nutenção de margens de auto-nomia dentro do sistema escra-vista pode levar a conflitos quederivam, muitas vezes, em vio-lência física e na disseminação depequenos delitos,5 através dosquais os escravos asseguravam aposse de objetos necessários àsua sobrevivência.6 Esses delitosrevelam significados e intençõesque oscilam entre a preservação

de um mundo particular, comcódigos próprios, e a resistênciaexplícita à ordem escravista.Apoiando-se numa noção ampli-ada de resistência, as autoras sesituam ao lado de outras contri-buições, como as de Chalhoub(1990) e Lara (1988), que anali-sam a intrincada rede de confli-tos e tensões que perpassam osdramas individuais e coletivosdos escravos transgressores esuas relações com outros univer-sos sociais.

Uma primeira análise dosprocessos-crime referentes a es-cravos indica uma grande inci-dência de crimes cometidos con-tra homens livres pobres, um nú-mero importante de crimes co-metidos contra iguais e um me-nor número de crimes contra se-nhores e feitores. É interessanteobservar, ainda considerando osQuadros 1 e 2, uma maior inci-dência de “agressões físicas”, ouseja, de atos violentos que nãochegaram às últimas conseqüên-cias. Talvez uma explicação paraesse fato possa ser encontrada nogrande número de processoscontra “semelhantes”, como re-sultado das desavenças e confli-

tos do cotidiano. Entre estes, in-cluímos escravos, forros e ho-mens livres pobres de diversasprofissões. Os documentos rela-tam os dramas anônimos de la-vradores, carreiros, vendedoresde lenha, oficiais de carpinteiro,pintores, chapeleiros, pedreiros,marceneiros, roceiros, tropeiros,pequenos comerciantes e aque-les classificados como vadios.Ocupando os lugares de ofendi-dos ou de réus, eles caem na redede controle e suspeição, que ul-trapassa os limites do sistema ju-diciário, ao provocar desordens,infringir posturas municipais,cometer pequenos furtos e ser-virem de intermediários na ven-da de produtos roubados por es-cravos. Furtando ferramentas,animais, dinheiro em menorquantidade, agredindo mulhe-res e respondendo a queixas porvadiagem, por agressões contraanimais ou por litígio de terras,eles são objeto de agressões físi-cas e verbais, calúnias, ameaçase, muitas vezes, morte.

O padrão de criminalidadeencontrado nos processos-crimese repete nos dados recolhidosnos livros do Rol dos Culpados.7

3 Observação: As fontes citadas neste artigo pertencem ao acervo do Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei e foram catalogadas eindexadas por um grupo de trabalho coordenado pelos professores Lucy Gonçalves Fontes, Maria Tereza Pereira Cardoso e Ivan de AndradeVellasco, através de projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG. Processo Crime. Caixa03, documento n. 23.

4 Processo Crime. Caixa 03, documento n. 18.5 Não pretendemos analisar aqui as diferentes qualificações criminais, embora saibamos que os códigos brasileiros, desde o Império, distin-

guem roubo e furto e qualificam tais delitos com agravantes quando acompanhados de violência.6 Machado (1987) faz uma classificação do produto dos furtos e roubos cometidos pelos cativos, considerando-os em duas categorias: aqueles

oriundos de desvio da produção e os relativos à apropriação de objetos e dinheiro. Entre estes incluem-se os que denomina de “furtos inte-grativos”, que se referem a objetos cujo valor simbólico ultrapassa o objetivo econômico e cuja posse traduz aspirações de proximidade como universo dos senhores.

Page 40: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 199740

Maria Tereza Pereira Cardoso

Dos 144 crimes, cujos réus escra-vos foram pronunciados entre1770 e 1861, 39,5% foram come-tidos contra escravos, 13,8% con-tra senhores ou seus prepostos,incluindo autoridades, e o res-tante, 53,4% dos crimes foramcometidos contra homens po-bres. Esse conjunto de documen-tos refere-se, indistintamente, àzona rural e urbana, cujas dife-renciações relativas aos graus deautonomia escrava e seu univer-so de relações sociais já forambastante analisadas.8

A literatura sobre criminalida-de escrava indica que, ao longodo século XIX, manifesta-se umatendência crescente à intromis-são do Estado na regulamenta-ção das relações entre senhorese escravos. À medida que as ten-sões tendem a se agravar, prin-cipalmente a partir de 1850, como fim do tráfico e o conseqüenteencarecimento do preço do es-cravo, a fragilidade do sistematorna-se cada vez mais evidentee relações antes pertencentes àesfera privada tendem, progres-sivamente, a ser mediadas peloEstado. A legislação e, particular-mente, os códigos criminais ates-tam essa ingerência.9 Assim, ape-sar das ponderações a respeitoda sub-representação de crimes

contra a mulher e contra os es-cravos feitas no início deste tex-to, e considerando apenas comolinha tendencial, podemos rela-cionar o crescimento do núme-ro de processos a partir de 1850com a maior presença do Estadonas relações entre senhores e es-cravos e na definição dos parâ-metros da ordem, que, a partirdo século XIX, afetam, sobrema-neira, a escravos e homens po-bres. Assim, em muitos casos, orompimento da norma social sig-nificava o rompimento da normapenal.

Ao considerar o quadro geralda composição dos processos-crime (1770-1900), em anexo, po-demos observar uma clara infle-xão a partir de 1850. Entre os cri-mes pertencentes à primeira ca-tegoria evidenciam-se os núme-ros referentes a “homicídio e ten-tativa de homicídio” e a “agres-sões físicas”. No primeiro caso,o número de processos passoude 13 para 31 entre 1850-1869 e,no segundo caso, os númerossaltaram de 29 para 63 no mes-mo período. A tendência se acen-tua a partir de 1880, chegando a103 processos no período entre1890-1900.

Com relação à segunda cate-goria, “crimes contra a proprie-

dade”, é relevante o fato de queno período entre 1860-1869 haja08 processos por “contrabando,furto e açoitamento em escra-vos”, quando no período ante-rior houve apenas 01. Da mes-ma forma, os processos por “da-nos à propriedade” passam de04, no período entre 1850-1859,para 11 no período seguinte.Ainda no mesmo período, osprocessos por “furto e roubo”passam de 07 para 24 e, apesarda significativa diminuição nosanos posteriores, saltam para 43no final do século.

A mesma tendência pode serobservada na categoria “crimescontra a ordem pública”, princi-palmente nos processos de “cri-mes de responsabilidade”. Háuma tendência crescente à repre-sentação desse tipo de delitoapós 1839. No período entre 1839e 1859, os processos passam de01 para 26. Diferenciando-sesubstantivamente dos delitos atéentão analisados, os contraven-tores da norma, nesses casos,pertencem ao seleto grupo dosque são responsáveis por sua ela-boração e implementação. Den-tre eles encontramos tabeliães,escrivães do júri, carcereiros, te-soureiros de confrarias, padres,juízes de paz, professores públi-

7 O Rol dos Culpados é uma documentação que nos informa sobre os réus pronunciados, contendo sua situação penal e uma síntese doprocesso criminal.

8 Sobre a escravidão urbana ver Algranti (1988) e Chalhoub (1990).9 A respeito, Malheiro (1976) é trabalho de consulta obrigatória.

Page 41: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 1997 41

O avesso da ordem: primeiros apontamentos de leitura de fontes criminais

cos, coletores provinciais, entreoutros. Todos denunciados porlesar, de uma forma ou de outra,o patrimônio público. Entretan-to, é interessante observar quealguns processos oriundos deconflitos políticos do período fo-ram criminalizados como “cri-mes de responsabilidade”.

Em 1842, os vereadores daCâmara Municipal de São Joãodel-Rei são processados e desti-tuídos de seus cargos por envia-rem uma petição ao Imperadorexpondo-lhe suas opiniões acer-ca dos males públicos, das cala-midades sociais e pedindo-lhesoluções. O processo traz indica-ções a respeito de perseguiçõespolíticas e relaciona-se à Revo-lução Liberal ocorrida na época,tema a que nos referiremos nes-te artigo.10

Situando-os em outro extre-mo, analisaremos a seguir algunsprocessos alusivos a crimes co-metidos por escravos contra seussenhores e feitores, bem comooutros em que, ao contrário, ossenhores ocuparam o lugar dosréus. Estes processos relatamacusações distintas, correspon-dendo a uma gama muito diver-sificada de situações que oscilamentre formas de resistência e aco-

modação à ordem escravista. Al-gumas dessas ações, tal como su-gere Chalhoub (1990) ao anali-sar processos semelhantes, pare-cem se pautar em parâmetros in-dicadores de uma “negociação”que, embora não explicitada, ser-ve como referência nas relaçõesentre senhores e escravos. Orompimento desse “acordo im-plícito” se traduziria na imposi-ção de maus tratos excessivos aosescravos,11 na desconsideraçãode acordos realizados e nas rup-turas da ordem estabelecida,através de insurreições.

Em 1833, os escravos da Fa-zenda Campo Alegre e BelaCruz se rebelaram.12 O docu-mento relata, através do auto docorpo de delitos e do libelo acu-satório, o assassinato dos mem-bros da família Junqueiras que seencontravam no local. Trinta eum (31) escravos foram citadosno processo. Através do depoi-mento de um dos réus, posteri-ormente contestado pelo pró-prio curador do escravo, ficamossabendo que pesavam gravesacusações de maus tratos contrao proprietário das fazendas.

O documento traz indicaçõesacerca de supostas relações en-tre essa insurreição e a Sedição

de Ouro Preto, ocorrida no mes-mo ano.13 Um dos acusados noprocesso, Francisco Silvério Tei-xeira, homem branco, fazendei-ro, teria prometido alforriar osescravos caso estes se dispuses-sem a segui-lo.

Ao deixar entrever acepçõesdistintas de liberdade e justiça,o documento parece indicar queas fazendas Campo Belo e BelaVista serviram de cenário para oexercício de uma conjunçãocomplexa de interesses, algunsdestes reatualizados com respei-to a uma tentativa anterior de in-surreição em 1831. As falas dosréus e das testemunhas, baliza-das pelos cânones formais doprocesso, chegam-nos entrecor-tadas “como mensagens cifradasem uma garrafa” e é a densida-de de seus significados que cabeao historiador revelar.14

Entre brancos e escravos, osprimeiros se salvaram e, comina-das as penas, 17 cativos foramcondenados ao enforcamento,04 a açoites e ferros, e 10 foramabsolvidos.

