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Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário
Expediente
Volume 9, número 4, out./dez. 2020
ISSN 2358-1824
Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário (CIADS) é uma publicação trilíngue (português, espanhol e inglês), trimestral, de acesso livre, editada pelo Programa de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz/Brasília. É dirigida a professores, pesquisadores e estudantes de Direito, Ciências da Saúde e Ciências Sociais; operadores do Direito; profissionais de saúde e gestores de serviços e sistemas de saúde. Seu objetivo é difundir e estimular o desenvolvimento do Direito Sanitário na região ibero-americana, promovendo o debate dos grandes temas e dos principais desafios do Direito Sanitário contemporâneo.
Editoras-chefe
Maria Célia Delduque - Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Sandra Mara Campos Alves - Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Editora-executiva
Glaucia Cruz - Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Assistente Editorial
Danilo Rocha - Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Conselho Editorial Científico
André den Exter Erasmus University Rotterdam, Erasmus School of Law,
Holanda
André Gonçalo Dias Pereira Universidade de Coimbra, Portugal
Angel Pelayo Gonzáles-Torre Universidad Internacional Menéndez Pelayo, Espanha
Caristina Robaina Instituto Nacional de Salud de los Trabajadores, Cuba
Eli Iola Gurgel Andrade Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de
Medicina, Brasil
Giancarlo Corsi Università Degli Studi Di Modena e Reggio Emilia, Itália
Hernando Torres Corredor Universidad Nacional de Colombia, Facultad de Derecho,
Ciencias Políticas y Sociailes, Colômbia
Joaquín Cayon de las Cuevas Universidad de Cantabria, Facultad de Derecho, Espanha
Jose Geraldo de Sousa Junior Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, Brasil
Márcio Nunes Iorio Aranha Oliveira Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, Brasil
Miriam Ventura da Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva, Brasil
Paula Lobato de Faria Universidade Nova de Lisboa, Escola Nacional de Saúde
Pública, Portugal
Vera Lucia Raposo Universidade de Macau, Faculdade de Direito, China
Pareceristas Ad Hoc
Adail Afrânio Marcelino do Nascimento Faculdade da Grande Fortaleza
Agustín Carignani Ministerio de Salud de la Provincia de Córdoba
Aline Albuquerque Universidade de Brasília
Ana Carla Vasco de Toledo Faculdade de Bertioga
Ana Ellisabete Ferreira Centro de Direito Biomédico de Coimbra
Ana Paula Menezes Sóter Senado Federal
André Vinícius Pires Guerrero Fundação Oswaldo Cruz
Ángela Ruiz Sáenz Universidad de Cantabria
Angélica Carlini Universidade Paulista
Amanda Nunes Lopes Espineira Lemos Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Amanda Madureira Universidade Ceuma
Armando Martinho Bardou Raggio Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Bárbara Coelho Vaz Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Bruno Naundorf Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul
Caristina Robaina Aguirre Universidad de Havana
Carlos Henrique Falcão de Lima Procuradoria-Geral do Estado do Maranhão
Catarina de Sá Guimarães Ribeiro Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco
Claudia Viviana Madies Universidad Isalud
Clenio Jair Schulze Tribunal Regional Federal da 4º Região
Cristina Câmara Wanderley Queiroz Procuradoria-Geral do Estado de Pernambuco
Daniel Cardoso Procuradoria-Geral do Estado de Santa Catarina
Daniel dos Santos Rodrigues Conselho Nacional do Ministério Público
Daniel Pérez González Universidad de Cantabria
Daniel Pitangueira de Avelino Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Daniela Oliveira de Melo Universidade Federal de São Paulo
Danitza Buvinich Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Danylo Santos Silva Vilaça Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal
Denise Gonçalves de Araújo Melo Paranhos Justiça Federal de Goiás
Diana del Pilar Colorado Acevedo Universidad Nacional de Colombia
Edith Maria Barbosa Ramos Universidade Federal do Maranhão
Eduardo André Viana Alves Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Eduardo Antônio da Silva Figueiredo Universidade de Coimbra
Elizena de Jesus Barbosa Rossy Conselho Nacional de Secretários de Saúde
Egon Rafael dos Santos Oliveira Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
Pareceristas Ad Hoc
Evandro Alencar Universidade Federal do Pará
Fernando Alcantara Castelo Procuradoria-Geral do Estado do Paraná
Geraldo Lucchese Câmara dos Deputados
Guillermina Navarro Caballero Universidad de Cantabria
Gustavo Merino Gómez Universidad de Cantabria
Heber Dobis Bernarde Conselho Nacional de Secretários de Saúde
Igor Veloso Ribeiro Procuradoria-Geral do Estado de Rondônia
Inmaculada Vival Tesón Universidad de Sevilla
Ivaldo Trigueiro Universidade Federal da Bahia
Jairo Bisol Conselho Nacional do Ministério Público
Janaína Machado Sturza Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul
Jarbas Ricardo Almeida Cunha Defensoria Pública da União
José Agenor Alvares da Silva Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
José Francisco Nogueira Paranaguá Fundação Oswaldo Cruz/Brasília
José Luiz Souza de Moraes Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo
Katharina de Lourdes Costa Meneses Fundação Oswaldo Cruz
Krishina Day Ribeiro Universidade Federal do Pará
Letícia Canut Centro Universitário Estácio de Sá de Santa Catarina
Lídia Cunha Schramm Universidade Estadual do Maranhão
Lívia Gimenes Dias da Fonseca Universidade Federal do Rio de Janeiro
Lourdes Lemos Almeida Conselho Nacional de Secretários de Saúde
Luís Bernardo Delgado Bieber Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Luiz Carlos Pelizari Romero Senado Federal (aposentado)
Marcelo Lamy Universidade Santa Cecília
Maria Auxiliadora Minahim Universidade Federal da Bahia
Maria João Estorninho Universidade Nova de Lisboa
Maria Olga Sánchez Martínez Universidad de Cantabria
Martinho Braga Batista e Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Mauricio Carlos Ribeiro Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro
Mercia Pandolfo Provin Universidade Federal de Goiás
Moacyr Rey Filho Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Nathália Gomes Oliveira de Carvalho Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Natan Monsores Universidade de Brasília
Pareceristas Ad Hoc
Nayara Albrecht Universidade de Brasília
Oswaldo José Barbosa Silva Ministério Público Federal (aposentado)
Patrícia de Carli Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul
Raúl Pesquera Cabezas Ministério de la Salud de Cantabria
Renata Barbosa de Almeida Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira
Renata Curi Hauegen Fundação Oswaldo Cruz/Rio de Janeiro
Rodrigo Garcia Schwarz Universidade do Oeste de Santa Catarina
Rossana Maria Souto Maior Serrano Universidade de Brasília
Sandra Regina Martini Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Sephora Luyza Marchesini Stival Universidade de Coimbra
Sergio Francisco Piola Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Sérgio Túlio Tarbes de Carvalho Tribunal de Contas da União
Silvana Pereira Senado Federal
Silvia Badim Marques Universidade de Brasília
Uirá Azevêdo Universidade do Estado da Bahia
Victor Hugo de Almeida Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Vitor Laerte Pinto Junior Universidade Nova de Lisboa
Viviana Gaciela Perracini Universidad de Cordoba
Yara Oyram Ramos Lima Universidade Federal da Bahia
Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. Brasília, 9(4): 1-204, out./dez., 2020
Sumário
9-11 Editorial
Pandemia, futuro e constitucionalismo sanitário
Pandemic, future, and health constitutionalism
Pandemia, futuro y constitucionalismo sanitário
Clenio Jair Schulze
Artigos
Articles
Artículos
12-27 O direito da parturiente ao acompanhante como instrumento de prevenção à violência obstétrica
The parturient's right to a companion as an instrument to prevent obstetric violence
El derecho del parturient a un compañero como instrumento para prevenir la violencia obstétrica
Natalie Maria de Oliveira de Almeida, Edith Maria Barbosa Ramos
28-50 A fitoterapia na Atenção Primária à Saúde segundo os profissionais de saúde do Rio de Janeiro e do Programa Mais Médicos
Herbal medicine in primary health care in Rio de Janeiro: a view from Brazilian and Cuban health professionals working at Mais Medicos Program
Fitoterapia en Atención Primaria de Salud según profesionales de la salud de Río de Janeiro y del Programa Más Médicos
Mariana Leal Rodrigues, Carlos Eduardo Aguilera Campos, Bianca Alves Siqueira
51-69 Primeira infância sem açúcar: um direito a ser conquistado
Early childhood without sugar: a right to be ensured
La primera infancia sin azúcar: un derecho que hay que conquistar
Juliana Mara Gomes de Assis Nogueira, Ana Maria Costa, Erica Correia Coelho
70-88 Estrategia de Estado para el tratamiento de la atrofia muscular espinal: un desafío del sistema de salud en Argentina
State strategy for the treatment of spinal muscular atrophy: a challenge for the health system in Argentina
Estratégia de Estado para o tratamento da atrofia muscular espinhal: um desafio para o sistema de saúde da Argentina
Agustín Carignani, Daniela Yannen Flores
89-101 Análisis de los recursos de amparo relativos al acceso de medicamentos ante la Sala Constitucional de Costa Rica
Analysis of the injunction related to the access of medicines in the Constitutional Chamber of Costa Rica
Análise dos recursos de amparo relacionados ao acesso a medicamentos na Câmara Constitucional da Costa Rica
Freddy Arias Mora
102-116 Cloroquina e hidroxicloroquina: uso off-label em processos judiciais no estado de Minas Gerais
Chloroquine and hydroxychloroquine: off-label use in lawsuits in the State of Minas Gerais, Brazil
Cloroquina e hidroxicloroquina: uso fuera de lo indicado en demandas en el estado de Minas Gerais, Brasil
Patrícia de Oliveira, Camila Cátia Vilela Viana, Orozimbo Henriques Campos Neto, Giovana Gonçalves Pereira, André Soares Santos, Keli Bahia Felicíssimo Zocratto
117-134 Determinantes da judicialização da saúde: uma análise bibliográfica
Determinants of health judicialization: a bibliographical analysis
Determinantes de la judicialización de la salud: un análisis bibliográfico
André Luís Bonifácio de Carvalho, Andrey Maia Silva Diniz, Bianca Nóbrega de Medeiros Batista, Daniella de Souza Barbosa, Edjavane da Rocha Rodrigues de Andrade Silva, Otávio Augusto Nasser Santos, Raquel Veloso do Nascimento
135-155 O modelo de assistência à saúde mental das pessoas em uso problemático de drogas: uma reflexão sob a ótica dos Direitos Humanos dos Pacientes
The mental health care model of people with problematic drug use in Brazil: a reflection from the perspective of Patient Human Rights
El modelo de la atención a la salud mental de las personas con consumo problemático de drogas en Brasil: una reflexión desde la perspectiva de los Derechos Humanos de los Pacientes
Ângela Maria Rosas Cardoso, Aline Albuquerque
156-170 Análise da capacidade jurídica dos pacientes idosos no Brasil a partir do referencial dos Direitos Humanos
Analysis of the legal capacity of elderly patients in Brazil from the Human Rights perspective
Análisis de la capacidad legal de los pacientes mayores en Brasil desde el marco de los Derechos Humanos
Denise G.A.M. Paranhos
171-187 Tomada de decisão compartilhada no contexto do paciente adolescente em programa de reabilitação
Shared decision-making in the context of adolescent patient in rehabilitation program
Toma de decisiones compartida en el contexto del paciente adolescente en programa de rehabilitación
Isabel Cristina Correia, Kalline Carvalho Gonçalves Eler, Aline Albuquerque, Cíntia Maria Tanure Bacelar Antunes
Comunicação breve
Brief communication
Comunicación breve
188-191 Busca ativa ou testagem em massa?
Active search or mass testing?
¿Búsqueda activa o pruebas masivas?
Marilusa Cunha da Silveira, Eduardo de Azeredo Costa
192-197 Politização da vacina é irresponsabilidade sanitária
Vaccine politicization is sanitary irresponsibility
La politización de las vacunas es irresponsabilidad sanitaria
Jairo Bisol
Resenha
Review
Reseña
198-204 Temas avançados de Direito da Saúde: tutelas jurídicas da saúde
Advanced health law themes: legal health tutelage
Temas de derecho de salud avanzado: tutela legal de salud
Edith Maria Barbosa Ramos, Laísse Lima Silva Costa, Natalie Maria de Oliveira de Almeida
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 9 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.752
Editorial Pandemia, futuro e constitucionalismo sanitário Editorial Pandemic, future, and health constitutionalism Editorial Pandemia, futuro y constitucionalismo sanitário
Clenio Jair Schulze1
A pandemia de 2020 levou vidas, trouxe pobreza e exigiu novas reflexões sobre o
Direito Sanitário. São novos tempos que precisam de mudanças interpretativas e de
perspectivas que vislumbrem mais concretização dos direitos fundamentais. Neste sentido,
duas conclusões podem ser apresentadas. A primeira é que os problemas e as dificuldades
inerentes à pandemia justificam a construção de uma nova ordem, assentada em um
constitucionalismo sanitário.
O constitucionalismo sanitário propõe a concretização adequada dos artigos 196 a
200 da Constituição da República Federativa do Brasil. O constitucionalismo sanitário
também exige uma transformação (verdadeira revolução social) voltada para a priorização
dos seguintes aspectos: a) proteção dos trabalhadores do setor de saúde; b) financiamento
adequado da saúde pública; c) criação de um plano sério para melhoria da atenção primária
em saúde; d) investimento em pesquisa científica; e) fortalecimento das Comissões
Intergestores; f) respeito ao federalismo cooperativo sanitário; g) priorização orçamentária
para a área da saúde; h) meritocracia para o acesso a cargos na área da saúde; i) criação
de plano de carreira para os profissionais de saúde; j) formalização de políticas adequadas
de autocuidado em saúde; k) fixação de critérios mais objetivos para a judicialização da
saúde; l) construção adequada de diálogos institucionais entre os níveis de gestão em saúde;
m) redução do controle político sobre os sistemas de saúde pública e suplementar; n)
fortalecimento da Conitec; o) aplicação adequada do regime jurídico e das políticas de
acesso a medicamentos; p) construção e concretização de plano nacional de cuidados
paliativos; q) aplicação do movimento slow medicine na saúde; r) fortalecimento da estratégia
saúde da família; s) criação de política de educação sobre avaliação de tecnologias em
1 Doutor em Ciência Jurídica, Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, Santa Catarina, Brasil; juiz federal, Tribunal Regional Federal da 4º Região, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected]
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 10 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.752
saúde (ATS); t) controle rigoroso de conflito de interesses entre os profissionais que atuam
na área da saúde. São medidas não taxativas que merecem atenção da sociedade.
O constitucionalismo sanitário pretende valorizar a área da saúde, em todos os seus
aspectos, a fim de preservar a dignidade da pessoa humana e permitir a construção de uma
sociedade mais igual.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um grande instrumento para a realização de
direitos. Trata-se do maior programa mundial de acesso universal à saúde, pois está
disponível para mais de 200 milhões de habitantes. Apesar de muitas dificuldades
principalmente de ordem política e de subfinanciamento, são várias as práticas de sucesso
do SUS, inclusive reconhecidas internacionalmente, tais como: a) programa saúde da
família; b) programa nacional de transplantes de órgãos e tecidos; c) políticas de vacinação;
d) SAMU; e) programa de vigilância, prevenção e controle da AIDS; f) vigilância sanitária; g)
programas de assistência farmacêutica. Além disso, o acesso universal ao SUS produz um
efeito gigantesco para a sociedade: a redução das desigualdades e a consequente
maximização de riquezas.
A segunda conclusão também decorre da anterior. Durante a pandemia, o papel do
Estado ficou mais destacado, diante da necessidade de adoção de medidas para reduzir os
efeitos e os danos à sociedade. Contudo, há práticas que podem ser consideradas no
contexto do constitucionalismo abusivo2, tais como: a) redução – ou não ampliação – do
orçamento destinado à saúde pública; b) omissão em relação à adoção de medidas mais
efetivas de combate à pandemia; c) falta de união nacional para combater a pandemia; d)
omissão em relação à construção de medidas de estímulo e proteção aos profissionais de
saúde.
Tais medidas – também não taxativas – indicam a existência de um constitucionalismo
abusivo. Portanto, a sociedade deve combater as omissões e negativas ao cumprimento dos
direitos fundamentais. A Constituição é a bússola que deve guiar o país. No caso do Brasil,
a Constituição de 1988 é um documento pródigo na catalogação de direitos fundamentais.
2 “No Brasil contemporâneo, muito embora não subsista, fundamentalmente, um constitucionalismo abusivo estrutural, se considera que existe um constitucionalismo abusivo episódico, com a utilização de alguns mecanismos previstos na Constituição Federal de 1988 contra aspectos do Estado Democrático de Direito (Barboza; Robl Filho, 2018). Em 2019, por exemplo, com a eleição de Jair Bolsonaro, o País passou a figurar na lista do Observatório Mundial de Direitos Humanos de nações governadas por líderes autocráticos (Roth, 2019). De acordo com o índice de democracia da The Economist Intelligence Unit de 2019, o Brasil vive, atualmente, uma democracia imperfeita. No ranking, elaborado a partir de uma pesquisa cujos critérios foram processo eleitoral e pluralismo, cultura política, participação política, liberdades civis e funcionamento do governo, o Brasil ficou em 52º lugar, em um total de 167 países13 (The Economist Intelligence Unit, 2019). Há, sem dúvida, uma ‘escalada autoritária’, que ora avança, ora recua, mas sempre com um permanente movimento em direção à afirmação da liderança do Executivo e de sua concentração de poder.”
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 11 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.752
Na área da saúde não é diferente. O Direito Sanitário exige atuação concreta do
Estado para a sua realização. Assim, o constitucionalismo sanitário precisa ser prestigiado
e fomentado, ao passo que o constitucionalismo abusivo combatido.
Referências
1. de Aragão SM, de Lima Pack EW, Maggio MP. COVID-19 COMO IMPULSIONADORA DO CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO. Direito Público [Internet]. 2020 Nov 27;17(94). Disponível em: https://portal.idp.emnuvens.com.br/direitopublico/article/view/4435
Submetido em: 13/12/20
Como citar este artigo: Schulze CJ. Pandemia, futuro e constitucionalismo sanitário. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 9-11.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.752
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 12 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.643
O direito da parturiente ao acompanhante como instrumento de prevenção à violência obstétrica The parturient's right to a companion as an instrument to prevent obstetric violence El derecho del parturient a un compañero como instrumento para prevenir la violencia obstétrica
Natalie Maria de Oliveira de Almeida1,2
Edith Maria Barbosa Ramos3
Resumo Objetivo: realizar uma revisão sistemática de estudos acerca da violência obstétrica, refletindo sobre o direito da parturiente ao acompanhante enquanto meio de prevenção da incolumidade de sua saúde física e psicológica. Metodologia: levantamento bibliográfico de artigos obtidos em diferentes bancos de dados e indexadores, publicados na íntegra em português e acessados de forma gratuita no período de agosto de 2019 a julho de 2020. Foram selecionadas revistas científicas na área do Direito Sanitário e da Saúde Coletiva, com extratos A e B no Qualis/Capes. Utilizou-se, ainda, dados constantes em documentos oficiais disponibilizados nos sites do Ministério da Saúde brasileiro, da Fundação Perseu Abramo e da Organização Mundial de Saúde. Resultados: verificou-se que a violação ao direito das mulheres grávidas no momento do parto pode ser considerada como uma espécie de violência, pois perdem a autonomia sobre o seu corpo, e que a garantia do direito ao acompanhante pode diminuir a incidência desse tratamento. Conclusão: essa violência fica evidente em diversas ocasiões, como na atenção mecanizada e técnica por parte dos profissionais de saúde e, pela presente pesquisa, nota-se que, em parte, esse tratamento ocorre na ausência de acompanhamento da gestante por uma pessoa de sua confiança, razão pela qual é possível afirmar que o cumprimento efetivo de leis que protegem o direito do acompanhante pode reduzir significamente os casos de violência obstétrica. Palavras-chave Violência. Obstétrica. Saúde. Parto. Abstract Objective: to make a systematic review of studies on obstetric violence, reflecting on the parturient's right to the companion as a means of ensuring her physical and psychological health. Methods: bibliographic search of articles from different open access databases and indexers, published in full in Portuguese from August 2019 to July 2020. It was selected scientific journals in Health Law and Public Health with high impact factor. Data from official documents made available on the websites of the Brazilian Ministry of Health, the Perseu Abramo Foundation and the World Health Organization were also used. Results: it was found
1 Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-1731-460X. E-mail: [email protected] 2 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 3 Pós-doutora em Direito Sanitário, Fundação Oswaldo Cruz, Brasília, Brasília, DF, Brasil; professora, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6064-1879. E-mail: [email protected]
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 13 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.643
that the violation of the right of pregnant women at the time of childbirth can be considered a violence, as they lose their autonomy over their body, and that guaranteeing the right to a companion can reduce the incidence of this treatment. Conclusion: this violence is evident on several occasions, among them in the mechanized and technical attention on behalf of health professionals and, in this research, it is noted that, in part, this treatment occurs in the absence of monitoring of the pregnant woman by a person of their confidence, which is why it is possible to affirm that the effective enforcement of laws that protect the companion's right can significantly reduce the cases of obstetric violence. Keywords Violence. Obstetric. Health. Childbirth. Resumen Objetivo: realizar una revisión sistemática de los estudios sobre la violencia obstétrica, reflexionando sobre el derecho de la parturienta al acompañante como medio para prevenir la seguridad de su salud física y psicológica. Metodología: levantamiento bibliográfico de artículos obtenidos de diferentes bases de datos e indexadores, publicados íntegramente en portugués y con acceso gratuito desde agosto de 2019 hasta julio de 2020. Se seleccionaron revistas científicas del área de Derecho Sanitario y Salud Pública, con extractos A y B en Qualis/Capes. También se utilizaron datos de documentos oficiales disponibles en los sitios web del Ministerio de Salud de Brasil, la Fundación Perseu Abramo y la Organización Mundial de la Salud. Resultados: se encontró que la violación del derecho de las mujeres embarazadas en el momento del parto puede ser considerado como una forma de violencia, ya que pierde la autonomía sobre su cuerpo, y que garantizar el derecho a un acompañante puede reducir la incidencia de este tratamiento. Conclusión: esta violencia se manifiesta en varias ocasiones, entre ellas en la atención mecanizada y técnica por parte de los profesionales de la salud y, en la presente investigación, se observa que, en parte, este tratamiento se da en ausencia de seguimiento de la gestante por parte de una persona de su confianza, por lo que es posible afirmar que la aplicación efectiva de las leyes que protegen el derecho del acompañante puede reducir significativamente los casos de violencia obstétrica. Palabras clave Violencia. Obstétrico. Salud. Parto.