Dentre os documentos anali-sados, apenas um refere-se à in-surreição. Além do possível ex-travio de documentos e da per-da de informações, devida ao

10 A respeito, veja Iglésias (1977, p. 1-16).11 Ver os trabalhos de Lara (1988) e Chalhoub (1990).12 Processo Crime. Caixa 04, documento n. 1, fl. 08.13 A respeito, ver o trabalho de Iglésias (1985, p. 401-2).14 Tomamos como referência o conceito de “descrição densa” proposto por Geertz (1978, p. 29) para a análise do material etnográfico e

apropriado por Burke (1992, p.341) para a análise histórica.

Page 42: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 199742

Maria Tereza Pereira Cardoso

inadequado acondicionamentodos papéis ao longo dos anosainda no Cartório do Crime, tal-vez se possa estabelecer uma cor-relação entre a inexistência deprocessos referentes a insurrei-ções e o tamanho dos plantéis naregião.15

Libby (1987), ao analisar ospadrões mineiros de distribuiçãoda propriedade de escravos noséculo XIX, observa uma varia-ção entre 03 e 05 cativos para28% dos proprietários, enquan-to em seis das nove regiões daProvíncia a maioria dos senho-res possuia apenas 01 cativo. Adisseminação da posse de escra-vos em Minas levou vários au-tores a se referirem a uma “de-mocratização” da escravidão naProvíncia. O próprio Libby uti-liza essa noção, embora flexi-bilizando-a.16

Seguramente responsávelpor uma postura conservadoradas elites mineiras e pelo poucovigor das manifestações abolicio-nistas, cujos inúmeros indíciosainda estão por ser estudados,17

a diluição da posse de escravos

talvez tenha também sido res-ponsável pela diluição das ma-nifestações de contestação cole-tivas à ordem escravista, no pe-ríodo. Um dos indicadores des-se fato poderia ser visto atravésda análise dos crimes coletivoslançados nos livros de Rol dosCulpados. Infelizmente, dispo-mos de poucas informações arespeito.

Classificados como crimes de“assuada”,18 esses atos coletivosreferem-se a “motins”, “roubo eresistência”, “fuga de presos dacadeia pública”, “levante e mor-te” e, tal como indica a definiçãojurídica, parecem aterem-se aouniverso urbano. É bem verda-de que os traços distintivos en-tre o rural e o urbano neste perí-odo ainda são muito confusos.Entretanto, há pistas de uma“assuada” ocorrida no início doséculo no sítio denominado Bar-roca, classificada nos documen-tos como “revolta, sedição e amo-tinamento”, com 08 participan-tes. Evidentemente, a verificaçãodessas pistas e a pertinência ounão dessa hipótese só poderiam

ser corroboradas através de umnúmero maior de documentos.As informações coletadas atravésdos livros de Rol dos Culpadosdeverão ser, posteriormente, co-tejadas com os processos-crimee, assim, talvez possamos nosaproximar mais desse universo.

Como indica a literatura so-bre criminalidade e escravidão,a oposição à ordem escravistaevidencia-se de formas diversas.Da insurreição às tentativas deimposição de limites aos exces-sos cometidos pelos senhores,passando pela ampla gama depequenos delitos, os processos,além de possibilitar a compreen-são dos parâmetros negociados,revelam um universo de práti-cas sociais e, de certa forma, tra-zem sinais da maior ou menormobilidade dos cativos nesseuniverso.

Em 1835, uma escrava fogecom suas três filhas da fazendade seu senhor e move contra esteuma Ação de Sevícias.19 Neste in-tervalo, abriga-se na fazenda dotio do próprio senhor. Negando-se a voltar para a fazenda de ori-

15 Machado (1987, p. 25), a partir des análises de Linbaugh, considera certos delitos como indicadores da dinâmica das relações sociais deprodução e sugere uma abordagem da criminalidade mediada pela produção material.

16 A respeito, o autor faz a seguinte observação: (...) a enorme massa de unidades familiares que não participava da posse da mais básica forma depropriedade do regime escravista – o escravo – relativiza de vez qualquer noção sobre um escravismo democrático que pode sugerir, e não sem razão, quan-do se examina apenas a parcela proprietária de cativos. É mister ter em conta que a posse de escravos, pequena ou grande, foi na primeira metade do séculoXIX, um privilégio de aproximadamente um terço da população livre (Libby, 1987, p. 97-98).

17 Ver as sugestões feitas por Libby (1988).18 No Vocabulário Jurídico de Silva (1993, p. 219) o verbete “assuada”, explicado a partir de referências às Ordenações, é definido como: (...) o

ajuntamento de dez ou mais pessoas estranhas que, em tumulto, saem a fazer mal a alguém (Liv. 5.°, tít. 45.°). A assuada, sem dúvida, não se caracterizasomente pela intenção de fazer mal a alguém. Tanto basta que o grupo de pessoas tente perturbar a ordem ou o sossego público, pelo vozerio desordenado,promovendo distúrbios e provocando alardes.

19 Processo crime. Caixa 04, documento n. 16.

Page 43: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 1997 43

O avesso da ordem: primeiros apontamentos de leitura de fontes criminais

gem, a escrava consegue seu in-tento com a venda de sua famí-lia a outro interessado.20 Aindanesta mesma linha de procedi-mentos, alguns anos mais tarde,em 1838, Anna, crioula, requer aconvocação de testemunhas quecomprovem que seu senhor,morto “ab intestato”, havia feitoa promessa de alforriar sua famí-lia.21 Assim, buscando evitar oleilão em praça pública, a escra-va recorria àqueles que pudes-sem comprovar as promessas eacordos anteriores, em um mo-mento de redefinição de suavida, após a morte do senhor.Entretanto, muitas vezes, comoocorreu neste caso, a ausência deconsenso entre as testemunhasfrustrou completamente as ex-pectativas. Embora o documen-to não traga o desfecho final doprocesso, transparecem as ten-sões vividas pelos escravos emmomentos de transição e redefi-nição de suas relações.22 Entre osdocumentos arrolados constaminúmeros processos como este.Através deles, ouve-se a históriade personagens que, paradoxal-mente, eram considerados como“coisas” pelo sistema, mas que,

efetivamente, embora como réusmediados por seus curadores,exerciam o seu direito como pes-soas nos tribunais.23

Opondo-se aos maus tratos,interpondo ações de liberdade,denunciando seus senhores pe-los excessos cometidos ou agre-dindo-os para pôr fim a situa-ções consideradas injustas, os es-cravos, muitas vezes, sofriam asreversões do processo e, devidoa artimanhas legais, passavamde denunciantes a réus. Foi esteo caso de Eduardo africano,24 es-cravo doméstico, 50 anos presu-míveis, que ao fugir de Lavras doFunil para a Vila de São João del-Rei, buscando socorrer-se com asautoridades locais e denuncian-do seu senhor por sevícias, aca-bou respondendo a acusaçõespor fuga, apesar de o Juiz teraceito o Auto de Corpo de Deli-to comprobatório dos maus tra-tos que lhe foram inflingidos.

Em processos dessa naturezaobservam-se, com freqüência, asconcepções vigentes e de certaforma aceitas pelos escravosacerca do “castigo justo”.25 Umprocesso de 1878 é paradigmá-tico a respeito,26 contendo fartos

debates acerca dos direitos e daconveniência de os senhoresexercerem sua autoridade sobreos escravos. Com amparo legal,o advogado descriminaliza asagressões físicas cometidas con-tra o escravo ao afirmar que:

O artigo 14, parágrafo 6.° do Códi-go Criminal diz que não comete (m)crime os pais que moderadamentecastigam os seus filhos, os senhoresa seus escravos e os mestres a seusdiscípulos, uma vez que a qualidadedeles, não seja contrária às leis emvigor (p. 13-14).

Conclusão: apolifonia dasfontes criminais

Através de uma leitura aten-ta dos processos, a opacidade dasfontes criminais vai cedendo lu-gar à lenta reconstrução do jogoprocessual. Por detrás da frag-mentação das informações, pas-sa-se à uniformidade e regulari-dade das condutas, permeadaspela diversidade e singularida-de dos autos, através dos quaisemergem os dramas individuaise coletivos dos transgressores danorma legal.

20 Segundo Malheiro (1978), a comprovação de sevícias poderia originar a exigência de venda do escravo.21 Processo crime. Caixa 04, documento n. 25.22 Chalhoub (1990, p. 111) observa que o período de incertezas geradas pelo falecimento do senhor se assemelhava, para os escravos, à ex-

periência das transações de compra e venda.23 Segundo Pinaud (1987, p. 48): A ordem jurídica brasileira, entendida como o sistema de leis e aplicação executivo-judicial , se orientou no sentido de

contornar, artificialmente, o impasse escravo-coisa-pessoa, ao reconhecê-lo como objeto de contrato mas puni-lo pessoalmente.24 Traslado de Auto de Corpo de Delito. Caixa 24, documento n. 01.25 Ver Lara (1988, p. 17-96).26 Processo Crime e Inquérito Policial. Caixa 42, documento n. 02.

Page 44: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 199744

Maria Tereza Pereira Cardoso

Documento elaborado paraverificiar a “verdade dos fatos”,o processo, que se corporificaatravés dos procedimentos e oentrelaçamento de interpreta-ções distintas, parece afastar-segradativamente desta e tornar-se uma construção, uma obra deficção, como afirma Fausto (1984).Até nós chegam “piscadelas depiscadelas”,27 uma rede de signi-ficados distintos construída porréus, testemunhas, escrivães, ad-vogados e juízes, que ao historia-dor importa desvendar. É esta re-de de signos e símbolos que o in-teressado no tema da criminali-dade deverá percorrer, procu-rando recuperar o sentido das fa-las entrecortadas, comedidas econstrangidas pelos procedi-mentos legais, através das quaishomens pobres, escravos e liber-tos buscam contar sua história.Ao fazê-lo, revelam distintas acep-ções de crime, honra, liberdadee justiça. E, talvez, através da ar-ticulação entre esses vários dis-cursos, possa-se acompanhar a

construção dessas categorias e osignificado que os transgressoresda norma penal lhes imprimem,em ressonância ou em contrapo-sição àquelas vigentes.

Tal empreendimento supõe asuperação dos obstáculos inter-postos pelas fontes criminais esua complementação com fontesde outra natureza, como docu-mentos jurídicos, relatórios degoverno e periódicos a serem es-tudados. Esse percurso poderiaentão revelar que o processo decriminalização é resultado deuma conjunção de fatores queultrapassam o limiar da ordemjurídica.

Resta-nos observar que temascomo criminalidade e criminali-zação, ao situarem-se na interse-ção de diversos planos (econô-mico, social, jurídico e simbóli-co), além de encerrarem, de for-ma singular, possibilidades deanálise multidimensional, reve-lam aspectos sociais estruturan-tes, aproximando-se talvez, ana-logicamente, daquilo que Mauss

(1974) denominou como “fatosocial total”.28 Esta analogia seevidencia, particularmente, noséculo XIX, quando a estrutura-ção da ordem e a institucionali-zação dos procedimentos polici-ais e processuais estão em cons-trução.

Os processos criminais desseperíodo são resultado da imbri-cação entre os diversos campos(econômicos, políticos, sociais ejurídicos), entre as esferas públi-cas e privadas e, ainda, entre osuniversos urbano e rural. A au-sência de fronteiras nítidas lhesé constitutiva. Neles, os váriosdiscursos se entrecruzam e osconflitos de interpretação se evi-denciam.

Talvez este seja um indício deque as fontes criminais devamser lidas como inscrições polifô-nicas, ou ainda, “inscrições do dis-curso social”, como diria Geertz(1978), através das quais os ato-res buscam explicitar, de algumaforma, os significados de suaação.

27 Geertz (1978, p. 13-41) refere-se aos relatos etnográficos como interpretações de interpretações. Não estaríamos incorretos se disséssemoso mesmo das fontes documentais, especialmente, das fontes criminais.

28 O conceito de “fato social total” foi cunhado por Mauss para analisar trocas cerimoniais e refere-se a instituições que representam o própriosistema em funcionamento: Nesses fenômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda es-pécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas políticas e familiares ao mesmo tempo; econômicas – supondo formas particulares de produçãoe de consumo, ou antes, de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos quemanifestam essas instituições. (1974, p. 41)

Page 45: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 1997 45

O avesso da ordem: primeiros apontamentos de leitura de fontes criminais

QU

AD

RO

1Q

UA

DR

O G

ER

AL

DA

CO

MP

OS

IÇÃ

O D

OS

PR

OC

ES

SO

S-C

RIM

E (

1770

-190

0)

Page 46: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., B

elo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 1997

46 Maria Tereza Pereira C

ardoso

Observação:Os quadros estão baseados em MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo (1987:29).Fonte: Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei.Fundo do Cartório do Crime do Fórum de São João del-Rei.

QUADRO 2QUADRO GERAL DA COMPOSIÇÃO DOS PROCESSOS CRIMINAIS RELATIVOS A ESCRAVOS

Page 47: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 37-47, jun. 1997 47

O avesso da ordem: primeiros apontamentos de leitura de fontes criminais

Referências bibliográficas1. MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis: Vozes, 1976. v. I.

2. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984.

3. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

4. BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas . São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulis-ta, 1992.

5. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e An-tropologia. v. 2. São Paulo, EPU, 1974.

6. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.

7. IGLÉSIAS, Francisco. Introdução. In: MARINHO, José Antônio. História do movimento político de 1842. BeloHorizonte, Itatiaia, 1977.

8. __________. Minas Gerais. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História da civilização brasileira. SãoPaulo, Difel, 1985. v. 2.

9. PINAUD, João Luiz et. al. Insurreição negra e justiça. Rio de Janeiro : Expressão e Cultura, 1987.

10. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1990.

11. LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750 – 1808.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

12. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas,1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987.

13. __________. Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a História Social da escravidão. RevistaBrasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 143-160, mar. 88/ago. 88.

14. ALGRANTI, Leila Mezen. Criminalidade escrava e controle social no Rio de Janeiro (1810 – 1821). Estudos Eco-nômicos, São Paulo, v. 18, n. Especial, p. 45-79, 1988.

15. LIBBY, Douglas Cole. Historiografia e a formação social escravista mineira. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v.3, n. 1, p. 7-20, jan./jun. 1988.

16. __________. Força de trabalho e posse de escravos. In: LIBBY, Douglas Cole. População e mão-de-obra indus-trial na Província de Minas Gerais (1830-1889). São Paulo, USP, 1987 (Tese, Doutorado).

Page 48: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 199748

João Carlos da Silva de Jesus

AS ARMADAS DOS AÇORES NADEFESA DOS REINOS IBÉRICOS

João Carlos da Silva de JesusMestrando da Universidade de Lisboa

Bolsista da Fundação Oriente

RESUMO

Este artigo procura analisar ascondições de manutenção dos im-périos coloniais nos séculos XVI eXVII, apresentando uma visão pa-norâmica das disputas internacio-nais pelo controle da rota do Atlân-tico.

É objetivo desse trabalho inves-tigar as ações estratégico-militares,visando preservar a hegemoniaportuguesa sobre a rota Atlânticae sua importância político-econô-mica para a expansão colonial.

OImpério Português do século XVI einícios do XVII são nesgas de terra eilhas separadas por vastidões aquá-

ticas, tornando-se a Marinha o único instru-mento de comunicação entre as diferentes par-tes. Esta, ao mesmo tempo que faculta o trans-porte de pessoas e mercadorias, afirma o do-mínio do rei de Portugal perante os povos ori-entais e também ocidentais. Foi através daMarinha que o poder português se afirmou no

Oriente e foi ela que o manteve logo após as conquistas perante todosaqueles que o contestaram, fossem eles asiáticos, turcos ou europeus.

Os domínios portugueses em quatro continentes sustentavam oEstado Português, tal como os domínios do Novo Mundo sustentavama Espanha. Nesses domínios, lutava-se em várias frentes contra os maisdiversos inimigos, que pretendiam recuperar o que lhes pertencera ouqueriam conquistar o que portugueses e espanhóis conquistaram para

Page 49: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 1997 49

As armadas dos Açores na defesa dos reinos Ibéricos

si. Nesses conflitos, as respecti-vas marinhas tiveram papel fun-damental, quer pelos soldadosque transportavam em socorro,quer pelo reabastecimento queproporcionavam, quer pelo apoiode fogo que davam, ou ainda pe-la defesa que ofereciam contra ospoderes navais inimigos. Estaera a defesa avançada dos Impé-rios.

Mas a oposição a portuguesese espanhóis não se resumia uni-camente à que encontravam nosdomínios que ocupavam. Cedoviram os seus barcos atacados epilhados no regresso aos respec-tivos reinos, quando transporta-vam os bens e os espólios adqui-ridos nos seus domínios. À des-pesa necessária a manutençãodas possessões ultramarinas pas-sou a somar-se uma outra: des-pesa com a manutenção de ar-madas de guarda-costas e de es-colta. Estas passaram a ser umadefesa próxima.

Às ilhas dos Açores confluemas rotas de regresso à PenínsulaIbérica oriundas do Oriente,África e Novo Mundo. Essa ne-cessidade, fruto de um acidenteda natureza, cedo foi descober-ta pelos navegadores portugue-ses de Quatrocentos e poucodepois pelos corsários norte-eu-ropeus e africanos. Estes, queantes aguardavam os navios car-regados de ouro, prata e produ-tos exóticos nas proximidades dacosta portuguesa, rapidamente

começam a internar-se no ocea-no, buscando esses navios nasparagens dos Açores.

O corso e a pirataria (a defini-ção desses conceitos muitas ve-zes na prática é difícil) são umaatividade tão antiga como a na-vegação humana dos mares. Osportugueses, antes de se torna-rem uma das vítimas preferen-ciais desta atividade depredató-ria, foram, eles mesmos, e conti-nuaram a ser, piratas e corsáriosnas costas norte-africanas e asiá-ticas. Terá sido graças a essa ati-vidade que, na primeira fase daExpansão, ganharam experiên-cia e incentivo suficientes paracontinuarem as explorações ma-rítimas da costa africana, onde àatividade comercial se juntavamas “razias” em terra e a pilhagemde embarcações no mar. Tambémfranceses, ingleses e holandesesseguiram esses passos. Afinal decontas, trata-se de uma forma fá-cil de formar capital e um incen-tivo a ir mais além.

O corso e a pirataria costeiranão eram atividades desconhe-cidas na Idade Média. Eram doisinstrumentos de guerra e umadas maneiras de recuperar bense valores perdidos para piratasou corsários de outras nações, jáque da justiça estrangeira nãoera de se esperar grande repara-ção. Com o advento da expan-são européia, o corso passa a as-sumir uma outra envergaduraembora, na essência, continue o

mesmo, variando os valores en-volvidos.

Uma das primeira notícias decorso nas costas portuguesas naÉpoca Moderna é de 1508, quan-do o corsário francês Mondra-gon assola as costas e ilhas dePortugal. Para lhe fazer frente, D.Manuel nomeia Duarte PachecoPereira que, em 1509, defronta-se com quatro navios de esqua-dra do corsário, afundando ume aprisionando os outros três.

Este é um dos primeiros ca-sos na senda do qual muitos ou-tros acontecerão com oscilaçõestemporais que, a maior parte dasvezes, estão intimamente relaci-onadas com conjunturas políti-cas e militares precisas, confor-me foi demonstrado por Ferreira(1991). Seria ingênuo ver no cor-so somente razões políticas oumesmo a busca de reparação deperdas sofridas. A razão primá-ria dever-se-á encontrar princi-palmente na busca de lucros fá-ceis através da pilhagem, sem osencargos que oneram o comér-cio legítimo. Ainda mais quan-do não se tinha suficiente com-petência técnico-científica paraempreender viagens longínquasou ainda quando não havia dis-ponibilidade para libertar capi-tais que pudessem ser aplicadosem expedições de exploração oucomércio que fossem suficiente-mente rendosas.