Introdução
O parto é um fenômeno fisiológico que, não raro, está associado à ideia de violência
contra a mulher, fazendo surgir, portanto, um novo termo: violência obstétrica. Enquanto o
termo violência significa a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis,
essa nova forma de violência, a obstétrica, foi caracterizada pela Organização Mundial de
Saúde (OMS), em 2002, pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher
pelos agentes de saúde, mediante tratamento desumanizado, abuso de medicalização e
patologização dos processos naturais que resultam na perda de autonomia da paciente e de
sua capacidade decidir de maneira livre e motivada sobre seu corpo e sexualidade (1). Trata-
se de uma violação aos direitos das mulheres grávidas em processo de parto que, entre
outras consequências, resulta na perda da autonomia e decisão sobre o corpo pela própria
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 14 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.643
parturiente. Estudos demonstraram que a equipe médica passou a encarar o parto
simplesmente como um procedimento cirúrgico, dispendendo, nesses casos, apenas o
tratamento técnico às pacientes, deixando de lado a importância da humanização nesses
processos (2).
São diversas as leis com o objetivo de assistir a gestante em todas as suas fases,
para garantir sua integridade física e mesmo sua dignidade humana. Não obstante essa
busca pelos aparatos jurídicos, o que se percebe é a violação desses direitos, corroborando
com o fenômeno da violência obstétrica. A efetivação da garantia do direito ao
acompanhante visa a segurança da parturiente e o bem-estar de seu trabalho de parto e
cujo descumprimento contra a vontade da gestante implica em violência obstétrica. Isso
porque, conforme será explanado, a presença do acompanhante em todas as fases do parto
garante à parturiente a sensação de segurança necessária para o bom andamento do
processo do parto. O que se espera em relação ao direito ao acompanhante é que as
parturientes tenham amplo conhecimento acerca da possibilidade de exigi-lo, considerando
os impactos de seu descumprimento na saúde da gestante e do bebê.
Por meio das pesquisas utilizadas neste trabalho, se pretendeu demonstrar que a não
punição para os casos de descumprimentos da lei do acompanhante e a falta de legislação
existente acerca da violência obstétrica permitem que a mulher sofra mais experiências
negativas, o que aumenta significativamente com a ausência de uma pessoa escolhida pela
parturiente para presenciar os momentos que antecedem o parto, o próprio momento do
parto, e o período que vem depois.
Metodologia
Foi feita uma revisão bibliográfica sobre a violência obstétrica e a importância da figura
do acompanhante enquanto um instrumento auxiliador para a diminuição de maus tratos ou
tratamento inadequado durante o período que antecede o parto, o momento do parto, e o
período posterior ao parto, sendo considerado ainda que a sua ausência, quando contrária
ao desejo das gestantes, enquadra-se como um dos tipos de violência obstétrica.
Para compreender o problema da pesquisa, foram apresentados conceitos acerca da
violência e da obstetrícia, para chegar-se ao termo violência obstétrica; em seguida,
demonstrou-se a importância da presença do acompanhante com base na proteção trazida
por leis e normas; realizando-se, por fim, uma análise acerca de como a companhia de uma
pessoa escolhida pela gestante poderia trazer menos danos à sua saúde e à saúde do bebê.
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 15 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.643
Foi feito um levantamento bibliográfico de artigos obtidos em diferentes bancos de
dados e indexadores, publicados na íntegra em português e acessados de forma gratuita no
período de agosto de 2019 a julho de 2020. Foram selecionadas revistas científicas na área
do Direito Sanitário e da Saúde Coletiva, com extratos A e B no Qualis/Capes. Utilizou-se,
ainda, dados constantes em documentos oficiais disponibilizados nos sites do Ministério da
Saúde brasileiro, da Fundação Perseu Abramo e da Organização Mundial de Saúde, tendo
essa pesquisa se dado entre agosto de 2019 a julho de 2020, a partir dos descritores
violência obstétrica; parto e violência contra a mulher; violência obstétrica e OMS nos sítios
de busca.
Após o levantamento bibliográfico, fez-se a leitura exploratória e, em seguida, foram
separados os artigos que definiram e analisaram o tema da violência obstétrica. Por fim, fez-
se uma leitura sistemática para a composição do material a partir de categorias de análises
que dão nomes aos tópicos que compõem o trabalho.
Resultados e discussões
Apontamentos sobre a violência obstétrica
Considerada uma das formas de violência contra a mulher, são diversas as tentativas
de definição acerca do que seria o fenômeno denominado violência obstétrica. Inicialmente,
conforme a OMS (1), esse tipo de violência pode ser definido enquanto a imposição de um
grau significativo de dor e sofrimento que podem ser evitados à gestante. Para a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994, trata-
se de qualquer ato ou conduta baseada no gênero que possa resultar em morte, dano,
sofrimento físico, social ou psicológico à mulher, seja na esfera de atendimento público ou
privado (3). Também se inclui entre a violência obstétrica a violência por negligência, que
ocorre por meio da negativa de atendimento ou das imposições de dificuldades para que as
gestantes tenham seus direitos observados, incluindo o descumprimento do direito da
mulher de ter um acompanhante (4).
A violência obstétrica se tornou mais perceptível em 2010 quando pesquisa realizada
pela Fundação Perseu Abramo comprovou que 25% das mulheres que tiveram partos
normais sofreram de algum tipo de maus-tratos ou desrespeito em alguma das fases do
parto (5), ou seja, uma a cada quatro mulheres sofreram alguma espécie de violência. Esse
tipo de violência caracteriza-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da
mulher pelos agentes de saúde que lhe disferem tratamento desumanizado, com abuso de
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 16 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.643
medicalização e patologização dos processos naturais, gerando perda da autonomia da
parturiente e da sua capacidade de decidir sobre seu corpo e sexualidade (6). As mulheres
são submetidas a procedimentos invasivos e violentos por acreditarem na necessidade da
intervenção, além de confiarem na equipe médica responsável pelo seu parto. No entanto,
parte desses procedimentos não possuem embasamento científico e violam os direitos
sexuais e reprodutivos da mulher, além de expor a parturiente e até mesmo o bebê ao risco
de incapacidade e/ou morte.
Conforme as Boas Práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento, publicação da
OMS (1), de 2014, foram elencadas quatro categorias de práticas que são comuns na
condução do parto, dependendo de sua utilidade, eficácia e grau de periculosidade:
• práticas demonstravelmente úteis que devem ser estimuladas: respeito à escolha da
mãe sobre o local do parto; respeito ao direito da mulher à privacidade no local do parto;
respeito à escolha da mulher sobre seus acompanhantes durante o trabalho de parto e
parto; liberdade de posição e movimento durante o trabalho de parto; fornecimento às
mulheres sobre todas as informações e explicações que desejarem;
• práticas claramente prejudiciais ou ineficazes e que devem ser eliminadas: uso rotineiro
de enema; uso rotineiro de tricotomia; exame retal; revisão uterina rotineira após o parto;
massagem e distensão do períneo durante o segundo estágio do trabalho de parto;
• práticas sem evidências suficientes e que devem ser usadas com cautela:
clampeamento precoce do cordão umbilical; manipulação ativa do feto no momento do
parto; pressão do fundo durante o trabalho do parto;
• práticas frequentemente usadas de modo inadequado: restrição hídrica e alimentar
durante o trabalho do parto; monitoramento eletrônico fetal; uso de máscaras e aventais
estéreis durante a assistência de parto.
Também se considera violência obstétrica os abusos verbais, procedimentos não
permitidos, recusa em administrar analgésicos e a proibição da presença do acompanhante.
Logo, percebe-se que essa violência possui diversas formas de penetrar no período do parto,
desde maneiras sutis até as maneiras mais violentas.
A escolha das mulheres pela cesárea também está relacionada à violência, isso
porque ela perde a autonomia nas decisões sobre o seu parto, ao se tornar um objeto de
manipulações sem consentimento ou sem a informação suficiente sobre os processos a
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serem realizados (2). Por conta disso, há a dificuldade do reconhecimento da violência
praticada, visto que muitas vezes as atitudes podem ser percebidas como atos técnicos
derivados dos profissionais da saúde, profissionais técnicos-administrativos de instituições
públicas e privadas, ou qualquer outra pessoa que se utilize da condição gravídica para
realizar os atos acima descritos. A dificuldade na constatação ocorre tanto com a vítima
quanto com seus acompanhantes, visto que na maioria dos casos não possuem capacidade
técnica para aferir ou contestar sua incidência, principalmente pelo estado de vulnerabilidade
da vítima que busca resguardar a sua vida e a de seu filho (7). A violência obstétrica e
complexa porque se estabelece em três tipos de relações: a violência no âmbito individual,
institucional e estrutural (8).
Resta claro que esse fenômeno tem sido percebido na medida em que o parto deixou
de ser compreendido enquanto um fenômeno natural e familiar, passando a ser visto como
um procedimento cirúrgico comum próprio do ambiente hospitalar e, portanto,
institucionalizado:
[o] evento complexo do parto e nascimento se tornou, ao longo dos últimos séculos, um assunto médico e hospitalar, separado da vida familiar e comunitária [...] O parto medicalizado e hospitalar tornou-se sinônimo de modernidade, de segurança e de ausência de dor. E, mais contemporaneamente, de espetáculo (9).
A violência institucionalizada verificada na prestação dos serviços de saúde
caracteriza-se pela negligência e maus-tratos dos profissionais com os usuários – as
parturientes –, incluindo a violação dos direitos reprodutivos e a peregrinação por diversos
serviços até que a mulher receba o atendimento necessário, além da aceleração do parto
com fins de desocupar os leitos (2). Tal violência pode ser explicada por um conjunto
complexo de circunstâncias, no qual:
[...] os partos complicados e as parteiras (bem como os medicos) despreparadas ceifaram muitas vidas; a criacao de maternidades separadas de hospitais gerais e a adocao de medidas de higiene e isolamento reduziram as mortes maternas hospitalares; a evolucao da tecnica da cesariana a tornou segura para salvar a vida de maes e bebes, no caso de partos com complicacoes; e os medicos se empenharam em divulgar tanto sua tecnica e pericia quanto uma postura humanitaria e filantropica (9).
O procedimento do parto passou a ter como regra o risco de patologias e
complicações, justificando a necessidade das intervenções médicas e inaugurando um
modelo tecnocrático de assistência ao parto (9). Assim, o principal objeto do obstetra passa
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a ser o útero e o seu produto, em vez da mulher. Como consequência dessa percepção do
corpo da mulher enquanto máquina, tem-se, inicialmente, a eliminação da concepção da
mulher enquanto sujeito do parto, substituindo-a pelo médico, de modo que passa a caber a
ele a condução do parto. Em seguida, há o impedimento de que os médicos reconheçam
como legítimas as situações em que o ambiente externo e o estado emocional da mulher
dificultam ou facilitam o procedimento do parto. Por fim, define e determina as intervenções
do médico quando ele achar que o músculo uterino não está respondendo apropriadamente.
Por essas práticas e rotinas se tornarem padrão, Maia ressalta que:
[a] imagem fragmentada do corpo máquina e da mulher útero, associada com a ideia do hospital como uma linha de produção, permitiu que se instituísse uma assistência padronizada que inclui a prática de deslocar a mulher durante o trabalho de parto (9).
Percebe-se ter havido a institucionalização do parto, que permitiu a implementação
de um cenário em que há uma relação de poder e hierarquia entre o médico e a parturiente
(10).
Essas acoes intervencionistas e, muitas vezes, desnecessarias, tem ocasionado a insatisfacao das mulheres, que sao relegadas a coadjuvantes nos processos de parto e nascimento. O parto passa a integrar um modelo centralizado na figura do medico e que exclui outros profissionais da saude, como enfermeiras, que por formacao estariam habilitadas para atender o parto normal (2).
Também é preocupante o fato de que essa violência seja silenciosa: em algumas
situações a parturiente não se dá conta da violência praticada contra ela ou prefere não
contar que a sofreu por medo de sofrer abandono por parte do profissional em um momento
de alta vulnerabilidade ou por não se sentir apoiada para oferecer a denúncia do tratamento
inadequado e agressivo (6). Logo:
Dentro dos servicos de saude, usuarias e profissionais nao associam os maus-tratos na assistencia ao parto como formas de violencia. Segundo pesquisa realizada por Aguiar (2010), as gestantes e os profissionais de saude consideram esses acontecimentos como pratica rotineira ou como resposta ao esgotamento das equipes frente a mulheres queixosas (2).
Predomina a ideia de que a violência está mais relacionada com uma agressão física
ou sexual, não sendo compreendida, portanto, entre as práticas diárias ou experiências
vividas na sala de parto (2). Com base no exposto, tem-se uma quebra na relação de
confiança entre mulheres e profissionais de saúde, fragilizando os vínculos existentes. Isso
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porque a mulher se sujeita a concordar com as vontades impostas pelos profissionais,
tornando-se, portanto, subordinada e refém a esse saber-poder por eles imposto. Assim, é
possível dizer que o medo e a insegurança existentes nos processos obstétricos alimentam
a violência presente no procedimento (11).
Esse quadro exige uma mudança no cenário da obstetrícia, considerando que o parto,
antes de ser uma situação cirúrgica, trata-se primeiro de um momento de grande significado
na vida da mulher. O tratamento mais humano no momento do atendimento e a promoção
da assistência no sentido de reduzir os impactos negativos gerados a partir de uma possível
violência devem ser garantidos. É nesse contexto, de promoção do bem-estar da mulher no
momento do parto que deve ser assegurado o seu direito ao acompanhante.
O direito da parturiente ao acompanhante
Uma das tantas formas de violência obstétrica é a proibição do acompanhante,
recomendada pela OMS desde 1985 na Conferência sobre Tecnologia Apropriada Para
Nascimento e Parto (7). Não obstante, o que se percebe é uma prática institucionalizada nos
hospitais, no sentido de não permitir a entrada do acompanhante ou não garantindo esse
direito de maneira plena, respeitando aquilo que assegura a lei. Como resultado disso, tem-
se uma interferência na vida privada, planejamento familiar e no amparo psicológico da
parturiente (7).
A institucionalização da violação obstétrica normaliza o descumprimento desse direito
e corrobora a sua reproducao. Assim, e possivel “[...] facilmente reproduzi-la de modo a
concebê-la inconsciente e rotineiramente sem questionamento de sua eventual necessidade
[...]” (7). Como um instrumento de garantia desse direito, inicialmente foi editada a Lei nº
8.080 de 1990 que, entre outras providências, dispõe sobre as condições para a promoção
proteção e recuperação da saúde, organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes. Posteriormente, essa lei foi alterada pela Lei nº 11.108/2005, que trouxe
como garantia o direito da parturiente à presença do acompanhante durante o trabalho de
parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), seja de rede
própria ou conveniada (12).
Para garantir o cumprimento dessa lei e expandir o conhecimento para as partes
interessadas acerca do presente direito, o art. 19-J, incluído pela Lei nº 11.108/2005, em seu
§3º, obriga os hospitais de todo o País a manter, em local visível de suas dependências,
aviso informando sobre o direito da parturiente ao acompanhante (12). Além de garantir às
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parturientes o direito ao acompanhante, a lei sujeita o hospital a deixar essa informação
visível caso alguma paciente o desconheça. A lei destaca que o acompanhante deve ser
indicado pela própria parturiente (art. 19-J, §1º), pois reconhece a possibilidade, ainda que
remota, de que a equipe médica possa subtrair esse direito de escolha. Essa proteção se dá
ainda pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 36/2008, da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (13), e pela Resolução Normativa (RN) nº 262/2011, da Agência Nacional
de Saúde (14). A RDC nº 36/2008 afirma que a presenca do acompanhante e de “livre
escolha da mulher” e que deve ser garantida sua privacidade e de seu acompanhante, além
de garantir a este ultimo “atendimento humanizado” e “poltrona removivel” (13). De igual
modo, a RN nº 262/2001, ao dispor sobre o rol de procedimentos e eventos em saúde,
garante a cobertura de despesas relativas à paramentação, alimentação e acomodação dos
acompanhantes “indicados pela mulher” (14).
Visando proteger também a parturiente e criança, o Estatuto da Criança e do
Adolescente dispõe no art. 8º:
E assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e as politicas de saude da mulher e de planejamento reprodutivo e, as gestantes, nutricao adequada, atencao humanizada a gravidez, ao parto e ao puerperio e atendimento pre-natal, perinatal e pos-natal integral no ambito do Sistema Unico de Saude. § 6o A gestante e a parturiente tem direito a 1 (um) acompanhante de sua preferencia durante o periodo do pre-natal, do trabalho de parto e do pos-parto imediato (15).
Além disso, o Estatuto prevê no art. 8º, § 6º, que, em caso de adolescentes grávidas,
a gestante e a parturiente têm direito a um acompanhante de sua preferência durante o
período do pré-natal, do trabalho de parto e do pós-parto imediato (15).
Conforme se percebe, a lei tem buscado a proteção da integridade física e psicológica
da mulher de várias maneiras, protegendo a parturiente e o bebê em todas as fases do parto.
O fato de o acompanhante estar integrando um dos direitos garantidos no momento do parto
e de forma tão reiterada reforça a ideia da importância do acompanhante para a parturiente.
No entanto, o que se tem percebido por meio dos relatos das pesquisas demonstradas por
Diniz et al (16) é que esse direito de mulheres grávidas ou parturientes serem acompanhadas
antes, durante e depois do parto, é descumprido frequentemente, reforçando a violência
contra a mulher, especificamente no que diz respeito a violência obstétrica. Um dos motivos
pelo qual isso ocorre é pelo desconhecimento do direito pelo sujeito que deveria exercê-lo.
É necessário que as mulheres sejam informadas, nos períodos pré-parto, durante o parto e
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pós-parto, sobre o seu direito ao acompanhante no decorrer de toda a internação até o final
do parto, incluindo a recuperação cirúrgica ou anestésica. Essa garantia se estende também
nos casos de aborto e demais complicações, a exemplo da gestação ectópica e molar (16).
Portanto, para que esse direito seja cobrado e exercido, é necessária a divulgação da
informação com antecedência e clareza que possibilite à mulher e à família fazer os arranjos
que forem precisos para garantir a escolha e participação do acompanhante (16).
É importante investir na disseminação da informação por meio de campanhas que
visem conscientizar acerca dos direitos das gestantes, assim como é necessária uma
urgente edição na lei do acompanhante de modo a prever pena pelo descumprimento dos
hospitais em divulgarem o direito ao acompanhante por meio de placas nas paredes –
conforme exigido pela lei. A prática de ambas essas medidas pode tornar o direito mais
exigível ao ficar mais conhecido e ao fazer com que as instituições saibam que o
descumprimento tem condão punitivo.
O acompanhante como instrumento de proteção
São cada vez mais frequentes o descaso e o desrespeito com as gestantes na
assistência ao parto, seja no setor público ou no setor privado de saúde. Casos vem à tona
seja por meio da imprensa ou da força atual das redes sociais, quando mulheres relatam
experiências traumáticas sofridas num momento natural da vida, que por vezes acaba sendo
visto como uma experiência puramente cirúrgica (2).
Entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012, a Fundação Oswaldo Cruz realizou a
primeira pesquisa a oferecer um panorama nacional sobre a situação da atenção ao parto e
nascimento no Brasil intitulada Nascer no Brasil: Inquérito Nacional sobre Parto e
Nascimento. Envolveu um grande número de pesquisadores renomados e teve como
objetivo conhecer os determinantes, a magnitude e os efeitos das intervenções obstétricas
no parto, incluindo os casos de cesarianas que se deram desnecessariamente, as
intervenções médicas durante o puerpério e o período neonatal, além de descrever a
estrutura das instituições hospitalares quanto à qualificação dos recursos humanos,
disponibilidade de insumos, equipamentos, medicamentos e unidade de terapia intensiva
(UTI) para adultos e neonatos (17).
A pesquisa foi realizada em maternidades públicas, privadas, e privadas conveniadas
ao SUS, incluindo 266 hospitais de médio e grande porte, localizados em 191 municípios,
incluindo capitais e cidades do interior de todos os estados do Brasil. Foram 90 puérperas
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em cada hospital, com permanência mínima de sete dias em cada um deles, viabilizando
entrevistas em mulheres que pariram durante o dia ou durante à noite, tanto em feriados
quanto em finais de semana (17).
O resultado foi que, mesmo quase uma década depois da promulgação da lei do
acompanhante, menos de 20% das mulheres se beneficiavam da presenca continua do
acompanhante durante todo o periodo de internacao, e a maioria das mulheres que contaram
com a presenca do acompanhante consideraram o fator “util ou muito util” para ter uma
experiencia melhor e mais calma no parto (91,2% das respostas validas) (17). Mesmo com
o posterior aumento desse índice, verificado na pesquisa, ainda há muito o que se fazer em
prol da garantia desse direito.
A revisão sistemática mais recente acerca do tema, citada na pesquisa de Diniz et al
(16), mostra que com o apoio contínuo no parto, as mulheres eram mais propensas a ter
parto vaginal espontâneo e menos propensas a utilizar analgesia intraparto ou relatar
insatisfação; o trabalho de parto era mais curto, e se davam menos por meio de cesariana
ou parto vagina instrumental. As mulheres que tinham acompanhantes relataram mais
satisfação com o atendimento e afirmam terem recebido mais informações, o que fez com
que se sentissem mais respeitadas pelos profissionais. Por meio das análises de subgrupos,
foi possível perceber que esse apoio contínuo foi mais eficaz quando advindo de alguém que
não fazia parte da equipe do hospital ou da rede social da mulher e que houve menor
incidência de qualquer forma de violência durante a internação. Ou seja, a presença de
acompanhante pode ser compreendida enquanto um indicador de segurança, de qualidade
do atendimento e de respeito pelos direitos das mulheres na assistência (16).
Percebe-se, a existência de um conflito de interesses na organização da assistência
ao parto (16). Isso porque há uma resistência à garantia do acompanhante para a mulheres
que influencia na promoção de um ambiente de nascimento saudável, levando-as a optarem
pelas cesáreas com a intenção de se sentirem mais protegidas da violência institucional
presente no momento do parto. Conforme a OMS, a opção da mulher ao acompanhante
durante todo o período do parto trata-se de uma das práticas demonstrada útil que deve ser
estimulada, considerando ser protetora das formas de violência durante o tempo necessário
para internação hospitalar, além de promover maior satisfação materna com o processo de
parto; encorajamento das mulheres; entre outros benefícios (1). O apoio continuo “[...]
otimiza a fisiologia do parto e os sentimentos de controle e competencia das mulheres,
reduzindo a dependencia de intervencoes medicas [...]” (6).
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Conforme demonstra Serra (6) em pesquisa realizada por meio de revisao sistematica
da literatura, na qual analisou 41 artigos sobre o suporte oferecido a mulher durante o
processo de parto no período de 10 anos, a presenca do acompanhante minora o sofrimento,
ansiedade e medo da mulher. Assim, torna o processo de parturicao mais natural e menos
traumático (6). É importante que a paciente tenha suporte emocional atrelado aos
sentimentos de segurança e confiança, levando à diminuição do nível de estresse materno
e depressão pós-parto (6). Deve-se considerar que, durante todo o processo de parto, a
mulher está recebendo diversos estímulos com sensações diferentes, de modo que toda
atitude que puder colaborar para um procedimento mais tranquilo, seguro e saudável deve
ser adotada.
São poucas as experiências humanas comparáveis com o parto e o nascimento,
considerando a intensidade física, psicológica e social, pois se trata de um evento histórico
e socialmente construído, com ampla variabilidade cultural e geográfica. Além disso, o
cuidado que a parturiente recebe durante o parto, assim como a qualidade da experiência
para ela, são marcadores da posição que ela e o bebê ocupam nessas hierarquias sociais,
incluindo dimensões como classe social, raça/etnia, estado de saúde, estado civil,
capacidade física, respeitabilidade sexual e outros (16). Daí a importância da humanização
no tratamento, visto que colabora com a reafirmação do lugar de protagonista da mulher no
momento do parto.
Não obstante as exigências da lei e a comprovação do benefício trazido pela presença
do acompanhante, as leis não são cumpridas e muitas mulheres continuam tendo seu direito
violado. Durante a negativa do acompanhamento, os argumentos que justificam a negação
do acompanhante fundam-se nas necessidades institucionais baseadas na estrutura física
dos hospitais ou ainda profissionais, quando a decisão passa a ser um critério do médico
(2). Resultados da pesquisa de Diniz et al (16) demonstram que, entre as mulheres que não
tiveram acompanhante durante o parto, 52% dos casos se deu pelo não cumprimento
institucional da legislação, principalmente sob o argumento de que não se permitia nenhum
tipo de acompanhante no hospital, além de outras formas de restrições: “[...] somente para
cesarianas ou para adolescentes, para acompanhantes mulheres, para aqueles que
participaram de um curso, para aqueles que tivessem pago etc.” (16).
Percebe-se, a necessidade de alteração em todo o contexto de aplicação da lei, para
que ela seja cumprida de maneira eficaz e traga, de fato, o benefício que dela se espera
para as parturientes. Também é preciso a elaboração de novas normas, pois nota-se a falta
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de leis pontuais que tratem da proteção e garantia dos direitos necessários às mulheres,
especificamente no período de suas gestações (4).
Conclusão
O período da gravidez é repleto de dificuldades naturais do próprio procedimento em
questão. No entanto, há casos em que se imputa à mulher sofrimento desnecessário ou que
poderia ser evitado, seja para facilitar o trabalho da equipe médica ou pelo simples fato de
que uma escolha nesse momento não foi tomada pela própria paciente. Percebe-se a
vulnerabilidade da mulher nesse momento, na medida em que desconhece a razão de
algumas intervenções ou não escolhe se submeter a elas.
Em ambos os casos, ocorre o fenômeno denominado violência obstétrica, que pode
ser conceituado como um tipo de violência específica contra a mulher em que há a imposição
de dor e sofrimento evitáveis (1). Além dessa imposição de violência, percebe-se também a
apropriação dos processos reprodutivos das mulheres, que se dá, entre outros fatores, por
meio da atenção mecanizada e da atribuição de medicamentos excessivos à mulher.
Outro modo de cometer a violência contra a mulher é privá-la do seu direito ao
acompanhante assegurado por lei, pois a observância desse direito pode diminuir os demais
casos de violência obstétrica. Isso porque a presença do acompanhante pode inibir o
comportamento de médicos, enfermeiras e de toda a equipe médica, garantindo à paciente
um parto debaixo de sua autonomia e seu consentimento.
Ocorre que, embora haja instrumentos jurídicos garantindo o direito ao
acompanhante, ele não é assegurado e reproduzido pelas instituições responsáveis pelo
parto. Os hospitais afirmam, diversas vezes, que não possuem condições estruturais de
acomodar o acompanhante do paciente, ou que não há obrigatoriedade no cumprimento
dessa lei uma vez que ela não possui sanção prevista em caso de descumprimento.
Além disso, o apoio institucional é determinante e essencial para a produção de
mudanças nas equipes de saúde, modificando as relações e corresponsabilizando os
profissionais com o intuito de aperfeiçoamento das práticas de cuidado e atenção impostas
às gestantes. Logo, com o auxílio e interesse da equipe médica responsável pelo parto, é
possível alcançar uma mudança significativa no contexto da violência obstétrica.
É necessário buscar alteração na lei com a finalidade de reforçar sua obrigatoriedade,
principalmente por meio de sanção em caso de descumprimento. A importância do
acompanhante para a parturiente é clara a tal ponto que mesmo diversas leis buscam sua
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garantia. Ademais, robustecer a ideia de que a parturiente tem esse direito por meio da
divulgação dessa informação também é um mecanismo importante para a garantia desse
direito na medida em que ele será mais exigido.
Deve-se buscar assegurar os direitos fundamentais da assistência obstétrica e buscar
a desmedicalização do nascimento, uma prática profissional pautada na medicina de
evidência, buscando, além do direito ao acompanhante, o consentimento livre e esclarecido
da gestante antes, durante e depois do procedimento do parto. É fundamental, portanto,
trazer visibilidade para essa questão, por meio de campanhas, criação de canais de
denúncia e ações de conscientização voltadas para população em geral. Dessa maneira,
espera-se que o desrespeito a esse processo natural cesse, permitindo à mulher autonomia
total sobre o seu corpo e sobre todas as fases do seu parto, garantindo a sua segurança, a
segurança do bebê e uma experiência livre de traumas e outras consequências negativas.
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Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 27 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.643
Colaboradores
Almeida NMO contribuiu com a redação; análise e interpretação de dados; e redação
final do artigo. RAMOS EBM contribuiu para a concepção/desenho do artigo; revisão crítica
e aprovação da versão final.
Submetido em: 06/03/20 Aprovado em: 07/11/20
Como citar este artigo: Almeida NMO, Ramos EMB. O direito da parturiente ao acompanhante como instrumento de prevenção à violência obstétrica. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 12-27.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.643
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 28 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.637
A fitoterapia na Atenção Primária à Saúde segundo os profissionais de saúde do Rio de Janeiro e do Programa Mais Médicos Herbal medicine in primary health care in Rio de Janeiro: a view from Brazilian and Cuban health professionals working at Mais Medicos Program Fitoterapia en Atención Primaria de Salud según profesionales de la salud de Río de Janeiro y del Programa Más Médicos
Mariana Leal Rodrigues1
Carlos Eduardo Aguilera Campos2
Bianca Alves Siqueira3
Resumo Objetivo: identificar como a fitoterapia, uma das práticas integrativas e complementares mais incidentes no Sistema Único de Saúde, tem sido apropriada pelos profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família (ESF) no município do Rio de Janeiro, destacando os limites dessa utilização na perspectiva do direito à saúde integral. Metodologia: por meio de uma metodologia qualitativa, do tipo exploratória, foi realizado um estudo transversal sobre o uso e a prescrição de fitoterápicos e plantas medicinais por médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde, de dezembro de 2016 a março de 2018, por meio da aplicação de um questionário fechado e entrevista semiestruturada. Resultados: a fitoterapia ainda não foi apropriada pelos profissionais de saúde pesquisados: 66,7% dos médicos e 41,7% dos enfermeiros afirmaram prescrever fitoterápicos, entretanto, a maioria afirmou não ter tido nenhuma instrução sobre o assunto. O cultivo de plantas medicinais foi observado nas visitas domiciliares por 76,9% dos agentes comunitários de saúde e 54% dos enfermeiros. Já o uso pela população foi relatado por 83,3% dos enfermeiros e 80,9% dos médicos. Conclusão: A fitoterapia ainda permanece marginal na ESF. Promover e ampliar o uso da fitoterapia na Atenção Primária à Saúde pode resultar em experiências inovadoras que envolvam usuários, profissionais de saúde e gestores para transformar as condições de saúde da população. Palavras-chave Fitoterapia. Plantas Medicinais. Atenção Primária à Saúde. Estratégia Saúde da Família. Abstract Objective: to identify how professionals who work with Family Health Strategy in the city of Rio de Janeiro, a common integrative and complementary practice in the Public Health System in Brazil, have incorporated phytotherapy into their practice, highlighting the limits of this use from the perspective of the right to integral health. Methodology: using a qualitative exploratory methodology, a cross-sectional study was conducted to identify the use and prescription of herbal medicines and medicinal plants by physicians, nurses, and community health agents from December 2016 to March 2018. Results: the professionals surveyed have
1 Doutora, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Rio de Janeiro, RJ, Brasil; professora adjunta, Departamento de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-1305-250X. E-mail: [email protected] 2 Doutor, Medicina Preventiva, Universidade São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil; professor associado, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-8277-5146. E-mail: [email protected] 3 Graduada, Escola de Medicina e Cirurgia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-3169-2049. E-mail: [email protected]
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not incorporated phytotherapy into their practice. The results show that 66.6% of physicians and 41.6% of nurses prescribe herbal medicines, however, most claimed to have had no instruction on the subject. 76.9% of community health workers and 54% of nurses observed at home visits that the population cultivate medicinal plants and 83.3% of nurses and 80.9% of doctors reported the use by the population. Conclusion: phytotherapy remains marginal in the Family Health Strategy. Promoting and expanding the use of phytotherapy in Primary Health Care can result in innovative experiences involving users, health professionals and managers to transform the population's health conditions. Keywords Phytotherapy. Medicinal herbs. Primary Health Care. Family Health Strategy. Resumen Objectivo: identificar cómo la fitoterapia, una de las prácticas integradoras y complementarias más comunes en el Sistema Único de Salud, ha sido apropiada por diferentes profesionales que trabajan en la Estrategia de Salud Familiar en la ciudad de Río de Janeiro destacando los límites de este uso desde la perspectiva del derecho a la salud integral. Metodología: utilizando una metodología exploratoria cualitativa, se realizó un estudio transversal sobre el uso y la prescripción de plantas medicinales y fitoterapicos por parte de médicos, enfermeras y agentes comunitarios de salud desde diciembre de 2016 hasta marzo de 2018. Resultados: la fitoterapia aún no ha sido apropiada por los profesionales de la salud encuestados: los resultados muestran que el 66,6% de los médicos y el 41.6% de las enfermeras declararon recetar remedios herbales, sin embargo, la mayoría declaró que no tenían educación sobre el tema. El 76,9% de los agentes comunitarios de salud y el 54% de las enfermeras observaron el cultivo de plantas medicinales en las visitas domiciliarias. El 83,3% de las enfermeras y el 80,9% de los médicos informaron sobre el uso por parte de la población. Conclusión: la fitoterapia sigue siendo marginal en el Estrategia Salud de la Familia. Promover y ampliar el uso de la fitoterapia en la Atención Primaria de Salud puede dar lugar a experiencias innovadoras que involucren a usuarios, profesionales de la salud y gerentes para transformar las condiciones de salud de la población. Palavras clave Fitoterapia. Atención Primaria de Salud. Estrategia Salud de la Familia.
Introdução
A fitoterapia é uma prática integrativa e complementar (PIC) que está presente no
Sistema Único de Saúde (SUS) (1) desde a sua criação, preferencialmente usada em
doenças crônicas tratadas no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS).
No estado do Rio de Janeiro, a fitoterapia está regulamentada desde 2001 (1). Já o
Programa de Plantas Medicinais e Fitoterapia da Secretaria Municipal de Saúde (SMSRJ)
se iniciou em 1992 e faz parte do Programa de Práticas Integrativas e Complementares, do
Departamento de Doenças Crônicas Não Transmissíveis. O Programa desenvolve ações de
promoção da saúde, cultivo de plantas medicinais, assistência farmacêutica fitoterápica,
assistência médica fitoterápica e educação permanente. Em 2008, passou a oferecer
assistência farmacêutica, que inclui medicamentos fitoterápicos industrializados (garra do
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diabo, isoflavona e guaco), feitos sob demanda em farmácias de manipulação (cremes para
uso tópico de erva baleeira, arnica e calêndula, colutório de tansagem, sachês de plantas) e
a implantação de hortas comunitárias em unidades que se habilitam para tal, assim como
ações de educação em saúde (grupos de usuários e rodas de conversa) (2).
A organização sanitária da cidade − antiga capital federal e atualmente uma grande
metrópole, com imensas desigualdades e diversidade cultural – tem relevância histórica e é
uma referência para a saúde pública do país. A pesquisa foi realizada entre dezembro de
2016 e março de 2018. Esse foi um período singular: após a significativa expansão da ESF
e durante a convivência com profissionais de saúde estrangeiros.
Se, desde 1999, a saúde da família é a principal estratégia do modelo de atenção
básica à saúde no país, no Rio de Janeiro, entretanto, esse crescimento foi mais lento e
restrito a áreas de pobreza extrema, com alto índice de violência e vazios assistenciais (3).
Somente a partir de 2009, a APS tornou-se o eixo ordenador do sistema (3). Em 2014, a
ESF já havia alcançado uma cobertura de 45% no município (3). De 2013 a 2018, por meio
do Programa Mais Médicos (PMM), médicos cubanos foram designados para trabalhar nas
áreas de maior demanda e vulnerabilidade social e trouxeram consigo a experiência no uso
de plantas medicinais e fitoterápicos oriundos da formação e da prática em medicina natural
e tradicional em Cuba (4).
Integralidade e fitoterapia no SUS
A oferta de fitoterapia no SUS está em consonância com as recomendações da
Organização Mundial da Saúde (OMS), preconizadas desde 1978 por meio da Declaração
de Alma-Ata: inclusão de medicinas alternativas ou tradicionais em sistemas oficiais de
saúde (5). Esse documento também estabeleceu a APS como eixo principal de sistemas
nacionais de saúde integral.
No Brasil, a Estratégia Saúde da Família (ESF) é uma experiência exitosa na APS,
apesar do subfinanciamento histórico do SUS (6), com impactos relevantes na melhoria do
acesso e na saúde da população (7). É na APS onde ocorrem 78% da oferta de PICs e os
profissionais da ESF são seus maiores promotores (8).
A oferta de fitoterapia na APS, seus limites e desafios, é um fenômeno que nos
permite pensar dimensões do direito à saúde que estão além da prestação de um serviço ou
oferta de um tipo de cuidado: a possibilidade de reconhecimento de práticas curativas de
diferentes matrizes culturais; a construção da autonomia do usuário no autocuidado; e o
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fortalecimento da participação do usuário no controle social. O uso de fitoterápicos e plantas
medicinais encontra respaldo na cultura popular (9), tem raízes históricas (10) e foi, e ainda
é, tema de conflito de saberes curativos (11) por promover o encontro de diferentes
racionalidades médicas (12).
A partir da Constituição de 1988, um conjunto de políticas públicas foi construído para
a promoção da cidadania e o reconhecimento dos grupos formadores da sociedade
brasileira, dentre as quais, na área da saúde, destacam-se a Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares (PNPIC) (13) e a Política Nacional de Plantas Medicinais e
Fitoterápicos (PNPMF) (14). A PNPMF visa à “garantia do acesso seguro e uso racional de
plantas medicinais e fitoterápicos em nosso país, ao desenvolvimento de tecnologias e
inovações, assim como ao fortalecimento das cadeias e dos arranjos produtivos, ao uso
sustentável da biodiversidade brasileira e ao desenvolvimento do Complexo Produtivo da
Saúde” (14). Essa política estabeleceu interface do direito à saúde com outros direitos
coletivos, como cultura (ao tratar do conhecimento tradicional sobre uso de plantas
medicinais) e meio ambiente (ao considerar o desenvolvimento sustentável na formulação
de políticas). Essas implicações ambientais, culturais e sociais do uso da fitoterapia e das
plantas medicinais estão previstas tanto nas políticas (13 e 14) quanto nos materiais
educativos e informativos produzidos pelo Ministério da Saúde (1). Na Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais (Rename) (15) do SUS foram incluídos fitoterápicos e suas
indicações terapêuticas para uso na APS. Atualmente, constam doze espécies: alcachofra
(Cynara scolymus L.), aroeira (Schinus terebenthifolia Raddi), babosa (Aloe vera L.), cáscara
sagrada (Rhamnus purshiana DC), espinheira-santa (Maytenus ilicifolia Mart.), garra-do-
diabo (Harpagophytum procubens DC), guaco (Mikania glomerata Spreng.), hortelã (Mentha
x piperita L.), isoflavona-de-soja (Glycyne Max L.), plantago (Plantago ovata Forssk),
salgueiro (Salix Alba L.) e unha de gato (Uncaria tomentosa Willd. ex Roem. & Schult.).
Com mais de uma década de vigência da PNPIC e da PNPMF, as PICs ganharam
cada vez mais visibilidade. Houve um significativo aumento da oferta de programas de
fitoterapia em municípios brasileiros: 116 em 2004, 346 em 2008 e 815 municípios em 2012
(16).
Desde a criação do SUS, foram estabelecidos políticas públicas, normas, materiais
educativos, atividades de educação permanente e ampliou-se o reconhecimento de outras
práticas integrativas e complementares com visas à promoção e garantia da integralidade.
O princípio normativo da integralidade se baseia em três eixos: promoção, prevenção e
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recuperação, e possui muitos sentidos (17). Com o crescente fenômeno da judicialização da
saúde, tem sido evocado para obtenção de terapias e medicamentos (18) para fins de
assistência individual. Nesta pesquisa, tomamos o sentido do senso comum do uso
institucional e profissional, que se refere a “uma atenção à saúde de boa qualidade, que
considere as múltiplas dimensões e dê conta das várias complexidades dos problemas de
saúde pública e das pessoas, bem como dos riscos da vida moderna” (19). A partir dessa
concepção, devem ser ofertadas, de forma articulada, ações de promoção da saúde,
prevenção dos fatores de risco, assistência aos danos e reabilitação (20). Esse princípio
resguarda uma dimensão ética e política que implica um sistema de saúde universal que
promova o desenvolvimento e a inclusão social e afirme a saúde como um bem público,
reconhecendo saberes e práticas da sociedade em sua diversidade política, cultural e
epistemológica (19).
Embora respaldadas, as PICs ainda ocupam um espaço marginal na formação
profissional. Sua aprendizagem em instituições de ensino superior (IES) públicas tem sido
identificada como insuficiente e difusa (8): Na graduação, a maior oferta é de disciplinas
informativas, e não nas formativas (21). Os mesmos profissionais que realizam o cuidado
segundo os critérios biomédicos também praticam as diferentes PICs, o que torna a oferta
dependente da competência prévia ou da formação no serviço. Há limitações para as
atividades de capacitação, pois a grande demanda por atendimento nem sempre permite o
afastamento do profissional (22) e, em geral, as formações proporcionadas pela gestão via
educação em serviço não permitem maior aprofundamento (22). No Brasil, ainda se
considera incipiente a formação em PICs para o SUS, apesar de iniciativas restritas, haja
vista que são as instituições privadas que oferecem formação (8).
Observar como os profissionais de saúde que atuam na cidade do Rio de Janeiro,
após uma expansão e consolidação da ESF na APS, utilizam a fitoterapia permite
problematizar como tem sido realizada a promoção da saúde integral e universal e como a
formação, seja nas instituições de ensino, seja no serviço, é um meio para modificar a
realidade. A ausência de formação em PICs prejudica a orientação segura de pacientes para
a tomada de decisões em relação a seu uso, limitando, assim, que os pacientes se
beneficiem adequadamente dessas práticas (21).
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Metodologia
O estudo foi realizado nas unidades da área de planejamento 3.1 (AP 3.1) do
município do Rio de Janeiro, com 98 médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde,
que responderam a um questionário fechado, tipo survey, e com outros 47 profissionais de
saúde dessas mesmas categorias que participaram de entrevistas individuais
semiestruturadas. Foi registrado e aprovado no Comitê de Ética da Secretaria Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro (SMSRJ), CAAE 57746216.8.3001.5279, parecer nº 1745.459.
Considerada como região densamente povoada e representativa do município, com
bairros suburbanos de camadas médias e de baixa renda, com grande demanda
assistencial, a área de planejamento 3.1 engloba as regiões administrativas de Ramos,
Penha, Vigário Geral, Ilha do Governador, Complexo do Alemão e Complexo da Maré. Outro
aspecto relevante é a presença de estudantes de graduação e residentes vinculados à
Universidade Federal do Rio de Janeiro nas unidades de saúde, o que as distingue de outras
que não possuem programas semelhantes.
Foi aplicado um questionário fechado impresso, do tipo survey, de setembro a outubro
de 2017, para os médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde. O survey foi
composto de uma nota informativa no modelo de termo de consentimento livre e esclarecido
e nove perguntas: i) identificação da categoria profissional, ii) idade, iii) gênero, iv) se faz
prescrições de fitoterápicos ou plantas medicinais, v) se houve formação para tanto, vi) se
conhece a PNPMF vii) se conhece o Caderno de Atenção Básica sobre o tema, viii) se
constatou uso pelos pacientes e nas visitas domiciliares, e ix) se, pessoalmente, usa plantas
medicinais e fitoterápicos. Após o recolhimento dos questionários preenchidos por 52
agentes comunitários de saúde, 21 médicos e 24 enfermeiros, o conteúdo foi digitalizado,
tendo como critério de exclusão o preenchimento de mais de um campo por questão (um foi
excluído).
Um questionário semiestruturado foi utilizado para entrevistar outros profissionais de
saúde a fim de conhecer os determinantes e condicionantes para a prescrição. Ao todo,
foram entrevistados 8 agentes comunitários de saúde; 10 médicos brasileiros; 8 médicos
cubanos e 21 de enfermeiros. As entrevistas aconteceram durante os meses de dezembro
de 2016 a março de 2017, foram transcritas e analisadas de acordo com a metodologia de
descrição analítica em forma de grade (23), esta foi composta pelas questões do survey
descritas anteriormente a fim de reconstruir, pela interpretação, o significado visado pelos
atores em situação e explicar posteriormente suas causas ou efeitos, possibilitando a
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construção de uma teoria local (23). Buscou-se avaliar diferentes fatores que estivessem
relacionados à prescrição e ao uso de fitoterápicos como o ensino médico, os hábitos
culturais de cuidados com a saúde de determinadas populações e a disponibilidade desses
recursos no ambiente. Trechos das entrevistas foram destacados de acordo com essas
categorias.
Nas entrevistas, designamos os médicos brasileiros pela sigla MAPS (médicos da
atenção primária em saúde), os cubanos como PMM (Programa Mais Médicos), os
enfermeiros como ENF e os agentes comunitários de saúde como ACS, todos numerados
para representar cada entrevistado.
Resultados e Discussão
A fitoterapia está presente na APS carioca de forma tímida: 44,4% dos enfermeiros e
médicos não prescrevem fitoterápicos (Gráfico 1).