As guerras de Francisco I, aoconsumirem enormes quantida-

Page 50: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 199750

João Carlos da Silva de Jesus

des de dinheiro, impedem a Co-roa de sustentar conveniente-mente a nobreza e sobrecarre-gam os burgueses de direitos. ACoroa, ao consentir o corso, ga-nha duplamente: liberta-se doencargo de sustentar a nobreza,ao mesmo tempo que fornece àburguesia um novo rendimento.Deste modo, uns prosperam e osoutros podem manter os hábitosa que as formas de representa-ção social obrigam. Contentadauma frente interna, o monarcafrancês pode-se dedicar à suapolítica imperial, que é, enfim, omodo de os Estados Modernose os seus Reis serem reconheci-dos e respeitados entre os pares.Só que tal política impossibilitaa libertação de capitais que pos-sam ser investidos na exploraçãode novas fontes fornecedorasdos produtos e nisto poderá es-tar uma justificação para a neces-sidade do corso e da pirataria.

Quando franceses e mais tar-de ingleses e holandeses atacame pilham navios portugueses, aoinvés de o fazerem a navios es-panhóis sob o mando de monar-cas com os quais têm conflitosmais ou menos declarados, está-se a pressionar um estado que,pelas características geográficas,políticas e imperiais, seria umaliado natural da Espanha. Istonuma perspectiva política e di-plomática que, a bem da verda-de, é secundária face aos efeitosimediatos em outras bem mais

lucrativas vertentes. Os proven-tos econômicos resultantes dapilhagem são bem mais alician-tes para quem se encontra a bor-do de um navio buscando pre-sas nos mares que qualquer idéiaconcebida por estrategistas po-líticos. Entra-se, desse modo, naesfera de indefinição do concei-to de corso e pirataria e tudo oque flutua sobre a água é passí-vel de ser capturado.

Vem essa reflexão a propósi-to do quase perfeito entendi-mento existente entre os doisreinos ibéricos no que diz respei-to aos assuntos ultramarinos,quando pela frente se lhes depa-ram os recém-chegados do nor-te da Europa.

A legislação ordinária e as or-denações portuguesas já previ-am o castigo severo (como a pe-na de morte e a perda dos bens)para aqueles que roubassem, des-truíssem ou capturassem naviosidos aos domínios com licençarégia (Leão, 1985, tit. 107). Do la-do espanhol havia compensaçãoequivalente, como atesta umacarta da princesa D. Joana man-dando D. Álvaro de Bazán, em1557, entregar franceses captura-dos para serem postos a servirnas galés; abria-se uma exceçãopara o capitão, mestre e oficiais...que deveriam ser executados.(Assis, 1943, n. 163)

Perante problemas semelhan-tes têm-se reações semelhantes;não admira, pois, que se desse o

entendimento formal entre ossoberanos portugueses e espa-nhóis, principalmente entre Car-los I e D. João III. Em meados doséculo, realiza-se uma conven-ção entre os dois reinos em quese estipulam o número de navi-os que cada estado deverá man-ter em defesa das costas e ilhas eas áreas de atuação de cada um.Assim, a Portugal caberia armarem vários portos do Minho aoAlgarve navios latinos de peque-na tonelagem (25 a 30 toneladas)que corressem determinadas zo-nas do litoral, apoiados por ummenor número de galeões e ga-lés. Além disso, o rei portuguêscomprometia-se a enviar anual-mente (em abril) dez navios ar-mados para as ilhas (três galeõese sete caravelas). (Ferreira, 1991,p. 373-374).

Era uma força que combina-va navios oceânicos, pequenasembarcações costeiras e galés.Estas últimas tinham de ser de-sarmadas no início do inverno,por causa do mau tempo. No en-tanto, os veleiros deveriam man-ter-se em vigilância permanen-te no mar. No caso espanhol, asgalés eram desarmadas logoapós a chegada dos últimos na-vios do Novo Mundo, manten-do-se os veleiros no mar patru-lhando as costas, freqüentemen-te até o cabo de S. Vicente. (As-sis, 1943)

A colaboração luso-espanho-la no combate ao corso e à pira-

Page 51: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 1997 51

As armadas dos Açores na defesa dos reinos Ibéricos

1 1 Esta armada tem várias designações: Armada das Ilhas, dos Açores, Régia, Terceira.

taria não passava por pruridosnacionalistas ou quezílias políti-cas. Testemunhando isso estãoexemplos como a ordem dadaem 1556 por D. Joana ao marquêsde Santa Cruz para, no caminhoque deveria seguir para Flan-dres, limpar as costas e os cabosde Portugal; em fevereiro de 1558,manda o mesmo limpar as águasdos Açores e em junho do mes-mo ano manda-o colaborar coma armada portuguesa nos Aço-res, a qual também tinha instru-ções nesse sentido (Assis, 1943,n. 150, 172, 175, etc.). Ordens co-mo essas repetir-se-ão nos anosseguintes. E essa colaboração eraefetiva, fosse o inimigo francêsou berberesco, de que é exemploo célebre ataque a Tunes.

Ana Maria P. Ferreira refere-se a 423 roubos de navios portu-gueses no mar entre 1508 e 1538,julgando serem cerca de 70% dosque de fato ocorreram.

Obviamente, este númeronão se refere na totalidade a na-vios de alto-mar; se assim fosse,a viabilidade das várias carreirasportuguesas estaria seriamenteameaçada. Neste número deve-rão estar incluídos todos os tiposde embarcações, entre eles, qua-se certamente, uma maioria depequenos batéis de pesca e nave-gação costeira. Os corsários, atu-ando isoladamente, não se atre-

vem a tomar um navio maior. As-sim, na sua ação depredatória,deitam mão a tudo o que pude-rem, quanto mais não seja paraadquirirem mantimentos quelhes permitam manter-se maistempo no mar. Também não sepode esquecer que, sendo o cor-so uma atividade econômica ecomo tal procurando o lucro,não era viável correrem-se riscosatacando forças superiores. Issoé um privilégio reservado a na-vios de guerra e a maior partedas vezes só quando não podemevitar o contato.

Além da organização de arma-das de guarda-costas e oceânicasdestinadas a patrulhar áreas on-de a possibilidade de ocorreremincidentes era maior, o poderportuguês recorre a instrumen-tos legais, obrigando os arma-dores a respeitarem, no aprestodos seus navios, determinadosprincípios quanto ao armamen-to. E isto porque, se as medidasde defesa evoluem, também oinimigo vai aprendendo com aexperiência, começa a recorrercom maior freqüência à associa-ção e chega a navegar em verda-deiras esquadras, deixando deser obstáculo o reduzido tama-nho do navio corsário face a pre-sas maiores que ele.

Com vista a aumentar a segu-rança dos navios, sempre descu-

rada pelos armadores que pro-curavam reduzir custos, D. Sebas-tião faz publicar em 1571 um re-gimento determinando o modocomo as embarcações deveriamandar armadas e como deveriamatuar.

Entre várias outras determi-nações, estipula-se que os navi-os poderiam largar em qualqueraltura para a Madeira e Açores,desde que existissem dois oumais navios prontos a largar, ain-da que um tivesse de esperar 15dias pelo outro. O mesmo se de-veria fazer no regresso. A pessoaque tivesse de os prover e visi-tar no porto de partida faria umdeles capitânia. Mas como não sedefine o critério para essa esco-lha, a questão não deveria ser pa-cífica.

As armadas de S. Tomé, CaboVerde e Brasil, de regresso ao Rei-no, ao chegarem aos Açores pas-sariam a obedecer ao capitão-mor da Armada Régia1 que aí seencontrasse para as proteger eescoltar. Estas chegavam, em prin-cípio, antes das armadas da Ín-dia e da Mina, que também eramaguardadas. Considerando quea espera poderia causar transtor-nos, com o acordo do capitão-mor da armada de escolta, erapossível largarem com destinoao Reino desde que não houves-se notícias de navios suspeitos

Page 52: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 199752

João Carlos da Silva de Jesus

nas cercanias. Não os havendo,juntar-se-iam dez ou mais em-barcações para rumarem ao Con-tinente, sob escolta de um dosefetivos da armada açoriana, oqual assumiria a capitania-mai-or da frota assim constituída.(Portugal, 1943, p. 27-29)

A ameaça de pirataria naságuas açorianas está patente aose exigirem dez navios comoquantitativo mínimo para largarem direção ao Continente, quan-do para daí partir esse númeroera de quatro. O legislador sabia,pela experiência acumulada aolongo dos anos, que um navioenquanto presa é muito maisatrativo ao regressar carregadode mercadorias que quando par-te. Infelizmente, para as fazen-das de muitas pessoas, incluin-do as da Coroa, estas normasacabam por ser pouco respeita-das, fato observado bastante ve-zes nos anos seguintes na maisdíspar documentação. O nãocumprimento freqüente da leitambém nos pode levar a con-cluir não ser esse risco muito le-vado a sério. No entanto, emqualquer dos casos, manter umnavio equipado para combaterera um encargo pesado para umcomerciante.

O risco levou à criação de ar-madas de escolta que se dirigi-am aos Açores na primavera;obrigou a dar maior atenção àsarmadas de guarda-costas e àsdo Estreito. Mas estas nem sem-

pre eram suficientes para evitartragédias. A par destas medidasativas tornavam-se necessáriasoutras de caráter passivo, espe-rando-se que pela combinaçãode ambas (com a colaboração es-panhola) se conseguissem me-lhores sucessos.

As armadas dos Açores que,além da função de escolta, deve-riam, quando lhes fosse possível,limpar os inimigos da área, nemsempre estavam presentes quan-do chegavam os navios dos do-mínios de Portugal ou de Caste-la. Esses mesmos navios não che-gavam ao mesmo tempo, fossepor virem de locais diferentes,fosse por terem quebrado a con-serva. Por isso, não chegando to-dos ao mesmo tempo, permite-se que possam partir ou prosse-guir a viagem, desde que for-mem uma força suficientemen-te grande para impor respeitoaos corsários que eventualmen-te pretendam atacar. Do mesmomodo, para evitar esperas quepossam fazer perder bons ven-tos e para evitar que a impaciên-cia se instale, poderão partir comuma escolta reduzida, se nãohouver perigo iminente, poden-do até navios das Índias de Cas-tela serem escoltados ou integra-rem-se em esquadras portugue-sas e vice-versa.