Gráfico 1: Faz prescrições de fitoterápicos ou plantas medicinais?
Fonte: elaborado pelos autores.
Para os profissionais de saúde brasileiros a formação pode ser uma das razões que
influenciam a prescrição. Houve pouco ou nenhum contato com essa terapêutica na
graduação para 83,3% dos enfermeiros e 85,7% dos médicos.
A familiaridade com os materiais normativos e educativos produzidos pelos Ministério
da Saúde variou conforme a categoria profissional e, entre todos os entrevistados, a PNPMF
só é conhecida por 27,8% (Gráfico 2), enquanto os Cadernos de Atenção Básica sobre PICs
é mais familiar, conhecido por 38,1% (Gráfico 3).
7,7%
41,7%
66,7%
53,3%
84,6%
58,3%
28,6%
44,4%
7,7%0,0%
4,8% 2,2%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
ACS Enfermeiro(a) Médico(a) Médico(a) eEnfermeiro(a)
Sim Não Não informado
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 35 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.637
Gráfico 2. Conhece a Política Nacional de Fitoterápicos e Plantas Medicinais?
Fonte: elaborado pelos autores.
Gráfico 3. Conhece o Caderno de Atenção Básica sobre Prática Integrativas e
Complementares?
Fonte: elaborado pelos autores.
As plantas medicinais e fitoterápicos estão presentes no cotidiano da atenção básica,
seja no uso pelos pacientes (Gráfico 4), seja no uso dos próprios profissionais de saúde
(Gráfico 5).
13,5%
41,7%47,6%
27,8%
86,5%
58,3%52,4%
72,2%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
ACS Enfermeiro(a) Médico(a) Todos
Sim Não
11,5%
79,2%
57,1%
38,1%
88,5%
20,8%
42,9%
61,9%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
ACS Enfermeiro(a) Médico(a) Todos
Sim Não
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 36 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.637
Gráfico 4. Durante as visitas domiciliares, percebe o cultivo/uso de plantas medicinais pela
população?
Fonte: elaborado pelos autores.
Gráfico 5. Utiliza fitoterápicos ou plantas medicinais para cuidar da própria saúde?
Fonte: elaborado pelos autores.
As entrevistas semiestruturadas revelaram que, além da formação, outros aspectos
podem comprometer a prescrição, como a disponibilidade na rede de assistência
farmacêutica, a insegurança em relação à legitimidade da prescrição por enfermeiros e o
excesso de uso de medicamentos por parte da população.
76,9%
54,2%
33,3%
23,1%
45,8%
66,7%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
ACS Enfermeiro(a) Médico(a)
Sim Não
63,5%
75,0% 76,2%
36,5%
25,0% 23,8%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
ACS Enfermeiro(a) Médico(a)
Sim Não
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 37 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.637
No que diz respeito à formação, somente três dos dez médicos brasileiros afirmaram
ter tido alguma formação na faculdade em fitoterapia.
Um pouco, eu aprendi no curso de homeopatia, porque alguns professores tinham feito fitoterapia também [...] Cranberry e garra do diabo, aprendi em protocolos, lendo sozinha. (MAPS 1) A valeriana eu aprendi na faculdade, em Farmacologia, onde o professor mostrou um estudo de que ela ajuda a dormir, ao contrário de camomila, maracujá, em que não tenho comprovação científica. (MAPS 5)
Alguns dos entrevistados afirmam ter aprendido após a graduação, durante a prática
clínica e na residência.
Eu não tive muita formação em termos acadêmicos, eles não focavam muito. (...) Quando eu entrei na residência de Medicina de Família, foi pelo município que a gente conseguiu aprender um pouco mais nas aulas teóricas [...] a gente fez uma horta medicinal na nossa unidade e a própria administração foi fazer curso pra aprender porque a gestão disponibilizava e era bem bacana. (MAPS 9) Não, eu aprendi aqui mesmo na rotina do dia a dia. A gente teve uma sessão clínica sobre isso, uma residente aqui da nossa equipe foi me apresentando algumas dessas medicações fitoterápicas e eu tenho usado. (MAPS 6)
Na região metropolitana do Rio de Janeiro, uma análise dos projetos pedagógicos de
faculdades de medicina das IES públicas, consultados em 2017, corrobora esses resultados:
a maioria das disciplinas tem caráter informativo e não são obrigatórias (21). Somente há
obrigatórias quando inseridas na formação em integralidade da medicina de família e
comunidade, como, por exemplo, as disciplinas Medicina Integral, Familiar e Comunitária I,
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) (24); Atenção Integral à Saúde, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (25), e Homeopatia e Outras Racionalidades
Médicas, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) (26). Há ofertas de
disciplinas não obrigatórias, como Terapêutica Homeopática e Clínica Homeopática, da
Unirio, e Cuidada Integrativo em Saúde; Fitoterapia: fundamentos e introdução à prática;
Medicina Tradicional Chinesa - Acupuntura; Introdução à Homeopatia I, Terapêutica
Homeopática e Propedêutica Homeopática na Universidade Federal Fluminense (UFF) (27).
Somente na UFF e na Unirio, a fitoterapia está presente no currículo oferecido para a
formação médica, ainda assim, em caráter não obrigatório.
Mesmo entre os que afirmaram ter aprendido sobre fitoterapia na graduação, foi
destacado o papel da educação permanente nas clínicas de saúde da família na ampliação
do conhecimento. Vale ressaltar o impacto da presença do internato e do programa de
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 38 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.637
residência da UFRJ na formação continuada dos profissionais da ESF na AP 3.1,
complementando, ainda que de forma insuficiente, uma lacuna na formação acadêmica.
Se a formação do profissional médico é insuficiente para que possa consolidar a
fitoterapia como uma opção na APS, a dos enfermeiros também não é capaz de lhes garantir
segurança. Nas entrevistas, embora a maioria reconheça a fitoterapia como uma prática em
sintonia com a Estratégia Saúde da Família, é pouco utilizada: somente 9 dos 21
entrevistados relataram o uso na sua unidade de atuação e prescrevem os fitoterápicos
protocolados e disponíveis na farmácia. Entre as razões apontadas estão a formação
acadêmica, a insegurança em relação ao protocolo de enfermagem no município e a
demanda da população por terapias medicamentosas de curto prazo.
Muita gente ainda tem aquela ideia da terapia medicamentosa e questiona: “mas eu vim aqui pra você me passar exercício de alongamento e compressa?”, “mas não vai passar um anti-inflamatório?”. (ENF4)
Embora o protocolo de enfermagem oriente a prescrição de xaropes e pomadas
fitoterápicos, muitos não se sentem respaldados. Dos nove enfermeiros entrevistados, seis
afirmaram não prescrever, mas houve relatos contraditórios:
Não prescrevi fitoterápicos, o único que costumo prescrever é a mikania nomerata [guaco], os outros, eu, como sou residente no momento, não tive aula a respeito desse tema. Já tive algumas coisas superficiais, mas como são compostos que não estão no protocolo de enfermagem, confesso que fico inseguro para prescrever um composto, uma substância que não sei se tenho respaldo legal para isso. (ENF6) Sim, no próprio protocolo de enfermagem na Atenção Básica tem algumas opções de fitoterápicos. E na faculdade de enfermagem a gente aprende também algumas receitas de xarope caseiro, então, a gente utiliza de uma forma até mais confortável, pelas orientações de que tem menos efeitos colaterais e tal. A gente tem isso respaldado no protocolo, a primeira coisa, mais importante, é esse respaldo. (ENF1)
A fitoterapia também foi apresentada de forma superficial na graduação.
Na faculdade a gente tem, é um pouco fragmentado, porque você tem um momento que você vai estudar Saúde da Mulher, um momento que você vai estudar Saúde da Criança e cada professor que é especialista naquela área vai dar suas dicas do uso de fitoterápicos. (ENF1) O pouco que eu aprendi foi com uma enfermeira aqui, agora, na minha prática. Na vivência da faculdade nunca tive, nem ensinaram a prescrever e nem vi profissionais prescrevendo também. (ENF2)
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 39 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.637
Os programas de educação permanente encontram obstáculos na sobrecarga
profissional. No trabalho na ESF, o enfermeiro desempenha diversas funções: além da
assistência, há atividades administrativas, de organização e liderança da equipe. Muitas
vezes, quando há a abertura de cursos online, ou oferta de capacitações oferecidas pela
SMSRJ, os enfermeiros afirmaram que não conseguem participar por estarem envolvidos na
assistência direta.
Nos meus seis anos e meio de Atenção Primária, teve um curso. Quando abre esse tipo de curso, que não é sempre, geralmente a gente não consegue, porque, às vezes, são cursos mais extensos ou voltados só para uma categoria. Só pode ir um profissional por unidade ou um profissional por categoria, então fica difícil. Aquele que vai para o curso nem sempre tem tempo para poder multiplicar dentro da unidade. (ENF5) As coisas que eu vejo de fitoterápicos são na UNASUS, abre, mas como não me demanda muito, eu acabo não fazendo esse curso. (ENF 9)
Estudos (22) sobre a oferta de PICs na APS destacam os limites das formações
continuadas oferecidas pelos gestores: não são capazes de suprir as deficiências do ensino
acadêmico, nem conseguem alcançar um número representativo de profissionais de cada
unidade. Para os entrevistados, entretanto, diante da insuficiente formação na graduação, a
aprendizagem no serviço é percebida como uma possibilidade concreta, embora ainda
distante da realidade cotidiana.
Cubanos: oportunidade perdida
Entre os entrevistados do Programa Mais Médicos, todos de nacionalidade cubana,
as respostas foram divergentes das dos brasileiros. Os depoimentos revelam que o período
de cooperação no Brasil foi uma oportunidade perdida para ampliar a troca de saberes sobre
uso de drogas vegetais e fitoterápicos.
Enquanto os médicos brasileiros citaram 22 variedades de plantas medicinais nas
entrevistas, os cubanos mencionaram 30. Seis entre os oito entrevistados cubanos
afirmaram terem prescrito fitoterápicos, mas detalharam as dificuldades enfrentadas como a
resistência da população e a oferta de recursos: desde a disponibilidade na rede de
assistência farmacêutica ao tempo de duração das consultas.
Prescrevo sim, principalmente para doenças de uso tópico, uso externo, como micoses de pele, muito comum aqui na comunidade. Geralmente para doenças na pele, pelo menos na minha equipe. (PMM 3)
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Aqui na farmácia tem esse xarope de guaco, mas utilizo também a espinheira santa, porque tem muito efeito. Utilizo também a camomila, a goiaba, o eucalipto, porque eu falo sobre isso, utilizo a passiflora. Tento estimular uma cultura para eliminar a dependência de medicamentos para transtornos mentais, (...) que tento substituir utilizando a passiflora, é um trabalho forte, falo com os pacientes sobre o perigo do uso do clonazepam, que tem efeitos diversos [...]. Por aí estamos fazendo um trabalho. (PMM 1)
Os profissionais cubanos relataram maior independência em relação à disponibilidade
na farmácia, já que recomendaram o uso das plantas in natura, como drogas vegetais.
Goiaba, capim santo, passiflora, eucalipto e aloe vera foram algumas das mais mencionadas
que não estão na relação de produtos disponibilizados pela SMSRJ.
Se a prescrição no Brasil encontrava barreiras na língua, na identificação das plantas
in natura, na disponibilidade da farmácia e na resistência de pacientes, em Cuba, sete dos
oito médicos cubanos entrevistados afirmaram terem utilizado a fitoterapia. Foram
mencionados programas governamentais de promoção e a tendência de incluir o paciente
numa relação horizontal, além de promover o autocuidado. Por outro lado, também foi
destacado em duas entrevistas que esse uso é motivado, entre outras razões, pela escassez
de medicamentos no país.
Em nosso país, a medicina natural é muito usada. Nas farmácias tem o dispêndio e a venda do produto natural, muito acessível para a população e com muita efetividade. Nas policlínicas e nos hospitais também fazemos uso da medicina natural e tradicional. Em meu caso particular, eu tenho muita experiência. Fiz muitas investigações de efetividade de produto natural. [...] aqui no Brasil fica um tanto difícil usar alguma planta medicinal, por quê? Uma idiossincrasia da população, um desconhecimento da efetividade de algumas plantas. (PMM 2) Em Cuba, esse programa é prioritário. Você conhece que em Cuba tem alguma falta de medicação, é importante. Usamos muito os fitoterápicos para a pele, para as vias respiratórias, para o aparelho respiratório. Na verdade, lá tem muita diversidade, chegam a 400, 500 tipos de fitoterápicos. Diversidade para tudo, tratam-se todas as doenças, dependendo do recurso. (PMM 1)
A medicalização e o uso frequente de remédios de prescrição controlada, como
benzodiazepínicos, foram destacados pelos cubanos como um desafio nas condições de
saúde da população. A fitoterapia é percebida como uma possibilidade terapêutica, que
associada a outras práticas de autocuidado, poderia diminuir a dependência de
medicamentos, controlados ou não. Tal percepção sobre o comportamento da população da
área, densamente povoada, com a maioria de famílias de baixa renda, com grande número
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de jovens, somente foi compartilhada pelos enfermeiros e não foi mencionada entre os
médicos brasileiros como um limitador da prescrição.
Primeiro, aqui na comunidade em que trabalho já percebi que eles não têm hábito nenhum de fazer uso de fitoterápicos e, muitas vezes, estranham coisas como chá de limão para dormir, dá para perceber que nem conhecem. Segundo, a Clínica não oferece fitoterápico para que o paciente possa usar. Tem medicação para doenças crônicas, como insulina, mas não complementa com fitoterápicos para fazer pelo menos uso complementar, não é tirar a medicação para doenças crônicas, mas complementar, para usar junto. (PMM3) Tem certo rechaço da população que não acredita na medicina natural, tem que ter um paciente que vem do Nordeste, que aqui tem muito, para que a informação que nós transmitimos seja aceita. Eles acreditam, são os meus seguidores, mas geralmente não é muito aceito. (PMM1)
É importante contextualizar que a inserção de profissionais cubanos ocorreu com uma
grande resistência dos profissionais brasileiros, cujo principal porta-voz foi o Conselho
Federal de Medicina (28), e houve tensões e conflitos no início do Programa. Embora a
pesquisa tenha se realizado em uma fase final do PMM, havia uma constante tensão entre
a legitimação dos saberes dos médicos cubanos, que não possuíam registros nos conselhos
do país e trabalhavam sob a coordenação de preceptores – profissionais médicos brasileiros.
Os saberes populares e os agentes comunitários de saúde
Os ACSs não fazem qualquer tipo de prescrição e são responsáveis pelo
acompanhamento dos pacientes, além de outras atribuições. Entre os profissionais de saúde
brasileiros, foi essa categoria que relatou a maior quantidade e variedade de plantas
medicinais aplicáveis à ESF. Nas entrevistas, foram mencionadas 29 variedades de plantas
medicinais. São os ACSs que mais mencionam o uso do fitoterápico como droga vegetal
pela população, por meio do preparo de chás, pois questionar os usuários sobre o uso de
plantas medicinais e fitoterápicos faz parte do roteiro de perguntas nas visitas domiciliares.
Para muitos, a aprendizagem sobre esse tipo de cuidado tem origem nos hábitos familiares
de cuidados com a saúde, os remédios caseiros preparados por mães e avós migrantes que
mantiveram o cultivo de espécies medicinais de suas regiões de origem. Também os cursos
oferecidos pelos programas de formação oferecidos pela SMSRJ em PICs são reconhecidos
como importantes no processo de formação e na aplicação terapêutica.
A minha avó era mineira e ela vivia na roça, então, ela pegava as plantas medicinais para poder se curar, né? Foi a partir da minha avó que eu aprendi
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a fazer xarope caseiro, melado. Até hoje isso ficou lá em casa. Está doente, está gripado, faz melado, faz lambedor. (ACS4) [Eu aprendi] com a Medicina Chinesa, eu já usava antes porque minha família é de Minas e minha mãe é filha de índio, então a gente sempre usou muita erva. Quando eu aprendi a Medicina Chinesa, aí deu uma aprimorada. Aí, já não é mais empírico, já sei o que eu estou usando e para quê. (ACS7)
Para esses profissionais, a participação em cursos de fitoterapia e medicina chinesa
provocaram uma mudança nos procedimentos de preparo e na aquisição das plantas
medicinais como drogas vegetais.
A gente aprendeu o significado das plantas, aprendi também como que se faz o chá, porque até então eu fervia tudo junto na água. Eles ensinaram que, dependendo da propriedade, primeiro você tem que ferver a água, colocar a planta em um local adequado, depois colocar a água fervendo e tapar, fazer a infusão. Aprendi também que você tem que comprar nos lugares certos, com proteção da luz. (...) Aprendi várias coisas. (ACS8)
A formação em PICs também possibilitou um papel mais ativo do ACS no cuidado
direto com o paciente, por meio da realização de grupos e das hortas medicinais
comunitárias cultivadas em algumas clínicas. Essas oportunidades lhes garantiam
legitimidade para falar sobre essa opção terapêutica. Foram os ACS que identificaram, com
maior clareza, os conflitos entre as diferentes racionalidades médicas que muitas vezes
acompanha a aplicação das PICs.
Quando eu estou aqui como PIC, tem um turno determinado, e as pessoas que vêm, procuram isso, aí, eu ensino. Mas em visita domiciliar, não, porque tudo que eu falar depois vai ser perguntado para o profissional da equipe técnica e, aí, o profissional pode não concordar, porque o raciocínio da medicina chinesa é totalmente diferente da medicina ocidental e isso é um conflito muito grande. Se o profissional que tiver na retaguarda não aderir a isso, ficam duas informações. (ACS7)
Se por um lado, é a categoria que não tem autonomia para propor terapias, os ACSs
são os profissionais que estão mais presentes no cotidiano e podem observar os hábitos da
população. Para eles, são os mais idosos e os que nasceram em áreas rurais, os que mais
fazem uso de plantas medicinais.
Nas casas em que eu pude entrar, eu pude ver que as pessoas mais velhas costumam ter, usar, mas não cultivar. Foram poucas, posso numerar para você umas cinco que cultivavam mesmo algum tipo de planta. Agora usar, só as mais idosas mesmo. (ACS3)
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A maioria dos usuários que eu visito em casa faz o uso de plantas medicinais, deles mesmos. São idosos, são pessoas de interior, então eles trouxeram essa cultura para a vida deles e até hoje eles vivem assim. (ACS4)
Uma estratégia bem-sucedida de institucionalização da fitoterapia na APS, que
envolva hortas comunitárias, grupos e rodas de conversa, por exemplo, não pode prescindir
dos ACSs. Possuem papel fundamental na ESF: fazem a mediação entre a população e o
serviço de saúde, por meio de ações educativas, prevenção de agravos e de promoção e
vigilância da saúde e como agente social, no sentido de organização da comunidade e de
transformação de suas condições (29). Trazem consigo saberes sobre o território e sobre as
experiências curativas da comunidade, estabelecendo uma ponte com o serviço e o usuário
e facilitando a comunicação, mas não só. São atores fundamentais no acesso a direitos
sociais, incluindo saúde e outras dimensões do bem-estar, pelo fato de levar às famílias
necessitadas recursos e conhecimentos organizados pelo Estado (30). Entretanto, os
depoimentos dos ACSs reforçam resultados já apontados na literatura: uma formação
profissional centrada no controle tecnológico da doença, reproduzindo a visão positivista,
fragmentada e reducionista do modelo biomédico (29).
As respostas dos diferentes tipos de profissionais de saúde demonstram que eles
mesmos as utilizam em seu autocuidado, ainda que isso não se converta em práticas no
serviço. Esse resultado já havia sido demonstrado em estudos semelhantes, nos quais a
fitoterapia seria identificada como um meio de promoção do autocuidado e ampliação da
percepção do paciente a respeito da sua própria saúde (31), mas estaria desconectada da
prática e da formação acadêmica (32).
Outro aspecto que ganhou destaque nas entrevistas foi uma relação desigual entre
as diferentes categorias profissionais nas equipes de ESF, e os conflitos que surgem,
sobretudo, no que tange à promoção dos cuidados com PICs, o que fica explícito nas
respostas de ACS e enfermeiros. De um lado, os médicos estão pouco ou mal preparados
para utilizar esses recursos terapêuticos. Por outro, os enfermeiros relatam medo e
desconhecimento das possibilidades de prescrição e, entre o desconhecimento e a
insegurança, os ACSs ficam restritos às atribuições da função de mediação com os usuários.
A presença dos médicos cubanos poderia ter fomentado as PICs na APS mas, fora do
momento da consulta, o conhecimento diferenciado desses profissionais não foi demandado
pelas equipes. Restritos a protocolos e com condições adversas de trabalho, muitas vezes
em áreas conflagradas e com grande parte da população na extrema pobreza, o trabalho
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dos cubanos com plantas medicinais no município do Rio de Janeiro não obteve visibilidade.
Sua breve passagem pela cidade demonstrou que outro modelo de atenção à saúde é
possível, com uso, por exemplo, de plantas frescas e hortas comunitárias e uma abordagem
menos medicalizadora.
Apesar da criação de hortas ser uma recomendação da PNPMF e da PNPIC, essas
experiências foram pouco mencionadas pelos profissionais brasileiros. Ao contrário, para os
médicos cubanos, a identificação da planta in natura era mais um recurso acessado para
construir um plano terapêutico com o paciente. Nesse contexto, a formação no serviço ganha
papel fundamental para possibilitar o uso da fitoterapia e criar espaços e oportunidades para
a troca de saberes entre diferentes profissionais e a população. O aumento de programas
municipais em todo o país resultou na mudança dos modelos de produção. Até 2008, havia
um predomínio de programas fundamentados na manipulação de fitoterápicos (80,2%), com
farmácias públicas próprias de manipulação (45,7% do total) e, em farmácias privadas
conveniadas (34,5%). Somente 19,8% dos programas municipais faziam compra e
dispensação de fitoterápicos industrializados. A partir de 2012, o uso do fitofármaco tornou-
se predominante, presente em 64,3% dos municípios; houve recuo dos fitoterápicos
manipulados (15,8%), tanto em farmácias públicas próprias como em conveniadas, e da
dispensação de plantas frescas (9,1%) e secas (10,8%) (15). Embora o incremento de
fitoterápicos industrializados fosse uma das diretrizes da PNPMF, a escolha pelo fitofármaco
pode resultar na mera substituição de um medicamento por outro, sem os benefícios
preconizados pelas políticas, como o a promoção da saúde e do autocuidado e a troca de
saberes de maneira horizontal. O custo é semelhante ao dos medicamentos sintéticos, o que
dificulta o acesso (33).
O protagonismo do usuário em seu processo de cura e manutenção da saúde é um
fator central na construção de uma política de saúde integral, mas não só, já que controle e
participação social são princípios organizativos do SUS. A participação dos usuários em
atividades como palestras, oficinas e construção de hortas, possibilita maior interação, pois
se sentem sujeitos ativos, por deterem conhecimento na área, o que não ocorre no cotidiano
(33). A fitoterapia e outras práticas integrativas e complementares poderiam inovar na
reposição do sujeito doente como centro do paradigma médico e, até mesmo, contribuir para
novas descobertas terapêuticas, já que somente 0,4% da flora brasileira é explorada (1).
É preciso considerar que a relação entre os profissionais de saúde e os cidadãos,
sobretudo no que concerne à clientela dos serviços públicos, é muitas vezes caracterizada
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por conflito ou hostilidade (19). Há um abismo entre o que preconiza a norma e a realidade,
com pouca ou nenhuma integralidade: equipes incompletas, sobrecarga de trabalho e
demandas assistenciais que nem sempre conseguem ser resolvidas. O reforço da
participação popular nas unidades de saúde, valorizando práticas culturais curativas, poderia
aumentar a adesão a planos terapêuticos para doentes crônicos, mas também o
envolvimento em espaços participativos como colegiados e conselhos.
Mesmo depois de 40 anos desde a Declaração de Alma-Ata, a construção de um
sistema de saúde público universal, gratuito, estruturado por meio da APS, tal como o SUS
se pretende, continua inconclusa no Brasil. Se a Constituição brasileira formatou um modelo
de sistema de saúde integral, o caminho para a consolidação depende da superação os
obstáculos que dificultam o acesso das pessoas aos serviços de atenção à saúde, como a
fragmentação dos serviços de e a falta de foco no paciente (34). Os desafios atuais à
garantia do direito à saúde integral são muitos, dentre os quais, destaca-se o
subfinanciamento (6). Atualmente, até mesmo a Estratégia Saúde da Família encontra-se
em risco desde que a revisão da Política Nacional de Atenção Básica, em 2017 (35), reduziu
a prioridade desse modelo ao definir incentivos financeiros para outros tipos de equipe
básica sem a presença do agente comunitário de saúde (36).
A implementação das PNPIC e PNPMF contribuiu para o aumento de políticas
públicas federais, estaduais e municipais, como programas com assistência farmacêutica,
formações, arranjos produtivos locais, etc, mas ainda não foi suficiente para estruturar o uso
da fitoterapia de forma continuada. A implementação da fitoterapia implica o rearranjo do
modo de operação dos serviços de saúde, a capacitação de profissionais de saúde,
fornecimento da planta medicinal ou do medicamento fitoterápico ao usuário (33). Os
resultados aparecem no médio e longo prazo, ou seja, os investimentos necessários
competem com outros mais imediatos, já que não há programas de financiamento
específicos para PICs.
Ainda é necessário um conjunto de medidas para transformar o cotidiano das
organizações e do trabalho em saúde, que inclui as instituições de ensino e diversos
segmentos da sociedade. São conhecidos os desafios da universidade em oferecer uma
formação em PICs (37); vale ressaltar que até mesmo os profissionais médicos da ESF, com
residência em medicina de família e comunidade, têm pouca informação sobre o tema.
A pesquisa com os profissionais de saúde nos permitiu ver um retrato do uso da
fitoterapia. Assim como outras PICs, é uma terapia considerada menos relevante, não ganha
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destaque na formação, não é demandada na prática. Com menos plantas frescas, menos
hortas, menos produção local de fitoterápicos, menos rodas de conversa, há menos
humanização no cuidado e a autonomia do usuário é menor. O usuário também não pode
tomar decisões, não pode escolher um fitoterápico com base nas indicações terapêuticas,
mecanismos de ação, interações medicamentosas e possíveis riscos (22), pois os
profissionais de saúde não estão preparados para orientá-lo. O principal obstáculo ao direito
à saúde integral identificado pelas diferentes categorias de profissionais de saúde segue
como cultural e epistemológico: o padrão biologizante e medicalizador que permanece
hegemônico tanto na formação, quanto na prática.
Conclusão
Consultar os profissionais de saúde nos permitiu identificar fatores que limitam a
prescrição de plantas medicinais e fitoterápicos e compreender a dinâmica da circulação
desses saberes no cotidiano do serviço das equipes de ESF.
A formação acadêmica foi identificada como deficiente e ainda não responde às
diretrizes da PNPIC e da PNPMF. A oferta de disciplinas nos currículos dos cursos de
enfermagem e medicina não garante que esse conhecimento seja associado à prática no
serviço e às demandas da população. A fragmentação do ensino pode ser uma das
explicações para o desconhecimento por parte dos profissionais de saúde das políticas e
dos recursos já existentes e disponíveis, como formações a distância, materiais informativos
e bases de dados com publicações sobre plantas medicinais e fitoterápicos. Se a
universidade ainda não oferece meios de formação na graduação, vale destacar o papel
dessas mesmas instituições na qualificação dos profissionais nos programas de residência
junto à SMSRJ. Foram essas experiências que formaram boa parte dos profissionais de
saúde entrevistados.
É preciso problematizar também as condições de trabalho das equipes, se há
sobrecarga, se há diálogo entre as diferentes categorias profissionais, para que a
participação em atividades de educação permanente seja possível e resulte na ampliação
do acesso à fitoterapia para a população.
A medicalização excessiva, muitas vezes demandada pelo usuário, é outro fator que
precisa ser considerado na oferta dessa opção terapêutica, observação recorrente nos
depoimentos dos profissionais cubanos e dos não médicos. Nesse sentido, as ações de
educação em saúde têm papel fundamental.
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Após treze anos da implantação da PNPMF, a fitoterapia ainda permanece marginal
na ESF. A oferta de práticas integrativas e complementares é uma forma de universalizar o
acesso à saúde. Promover e ampliar o uso da fitoterapia na APS pode resultar em
experiências inovadoras que envolvam usuários, profissionais de saúde e gestores para
transformar as condições de saúde da população. Será preciso um esforço conjunto de
instituições de ensino, serviços de saúde e, sobretudo, da própria população para que o
direito à saúde integral universal seja garantido em seus múltiplos aspectos culturais e
epistemológicos. O processo de construção do direito à saúde universal, integral e equitativo
iniciado na reforma sanitária continua urgente e atual.
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Colaboradores
Rodrigues ML realizou a concepção do projeto, o trabalho de campo, a análise de
dados e a redação final do artigo. Campos CEA participou da concepção da pesquisa e de
seu desenho metodológico. Siqueira BA realizou a análise dos dados coletados e participou
da redação do artigo.
Submetido em: 30/01/20 Aprovado em: 06/10/20
Como citar este artigo: Rodrigues ML, Campos CEA, Siqueira BA. A fitoterapia na Atenção Primária à Saúde segundo os profissionais de saúde do Rio de Janeiro e do Programa Mais Médicos. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 28-50.
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Primeira infância sem açúcar: um direito a ser conquistado Early childhood without sugar: a right to be ensured
La primera infancia sin azúcar: un derecho que hay que conquistar
Juliana Mara Gomes de Assis Nogueira1
Ana Maria Costa2
Erica Correia Coelho3
Resumo
Objetivo: promover a reflexão acerca do impacto do consumo de açúcar na primeira infância à luz da garantia de direitos. Metodologia: o trabalho foi realizado a partir de revisão integrativa de literatura na base de dados PubMed com o uso de descritores específicos. Foram selecionados textos completos em inglês, disponíveis online de 2014 a 2019. Também foram utilizados, de forma complementar, documentos oficiais sobre o perfil nutricional da população e o desenvolvimento das doenças crônicas não transmissíveis em crianças. Resultados: a busca no banco de dados PubMed registrou 36 publicações, das quais onze foram selecionadas para a presente revisão. A fim de relacionar o tema do consumo de açúcar ao direito à saúde da criança, foram consultados também nove documentos jurídicos, onze publicações oficiais de órgãos governamentais, além de livros técnicos, o que possibilitou fundamentar a discussão sobre o impacto do açúcar na saúde da criança como um direito a ser conquistado. Conclusão: apesar do moderno aparato de proteção à saúde e à alimentação da primeira infância pautado pela legislação brasileira, persiste o excesso de açúcar livre na alimentação infantil, o que causa impacto negativo comprovado na prevalência de doenças crônicas não transmissíveis. A alimentação sem sacarose pode ser apontada como um direito da primeira infância devido a sua influência na formação de hábitos, na prevenção de doenças e na qualidade de vida a longo prazo. Palavras-chave Açúcares. Criança. Paladar. Nutrição do lactente. Abstract Objective: to reflect on sugar consumption´s impact on early childhood in children´s rights perspective. Methods: it is an integrative literature review. The authors selected full texts in English by searching articles from 2014 to 2019 in the PubMed database with specific descriptors. To complement the study, it was used official documents on the nutritional profile of the population and the development of chronic non-communicable diseases in children. Results: the PubMed database search recorded 36 publications, of which eleven were selected for this review. To relate the topic of sugar consumption to the right to children's health, nine legal documents, eleven official publications from government agencies, as well as technical books were also consulted, which made it possible to base the discussion on the
1 Especialista em odontopediatria; analista judiciária odontóloga, Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-8686-5862. E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Ciências da Saúde; analista judiciária odontóloga, Superior Tribunal de Justiça, Brasília, DF, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-1700-5812. E-mail: [email protected] 3 Mestre em Ciências da Saúde; assessora, Gabinete do 5º Juizado Especial Cível de Brasília, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Brasília, DF, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-0210-6584. E-mail: [email protected]
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impact of sugar on children's health as a right to be conquered. Conclusion: despite the modern apparatus for protecting early childhood health and nutrition by Brazilian legislation, there is still an excess of free sugar in children's diet, which has a proven negative impact on the prevalence of chronic non-communicable diseases. Eating without sucrose can be considered as a right of early childhood due to its influence on the formation of habits, in disease prevention, and on long-term quality of life. Keywords Sugars. Child. Taste. Infant nutrition. Resumen
Objetivo: promover la reflexión sobre el impacto del consumo de azúcar en la primera infancia a la luz de la garantía de los derechos. Metodología: el trabajo se realizó a partir de una revisión bibliográfica integradora en la base de datos PubMed utilizando descriptores específicos. Se seleccionaron los textos completos en inglés disponibles en línea desde 2014 hasta 2019. También se utilizaron de manera complementaria los documentos oficiales sobre el perfil nutricional de la población y sobre la evolución de las enfermedades crónicas no transmisibles en los niños. Resultados: la búsqueda en la base de datos PubMed registró 36 publicaciones, de las cuales once fueron seleccionadas para este examen. Para relacionar el tema del consumo de azúcar con el derecho a la salud infantil, se consultaron también nueve documentos jurídicos, once publicaciones oficiales de organismos gubernamentales, además de libros técnicos, que permitieron fundamentar la discusión sobre el impacto del azúcar en la salud infantil como un derecho a conquistar. Conclusión: a pesar del moderno aparato de protección de la salud y nutrición de la primera infancia regido por la legislación brasileña, sigue habiendo un exceso de azúcar libre en la dieta de los niños, lo que ha demostrado tener un efecto negativo en la prevalencia de las enfermedades crónicas no transmisibles. La dieta sin sacarosa puede ser señalada como un derecho de la primera infancia por su influencia en la formación de hábitos, en la prevención de enfermedades y en la calidad de vida a largo plazo. Palabras clave Azúcares. Niño. Gusto. Nutrición del lactante.
Introdução
A saúde, a alimentação e a educação são direitos sociais, segundo o artigo 6º da
Constituição Federal (1). Ao analisar o conceito de saúde de forma ampliada, não se pode
reduzir saúde à ausência de doença. Em verdade, para se alcançar uma vida saudável é
essencial que saúde, educação, direito e alimentação sejam discutidos
transdisciplinarmente, à luz do princípio da dignidade humana.
O direito à saúde pode ser considerado como um direito inclusivo que abarca não
apenas a assistência em saúde apropriada, mas também atenta para determinantes
implícitos à saúde, como a alimentação saudável, o abastecimento adequado de alimentos,
habitação, o acesso à água potável e o acesso à educação, especialmente à educação
relacionada com a saúde (2).
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A visão da saúde integral, democrática e equânime, associada à educação da
população, é importante, sobretudo, ao se considerar a população infantil, diante da sua
condição vulnerável de pessoas em desenvolvimento. A Constituição Federal, no artigo 227,
sinaliza a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado na garantia dos direitos da
criança e do adolescente com absoluta prioridade (1). Para viabilizar o cumprimento da regra
da absoluta prioridade, foi publicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (3), que
reconhece o estágio peculiar de desenvolvimento característico da infância e da
adolescência, o que coloca o público infantil em posição de vulnerabilidade e regulamenta a
proteção especial e integral que devem receber (4). Além disso, a partir do ano de 2016, a
proteção específica para o começo da vida passou a ser prevista por meio da Lei n º
13.257/16, considerada o Marco Legal da Primeira Infância (5), o que garantiu a criação de
programas, serviços e iniciativas dedicadas à promoção do desenvolvimento integral de
crianças até os seis anos de idade, bem como à redução das desigualdades.
A alimentação saudável representa uma preocupação para a saúde da criança
brasileira, apoiada pelo Direito Humano à Alimentação Adequada e assegurado pelo artigo
25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (6). Em consonância, uma
alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (7) instituiu a
obrigatoriedade da educação alimentar e nutricional nas escolas de todo o país (8). Resta,
contudo, a aplicação de estratégias que favoreçam práticas nutricionais e capacitação de
pais, educadores e cuidadores a fim de beneficiar o desenvolvimento da primeira infância.
Um dos grandes problemas que concorre atualmente com a alimentação adequada é
o consumo excessivo de sacarose, sobretudo por crianças e adolescentes. A produção e
ingestão de açúcar no Brasil possui um contexto histórico e seu uso industrial o revelou como
um produto de grande versatilidade e aplicabilidade, exercendo influência econômica,
cultural, psicológica e de paladar nos indivíduos (2). Por outro lado, o aumento de seu
consumo está relacionado à maior prevalência de doenças crônicas não transmissíveis
(DCNT) na infância, sendo ele causa comum de diversas patologias (9). Por esse motivo, é
fundamental a reflexão acerca do consumo de açúcar na primeira infância, relacionando-o
às normas jurídicas vigentes.
Diante desse cenário, objetivo deste artigo é fomentar a reflexão acerca do impacto
do consumo de açúcar na primeira infância à luz da garantia dos direitos da criança como
indivíduo vulnerável, pelas normas do ordenamento jurídico pátrio.
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Metodologia
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura em que foram realizados os passos
metodológicos a seguir.
O primeiro passo deu-se pela formulação da questão de pesquisa: qual o impacto do
consumo de açúcar na primeira infância à luz da garantia de direitos?
Em seguida, foram selecionados os descritores e as bases de dados a serem
utilizadas: o PubMed foi a base de dados escolhida para fundamentar a parte central deste
artigo. As palavras-chaves selecionadas a partir do DeCS foram as seguintes: sugars AND
child AND taste AND infant nutrition. Os artigos identificados pela estratégia de busca inicial
foram avaliados independentemente por dois autores, os quais selecionaram os estudos
conforme os critérios de inclusão e exclusão que foram definidos com base na pergunta
central que norteou a revisão.
Os critérios de inclusão adotados neste estudo foram: população (criança); tipo de
alimentação (alimentos com açúcar adicionado); e desfecho (risco ou não de desenvolver
doenças crônicas não transmissíveis relacionadas ao consumo de açúcar). Também
estavam entre os critérios de inclusão, textos completos em inglês disponíveis online, de
2014 a 2019. A busca foi realizada em junho de 2020. Para a categorização e sumarização
das informações, houve a seleção primária dos artigos pela leitura do resumo. Nova seleção
foi realizada pela análise completa dos artigos. Os dados dos estudos incluídos foram
agrupados em tabela do Microsoft Word contendo autores, ano de publicação, título, tipo de
estudo e uma síntese das conclusões.
Ainda sob o prisma metodológico, para fundamentar as peculiaridades do direito
infantil no âmbito dos cuidados em saúde, foi abordado o marco regulatório dos direitos da
criança, considerando o direito à saúde, à educação e à alimentação. Foram consultados os
seguintes documentos: Declaração dos Direitos Humanos, Convenção dos Direitos da
Criança, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação e o Marco Legal da Primeira Infância. A estratégia de busca dos
documentos jurídicos foi manual, com visita aos sites e endereços eletrônicos das
respectivas leis. Foram consultadas publicações oficiais do Ministério da Saúde, Instituto
Brasileiro de Pesquisa e Estatística e Organização Mundial de Saúde. A inclusão desses
documentos se justifica por apresentarem dados oficiais sobre perfil nutricional da população
e sobre o desenvolvimento das doenças crônicas não transmissíveis em crianças, dados
indispensáveis para sustentar a ideia central e permitir uma análise argumentativa do
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problema identificado. Também foram utilizados livros técnicos para sedimentar a
discussão.
Resultados e discussão
Foi identificado um total de 36 publicações na base de dados Pubmed. A partir da
leitura do resumo e dos textos na íntegra, foram selecionados onze artigos (n=11) que se
aproximavam do objetivo proposto pela presente pesquisa, a fim de reportar o impacto do
consumo de açúcar na primeira infância. Foi realizado o recorte temporal dos últimos cinco
anos (2014-2019) para a realização da busca na base de dados. Dentre os artigos
selecionados, predominaram trabalhos de revisão de literatura, sendo duas revisões
sistemáticas (n=2) e quatro revisões narrativas (n=4). Os demais trabalhos foram do tipo
transversal (n=2), um estudo clínico randomizado, uma pesquisa com abordagem qualitativa
e uma publicação com recomendações da Academia Americana de Pediatria (Quadro 1).
Quadro 1. Caracterização das publicações selecionadas na base de dados Pubmed
segundo artigo, tipo de estudo e resultados ligados ao tema central da presente pesquisa
Título Autor/Ano Tipo de estudo
Síntese do conteúdo pertinente ao tema
Ontogeny of taste preferences: basic biology and implications for health
Mennella JA,2014
Revisão narrativa
Crianças naturalmente preferem sabores doces e salgados e rejeitam sabores amargos. Assim, sua biologia básica os torna especialmente vulneráveis a alimentos ricos em sal e açúcares refinados. Porém, experiências sensoriais no início da vida podem moldar as preferências alimentares. Mães que consomem dietas ricas em alimentos saudáveis podem moldar o paladar de seus filhos, porque os sabores são transmitidos da dieta materna para o líquido amniótico e para o leite materno. Desta forma, bebês amamentados aceitam melhor frutas e vegetais, ao contrário de bebês alimentados com fórmula.
Vegetable and Fruit Acceptance during Infancy: Impact of Ontogeny, Genetics, and Early Experiences
Mennella JA, Reiter AR, Daniels LM, 2016
Revisão narrativa
Muitas doenças crônicas não transmissíveis se devem em parte por escolhas alimentares inadequadas. Os padrões individuais de preferências alimentares e comportamentos alimentares surgem
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e diferem dependendo dos alimentos oferecidos e dos contextos de alimentação durante os primeiros 24 meses de idade, momento no qual muitas crianças concluíram a transição alimentar e estão consumindo dietas semelhantes às de outros membros da família. À medida que as crianças fazem essa transição, as primeiras experiências com alimentos nutritivos e variedade de sabores podem maximizar a probabilidade de elas escolherem uma dieta mais saudável. O artigo foca nos períodos iniciais da vida que, por serem mais sensíveis, podem modular a aceitação alimentar.
Commercial complementary food consumption is prospectively associated with added sugar intake in childhood
Foterek K et al, 2016
Estudo transversal
O trabalho mostrou que existe associação entre a preferência alimentar por alimentos doces em idade pré-escolar com alimentação complementar rica em açúcar no início da vida. Oferecer complementação alimentar caseira ou comercial cuidadosamente escolhida sem adição de açúcar pode ser uma estratégia para reduzir a ingestão de açúcar na infância e posteriormente.
The Relationship between Number of Fruits, Vegetables, and Noncore Foods Tried at Age 14 Months and Food Preferences, Dietary Intake Patterns, Fussy Eating Behavior, and Weight Status at Age 3.7 Years
Mallan et al, 2016
Estudo clínico randomizado
O estudo investigou se a exposição a dietas ricas em frutas e vegetais e a alimentos processados aos 14 meses de idade estava relacionada à preferência alimentar aos 3.7 anos. Os resultados mostraram que os alimentos utilizados na dieta da criança com 14 meses corresponderam a suas preferências alimentares aos 3.7 anos. O estudo confirmou a hipótese de que as experiências de sabor no início da vida influenciam na preferência alimentar posterior. Isso indica que se deve introduzir frutas e vegetais aos bebês e restringir alimentos ricos em açúcar adicionado.
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Savoring Sweet: Sugars in Infant and Toddler Feeding
Murray RD, 2017
Revisão narrativa
O artigo reporta a relação do sabor doce com a criança que começa antes do nascimento e se prolonga com a introdução do leite materno que é naturalmente doce. O autor pondera que a introdução de bebidas com açúcar adicionado a bebês pode aumentar o risco de obesidade no futuro e dificultar a aceitação de alimentos amargos ou azedos.
Early Taste Experiences and Later Food Choices
De Cosmi V, Scaglioni S, Agostoni C, 2017
Revisão narrativa
A alimentação na fase inicial da vida é considerada um importante fator de influência para saúde na vida adulta. As preferências alimentares são formadas na infância e podem ser significativas na prevenção da obesidade. O gosto pelo sabor doce é inato e existe uma tendência das crianças a rejeitar sabores amargos. Contudo, oferecer alimentos com diversidade de sabores pode modificar as preferências alimentares futuras. Experiências alimentares saudáveis no período pré-natal pode transmitir sabores pelo líquido amniótico e facilitar a aceitação de diferentes alimentos posteriormente.
Complementary Feeding: A Position Paper by the European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition (ESPGHAN) Committee on Nutrition
Fewtrell M et al, 2017
Revisão sistemática
Crianças têm preferência alimentar inata por doce ou salgado. Por outro lado, rejeitam sabor amargo. Contudo, evidências mostram que esta predisposição pode ser modificada pelo oferecimento repetido de alimentos sem açúcar adicionado e com variedades de frutas e vegetais. Os pais têm importante papel no estabelecimento desses hábitos alimentares.
Fruit Juice in Infants, Children, and Adolescents: Current Recommendations
Heyman MB et al, 2017
Recomendações da Academia Americana de Pediatria
As recomendações tratam do consumo de sucos de frutas na infância. Devido ao sabor doce, os sucos são facilmente aceitos por crianças. Contudo, existem efeitos adversos relacionados ao seu consumo. A alta concentração de açúcar contribui com o aumento calórico do alimento e com o risco de desenvolver cárie.
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Sugar in Infants, Children and Adolescents: A Position Paper of the European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition Committee on Nutrition
Fidler Mis et al, 2017.