As armadas portuguesas deregresso ao Reino traziam or-dens expressas de como haviamde fazer a aproximação aos Aço-

res e depois ao Continente (ge-ralmente entre os 39º e os 42º N).Estas ordens, em princípio, va-riavam de ano para ano, de mo-do a não haver um padrão decomportamento que facilitasse aatuação dos corsários. Pela mes-ma razão e para garantir que nãohouvesse fuga de informações,os regimentos eram entreguesselados aos capitães, que só ospodiam abrir em alto-mar, ato deque o escrivão fazia assento noseu livro.

As manobras de aproximaçãopor vezes revestiam-se de gran-de complexidade. Exemplo dis-so é uma carta régia mandandodar regimento de torna-viagemà armada que em 1611 fora à Ín-dia comandada por D. Antôniode Ataíde. Nessa carta estipu-lam-se as rotas que deveriam serefetuadas na aproximação aosAçores e depois ao Reino, isto pa-ra garantir o encontro com a ar-mada dos Açores. Assim, a arma-da da Índia deveria demandar asilhas entre os 40º 30’ N e os 42ºN, sem as avistarem. Dessa lati-tude dever-se-ia demandar oContinente pelo 40º paralelo. A60 léguas da costa tomariam o41º paralelo até avistarem terra.

É uma manobra complicada,pensada para evitar o ataque decorsários e que, dada a rigidezimposta, poderia não aproveitaros melhores ventos. Mas, nestecaso, privilegia-se a segurança àrapidez.

Page 53: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 1997 53

As armadas dos Açores na defesa dos reinos Ibéricos

Os capitães das armadas pos-suíam regimentos com ordensmais ou menos rígidas. Mas emqualquer momento poderiam re-ceber novas ordens que alteras-sem as iniciais ou poderiam, elespróprios, por qualquer imprevis-to, ter de optar por outra solu-ção, caso em que deveriam sub-metê-la ao conselho compostopelo piloto e restantes oficiais, fa-zendo o escrivão assento das de-liberações e decisões tomadas.Essas alterações também pode-riam ocorrer na escala das ilhas(geralmente na Terceira) ouquando eram encontradas pelascaravelas de aviso nas longitudesocidentais do arquipélago. As ca-ravelas que lavravam o mar es-perando topar com os naviostransmitiam-lhes as últimas ins-truções ou avisos. No entanto,não era invulgar o desencontro.O mesmo podia acontecer quan-do os navios de regresso ao Rei-no por uma latitude pré-combi-nada não eram encontrados pelaarmada de escolta que seguia aoseu encontro pela mesma latitu-de. Geralmente, a armada de es-colta tomava uma posição em li-nha sobre a latitude em que de-veria navegar a armada espera-da com cerca de uma légua en-tre cada navio.

As razões desses desencon-tros estão na pequenez dos na-

vios quando comparados à vas-tidão do oceano. Uma ondulaçãoforte, uma neblina, uma borras-ca ou a noite podem inviabilizarplanos que no papel ou em abs-trato parecem funcionar.

Se há notícias de desencon-tros com desfechos funestos, jánão as há quando estes não ocor-rem, ou seja, quando, apesar dodesencontro, tudo acaba embem, então não fica memória doacontecimento. Por outro lado,se se dá o encontro e nada deanormal ocorre, também não ficaregistro. Só o negativo, o trágicodeixam marcas. Hoje, ao tomar-mos contato com essas notícias,poderemos ser levados a con-cluir que as coisas eram pioresque de fato foram.

Um desses desencontros é-nos relatado por João CarvalhoMascarenhas (1937, p. 21-142). Anau Conceição recebe em Angra,nos Açores, instruções trazidaspor uma caravela de aviso paranavegar por 39º 30’ N, de modoa encontrar a sua escolta. O pi-loto entende que a ordem signi-fica navegar como de costume2

pelos 41º ou 42º N e a cem lé-guas de Lisboa tomar os tais 39º30’ N. Abreviando, acaba por irpela última latitude, embora acontragosto. Cumprindo a deter-minação, não encontra a arma-da de escolta, e o dia amanhece

no meio de uma armada de cor-sários argelinos e à vista da cos-ta portuguesa.

A dúvida que assaltou o pilo-to em Angra poderá ser legítimajá que, por vezes, as ordens nãosão muito claras. Mas, pelo quese depreende do relato, não erao caso. Além disso, o ambiente abordo não era dos mais ligeiros.Ao longo da viagem já tinhamacontecido vários desentendi-mentos entre os homens; já ti-nham falecido o piloto que lar-gara da Índia e o próprio capi-tão em Santa Helena. Os oficiaise o piloto apostaram que chega-riam ao Reino primeiro que a ca-pitânia (N. S. da Penha da Fran-ça), tendo aproveitado para issoum momento em que se que-brou a ligação visual com ela.Curiosamente, a Conceição erapior de vela que a capitânia.Queriam esses homens chegarprimeiro, na esperança de seremvalorizados e promovidos noano seguinte para a capitânia daCarreira da Índia, pois achavamque de outro modo pensariamno Reino que não havia habili-dade alguma em ser-se condu-zido pelo farol da capitânia.

É mais uma prova de que oregimento de D. Sebastião, quetambém obriga à navegação emconserva, sistematizando e de-senvolvendo normas anteriores

2 Aqui costume não deve ser interpretado como o procedimento usual – bastava o piloto fazer uma vez com sucesso uma rota de uma determi-nada maneira para posteriormente e de modo inconsciente julgar ser esse o procedimento usual.

Page 54: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 199754

João Carlos da Silva de Jesus

e confirmado pelos reis posteri-ores, continuava a ser violado enem sempre por acidente.

Frazão de Vasconcelos obser-vou há mais de cinqüenta anosque a marinha portuguesa nãofoi descurada pelos governosfilipinos. A ação legislativa de D.Filipe I e D. Filipe II é continua-dora da de D. Sebastião, querquanto à forma, quer quanto aosmétodos propostos. Todos elesfizeram publicar instrumentoslegais complexos, que pretendi-am ter grande alcance e tendi-am a disciplinar e a regular ofuncionamento dos órgãos quegeriam o império e o instrumen-to que facultava a ligação entreas suas diferentes partes: a Ma-rinha.

Neste aspecto, estou convic-to de que os governos filipinos,principalmente com D. Filipe I,tudo fizeram para reformar amarinha portuguesa, adaptan-do-a às novas necessidades e aosdesafios que lhe eram colocados,quanto mais não fosse porque asegurança da navegação espa-nhola passava também por umamarinha portuguesa eficaz. Masé um mérito que tem de ser

relativizado. A situação interna-cional era tal que quem quer quetomasse conta do poder portu-guês teria de adotar medidas quepermitissem a uma marinha quefora hegemônica no Atlânticoadaptar-se à concorrência agres-siva de outras nações.

Assim, no plano das inten-ções, quer-se modificar uma ma-rinha incapaz de cumprir inte-gralmente a sua missão, tornan-do-a de novo eficiente. Para issolegisla-se e ordena-se casuistica-mente. No plano prático, a situa-ção continua a mesma, ou pou-co se modifica, a ajuizar pelosrelatos que nos chegam e quenos levam a concluir pelo nãocumprimento mais ou menosgeneralizado das determinaçõeslegais.

Os Estados Ibéricos, assentan-do as suas economias na explo-ração de domínios ultramarinos,cujos rendimentos sustentavamnobrezas cortesãs e de serviços,necessitavam de marinhas for-tes, numerosas e diversificadas.Dominaram enquanto não sofre-ram a concorrência de outrasnações e, quando ela surgiu, lu-

taram para se manter hegemôni-cos. Se finalmente vieram a sersuplantadas, perdendo o predo-mínio nos mares, não foi só pordeficiências de construção, maustécnicos e capitães. Antes, temosde considerar essa decadência efim no contexto dos fatos políti-cos, econômicos, sociais e men-tais. A Marinha existia para ser-vir homens e era servida por ho-mens. Temos de os compreender,entrando no campo da cultura ementalidades, onde em últimaanálise se deverão procurar eintegrar as explicações. Mais queuma luta entre o Norte da Euro-pa e os Estados Ibéricos, tínha-mos o confronto de dois mode-los diferentes de sociedade, ba-seados em pressupostos ideoló-gicos diferentes. Entre esses doismodelos concorrenciais triunfouaquele que revelou maior capa-cidade de adaptação e sobrevi-vência. Hoje, profundamente in-fluenciados pelo modelo triun-fante, tendemos a esquecer a re-alidade passada, em que qual-quer um dos modelos era váli-do. E disso resultam análises “apriori” distorcidas.

Page 55: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 48-55, jun. 1997 55

As armadas dos Açores na defesa dos reinos Ibéricos

Referências bibliográficas1. OS AÇORES e o Atlântico (séculos XIV-XVII). In: Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do

Heroísmo, de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984.

2. FERNANDES, Assis V. Epistolario de Felipe II sobre assuntos de mar. Madrid: Editora Nacional, 1943.

3. FERREIRA, Ana Maria Pereira. Problemas marítimos entre Portugal e a França na primeira metade do séculoXVI. Lisboa: FCSH./UNL. 1991. (Tese, Doutorado).

4. LEÃO, Duarte Nunes de. Ordenações filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, v. 5.

5. MASCARENHAS, João Carvalho. Memorável relação da perda da nau Conceição. In: PERES, Damião (comp.)Viagens e naufrágios célebres. Porto, Editora, 1937, v. 1, p. 21-142.

6. MATOS, Artur Teodoro de. A provedoria das armadas da Ilha Terceira e a carreira da Índia no século XVI. In:SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA, 2, Lisboa, 1985. Actas. Lisboa, Ins-tituto de Investigação Científica Tropical/Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1985. (Estu-dos de História e Cartografia Antiga. Memórias, n. 25).