Revisão sistemática
A preferência pelo sabor doce é inata e pode ser modificada ou reforçada por exposição pré e pós-natal. Alimentos ricos em açúcar adicionado podem aumentar o risco de doenças crônicas não transmissíveis tais como obesidade, hipertensão, cárie, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Existe a necessidade de reduzir o consumo de açúcar livre entre crianças e adolescentes. Estratégias de educação, dentre outras, devem ser intensificadas para atingir esse objetivo.
Evidence for high sugar content of baby foods in South Africa
Marais NC, Christofides NJ, Erzse A, Hofman KJ, 2019
Estudo transversal
O mercado de alimentos para bebês da África do Sul é caracterizado por produtos com alto teor de açúcar, promovendo um ambiente que incentiva o desenvolvimento de preferências de sabor doce e, a longo prazo, contribuindo para o aumento da carga de doenças crônicas não transmissíveis.
Parental and Provider Perceptions of Sugar-Sweetened Beverage Interventions in the First 1000 Days: A Qualitative Study
Morel K et al, 2019
Estudo com abordagem qualitativa
O trabalho examinou percepções sobre o consumo de bebidas com açúcar de adição e estratégias de intervenção para evitar bebidas com açúcar adicionado nos primeiros mil dias de vida. Mensagens com foco nas consequências para a saúde infantil e no empoderamento dos pais para avaliar e selecionar bebidas mais saudáveis, com base no teor de açúcar, devem ser testadas em intervenções, a fim de reduzir o consumo de bebidas com açúcar de adição nos primeiros mil dias de vida.
Fonte: elaborado pelas autoras.
Com a finalidade de relacionar o tema do consumo de açúcar ao direito à saúde, foram
selecionados documentos jurídicos (n=9), publicações oficiais do Ministério da Saúde, do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, da Organização Mundial da Saúde e de outras
entidades governamentais (n=11), além de três livros técnicos e o Dicionário de Educação
Profissional em Saúde (Figura 1).
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Figura 1. Fluxograma de identificação dos artigos e publicações
Fonte: adaptado de Costa KB, Silva LM, Ogata, MN (10).
A fase da vida compreendida entre o nascimento e os seis anos de idade, chamada
de primeira infância (5), consiste em um período extremamente sensível para o
desenvolvimento de diversas habilidades. Trata-se de um período tido como uma janela de
oportunidade, porque nele ocorre com maior intensidade o desenvolvimento de aptidões e
competências. Nesse momento da vida, há elevada plasticidade cerebral relacionada aos
estímulos e às experiências vivenciadas. A primeira infância é uma etapa fundamental na
vida do ser humano para que ele possa realizar seu potencial ao longo de sua existência
(11).
No que concerne à formação do paladar e do hábito alimentar, sabe-se que é ainda
no útero que o feto passa a ser apto a perceber diferentes sabores, pois inicia-se o
desenvolvimento dos sistemas sensoriais, dentre eles o olfatório e o gustativo (11). Por essa
razão, o consumo pela mãe de alimentos de sabor doce pode ser percebido pelo feto (11,12).
Crianças naturalmente preferem sabores doces e rejeitam sabores amargos, o que os torna
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especialmente vulneráveis a alimentos ricos em açúcares (12,13). Já foi demonstrado que
sabores e odores presentes no líquido amniótico e no leite materno são oriundos da dieta da
mãe e podem moldar a preferência alimentar do bebê (11, 12, 14, 15). Mães que consomem
dietas ricas em alimentos saudáveis podem moldar o paladar de seus filhos a aceitarem
maior variedade de diferentes sabores ao longo da infância (12). Esses achados reforçam o
fato de que as preferências alimentares podem ser moldadas nos primeiros anos de vida da
criança (11, 12, 14, 16).
Ao se inferir que hábitos alimentares aprendidos na infância podem interferir nas
preferências alimentares por toda a vida, é certo que pais podem desempenhar um papel
particularmente importante na formação do paladar de seus filhos (17), oferecendo
alimentação complementar sem adição de açúcar, o que é aconselhável não só para a saúde
a curto prazo, mas também para manter baixo o limiar de preferência para sabores doces
durante toda a vida (12). Destarte, é inegável a influência dos hábitos alimentares sobre a
saúde de longo prazo da criança, o que enfatiza a importância do estabelecimento de dieta
saudável no início da vida (11, 12, 14, 18).
Embora o sabor doce acarrete uma sensação de prazer durante a alimentação (13),
o açúcar adicionado aos alimentos leva ao aumento do valor calórico sem, contudo,
acrescentar outros nutrientes essenciais (15). De acordo com recente meta-análise (15), o
consumo excessivo de açúcar livre aumenta a chance de DCNT, tais como, obesidade,
diabetes, hipertensão, câncer, doença cardiovascular e cárie dentária. Outras pesquisas
encontradas na presente revisão confirmam a relação entre o consumo de alimentos
adoçados e o risco de desenvolver DCNT, com grande associação entre consumo de açúcar
e obesidade (12, 13, 19- 21) e aumento do risco à cárie dentária (19, 21), além do efeito do
açúcar livre sobre diabetes (19), doenças cardiovasculares (11, 19) e câncer (11).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define açúcar livre como aquele adicionado
aos alimentos ou bebidas pelo fabricante ou consumidor. Também é considerado como
açúcar livre o açúcar extrínseco encontrado no mel, no xarope de milho e nos sucos de fruta
concentrados (22). A dieta infantil adequada deve contemplar alimentos que naturalmente
apresentam açúcar como parte integrante de sua composição, como, por exemplo, frutas e
vegetais (15, 23). Segundo a OMS, esses alimentos favorecem o crescimento e o
desenvolvimento saudável das crianças. Por outro lado, o uso de alimentos adoçados
artificialmente mostrou-se prejudicial à saúde ao longo dos anos (17, 22). Além disso, é
sabido que o gosto por sabor adocicado é inato (11, 12, 13, 14) e que a oferta de alimentos
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com açúcar livre no início da vida aumenta a chance de preferência alimentar por doce na
idade pré-escolar (19, 23) e pode interferir com os hábitos alimentares por todo o ciclo de
vida (14, 20).
Apesar das fortes evidências a respeito dos efeitos adversos do açúcar, o consumo
de alimentos doces tem aumentado significativamente nas últimas décadas no Brasil,
principalmente entre crianças e adolescentes (9, 24, 25). A Pesquisa de Orçamentos
Familiares reportou que a alimentação do brasileiro se caracteriza pelo baixo consumo de
frutas e vegetais e elevado consumo de alimentos calóricos e de bebidas adoçadas, como,
por exemplo, sucos artificiais, refrigerantes e refrescos (25). Observa-se também
participação crescente de alimentos ultra processados com alto teor de açúcar na dieta
brasileira, cujo padrão de consumo varia conforme os grupos etários. Entre os mais novos,
é maior o consumo desses alimentos, com tendência à diminuição com o aumento da idade,
enquanto o inverso é observado quanto a frutas e hortaliças (24).
O acelerado crescimento do excesso de peso em todas as faixas etárias e de renda
deixa clara a necessidade de medidas de controle e prevenção. Entre as crianças, uma em
cada três apresentam sobrepeso e 17% estão obesas (9). Esses dados são preocupantes,
já que a criança que é obesa aos quatro ou cinco anos de idade possui maior probabilidade
de permanecer com esse problema na fase adulta (2). Estudo transversal mostrou que 70%
dos alimentos industrializados para crianças contêm açúcar livre em sua composição,
contribuindo para esse quadro de obesidade e outras DCNT (20).
Diretriz da OMS apontou a cárie dentária como a doença não transmissível mais
prevalente do mundo, causando dor, ansiedade, limitações funcionais e consequentemente
baixa frequência e mau desempenho escolar entre crianças. O consumo de sacarose está
entre os fatores etiológicos principais para o desenvolvimento da cárie (26). A preocupação
com a alimentação inadequada da população levou a OMS a sugerir o consumo de açúcar
livre a menos de 10% das calorias totais ingeridas ao dia, sendo preferencialmente menor
que 5% (22). Em consonância, no Brasil o Ministério da Saúde recomenda que não seja
utilizado nenhum tipo de açúcar livre no preparo de alimentos nos primeiros dois anos de
vida da criança (27, 28).
A informação sobre alimentação sem açúcar adicionado é essencial para a saúde da
primeira infância, todavia, as recomendações não são seguidas por grande parte da
população e o consumo de alimentos adoçados se inicia prematuramente no Brasil. Estudo
do Ministério da Saúde revelou que 60,8% das crianças com idade inferior a dois anos
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consomem biscoitos, bolachas e bolos e que 32,3% tomam refrigerantes ou suco artificial
(29). É importante analisar a oferta inadequada de sacarose na primeira infância sob a
perspectiva da privação de direitos, considerando que o consumo excessivo de açúcar
aumenta o risco de doenças crônicas não transmissíveis e, desta forma, prejudica o pleno
desenvolvimento da criança. São muitos os dispositivos legais que versam sobre o direito
da infância, enfatizando que crianças e adolescentes devem ser compreendidos como
sujeitos de direitos. A Constituição Federal, em seu artigo 227, considera “dever da família,
da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde e à alimentação”, entre outros (1).
O conjunto dos princípios específicos que integram o direito da criança e do
adolescente no Brasil tem referência, principalmente, na Convenção dos Direitos da Criança,
adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990
(30). O documento foi concebido tendo em vista a necessidade de assegurar cuidados
especiais à criança, incluindo proteção jurídica adequada, antes e depois do nascimento, em
decorrência de sua imaturidade física e mental (31). Ele recomenda a adoção de todas as
medidas administrativas, legislativas e de outra índole com vistas à implementação dos
direitos da criança.
Ao lado dos princípios e normas instituídos pela Constituição Federal, a Convenção
dos Direitos da Criança serviu de fonte de inspiração para a elaboração do Estatuto da
Criança e do Adolescente, que entrou em vigor no ano de 1990, o qual também expressa,
em seu artigo 3º, a garantia da criança de usufruir de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, com oportunidade de desenvolvimento em condições dignas
asseguradas nas dimensões física, emocional, moral e social (3).
Em concordância, no ano de 2016 foi publicado o Marco Legal da Primeira Infância,
em cujo artigo 5º são elencadas diretrizes para uma série de programas, serviços e
iniciativas públicas voltadas à promoção do desenvolvimento integral da primeira infância,
com atenção inclusive à saúde, à nutrição e ao consumo consciente (5).
A priorização da primeira infância tem sido discutida em âmbito mundial, conforme
mostra o Relatório Final da Comissão para os Determinantes Sociais da Saúde da OMS, do
ano de 2010:
A primeira infância proporciona vastas oportunidades para reduzir as desigualdades na saúde, no período de uma geração. A importância do desenvolvimento na primeira infância e da educação para a saúde ao longo do ciclo de vida é um forte imperativo que obriga a uma ação imediata. A
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inércia terá efeitos prejudiciais que podem durar mais que a duração de uma vida (32, p.62).
Em consonância com o excerto acima citado, o documento elaborado para a
construção de uma agenda da Primeira Infância da América Latina enfatizou que priorizar a
primeira infância é a melhor decisão que um país pode tomar: “é um dos investimentos com
maior retorno e permite atingir ao mesmo tempo, objetivos de equidade e eficiência” (33,
p.3).
No Brasil, o direito à saúde é viabilizado por meio de políticas públicas de saúde
consolidadas pelo Ministério da Saúde. Das políticas gerais de promoção, proteção e
recuperação da saúde, a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), avalia o
estímulo a alternativas inovadoras com a superação do modelo tradicional de assistência em
saúde pautado pela doença e analisa a necessidade de transposição de desafios, como por
exemplo o distanciamento entre os conhecimentos científico e popular (24).
A fim de executar a diretriz de implementação e promoção da alimentação adequada
e saudável da PNAN, o Ministério da Saúde elaborou o Guia Alimentar para a População
Brasileira, documento que apresenta orientações alimentares oficiais para a população
brasileira. O Guia recomenda que seja evitado o consumo de alimentos ultra processados,
que possuem ingredientes que os tornam nutricionalmente desbalanceados, com alto teor
de açúcar e cujas formas de produção, distribuição, comercialização e consumo afetam de
modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente (27).
Em se tratando de primeira infância, importante estratégia educativa contendo
recomendações de redução do consumo de açúcar foi lançada pelo Ministério da Saúde no
ano de 2019, por meio do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos. Esse
guia reforça a fundamentalidade da proteção de crianças e do apoio às famílias para a
garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (28).
Outro importante documento de interesse para concretização dos direitos da primeira
infância é a Síntese de Evidências para Políticas Públicas do Ministério da Saúde (34), na
qual são descritas práticas parentais essenciais para assegurar o desenvolvimento infantil.
Esta obra ressalta a relevância de ações voltadas à alimentação e nutrição de crianças na
primeira infância e à programas de educação parental. O texto se destaca também por
promover a integração entre as áreas de saúde, educação, direito e desenvolvimento social.
Com a publicação da Lei nº 13.666, a partir de 2018, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional passou a referir-se à educação nutricional no currículo escolar como
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direito da criança (8). Em se tratando da primeira infância, deve-se levar em conta a condição
vulnerável de pessoa em desenvolvimento. Segundo o artigo 8º da Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos (35), indivíduos vulneráveis devem ser protegidos e sua
integridade respeitada ao se aplicar conhecimentos científicos relacionados à saúde. A
oferta de dieta adequada à primeira infância reflete o respeito pela dignidade humana nas
situações em relação às quais a autonomia não é suficiente.
A noção de direitos na visão dos adultos envolve deveres e responsabilidades, porém,
na perspectiva da infância, essa mesma noção não pode ser considerada. No caso dela, a
garantia de direitos implica o compromisso de atendimento das necessidades fundamentais
aos processos de desenvolvimento integral e aprendizagem. Nesse cenário, o Marco legal
da Primeira Infância reúne sabiamente um número extenso de necessidades: saúde,
alimentação e nutrição, brincar e lazer, proteção contra toda forma de violência e de pressão
consumista e prevenção de acidentes (36).
Ao interpretar os Direitos Fundamentais da Criança e do Adolescente, é necessário
se colocar na posição deste segmento vulnerável para compreender a gravidade da violação
do direito, seja ele de natureza individual, social ou coletiva. A partir disso, pode-se perceber
as consequências desse desrespeito, e, desta forma, contribuir em prol da reconstituição do
direito violado. De fato, a transgressão ao direito de uma criança é percebida como uma
violação ao próprio direito (4).
O direito humano à alimentação adequada está contemplado no artigo 25 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (6) e é crucial para a fruição de todos
os outros direitos, sobretudo o direito à saúde. Ao se entender o processo saúde-doença
como o resultado das condições de vida, dentre elas, a alimentação, pode-se apontar
estratégias para assegurar a aplicação da legislação. A partir do pensamento de que a saúde
não se restringe à ausência de doença, torna-se possível refletir sobre a educação em saúde
“como forma do homem reunir e dispor de recursos para intervir e transformar suas
condições objetivas, visando a alcançar a saúde como um direito socialmente conquistado”
(37, p.155).
A ressignificação de práticas de educação alimentar deve estar focada no acesso à
informação científica sobre as causas comuns de patologias, como, por exemplo, o consumo
de sacarose, levando-se em consideração a recomendação da PNAN, a qual sugere que os
profissionais de saúde devem ser apoiados em seu papel de socialização do conhecimento
para viabilizar a decisão de práticas alimentares promotoras da saúde da infância (24).
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É importante considerar que a oferta de sacarose na primeira infância pode ser
apontada como afronta à legislação que baliza ações voltadas à promoção do
desenvolvimento integral de crianças e adolescentes.
Conclusão
A saúde como direito fundamental da infância está fortemente consolidada na
Constituição Federal, assim como em outros dispositivos específicos do ordenamento
jurídico brasileiro, como o Estatuto da Criança e Adolescente e o Marco Legal da Primeira
Infância. A alimentação adequada é considerada direito humano de crianças e adolescentes,
na medida em que proporciona dignidade à vida e subsídios para o desenvolvimento pleno,
garantindo à infância proteção contra doenças potencialmente evitáveis.
Embora estejam garantidos direitos fundamentais à primeira infância por legislação
contemporânea e políticas públicas bem elaboradas, existe um quadro grave de prevalência
de doenças crônicas não transmissíveis relacionada à alimentação rica em açúcar livre e
demonstrada em inquéritos oficiais brasileiros.
A escolha alimentar sem sacarose pode ser apontada como direito da primeira
infância e representa um desafio aos serviços e às políticas públicas de saúde já que
acarreta forte impacto na vida das futuras gerações, pois pode evitar a formação de hábitos
nocivos e o desenvolvimento de doenças, com melhora da qualidade de todo o ciclo de vida
do indivíduo.
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Colaboradores
Nogueira JMGA e Costa AM contribuíram com a concepção, redação, análise e
interpretação dos dados, revisão crítica e aprovação da versão final. Coelho EC contribuiu
com a redação do artigo e revisão crítica de seu conteúdo e aprovação da versão final a ser
publicada.
Submetido em: 01/07/20 Aprovado em: 07/11/20
Como citar este artigo: Nogueira JMGA, Costa AM, Coelho EC. Primeira infância sem açúcar: um direito a ser conquistado. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 51-69.
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Estrategia de Estado para el tratamiento de la atrofia muscular espinal: un desafío del sistema de salud en Argentina State strategy for the treatment of spinal muscular atrophy: a challenge for the health system in Argentina Estratégia de Estado para o tratamento da atrofia muscular espinhal: um desafio para o sistema de saúde da Argentina
Agustín Carignani1
Daniela Yannen Flores2
Resumen Objetivo: analizar la implementación y comercialización de medicamentos de alto costo en el sistema de salud argentino, tomando como referencia el tratamiento médico de la enfermedad de atrofia muscular espinal y analizar la normativa aplicable, demonstrando el paralelismo legislativo con la República Federativa del Brasil. Metodología: se realizó una investigación descriptiva analítica identificando los criterios plasmados en las normas ó reglamentos para la implementación de una medicación de alto costo. Resultados: logramos obtener el marco regulatorio de la medicación denominada nusinersen en Argentina y la República Federativa del Brasil. Conclusión: con el avance de la tecnología, sus altos costos impactan directamente en la posibilidad de acceso, ante lo cual creemos que además de las herramientas de negociación interna de cada país, la cooperación internacional resulta una herramienta fundamental para transformar esta realidad en una oportunidad de acceso. Palabras clave Atrofia muscular espinal. Costos de los medicamentos. Derecho a la salud. Abstract Objective: to analyze the implementation and commercialization of high-cost drugs in the Argentine health system, taking as a reference the medical treatment of spinal muscular atrophy disease and analyze the applicable regulations, demonstrating the legislative parallelism with the Federative Republic of Brazil. Methods: a descriptive analytical investigation was conducted to identify the criteria set out in the rules or regulations for the implementation of a high-cost medication. Results: we obtained the regulatory framework for the medication called nusinersen in Argentina and the Federative Republic of Brazil. Conclusion: with the advancement of technology, its high costs have a direct impact on the possibility of access, before which we believe that in addition to the internal negotiation tools of each country, international cooperation is a fundamental tool to transform this reality into an opportunity access. Keywords Muscular atrophy spinal. Drug costs. Right to health.
1 Doctorando, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Nacional de Córdoba, Ciudad de Alta Gracia, Provincia de Córdoba, Argentina; magíster en Salud Pública, Escuela de Salud Pública, Facultad de Ciencias Médicas, Universidad Nacional de Córdoba, Ciudad de Córdoba, Provincia de Córdoba, Argentina. https://orcid.org/0000-0002-7126-9328. E-mail: [email protected]. 2 Abogada, Universidad Nacional de Córdoba, Ciudad de Córdoba, Provincia de Córdoba, Argentina; agente judicial, Cámara Federal de Apelaciones de Córdoba, Ciudad de Córdoba, Provincia de Córdoba, Argentina. https://orcid.org/0000-0002-0305-3517. E-mail: [email protected].
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Resumo Objetivo: analisar a implantação e comercialização de medicamentos de alto custo no sistema de saúde argentino, tomando como referência o tratamento médico da doença atrofia muscular espinhal; e analisar a regulamentação aplicável, demonstrando o paralelismo legislativo com a República Federativa do Brasil. Metodologia: foi realizada uma pesquisa descritiva analítica, identificando os critérios previstos nas normas ou regulamentos para a implantação de um medicamento de alto custo. Resultados: obtivemos o marco regulatório do medicamento denominado nusinersen na Argentina e na República Federativa do Brasil. Conclusão: os altos custos da tecnologia impactam diretamente no seu acesso. Acreditamos que, além dos instrumentos de negociação interna de cada país, a cooperação internacional é uma ferramenta fundamental para transformar essa realidade em oportunidade de acesso. Palavras-chave Atrofia muscular espinhal. Custos de medicamentos. Direito à saúde.
Introducción
Un sistema de salud es un modelo de organización social creado a los fines de dar
respuesta a problemas de salud de la población. Específicamente en Argentina el sistema
de salud está compuesto por el sector público: el Ministerio de Salud de la Nación, los
ministerios provinciales y las secretarias de salud municipal; todos ellos con una red de
hospitales con atención gratuita que pueden pertenecer a cualquiera de estas distintas
órbitas. También existe un sistema privado compuesto de prestadores y empresas de
medicina prepaga (1).
La Constitución Nacional Argentina (2) reconoce el derecho a la salud en sus artículos
14bis, 33, 42, 75 incisos 18 y 19, dejando claro que es un derecho del pueblo y como deber
del Estado, a la vez que en virtud del art. 75 inc. 22 de dicho plexo legal, se incorpora una
serie de tratados y convenciones internacionales tendientes también a su protección.
Brevemente, corresponde destacar que dentro del sistema sanitario argentino fue
creada la Administración Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología Médica
(ANMAT) como organismo descentralizado de la Administración Nacional de la República
Argentina dependiente del Ministerio de Salud, con el objetivo de controlar y garantizar que
los medicamentos, alimentos y dispositivos médicos posean eficacia, seguridad y calidad
(3).
La lucha contra las inequidades, la aparición de nuevas enfermedades y la obligación
del Estado argentino 3 (4) de hacer frente a la protección del derecho a la salud (5),
3 Conforme lo hace Rosatti, hemos definido al Estado nacional como la “estructura organizativo- burocrática caracterizada por vincular institucionalmente a un territorio con una población que -más allá de sus disputas sectoriales- se considera contenida por un orden jurídico relativamente hermenéutico y expresada por intermedio de símbolos apropiados, gozando tales características (pertenencia territorial, identidad nacionalista, juridicidad propia, capacidad organizativa) del
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impulsaron la intervención activa de distintas órbitas del Poder Ejecutivo Nacional en materia
de salud, a los fines de garantizar el acceso de todos los habitantes.