7. MENESES, Avelino de Freitas. Os Açores e o domínio filipino (1580-1590). Angra do Heroísmo: InstitutoHistórico da Ilha Terceira, 1987. 2v.

8. PORTUGAL. Ministério das Colônias. Portugal e o século XVI; leis sobre a navegação e possessões do Impé-rio. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1943.

9. SANTOS, Maria Emília Madeira. O problema da segurança das rotas e a concorrência luso-holandesa antes de1620. Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, v. 32, 1985.

Page 56: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 56-61, jun. 199756

Marcelo José Caetano

POIÉSIS – PODER POLÍTICO E PODERPOÉTICO, UMA LEITURA DA POESIA

DE AGOSTINHO NETO*

Marcelo José CaetanoDepartamento de Filosofia e Teologia da PUC•Minas

Mestre em Letras (Literatura da Língua Portuguesa) – PUC•Minas

RESUMO

Compreendendo a atividade poé-tica angolana como intermediaçãoentre a imagética e a construção his-tórica da identidade e da alteridadedo ser do africano, este artigo discu-te o engajamento da poesia de Agos-tinho Neto no processo de (re) cons-trução política de Angola.

* Excerto da dissertação de Mestrado O Eu e o Outro em Sagrada Esperança (Inautenticidade e Autenticidade na poesia de Agostinho Neto) –PUC•Minas.

1 “Poiésis” é o relativo ao “poien”, ao fazer, entendido no sentido do fazer artístico, por conseguinte, da criação. É o ente interpretado naperspectiva criadora do artista.

Apalavra é a casa do SER. Por seu inter-médio, o gesto instaura a ordem e ohomem se compreende no processo

de construção de si e de seu mundo. A açãodos agentes no processo de organização social,delimitada pela oralidade, constitui a possibili-

dade de ordenação do mundo simbólico, fundamental à inserção dohomem na “démarche” histórica.

Com a irrupção da escrita nos contextos originariamente ágrafos,falamos aqui especialmente de Angola, a voz permaneceu como refe-rencial obrigatório à ação político-social. A obra de arte, particularmen-te a poesia, compreendida como fazer, isto é, como poiésis,1 coloca-secomo intermediação imprescindível na relação entre o imaginário e aconstrução histórica da identidade e da alteridade do ser angolano. A

Page 57: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 56-61, jun. 1997 57

Poiésis – poder político e poder poético, uma leitura da poesia de Agostinho Neto

ação poética, provida de um es-tatuto onto-sócio-político que adefine, apesar de inferior à açãomesma, por lhe ser imanente,orienta a atividade dos indivídu-os. Ao orientá-los, faz-se instru-mento de conscientização.

A poesia, capacitadora doagir, situa-se como produtora deefeitos. O poeta, porta-voz desua gente, define-se como polí-tico. A fim de construir a identi-dade política de seu povo, elebusca resgatar-lhe a dimensãopoética da vida. Formulando suaprópria experiência pessoal, his-tórica, ele procura eliminar aideologia do outro dominante.Ele chama seu povo à constru-ção de um novo tempo, tempode um novo homem. Ele é “aque-le que faz as novas condições de sua ex-periência e toma a iniciativa de estabele-cer o fim da servidão e o começo da li-bertação”. (Alves, 1989, p. 33)

Fundamental, neste processoglobal, é a presença de Agosti-nho Neto. Sua poesia transita dainconsciência caótica ao cosmodo consciente. Ele investiga opresente, estabelecendo as con-dições necessárias para o surgi-mento e soerguimento de um fu-turo em que o homem angolanose reconheça em sua especifici-dade humana, isto é, ele defineos pontos da diferença para afir-mar em que condições pode o in-divíduo africano dizer-se igualàquele que o escravizou. O poe-ta sabe que “O acto de escrita, em

particular para o homem da oralidadeque tem de assenhorar-se de si que aconstrução poética escrita condiciona,força ao uso do idioma do outro, quetambém é seu, visto que dele se apro-pria. E o seu domínio maior consisteem escrever nele poesia”. (Barbeitos,1989, p. 56)

Ao escrever poesia na línguado outro, o poeta estabelece aigualdade, mas não deixa por is-to de demarcar a diferença, ouseja, ele sabe que não pode ne-gar a presença em si do outro-invasor, nem desconhecer sua al-teridade. O mesmo e o outro lhepertencem, estão no seu ser. Aodeclarar isto, a poesia escancaraa realidade que o homem da co-lônia não pode desprezar, sobpena de não se reconhecer. Con-forme Agostinho Neto, citadopor Henrique L. Alves, “Nem sepode desconhecer o contexto africano emque o homem é hoje encarado de mododiferente daquele a que nos habituaramos séculos de esclavagismo e colonialismo.Hoje o homem africano é um ser livre oua libertar-se do colonialismo e do imperia-lismo”. (Neto, apud Alves, 1989, p.30)

A fala do político demonstra-nos a esperança messiânica dopoeta Agostinho Neto. O discur-so poético e o político se mos-tram sintonizados. A consciênciade que o homem africano deveser encarado diferentemente dosséculos de escravidão demarca aantevisão do poeta e seu papelpolítico na construção da nova

sociedade. Vejamos os versos fi-nais do poema A Voz Igual, emque o poético e o político se mis-turam, apresentando-nos o cha-mamento à reconstrução, redefi-nindo profeticamente a humani-dade de seu povo. Não se esque-ce, contudo, de lembrar-lhe e aosque o colonizaram o silêncio, amorte, a dor que no passado lheforam impingidos.

“Do caos para o reinício do mundopara o começo progressivo da vidae entrar no concerto harmonioso do

universaldigno e livrepovo independente com voz iguala partir deste amanhecer sobre a nos-

sa esperança.”(Neto, 1985, p. 138)

O caráter da atividade poéti-ca consiste, para Agostinho Ne-to, em redescobrir a poesia da vi-da através da reconstrução daidentidade política do povo deAngola. A construção da identida-de, isto é, do ser autêntico, passapor três momentos distintos:

1) momento do objeto;2) momento do sujeito;3) momento social-dialético.Conforme Libânio (1982), no

primeiro momento, ou seja, nomomento do objeto, o sujeito nãotomou ainda consciência de si nosentido reduplicativo, isto é, osujeito se percebe como sendounilateralmente determinadopelo outro. Ele não é autônomo,não se percebe como lei para simesmo. A sua consciência e liber-dade são profundamente marca-

Page 58: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 56-61, jun. 199758

Marcelo José Caetano

das pela obediência a uma lei ex-terior a ele. O sujeito se vê dianteda realidade como tábula rasa. Ne-cessariamente esta tábula rasa, estafolha em branco, tem que ser pre-enchida pelas experiências dooutro.

No segundo momento, mo-mento do sujeito, a relação como outro e com o mundo vai-setraduzir como descoberta dasubjetividade e vai ser percebi-da pela interioridade da consci-ência. Esta se opõe à exteriorida-de do mundo e se revela comovalor e significação. Os fatos sefazem verdade e realidade pelareflexão, quer dizer, pela volta dosujeito sobre si mesmo. No en-tanto, na embriaguez de sua au-tonomia, o sujeito corre o risco defechar-se sobre si mesmo, desco-nhecendo a presença do outro.

No momento social-dialético,o sujeito percebe o caráter dialé-tico de sua consciência. Ele pen-sa em si mesmo como fonte devalor, verdade e bem, mas reco-nhece a presença do outro comodeterminante fundamental –mas não única – de seu ser, istoé, ele se abre ao mundo. E ine-ludivelmente, a partir dessaabertura, constrói sua existência.

Caminhando pelas veredasdo ser, o poeta percebe o tercei-ro momento e recria a realidadepoeticamente, ou antes, desco-bre a poeticidade da vida.

“A consciência sintetiza, entre a In-

consciência e o Despertar da Cons-ciência violentamente se alteram osdados imediatos da experiência; équando o sujeito poético se sentir na-quilo que Neto chamará de ‘o festim’.É tempo de análise, de prefiguraçãoda liberdade, de verdade; daquilo aque Neto chama a satisfação total dodesejo e criação do homem novo,aquele que faz as novas condições dasua experiência e toma iniciativa deestalecer o fim da servidão e o começoda libertação.” (Alves, 1989, p. 33)

O poeta sabe da sua respon-sabilidade na reconstrução daidentidade e da alteridade deseu povo. Nos seus versos perce-bemos o reconhecimento dessaresponsabilidade:

“Não é o canto do galoou o grito do griloque anunciam o novo diamas, sim, o canto dos poetas”.(Neto, apud Alves, op. cit., p. 35)

Angustiando-se, mas saben-do que da angústia brota o novotempo, o poeta escreve Pausa:

“Há esta angústia de ser humanoquando os répteis se entricheiram no

lodaçale os vermes se preparam para devo-

rar uma linda criançaem indecorosa orgia de crueldade

É esta alegria de ser humanoquando a manhã avança suave e fortesobre a embriaguez sonora do cântico

da terraapavorando vermes e répteis

E entre a angústia e a alegriaum trilho imenso do Níger ao Caboonde marimbas e braços tambores e

braços vozes e braçosharmonizam o cântico inaugural da

nova África”.(Neto, 1985, p. 78)

Agostinho Neto é uma pre-sença messiânica no solo de An-gola. Ele não desconhece o pas-sado, não ignora o presente.Analisa o passado com os olhoscríticos do presente e se projetano futuro, sabendo que lá have-rá um mundo melhor. Concla-mando seu povo para que des-perte, o poeta profeticamenteinduz o homem colonizado a to-mar parte no processo de sua li-bertação:

“Não esperemos os heróissejamos nós os heróisunindo as nossas vozes e os nossos

braçoscada um no seu dever”.