El Estado argentino por su carácter de institución compleja, de fines amplios, variados
y variables, permite organizar la convivencia social y regular conflictos, requiriendo de
recursos para su buen funcionamiento el cual no queda librado a sí mismo, sino al control
social (6). Por ello, una política clara sobre salud resulta fundamental para fortalecer el
acceso de toda la población.
Las nuevas enfermedades que no poseen tratamiento científico aprobado
(experimentales) o que poseen un alto costo económico, o que por distintas razones se
encuentran dentro del nomenclador nacional, entre otras, vulneran el acceso igualitario al
sistema sanitario, pues no todos pueden acceder, llegando a hacerlo sólo quienes accedan
por medio de los órganos judiciales
Este trabajo tiene como objetivo analizar las dificultades de la implementación y
comercialización de medicamentos de alto costo en el sistema de salud argentino, tomando
como referencia el caso del tratamiento médico (medicinal) para la enfermedad atrofia
muscular espinal y analizar la normativa aplicable, como así también, mostrar el paralelismo
legislativo con la República Federativa del Brasil.
Metodología
En el presente trabajo realizamos una investigación descriptiva, analítica,
identificando los criterios plasmados en las normas y reglamentos para la implementación
de una medicación de alto costo en el nomenclador nacional.
La medicación analizada en poco tiempo generó una proliferación normativa (vía
reglamentos o infraconstitucionales) muy grande, existiendo incluso normas que, al poco
tiempo de ser dictadas, fueron derogadas. Al estudiarlas, advertimos referencias a
procedimientos llevados adelante por la República Federativa del Brasil para la atención de
esta medicación que llamaron nuestra atención.
La atrofia muscular espinal (AME) y su tratamiento
Conforme la identifica el National Institute of Neurological Disorders, la Atrofia
Muscular Espinal (AME) es una enfermedad genética, hereditaria (causada por defectos en
reconocimiento internacional” (4).
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el Gen SMN1), degenerativa que ataca las células nerviosas llamadas neuronas motoras
que se encuentran en la médula espinal, altamente discapacitante, definida como poco
frecuente y con elevada mortalidad en sus formas más graves, clasificándose en cuatro
grupos sobre la base de la gravedad de los síntomas, la edad de aparición y la evolución:
AME I, II, III (A-B) y AME IV (7).
Si bien se han desarrollado en los últimos años nuevas tecnologías para el tratamiento
de esta enfermedad genética4 (8), centraremos el análisis en la medicación desarrollada por
el Laboratorio Biogen, denominado nusinersen y cuyo nombre comercial es Spinraza®, por
ser la única aprobada en nuestro país hasta el momento por la Administración Nacional de
Medicamentos, Alimentos y Tecnología (ANMAT), a la vez que su inclusión dentro del
nomenclador prestacional nacional exterioriza similares características a las desarrolladas
en países de la región. En definitiva, la inclusión de esta medicación, y su evolución y
regulación normativa, nos posiciona frente a un caso paradigmático.
El 19.09.2018 la Honorable Cámara de Diputados de la Nación requirió al Poder
Ejecutivo, vía pedido de informe la cantidad de pacientes que estaban bajo tratamiento para
AME y cuántos pacientes tenían registrados con esta patología, pese a que dicho informe
afirmaba que había trescientas (300) familias con pacientes que sufrían la patología. La
importancia del tema radica en el complejo acceso que se tiene a dicha medicación, por ser
de alto costo destinada al tratamiento de una enfermedad poco frecuente, que cuenta con
resultados científicos positivos en pacientes que la han utilizado, y por justamente tratarse
de una medicación que ha traído múltiples discusiones (9) sobre su incorporación en el
nomenclador nacional.
Si bien la medicación es relativamente nueva, la misma fue aprobada por la
Administración de Medicamentos y Alimentos (FDA) (10) en Estados Unidos en el año 2016
y en Europa en el año 2017, resultando hoy en día la esperanza de los pacientes y sus
familias que deben transitar por esta enfermedad (11).
Observamos que desde un marco legal que respeta el terreno de la ética y la justicia
distributiva, se proyecta un camino que busca unificar las obligaciones asumidas por el
Estado Nacional Argentino en materia de salud, con las posibilidades económicas de los
agentes de salud y del propio Estado, de tal manera que su acceso no sea necesario a través
del sistema judicial.
4 En la actualidad se encuentra aprobado por la FDA la medicación para el tratamiento de AME denominada Zolgensma® desarrollada por el laboratorio Novartis y por otro lado, se encuentra bajo estudio, la medicación EVRYSDI® (risdiplam) del laboratorio Roche (la primera que puede ser tomada oralmente).
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Justicia e Igualdad
En palabras de Aristóteles (12)
Consistiendo la justicia en lo justo, en lo igual y en un cierto medio, lo justo solo puede ser lo justo entre ciertos seres, lo igual no puede ser igual sino para ciertas cosas, y el medio solo puede ser el medio también entre ciertas cosas. De aquí se deduce que la justicia y lo justo son relativos a ciertos seres y a ciertas cosas.
Estamos frente a un ordenamiento jurídico que reconoce a la vida como fundamento
de todos los demás derechos (13), encontrando al Estado Nacional como garante de este
ejercicio frente a la necesidad de lograr que la cobertura de salud también asegure un
desarrollo sustentable – conforme se afianzó en la Organización de las Naciones Unidas
(14) en su Objetivo Nº 3 (particularmente punto 3.8) –, y el acceso y cobertura de esta
medicación ha presentado frondosas discusiones desde el punto de vista ético, moral y
jurídico.
Dichas discusiones terminan muchas veces dilucidándose en la justicia, cuando se
reclama una necesidad de salud insatisfecha, donde la persona se encuentra muchas veces
ante una doble injusticia; por un lado, la falta de reconocimiento de un derecho innato y por
el otro, la necesidad de recurrir a un órgano no natural que resuelva el conflicto.
Si bien entendemos que no debiera ser necesaria la mediación de los organismos
judiciales para resolver derechos sociales insatisfechos (15) (específicamente el de la salud),
ante la necesidad de los miembros de la sociedad de acceder a un tratamiento que asegure
su vida o su derecho a la salud, resulta inevitable que los afectados inicien los respectivos
reclamos judiciales para obtener la respuesta a su reclamo, lo que sólo puede ser zanjado,
inevitablemente – y valga la redundancia –, mediante un reclamo judicial. Y aquí es donde
podemos ver lo que anteriormente mencionamos como lo justo entre ciertos seres, ya que
en definitiva, la persona que debe recurrir al órgano jurisdiccional, además de ver conculcado
su derecho a la salud, se ve afectado por tener que recurrir a la justicia para obtener una
respuesta.
Al respecto, están quienes entienden como Corvalan (16) que
[…] una vez que se han garantizado pisos mínimos, el Poder Judicial no puede decidir (interpretar y ponderar) si la implementación de las políticas públicas que balancean la ecuación derechos-prioridades-obligaciones-recursos, está o no optimizada con relación a un derecho concreto (salud, vivienda, etcétera).
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Sin embargo, tal como se aseguró antes, encontrando en la vida el mayor valor de
todo el ordenamiento jurídico y ante la falta de previsión para una determinada tecnología
médica, el último recurso del paciente es el acceso a la justicia.
En definitiva, la necesidad de recurrir al Poder Judicial para el reconocimiento de un
derecho es un hecho, el cual no garantiza igualdad para todos aquellos que requieren una
cobertura de salud. Asimismo, observamos que ante la judicialización de la salud por la vía
del amparo ó bioamparos (17) – vía utilizada para el reclamo de prestaciones de estas
características – trae aparejado además un desgaste jurisdiccional (evitable) y un alto costo
para quienes deciden interponer dicha acción. Este acceso a la justicia para resolver estos
planteos no es nuevo y viene acompañado del exponencial crecimiento de este tipo de
acciones judiciales lo que ha sido advertido en reiteradas oportunidades. El Prof. Dr. Carnota
(18) sostuvo que
(l)os nuevos constitucionalismos impulsaron la simplista visión de que el mero reconocimiento de una facultad pública subjetiva en el marco de un documento constitucional e internacional bastaba para conferir legitimidad, y lo que es más importante desde un ángulo práctico, operatividad, para exigir el cumplimiento de determinadas prestaciones.
En una batalla contra el tiempo, en búsqueda de soluciones médicas que sirvan de
respuesta a la enfermedad y bajo la necesidad de encontrar un reparo donde a veces ni las
instituciones médicas ni el Estado lo tienen, la justicia viene a ser la vía idónea en
circunstancias excepcionales para brindar las respuestas en base al principio de igualdad
ante la ley, aunque muchas veces, sin las herramientas suficientes que den la tranquilidad
al sentenciante más que la ciencia acompañada en autos.
Marco legal: evolución de la normativa argentina
Para lograr entender la situación actual es necesario desandar el marco legal. En el
año 1996 se constituyó la Superintendencia de Servicios de Salud como organismo
descentralizado de la Administración Pública Nacional (19) con el objetivo de implementar,
reglamentar y administrar los recursos provenientes del Fondo Solidario de Redistribución,
dirigiendo todo su accionar al fortalecimiento cabal de la atención de la salud de los
beneficiarios del Sistema Nacional del Seguro de Salud, destinando los recursos disponibles
para la cobertura de reintegros por prestaciones de alto impacto económico y que demanden
una cobertura prolongada en el tiempo, a fin de asegurar el otorgamiento de prestaciones
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de salud igualitarias, garantizando a los beneficiarios la obtención del mismo tipo y nivel de
prestaciones.
En el año 2012 con la sanción del Decreto Nº 2710/2012, se prevé el otorgamiento de
prestaciones de salud debiendo utilizar racionalmente los recursos y fondos disponibles (20).
También se dictó la Disposición Nº 4622 (21) para evaluar el registro de enfermedades poco
frecuentes bajo condiciones especiales.
Al determinar que la Superintendencia de Servicios de Salud tiene también como
objetivo que los beneficiarios del Seguro de Salud tengan un acceso equitativo a los recurso
tecnológicos que requieran para el tratamiento de sus enfermedades o dolencias que
padecen, y en el marco de mejorar la calidad de atención, optimizando los recursos
disponibles y dando dinámica y transparencia a la gestión institucional, se reformuló el
Sistema Único de Reintegros mediante la Resolución Nº 1200/12 (22); donde se debe
acreditar el efectivo pago de la prestación a reintegrar y su cumplimiento efectivo.
Mediante la Resolución Nº 400/16 (23) (modificado por Res. Nº 46/17) la
Superintendencia de Servicios de Salud aprobó los requisitos generales, específicos,
coberturas, medicamentos y valores máximos a reintegrar a los agentes de salud en el marco
del Sistema Único de Reintegros.
Mediante la Ley Nº 16.463 (24) se estableció la autorización a la importación,
exportación, producción, elaboración, fraccionamientos, comercialización o depósito en
jurisdicción nacional o con destino al comercio interprovincial de las drogas, productos
químicos, reactivos, formas farmacéuticas, medicamentos, elementos de diagnóstico y todo
producto de uso y aplicación en medicina humana y que se deben realizar previa autorización
y control de la autoridad sanitaria correspondiente (art. 1º y 2º), estableciéndose además un
procedimiento operativo uniforme y con respaldo científico.
Mediante la Resolución Nº 623/2018 (25) se creó la Comisión Nacional de Evaluación
de Tecnologías Sanitarias (Conetec) y se estableció en su artículo 6º las competencias de
este organismo a los fines de evaluar productos médicos, instrumentos, técnicas y
procedimientos clínicos y quirúrgicos destinados a la prevención, diagnóstico y tratamiento
de enfermedades o rehabilitación de salud a fin de determinar su uso apropiado, oportunidad
y modo de incorporación.
La Conetec, elaboró un informe5 (26) sobre la droga nusinersen – dictamen que fue
luego acogido por las nuevas normas reguladoras – en el cual afirman que en caso de
5 Corresponde remarcar que este informe ha sido refutado por el laboratorio Biogen, conforme las razones expuestas en
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reducción considerablemente significativa en el precio de la tecnología que permita
garantizar la sustentabilidad del resto de las prestaciones esenciales como promoción de
salud, prevención, tratamiento y rehabilitación para todos los beneficiarios del sistema de
salud argentino, podría considerarse la cobertura para pacientes con AME tipos I y II.
Asimismo, se sostuvo que se debía incluir la nueva tecnología dentro del Sistema de Tutelaje
de Tecnologías Sanitarias Emergentes de la Superintendencia de Servicios de Salud con el
objetivo de poder realizar un seguimiento y análisis de su eficacia y seguridad atento a
poseer beneficio clínico para pacientes con la enfermedad.
El Laboratorio Biogen Argentina S.R.L. solicitó la inscripción en el Registro de
Especialidades Medicinales (REM) de la Administración Nacional de Medicamentos,
Alimentos y Tecnología Médica (ANMAT) de la droga nusinersen, a lo fines de la importación
para la República Argentina, autorizándose bajo condiciones especiales por el plazo de un
año conforme la Disposición Nº 2062/2019 (27).
Con fecha 2 de mayo de 2019 se celebró un acuerdo entre la Secretaría de Gobierno
de Salud del Ex Ministerio de Salud y Desarrollo Social y Biogen Argentina S.R.L. mediante
el cual se preveía el suministro y comercialización del medicamento con nombre comercial
Spinraza® a un valor inferior al de plaza (28).
Mediante la Resolución Nº 1114/2020 (29), la autoridad de aplicación valoró la
situación de la medicación y solicitó a la Secretaría de Comercio Interior del Ministerio de
Desarrollo Productivo su colaboración para garantizar la provisión del medicamento
Spinraza® en el mercado argentino a un precio aún inferior al hasta entonces convenido,
dando por concluido el contrato firmado con el laboratorio en el año 2019, en función de la
promoción de un uso racional de las tecnologías y de una eficiente distribución de los
recursos del sistema de salud.
Posteriormente, conforme Disposición Nº 4529/20 (30), y de acuerdo a la evidencia
científica recabada durante más de un año en el uso del producto, se reinscribe el certificado
correspondiente a Spinraza® por el término de un año, bajo exclusiva indicación médica para
realizar el tratamiento de atrofia muscular espinal tipos I y II (dejando fuera del registro AME
III), bajo la modalidad de cobertura que recomiende la Conetec.
En este marco de nuevas políticas del Estado Nacional, se dicta la Resolución Nº
1115/2020 (31) por medio de la cual se deroga la Resolución Nº 1452/19 por la que se había
incluído nusinersen al Programa Médico Obligatorio (PMO) para el tratamiento de AME tipos
sus respectivas impugnaciones.
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I, II y IIIA, al entender que el alto costo de la medicación, “[...] tendría un impacto negativo
sobre la salud pública, la equidad y en el aspecto económico [...]”. Al respecto, hallamos
importante destacar que al haberse incluido en el PMO la medicación – entendiéndolo como
un conjunto de prestaciones médicas básicas que los agentes de seguro de salud deben
garantizar a sus beneficiarios – los agentes de salud se encontraban obligados a brindar la
cobertura total de esta medicación; y que si bien por medio de la resolución Nº 1115/2020
se la excluye del mismo, se deja en claro que los agentes de salud deben continuar
brindando la cobertura a aquellos pacientes con AME que ya habían iniciado el tratamiento
con la medicación durante el periodo de validez de la Resolución Nº 1452/19.
Por su parte, la Superintendencia de Servicios de Salud dictó la Resolución Nº
597/2020 (32) e incorpora la medicación al Sistema de Tutelaje de Tecnologías Sanitarias
Emergentes a los fines de asegurar una racional y eficiente distribución de los recursos
afectados por el Fondo Solidario de Redistribución (SUR), y sólo para AME tipos I y II en
consonancia con la Disposición Nº 4529, lo que conforme afirma dicha normativa, permitirá
contar con datos clínicos más efectivos respecto a la evolución de la enfermedad como así
también respecto de la respuesta a tratamientos, aportando datos para el correcto
seguimiento de los pacientes alcanzados, velando por el efectivo otorgamiento de coberturas
médicas pertinentes, adecuadas, seguras y de calidad, como así también se la incorpora a
la Resolución Nº 400/16 de la Superintendencia de Servicios de Salud.
Bajo el entendimiento que el Estado Nacional debe garantizar derechos esenciales a
la población y su efectivo goce, previendo que el art. 42 de la Constitución Nacional Argentina
(33) establece que los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho a la
protección de su salud, seguridad e intereses económicos, a una información adecuada y
veraz, a la libertad de elección y a condiciones de trato equitativo y digno el Ministerio de
Desarrollo Productivo de la Secretaría de Comercio Interior dictó la Resolución Nº 202/2020
(34), mediante la cual establece como precio máximo de venta el principio activo nusinersen
(Spinraza®) 12mg/5 ML por un vial, al valor de dólares estadounidenses veintisiete mil (U$S
27.000). Asimismo, encomienda a la Comisión Nacional de Defensa de la Competencia la
realización de la investigación de mercado para poder determinar la posibilidad de comisión
de infracciones a la Ley de Defensa de la Competencia Nº 27.442.
Por último, con fecha 11.11.2020 fue sancionada la Resolución Nº 1860/2020 (35)
mediante la cual se crea la Comisión Nacional para Pacientes con Atrofia Muscular Espinal,
en la órbita del Programa Nacional de Enfermedades Poco Frecuentes, la que funcionará
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conforme a lo establecido en el Reglamento de Organización y Funcionamiento y se sujetará
a las Pautas para la Cobertura de Nusinersen a Pacientes con Atrofia Muscular Espinal, que
se adjuntan como Anexos I (IF-2020-72264996-APN-DCAP#MS) y II (IF-2020-59361579-
APN-DCAP#MS) respectivamente, de la Resolución.
De la normativa citada, queda acreditada la mutación normativa que existió entre los
años 2019 y 2020 en el tratamiento de un medicamento con las características de
nusinersen, y los distintos órganos de gobierno que debieron interactuar para ello.
Derecho Comparado: la situación de Brasil y la aceptación de la comercialización de
nusinersen (Spinraza®)
Conforme hemos podido analizar para este trabajo, las discusiones en torno a la
incorporación de nusinersen en el nomenclador de medicamentos en distintos países del
mundo, y particularmente en los de la región, ha generado análogos ejes temáticos que
orbitan básicamente en torno a la efectividad del medicamento y fundamentalmente su costo.
Es notoria la similitud del tratamiento en la República Federativa de Brasil y sin duda
alguna, esta similitud responde a la proximidad de las características del Sistema Público de
Salud argentino con el Sistema Único de Salud brasilero, en el marco de los cuales, se
presentan discusiones o dilemas relacionados con la concretización del derecho a la salud,
su acceso y los desafíos que presentan estos sistemas garantistas en miras de la
universalidad equitativa-distributiva y solidaria frente a una realidad de perogrullo que es la
finitud de los recursos.
Brasil ha reconocido también a nusinersen como único tratamiento para pacientes con
AME. Con fecha 8 de enero de 2018 la agencia Nacional de Vigilancia Sanitaria de Brasil
(Anvisa) mediante la Resolución RDC Nº 202/2018 (36), eliminó algunos requisitos que se
exigían con anterioridad, a los fines de simplificar los procedimientos en busca de tener un
impacto positivo en el costo de almacenamiento de las empresas que traen productos
relacionados con la salud para ese país, retirando concretamente las exigencias de
documentos que las empresas solo conseguían después que las cargas llegaban al país, lo
que generaba costos de almacenamiento y hacía aumentar el precio final de los productos.
Mediante la Portaria Nº 24 de fecha 24 de abril de 2019 (37), se incorporó el
medicamento Spinraza® al sistema sanitario brasilero para aquellos pacientes con
diagnóstico de AME tipo I de acuerdo a lo recomendado por la Comisión Nacional de
Incorporación de Tecnologías SUS (Conitec). Luego, mediante la Portaría Conjunta Nº 15
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de fecha 22 de octubre de 2019 se aprueba el Protocolo Clínico y de Directrices Terapéuticas
para el tratamiento de la atrofia muscular espinal 5q tipo I (38).
Dicho esto, mediante el dictado de las últimas dos ordenanzas, se observa que la
decisión del Ministerio de Salud brasilero activa un mecanismo de control a nivel nacional al
establecer que el protocolo para AME 5q tipo I, los criterios diagnósticos, criterios de
inclusión y exclusión, tratamientos y regulacion, mecanismos de control y evaluación6, es de
carácter nacional y debe ser utilizado por los Departamentos de Salud de los Estados, el
Distrito Federal y los Municipios en la regulación de acceso a la asistencia, autorización,
registro y reembolso de los trámites correspondientes.
Sin embargo, considerando que no fueron incorporados los pacientes con AME tipos
II y III y teniendo en cuenta la evidencia científica que atestiguaba la eficacia y seguridad del
tratamiento con Spinraza® para pacientes con estos grados de enfermedad, mediante la
Portaria Nº 1297 del 11 de junio de 2019 (39) se estableció un proyecto piloto instituido como
convenio de riesgo compartido para la incorporación de tecnologías sanitarias, con el fin de
ofrecer el acceso al medicamento Spinraza® para el tratamiento de AME tipos II y III en el
ámbito del Sistema Único de Salud (SUS). Conforme el art. 1º de dicha norma se incorpora
la autorización del tratamiento para los tipos de AME II y III, al encontrar como fundamento
la necesidad de orientar y coordinar acciones específicas sobre un convenio de riesgo
compartido entre el Ministerio de Salud y la empresa farmacéutica que suministra el
medicamento, ofreciendo así acceso al tratamiento de AME tipos II y III en el ámbito del
Sistema Único de Salud (SUS). Dicho convenio se suscribió teniendo en cuenta el costo y
efectividad del medicamento, la estimación del consumo, considerando la calidad de dosis y
el impacto presupuestario, todo en miras de posibilitar la incorporación del medicamento
para los AME II y III en el ámbito del SUS. Se tuvo en vista también, promover el balance del
costo del vial, recopilar evidencia adicional sobre el uso del medicamento en condiciones
reales, posibilitar reevaluar la incorporación de la tecnología ante evidencias adicionales,
subsidiar la publicación de una futura norma general sobre el acuerdo de riesgo compartido
para la incorporación de tecnologías sanitarias y, por último, promover la investigación en
atrofia muscular tipos II y III para orientar políticas de salud pública (40).
Asimismo, se establece cómo será el reparto de riesgos el que deberá estar
debidamente motivado por el comunicado del Departamento de Ciencia, Tecnología,
Innovación y Suministros Estratégicos de Salud (SCTIE/MS) presentando las bases técnicas
6 http://portalms. saude.gov.br/protocolos-e-diruntas
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de criterios utilizados. Por otro lado, establece que los pacientes tendrán acceso al
medicamento en los centros de referencia para el tratamiento de AME, los cuales serán
seleccionados por el Servicio de Referencia en Enfermedades Raras y los Hospitales
Universitarios Estatales y Federales.