(op. cit., p. 126-127)

O poeta fala da necessidadede lutar, de sonhar. Ele clama porindependência, pela libertaçãode seu povo, por uma nova An-gola:

“São as vozes em coro na impaciênciabuscando paz, a vida em cansaços

secularesnos lábios soprando uma palavra: in-

dependência!”.(op. cit., p. 126-127)

Conforme nos afirma Henri-que L. Alves (1989) em longo tre-cho que, por sua importância,transcrevemos, e citando a profªMaria Mercedes Pessoa Caval-canti, a poesia de Agostinho Neto:

“Por ser uma poesia interessada,conscientizadora, caracterizada pelatransitividade e portanto voltada parao mundo receptor (...) tampouco seinscreve nos parâmetros da escrituratomada como texto auto-reflexivo e in-

Page 59: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 56-61, jun. 1997 59

Poiésis – poder político e poder poético, uma leitura da poesia de Agostinho Neto

dividual, introvertido à imanência daenunciação numa marginalidade utó-pica.Observe-se, no entanto, que o discursodo poeta supera o mero enunciado, vis-to como esteticamente elaborado e por-tanto não parafraseável, ou seja, nãoadmite mudanças de significantes.Em concomitância à verdade postula-da, subjaz a plurissignificância das fi-guras literárias.(...)Escritura e mensagem se encontramindissoluvelmente entrecruzadas e otexto é ao mesmo tempo um estar nomundo. A perspectiva dialéctica do po-lítico se presentifica no poeta atravésdo imbricamento do sujeito-autor como objecto e desse com o sujeito-recep-tor”. (Cavalcanti, apud Alves, 1989,p. 136)

A matéria da poesia de Agos-tinho Neto é a realidade concre-ta. O seu discurso é mediatizadopela concretude histórica. Por is-so, sua poesia, antes de ser pan-fletária, é a recriação poética darealidade. Neste sentido, ela,mais que qualquer outra expres-são artística, fala ao povo.

Neto percebe a construçãohistórica da identidade de seupovo. Ele sabe que não pode des-conhecer que o domínio dosmeios do outro, ou seja, na afir-mação de Barbeitos (1989), dosmeios

“(...) que o fizeram a ele e o margina-ram, tal como o prosseguimento do seuprojeto ideal, que o opressor invoca etrai, garantiriam o desencadear deuma emancipação real. Por conseguin-te, a maestria do português, o conhe-cimento científico, empenho humanis-ta e político, desembocando na luta delibertação, tornaram-se exigências in-trínsecas”. (p. 55-56)

Enquanto poesia engajada, otexto de Agostinho Neto apre-senta as imagens poéticas dasvivências do homem angolano.Falando na língua do outro, to-mada como sua, rememorandoas experiências históricas vivi-das, o poeta lança seu receptorao presente, de forma crítica. Ali-mentado de esperança, ele, con-tudo, não se limita a falar do pas-sado e do presente, mas antes,pelo contrário, busca preparar ofuturo.

“Amanhãentoaremos hinos à liberdadequando comemorarmosa data da abolição desta escravaturaNós vamos em busca de luzos teus filhos Mãe(todas as mães negrascujos filhos partiram)Vão em busca de vida.”

(Neto, 1985, p. 36)

Em busca de vida o poeta po-liticamente se engaja na trajetó-ria de construção da igualdadee da diferença do angolano, au-tenticamente.

“Não te voltes demasiado para timesma

Não te feches no castelo das lucubra-ções infinitas

Das recordações e sonhos que podiaster vivido.”

(op. cit., p. 84)

Agostinho Neto, em Sagradaesperança, tem plena convicçãoda impossibilidade de negar aexistência do outro no seio deAngola. Ao recriar poeticamen-te a realidade, ele anuncia em

que condições o angolano podefazer-se angolano. Sua visão mes-siânica oferece-nos o ponto devista do poeta como aquele queinexoravelmente dá o tom dasinfonia angolana. Sem desco-nhecer o rigor histórico, ao con-trário, sustentado nele, o autorpensa e fala do futuro. Sem des-prezar o passado e a partir dele,de suas memórias, de suas vivên-cias, ele anuncia o dia que virá.

As imagens poéticas de Sa-grada esperança delimitam a in-tenção, o engajamento e a im-portância do escritor no cenárioangolano. Seguindo as linhasdos versos nos é possível ver queo novo mundo angolano se anun-ciará na reconquista da identida-de. Disto sabe o poeta e é a par-tir daí que ele busca seu povo.

“Ah!esta mania de imaginare de inventar mundoshomens, sistemas, luz!Viver nas coisas, nos rumos fechadosna escuridão das noitesa palpitante existênciados dias de sol.

Esta saudade do nadaesta loucura.Volvamos à realidadesonhador!”

(op. cit., p. 69)

Almas escravizadas, morteque é choro e angústia, grito, dor,mas também luz, olhos secos,mãos e braços, construção, pá-tria, são “flashs” anunciadoresdo novo e esperado dia, o dia emque Angola será angolana.

Page 60: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 56-61, jun. 199760

Marcelo José Caetano

“Nos homensferve o desejo de fazer o esforço su-

premopara que o Homemrenasça em cada homeme a esperançanão mais se torneem lamentos da multidãoA própria vidafaz desabrochar mais vontadesnos olhares ansiosos dos que passam

O sábado misturou a noitenos mussequescom mística ansiedadee implacavelmentevai desfraldando heróicas bandeirasnas almas escravizadas.”

(op. cit., p. 44)

O escritor, como alguém quevê e é visto, conta-nos de suasvisões e antevisões do que são epodem ser sua terra e os homensde sua terra. Nos seus versos po-demos ir reconstruindo a suacosmovisão: somos o olho que vêatravés do olhar do outro (poe-ta), que é visto por ele (o inva-sor). A perspectiva do poeta nãoé somente de olhar a si mesmo,mas olhar o outro em si mesmoe definir os lugares do EU e doOUTRO, a partir desse olhar.

Por seu intermédio, conhece-mos as senzalas, os garotos semescola, os negros ignorantes, oshomens bêbedos. Sentimos a dorde partir, os gritos de dor, as lá-

grimas. Também compartilha-mos o riso que se mistura à espe-rança de novos e bons tempos.Enfim, não somente vemos comos seus olhos, mas também sen-timos a emoção que essa visãoutópica proporciona.

Como que saído da caverna dePlatão, o escritor anuncia a ver-dadeira realidade. Com os olhossecos, poética e politicamenteengajado, o seu olhar, dirigido àluz, simbólica e concretamentesurge como instrumento de re-velação. Sem desconhecer assombras que a luz provoca, eleempreende a reconstrução desua pátria. A terra-mãe, soergui-da pelos braços que nela traba-lham, será o palco de um povoque se reconhece.

“Eu vejo além Áfricaamor brotando virgem em cada bocaem lianas invencíveis da vida espon-

tâneae as mãos esculturais entre si ligadascontra as catadupas demolidoras do

antigoAlém deste cansaço em outros con-

tinentesa África vivasinto-a nas mãos esculturais dos for-

tes que são povoe rosas e pãoe futuro.”

(op. cit., p. 94-95)

As imagens em AgostinhoNeto são ambíguas, ou melhor,são dialéticas, pois dialética é avida. Na ambigüidade dessasimagens misturam-se presente efuturo, dor e alegria, desesperoe esperança. Se, por um lado, ador se intensifica, de outro lado,a esperança vai ganhando con-tornos místico-proféticos. Agi-gantando as contradições da vi-da, o escritor, escancarando as fe-ridas, sacraliza a espera, torna-areligiosa:

“Bem-aventurados os que têm fomee sede de justiça (...)Porque deles será a pátriae o amor do seu povo”.

(op. cit., p. 117)

O olhar messiânico de Agos-tinho Neto sobre o mundo ensi-na a aprender na dor, a conquis-tar a felicidade sem desconheceraquilo que a nega, a esperar mes-mo que o desespero tome contadas almas escravizadas.

“Do caos para o reinício do mundopara o começo progressivo da vidae entrar no concerto harmonioso do

universaldigno e livrepovo independente com voz iguala partir deste amanhecer vital sobre

a nossa esperança.”(op. cit., p. 138)

Page 61: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 56-61, jun. 1997 61

Poiésis – poder político e poder poético, uma leitura da poesia de Agostinho Neto

Referências bibliográficas01. AGOSTINHO NETO, Antônio. ... Ainda meu sonho... 2. ed. Luanda: UEA, 1985. 17p.

02. __________. A república impossível. Luanda: UEA, 1987. 65p.

03. __________. Sagrada esperança. Luanda: UEA, 1985. 146p.

04. __________. Sobre a libertação nacional. Luanda: UEA, 1986. 33p. (Cadernos Lavra & Oficina).

05. __________. Sobre a poesia nacional. Luanda: UEA, 1988. 14p. (Cadernos Lavra & Oficina).

06. ALVES, Henrique L. et al. Reflexões sobre a poesia de Agostinho Neto. In: A VOZ igual. Porto: Angolê, 1989. p.23-43.

07. BARBEITOS, Arlindo. O mesmo e o outro, em Agostinho Neto. In: A VOZ igual. Porto: Angolê, 1989. p. 53-57.

08. CAETANO, Marcelo José. O eu e o outro em Sagrada Esperança: inautenticidade e autenticidade na poesia deAntônio Agostinho Neto. Belo Horizonte: PUC•Minas, (Dissertação, Mestrado).

09. LIBÂNIO, João Batista. Formação da consciência crítica: subsídios filosófico-culturais. 3. ed. Petrópolis: Vozes,1982. 107p.

Page 62: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 61-63, jun. 199762

Resenha

RESENHA

Liana Maria ReisDepartamento de História da PUC•Minas

LEFORT, Claude. Pensando o político. Ensaios sobre democracia, revolução eliberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

Pensando o político (1986), de Claude Lefort, recentemente traduzido para o português(1991), é constituído por uma coletânea de ensaios que verticalizam as idéias centrais de seutrabalho anterior, A invenção democrática (1987). São tratados temas como a democracia, a re-volução, o totalitarismo e a liberdade, numa abordagem filosófica aprofundada.

Trata-se de um estudo que integra filosofia política e história, em que o autor busca “pen-sar livremente” e compreender a complexidade dos fenômenos analisados e dos novos fatoshistóricos “que modificam a experiência e o pensamento dos homens”.

As partes que compõem a obra (“Acerca da democracia moderna”, “Acerca da revolução”,“Acerca da liberdade” e “Acerca da parte do irredutível”), embora tratem de temas específicos,inter-relacionam-se através de um fio condutor: a procura dos “sinais do político”, dos “sinaisde repetição” e da “dimensão simbólica do social”. Na verdade, o político é um dos símbolosdo social que dão forma à sociedade ou ao regime, constituindo o objeto de estudo de Lefort.

A questão-chave para o autor é o simbólico – origem da construção do político pelo so-cial –, o que o leva a criticar o marxismo e romper com a Ciência Política. Para ele, não podemexistir “modelos teóricos” prontos e acabados para encaixar a realidade e a história, na medidaem que a totalidade do real vivido não pode ser totalmente compreendida. A realidade con-tém um sentido próprio e na dinâmica exige a construção constante e a percepção de novoslugares do político.

Ao analisar a democracia e o totalitarismo, Lefort mantém suas concepções desenvolvi-das na “Invenção Democrática”. Ambos são fruto do advento do Estado de Direito e do libera-lismo gerado pelas revoluções dos séculos XVIII e XIX. Instaurou-se uma nova ordem social,que criava um lugar simbólico do “poder sem rosto”: o poder é visto agora como emanado dopovo, dando a sensação de ser diluído e vazio. Para a legitimação do novo poder, tornou-se

Page 63: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 61-63, jun. 1997 63

Resenha

necessária a participação das massas através do direito do voto e demais participações po-líticas, provocando crises de autoridade e exigindo constantes e eficazes discursos e práticasdos governantes para se manterem no poder. O direito, norteador de todos, deu margem adisputas e interpretações diversas sobre o justo, o legítimo, etc. No lugar do corpo do rei, in-termediador entre Deus e os homens, e da hierarquia social da velha ordem, surgiram o direi-to e a lei que, invadindo o imaginário político e social, concedem à “opinião pública” o poderde legitimação. Nos regimes totalitários, a idéia de povo-uno recriou a noção de homogeneidadeperdida pela democracia, para legitimar o poder dos dirigentes e partidos únicos. O Estado deDireito gerou a revolução contínua, permanente e secular da invenção democrática, cujo pro-cesso não se pode parar.

É, portanto, essa contínua “invenção” da democracia, da liberdade e da igualdade quepossibilita pensar a questão do imaginário político, através do qual os homens orientam suaconduta diante do poder e seu relacionamento político coletivo. Os imaginários políticos cons-truídos historicamente (e portanto incessantemente) servem aos movimentos sociais popula-res de resistência, e também ao exercício da dominação política. Assim é que, tanto a democra-cia, quanto o totalitarismo amparam-se na lei. Nos imaginários políticos dos regimes totalitári-os e democráticos, a lei é vista como símbolo do novo poder, do novo homem, o que faz Lefortperceber a fragilidade da separação entre ambos os regimes.

Abordando o tema da revolução, Claude Lefort analisa o terror revolucionário e o discur-so de Robespierre diante da Convenção em II Germinal, na tentativa de entender o imaginá-rio do terror. Tal discurso demonstra que no imaginário político daquele momento na França,o espírito revolucionário era percebido como uma entidade superior e eterna, à qual todos, in-distintamente, estavam submetidos. O Comitê de Salvação era o “guardião” dos “ideais autên-ticos” da revolução e o terror era fundamental para a fundação da nova sociedade, da liberda-de e da nova ordem. Havia um comprometimento do “novo imaginário” com a inovação doSer Supremo: a necessidade de criar um Deus (diferente do até então existente) em novas ba-ses, que defendesse a humanidade, os membros mais “puros” da revolução, daqueles quecompunham a velha ordem. Justificava-se, assim, o direito de eliminar os inimigos da revolu-ção pelo maniqueísmo teológico-político: tratava-se da luta entre o bem e o mal, estruturadosno discurso político, possibilitando identificar o errado e o certo, o impatriótico e o patriótico,numa luta terrenha do discurso e interpretação do direito e da lei.

Processava-se uma dupla revolução que destruía a velha ordem. Uma construída noimaginário político da elite intelectual ilustrada e “predestinada” a buscar caminhos “corre-tos” para os acontecimentos, outra construída e mantida nas ações populares; ambas moldan-do os fatos por suas atuações. Lefort, concordando com as análises e conclusões de Quinet eTocqueville, entende que a revolução faz nascer “o culto do impossível” e a “fé no impossível”,

Page 64: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 61-63, jun. 199764

Resenha

e, ao mesmo tempo, sua nova visão da história da sociedade moderna (negação do supostoreal para Quinet) e uma evasão do imaginário (Tocqueville). Surge o mito da revolução quetraz a promessa de um novo mundo, organizado pelo princípio da igualdade social e política.Para isto, tornava-se necessária a fase da terra que aniquilasse e superasse o passado para reor-denar a sociedade, rumo ao “futuro glorioso”. Porém, o transcorrer do tempo e o fazer históri-co dos indivíduos rompem com a idéia do paraíso da sociedade imutável e ideal, surgindo aimagem da rebeldia, do desejo e da capacidade de mudança, do direito de sublevar a ordem.No imaginário político da revolução há lugar para o “possível” e o “impossível” que se relacio-nam, impulsionando os homens (opressores e oprimidos) rumo a uma realidade conflituosa(originada de suas atuações e pensamentos), possibilitando a construção de sua nova ordemsocial e política. Essa nova ordem que não se configura como uma sociedade ideal e justa, mascomo um novo campo de disputas e lutas sociais que trazem dentro de si aqueles elementosrevolucionários, buscados para fundamentar seus imaginários no futuro.

O estudo de Claude Lefort, ao deslocar o político da esfera tradicionalmente aceita desua atuação (aparelho estatal, partidos políticos, etc.) e ao abordar sua dimensão simbólica,permite uma compreensão mais ampla e complexa dos conflitos de classes em qualquer reali-dade histórica.

Hoje, mais do que nunca, torna-se necessário pensar a incessante “(re) invenção demo-crática” que, com base no direito e na lei, cria a “dimensão simbólica”, que remete os homensao espaço de luta contra a dominação e opressão rumo à construção de sociedades mais demo-cráticas. Resta-nos usar este simbólico do direito para a conquista efetiva da democracia partici-pativa, criando novos canais políticos de reivindicação – com maior poder de pressão – e aomesmo tempo pensarmos nos limites históricos do poder e da própria democracia, particular-mente na sociedade brasileira.

Page 65: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

NORMAS PARA COLABORADORES

• Os Cadernos estão abertos aos pesquisadores de História e áreas afins, para a publi-cação de artigos, resenhas, críticas e trabalhos do gênero.

• Os textos devem ser inéditos, não ultrapassando 20 páginas, datilografadas em papelofício, em espaço duplo, margem de 3 cm e em três vias.

• Os trabalhos devem incluir uma página inicial contendo o título, um resumo de 10 li-nhas, no máximo, e três palavras-chave. A apresentação, deve ser feita dentro dos cri-térios de publicação técnico-científicas, conforme as normas estabelecidas pela Asso-ciação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). De acordo com o padrão normativo es-tabelecido para os Cadernos, pede-se a utilização do pé-de-página tão somente paraas notas explicativas, colocando no próprio corpo do texto, após a citação e entre pa-rênteses, a referência bibliográfica correspondente (autor, ano e página). No final de-ve constar a relação alfabética de toda a bibliografia consultada.

• Os dados referentes ao autor (ou autores) devem incluir: o nome completo, a insti-tuição de origem, suas principais qualificações, endereço e telefone de contato.

• A seleção dos trabalhos, sua distribuição e organização em cada número, são da com-petência exclusiva dos Cadernos. Os textos serão mantidos na íntegra e na sua formaoriginal; caso ocorra necessidade de alguma alteração, esta só será feita mediante oconsentimento prévio do autor.

• Os autores dos textos aceitos para a publicação serão oportunamente informados, co-mo também, sobre a data prevista para o seu lançamento.

Page 66: CADERNOS DE HISTÓRIA - morrodopilar.files.wordpress.com · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Grão-Chanceler Dom Serafim Fernandes de Araújo Reitor Prof. Pe. Geraldo

Projeto gráfico e composição eletrônica:EMS editoração eletrô[email protected] • Tel.: (031) 3041.1113

Impressão e acabamento:Fumarc – Fundação Mariana Resende CostaRua Rio Comprido, 4.580Fones: (031) 3351.6011 • 3351.624432285-040 • Cinco • Contagem • MG

Outras publicações da Editora da PUC•Minas

ARQUITETURA – CADERNOS DE ARQUITETURA E URBANISMO – Departamento de Arquitetura e Urbanismo

BIOS – Departamento de Ciências Biológicas

CADERNO DE CONTABILIDADE – Departamento de Ciências Contábeis

CADERNO DE ENTREVISTAS – Departamento de Comunicação Social

CADERNO DE ESTUDOS JURÍDICOS – Faculdade Mineira de Direito

CADERNO DE GEOGRAFIA – Departamento de Geografia

CADERNO DE REPORTAGENS MALDITAS – Departamento de Comunicação Social

CADERNOS DE ADMINISTRAÇÃO – Departamento de Administração

CADERNOS DE BIOÉTICA – Núcleo de Estudos de Bioética

CADERNOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS – Departamento de Sociologia

CADERNOS DE ECONOMIA – Departamento de Economia

CADERNOS DE ENGENHARIA – IPUC – Instituto Politécnico da PUC•MINAS

CADERNOS DE LETRAS – Departamento de Letras

CADERNOS DE PSICOLOGIA – Departamento de Psicologia

CADERNOS DE SERVIÇO SOCIAL – Departamento de Serviço Social

EDUCAÇÃO – CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – Departamento de Educação

ENFERMAGEM REVISTA: CADERNOS DE ENFERMAGEM – Departamento de Enfermagem

EXTENSÃO – Cadernos da Pró-reitoria de Extensão

HORIZONTE – Revista do Núcleo de Estudos em Teologia da PUC•Minas

ORDEM E DESORDEM: CADERNO DE COMUNICAÇÃO – Departamento de Comunicação Social

SPIN – ENSINO E PESQUISA – Departamento de Física e Química