Continuando con este análisis, conforme da cuenta la doctrina internacional (39), el
acuerdo de riesgo compartido entre Brasil y la empresa farmacéutica, radica en la reducción
del precio de los medicamentos, la descripción de la enfermedad y los criterios de elegibilidad
de los subgrupos de pacientes que se beneficien de acuerdo al riesgo, la definición de los
criterios de resultados de salud esperados y los parámetros de efectividad clínica, el número
máximo de pacientes por año que recibirán la tecnología a cargo del Ministerio de Salud en
base a criterios epidemiológicos y/o estimación de la demanda con la previsión de que si se
supera este número, la empresa farmacéutica correrá con el costo del medicamento para
los otros pacientes, la definición de los criterios para interrumpir el suministro de la
medicación en los pacientes que no presentan los resultados de salud esperados y la
periodicidad con la que evaluará la clínica de los pacientes.
En efecto, el tratamiento de este tipo de enfermedades de alto costo, incapacitantes,
encuadradas como enfermedades poco frecuentes ó huérfanas, llevan al replanteo de la
afectación de recursos para un tratamiento equitativo y para el mejor tratamiento de la
enfermedad y a su vez, para garantizar el sostenimiento del sistema de salud en su
integridad.
De la recapitulación hecha de la situación en nuestro país vecino, vemos cómo las
dificultades y objetivos son idénticas. Es decir, en sistemas de salud análogos, los ejes de
contacto son palmarios. Evidencia este diálogo de las distintas jurisdicciones cuando la
Resolución Nº 202/2020 (41) del Ministerio de Desarrollo de la Nación de Argentina, advierte
que el precio que estaba acordado entre Argentina y el Laboratorio productor del
medicamento era sensiblemente superior al que estaba acordado en “[…] al menos, otro
país de la región, como resulta del informe acompañado por el MINISTERIO DE SALUD,
para el caso de la REPÚBLICA FEDERATIVA DEL BRASIL”7, razón por la cual, se ajustó
dicho monto a la suma de dólares estadounidenses veintisiete mil (U$ 27.000).
Asimismo, observamos que otra distincion, además del costo, es que en Argentina se
prevé el tratamiento con esta medicación para los pacientes con AME tipos I y II, mientras
que en Brasil sólo se encuentra autorizado el protocolo para aquellos que padezcan AME
7 Conforme los considerandos de la Resolución Nº 202/20 del Ministerio de Desarrollo Productivo de la Nación.
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tipo I, sin incorporar en la Ordenanza Nº 24 los subtipos II y III, lo que motiva el dictado de
la Ordenanza Nº 1297 que denomina como proyecto piloto de convenio de riesgo compartido
la incorporación de esta tecnología para dichos subtipos de AME. Esta regulación normativa,
permite poder estudiar con mayor precaución el impacto de la medicación a los pacientes
con esos subtipos de la enfermedad, al entender las autoridades brasileras que si bien existe
evidencia científica que atestigua la evidencia y seguridad de Spinraza®, presenta algunas
incertidumbres acerca del número de pacientes evaluados.
Tal como ha sucedido en otras oportunidades8, Argentina a los fines de garantizar el
adecuado cumplimiento de los Tratados Internacionales de los cuales es parte, miró a sus
países vecinos para tener como referencia el modo en que fue resuelta la situación relativa
a esta medicación.
Y en efecto, es que no existe discusión en términos generales sobre la obligación de
cobertura de salud a cargo de los distintos agentes de salud e incluso del Estado Nacional
en su carácter de garante del sistema de salud; sin embargo, ello no excluye la difícil
discusión de la afectación de recursos, y es que la sabida finitud de recursos, obliga a su
aplicación dentro del esquema de eficacia.
Conclusiones
Ocurre que los gastos en salud son crecientes, los medicamentos y tecnologías se
renuevan a una velocidad inusitada que no permiten evaluarlas con los actuales parámetros
existentes que permitan dotarlos de la confiabilidad que se requiere para su implementación
y comercialización.
En este orden de ideas, teniendo en cuenta que – en el caso particular – el producto
nusinersen es el único aprobado por ANMAT, ello da lugar a un mercado nominado,
concentrado y monopolizado por el Laboratorio Biogen, por lo cual, bajo la óptica de que los
consumidores tienen derechos constitucionales para la protección de su salud y su
seguridad, las autoridades deben defenderlos contra toda forma de distorsión del mercado
pudiendo así, controlar los monopolios, garantizando los derechos esenciales a la población
y su goce efectivo.
8 Ejemplo de ello lo encontramos años atrás con el trasplante de pulmón entre donantes vivos, práctica que hasta el año 2012 no estaba prevista en la legislación argentina, pero sí estaba en la legislación brasilera. Caso concreto lo vemos en las acciones judiciales entabladas en contra del Estado Nacional, el Estado Provincial (Córdoba) y la Administración Provincial del Seguro de Salud (42).
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En estos sistemas de salud pública, como el de Argentina y Brasil, no hay duda alguna
que es deber del Estado la garantía del acceso al sistema de salud. Ello por cuanto la
garantía del disfrute del derecho a la salud por medio del órgano judicial, si bien asegura
aquel derecho en favor de un ciudadano, jamás puede constituir una política pública; y en tal
sentido resulta fundamental arbitrar los medios que resulten necesarios para generar
políticas integrales, sustentables y equitativas que garanticen la subsistencia del sistema
público de salud, sin que los particulares deban judicializar sus requerimientos.
Ante el evidente incremento de costos en nuevas tecnologías, en el marco de una
limitada capacidad económica y técnica que permita despejar toda duda sobre la eficacia de
las nuevas tecnologías, es claro que, o por acuerdo de riesgo compartido, o por la directa e
inmediata intervención del Estado en la regulación de precios, existen herramientas que
ayudan a afrontar estos nuevos costos y paliar de alguna manera la necesidad de llegar al
órgano judicial para asegurar la garantía del derecho constitucional elemental, que es la vida
y su correlativo derecho a la salud; ello, en el marco de las características propias de
nuestros sistemas de salud.
Por ello, observamos que ante esta necesidad, puede surgir la oportunidad – ¿por
qué no? – de tener que implementar políticas coordinadas entre los países de la región y
afectados por una misma necesidad como estrategia destinada a fortalecer el desarrollo
económico y social, promoviendo fuerzas tendientes a integrar un mismo espacio regional
entre países geográficamente próximos y económicamente complementarios.
Observamos que en un mundo globalizado, donde las economías son dinámicas y
competitivas, posicionados frente a sistemas sanitarios análogos, el poder de negociación y
cooperación entre los países de cada región en casos tan emblemáticos como complejos,
luciría como respuesta y estrategia para reforzar el bloque comercial.
En este marco de ideas, estamos convencidos que una política sanitaria sólida,
estable y dinámica, donde las herramientas y el camino para el acceso a los servicios de
salud estén claros, las actuaciones judiciales ante los organismos jurisdiccionales
disminuirían considerablemente, lo que en definitiva, repercutirá positivamente en los
principios rectores que constituyen al sistema público de salud.
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Colaboradores
Todos los autores contribuyeron en la redacción, investigación, interpretación de los
datos y aprobó la versión final.
Submetido em: 26/11/20 Aprovado em: 30/11/20
Como citar este artigo: Carignani A, Flores DY. Estrategia de Estado para el tratamiento de la atrofia muscular espinal: un desafío del sistema de salud en Argentina. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 70-88.
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Análisis de los recursos de amparo relativos al acceso de medicamentos ante la Sala Constitucional de Costa Rica Analysis of the injunction related to the access of medicines in the Constitutional Chamber of Costa Rica Análise dos recursos de amparo relacionados ao acesso a medicamentos na Câmara Constitucional da Costa Rica
Freddy Arias Mora1,2
Resumen Objetivo: analizar la judicialización del derecho fundamental a la salud, realizando un análisis de los recursos de amparo relacionados con medicamentos, resueltos por la Sala Constitucional de Costa Rica entre los años 2009 a 2018. Metodología: la metodología utilizada fue cualitativa, descriptiva. El método utilizado fue el análisis de contenido por medio de la revisión detallada de todas las sentencias emitidas por la Sala Constitucional de Costa Rica del año 2009 al año 2018. Resultados: de las 1831 sentencias que fueron emitidas por la Sala Constitucional durante el 2009 al 2018, el 61,1 % fueron declaradas con lugar; 32,6 sin lugar; 4,4 % fueron declaradas parcialmente con lugar; en 1,0 % de casos el recurso de amparo fue desistido; y un 0,9 % de los casos fueron rechazados de plano. Conclusión: las discusiones respecto a la pertenencia de brindar un medicamento se centran en aspectos científico y en una revisión detallada de la evidencia que fundamenta el uso de un medicamento. Palabras clave: Judicialización de la salud. Derecho a la salud. Poder Judicial. Abstract Objective: to analyze the judicialization of the fundamental right to health, to carry out an analysis of the remedies of protection related to medications, resolved by the Constitutional Chamber of Costa Rica between the years 2009 to 2018. Methods: the method used was content analysis through the specific review of all the judgments issued by the Constitutional Chamber of Costa Rica from 2009 to 2018. Results: 1,831 judgments that were issued by the Constitutional Chamber during 2009 to 2018, 61.1% were declared with place, 32.6 without place, 4.4% were partially declared with place, in 1.0% of cases the appeal for protection was withdrawn and 0.9% of cases they were rejected outright. Conclusion: the discussion regarding the belonging to provide a medicine focus mainly on scientific aspects and on a specific review of the evidence that supports the use of a medicine. Keywords: Judicialization of health. Right to health. Power of attorney. Resumo Objetivo: analisar a judicialização do direito fundamental à saúde, executando-se uma análise dos recursos de amparo relacionados aos medicamentos solucionados pela Câmara Constitucional da Costa Rica entre 2009 e 2018. Metodologia: a metodologia utilizada foi
1 Investigador, Instituto de Investigaciones Jurídicas, Universidad de Costa Rica, San José, Costa Rica; farmacêutico y abogado. https://orcid.org./0000-0003-2083-0004. E-mail: [email protected] 2 El presente artículo ha sido realizado en el marco del proyecto de investigación La garantía constitucional al acceso de medicamentos en el sistema de salud costarricense.
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qualitativa e descritiva. O método utilizado foi a análise de conteúdo por meio de uma revisão detalhada de todos os julgamentos proferidos pela Câmara Constitucional da Costa Rica, de 2009 a 2018. Resultados: dos 1831 julgamentos emitidos pela Câmara Constitucional durante o período de 2009 a 2018, 61,1% foram declarados procedentes; 32,6% improcedentes; 4,4% foram parcialmente procedentes; em 1,0% dos casos o recurso foi retirado; e em um 0,9% dos casos foram totalmente rejeitados. Conclusão: as discussões sobre a relevância de fornecer um medicamento concentram-se principalmente em aspectos científicos e em uma revisão detalhada das evidências que apoiam seu uso. Palavras-chave: Judicialização da saúde. Direito à saúde. Poder Judiciário.
Introducción
Costa Rica cuenta con un sistema de salud público y universal para todas las
personas que habitan en el país, el sistema está administrado por la Caja Costarricense de
Seguro Social (CCSS). La prestación de los servicios de salud se financia con el aporte de
las personas trabajadoras, el Estado y el patrono.
El sistema de seguridad social cubre el 100% del valor de un medicamento, sin que
el paciente tenga que realizar un pago directo por el producto. La CCSS es una institución
que cuenta con la Lista Oficial de Medicamentos (LOM) que forman parte de un cuadro
básico, no obstante, en caso de que el paciente requiera un medicamento que no esté en el
listado, es posible seguir un procedimiento administrativo para que el medicamento sea
adquirido específicamente para su caso.
El procedimiento para la compra de medicamentos que no están en la Lista Oficial de
Medicamentos de la institución consiste en que el profesional prescriptor justifique la
necesidad del paciente, esta solicitud es sometida a un órgano técnico, con una integración
multidisciplinaria de profesionales de ciencias de la salud, denominado Comité Central de
Farmacoterapia el cual tiene la competencia para aprobar la compra de productos
farmacéuticos que no estén incluidos en la Lista Oficial de Medicamentos (1).
Luego de analizar la solicitud enviada por el médico tratante, es posible que el Comité
Central de Farmacoterapia rechace la solicitud del paciente y niegue la compra del
medicamento. También es posible que el médico tratante no prescriba el producto que el
paciente pretende o que el paciente no quiera esperar que la solicitud sea analizada por el
Comité. En estos casos, el paciente puede acudir directamente a la Sala Constitucional de
la Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica –en adelante Sala
Constitucional- e interponer un recurso de amparo contra la Institución, con el fin de que la
Sala Constitucional ordene que le brinden el medicamento.
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El recurso de amparo es un recurso célere que permite a las personas acceder a que
un juez de la república decida sobre su caso particular. El recurso de amparo está contenido
en el artículo 29 de la Ley de Jurisdicción Constitucional (2), es un proceso informal, sumario
y preferente, tendiente a dotar a las personas de la posibilidad real de tutelar en forma directa
sus derechos fundamentales. No requiere ninguna formalidad especial, puede ser
presentado por el ciudadano sin patrocino legal.
El Tribunal Constitucional Costarricense ha conceptualizado el derecho a la salud
como un derecho fundamental autónomo, el cual tiene su propio contenido esencial. El
derecho a la salud no está contenido expresamente como un derecho fundamental, sino que
ha sido elaborado por abundante jurisprudencia constitucional, la cual ha sostenido
reiteradamente que:
Si bien es cierto que el derecho a la salud ha sido derivado del derecho a la vida y a un ambiente saludable y ecológicamente equilibrado por su interrelación con esos derechos, no podemos dejar de lado que este derecho fundamental es un derecho autónomo y con su propio contenido esencial. Basta sólo con consultar el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, en su numeral 12, para percatarnos de lo que venimos afirmando. En efecto, en dicho instrumento internacional de derechos humanos se establece claramente el derecho de toda persona al disfrutar del más alto nivel posible de salud física y mental, por lo que el Estado y sus instituciones tienen el deber de asegurar la plena efectividad de ese derecho a través de una serie de acciones positivas y del ejercicio de las potestades de regulación, fiscalización y de policía sanitaria. Lo anterior significa, ni más ni menos, la prevención y el tratamiento efectivo de enfermedades, así como la creación de condiciones que aseguren a todos la asistencia médica y servicios médicos de calidad en caso de enfermedad. Dicho lo anterior, el derecho a la salud comprende la disponibilidad de servicios y programas de salud en cantidad suficiente para los usuarios de estos servicios y destinatarios de estos programas. Por otra parte, el derecho a la salud también conlleva la accesibilidad a estos servicios y programas, cuya cuatro dimensiones son la no discriminación en el acceso a los servicios de salud, la accesibilidad física –particularmente por parte de los más vulnerables-, la accesibilidad económica –que conlleva la equidad y el carácter asequible de los bienes y servicios sanitarios- y la accesibilidad a la información. No menos importante es que los servicios y programas de salud sean aceptables, es decir, respetuosos con la ética médica, culturalmente apropiados, dirigidos a la mejora de la salud de los pacientes, confidenciales, etc. Por último, y no por ello menos significativo, el derecho a la salud implica servicios y programas de calidad, lo que significa que tales servicios deben ser científica y médicamente apropiados (3).
La Sala Constitucional ha sostenido la tesis de que no puede alegarse la falta de
presupuesto (recursos económicos, materiales o personal calificado) como excusa cuando
está de por medio el derecho a la salud (4).
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El inicio de los procesos constitucionales por medicamentos inició en 1997, cuando la
Sala Constitucional declaró con lugar un recurso de amparo, que reclamaba la prescripción
de medicamentos antirretrovirales, y obligó a la CCSS a brindar ese tratamiento. Esto inició
un proceso de crecimiento en la interposición de recursos para solicitar fármacos, cada vez
más variados (5).
La Sala Constitucional ha tenido una posición clara y consistente. Ha realizado
interpretaciones en defensa de la salud como un derecho social y, en tanto el recurso no
solicite medicamentos en fase experimental, su criterio es prácticamente unánime a favor
del paciente y del principio de libre prescripción médica. Se mantenía constante la posición
de brindar el medicamento que el profesional tratante prescribiera, aunque otros órganos
técnicos de la propia CCSS no lo avalaran. Muchas veces las decisiones de la Sala
Constitucional fueron cuestionadas en vista de la falta de rigurosidad científica en las
resoluciones.
En el año 2014, por primera vez el tribunal constitucional resolvió utilizando un criterio
distinto al del médico tratante. En la Resolución Nº 03337-2014 (6) se declaró sin lugar la
petición de un paciente que sufría de esclerosis múltiple y solicitó el medicamento
Natalizumab. La Sala argumentó que, con base en el paradigma de la medicina basada en
evidencias, existe suficiente información científica para sustentar una expectativa razonable
de beneficio con el uso de otro medicamento, denominado Azatioprina, que fue el
originalmente prescrito al paciente.
Normalmente, la Sala Constitucional había mantenido en sus sentencias la posición
de no referirse a aspectos técnicos en sus sentencias, sin embargo, en los últimos años cada
vez es más frecuente que utilice como apoyo técnico en sus sentencias los criterios de la
Sección Clínica Médico Forense del Organismo de Investigación Judicial (7). La Sala está
enviando los casos relacionados a medicamentos a esta instancia y los dictámenes son
tomados en cuenta para resolver los casos.
La incorporación de este órgano en los procesos constitucionales implica que existen
necesariamente tres criterios técnicos, el del médico tratante, el Comité de Farmacoterapia
y la Sección Clínica Médico Forense. Se plantea la interrogante sobre cual criterio técnico
debería prevalecer, la del médico tratante, un perito independiente, un médico forense, o un
cuerpo colegiado como es el Comité Central de Farmacoterapia (CCF). Si la sentencia de la
Sala contradice la opinión del cuerpo colegiado, sus decisiones podrían estar sustituyendo
el acto médico.
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En Costa Rica, pocos estudios han analizado el fenómeno de la solicitud de
medicamentos por medio del recurso de amparo (8). El presente estudio analiza las
sentencias emitidas por la Sala Constitucional de Costa Rica relacionadas con
medicamentos, del año 2009 al año 2018. Se detallan los principales criterios que son
utilizados para la resolución de los casos.
Metodología
La metodología utilizada fue cualitativa, descriptiva. El método utilizado fue el análisis
de contenido por medio de la revisión detallada de todas las sentencias emitidas por la Sala
Constitucional de Costa Rica del año 2009 al año 2018. Las sentencias fueron consultadas
directamente del sistema en línea Nexus3 del Poder Judicial de Costa Rica. Se incluyeron
en el estudio las sentencias de procesos de Amparo contra la Caja Costarricense de Seguro
Social, que incluyen en su texto la palabra medicamento.
De cada una de las sentencias se extrajo: i) resolución del caso: indicando si fue con
lugar (a favor del demandante), sin lugar (rechaza el recurso planteado) u otro (archivo del
expediente o desistimiento del recurso); ii) si el medicamento era antineoplásico o no; iii)
especialidad del médico tratante; iv) criterio del médico tratante; v) criterio de rechazo del
Comité Central de Farmacoterapia; y vi) criterio de la Sección Clínica Médico Forense.
Resultados y discusión
De las 1831 sentencias que fueron emitidas por la Sala Constitucional durante el 2009
al 2018, el 61,1 % fueron declaradas con lugar, 32,6 % sin lugar, 4,4 % fueron declaradas
parcialmente con lugar, en 1,0 % de casos el recurso de amparo fue desistido y un 0,9 % de
los casos fueron rechazados de plano. La figura 1 muestra la cantidad total por año de
sentencias y la cantidad que fueron declaradas con lugar a favor del solicitante. En el 46 %
del total de los casos el recurso de amparo se debía a un medicamento antineoplásico.
3 https://nexuspj.poder-judicial.go.cr/
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Figura 1. Detalle de sentencias analizadas relacionadas con medicamentos y las declaradas
con lugar
Fuente: elaboración propia a partir de la base de datos de sentencias emitidas por la Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica, del 2009 al 2018.
Como se detalla en la figura 1, la cantidad de sentencias aumenta progresivamente,
al igual que las declaradas con lugar a favor del demandante. Lo cual implica que la
seguridad social de Costa Rica está obligada a brindar el medicamento requerido por el
paciente, sin que los elementos económicos sean relevantes para la toma de la decisión.
La Sala Constitucional ha brindado especial relevancia al criterio del médico tratante.
En los casos que hay un criterio encontrado entre el medicamento que prescribe el médico
tratante y lo que indica el Comité Central de Farmacoterapia, la Sala atendía lo señalado por
el médico tratante sobre cualquier otra consideración. Se buscaba respetar la libertad de
prescripción médica, entendida como la facultad que tiene el médico de brindarle al enfermo
el tratamiento o medicamento mejor para él en cuanto a pronóstico y calidad de vida (9).
La tabla 1 muestra los principales criterios que fueron utilizados en las 1831
sentencias, por parte de los prescriptores para solicitar la compra de un medicamento que
está fuera de la Lista Oficial de Medicamentos. En el 37,8 % de los casos, el profesional que
prescribe consideró que el medicamento produce un beneficio para el paciente, ya sea en
97
5368
83
125
72 80
114
164
264
146
105
130 133
212
118130
202
291
364
0
50
100
150
200
250
300
350
400
2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Declarada con lugar Total
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una mejoría de los síntomas, en la calidad de vida o sobrevida del paciente. El segundo
criterio más relevante es que el medicamento está indicado para la patología y considera
que es la mejor opción para el paciente.
En un 4,4 % de los casos, ningún profesional prescribió el medicamento, sino que el
paciente acudió directamente a la Sala Constitucional a solicitar el medicamento. En dos
ocasiones (10, 11) la Sala resolvió a favor del solicitante, a pesar de que el medicamento no
había sido prescrito, ni había sido rechazado por el Comité Central de Farmacoterapia. Estos
casos se deben al cambio de medicamentos originales por medicamentos genéricos que
generaron reacciones adversas. La Sala consideró en un caso (10) que se debía acoger el
amparo, pues efectivamente el cambio del medicamento sí afecta el derecho a la salud de
la amparada, porque consta en el expediente clínico de la paciente una intensificación de las
crisis derivadas del cambio de medicamento.
Un criterio relevante que utilizan los prescriptores es la evidencia en la literatura que
apoya la indicación o que existe algún beneficio reportado en la literatura. Esta consideración
es importante en vista que, aunque el medicamento no esté incorporado en guías
terapéuticas avaladas por la institución o ni siquiera autorizado para usarse en el país, es
posible que se discutan aspectos científicos que conduzcan a que el paciente reciba el
medicamento. En 43 de los 59 casos que el médico indicó que existe evidencia en la
literatura, el recurso fue declarado con lugar.
Tabla 1. Criterio del médico tratante para prescribir el medicamento
Criterio del médico tratante Porcentaje total
La terapia es beneficiosa al paciente/mejoría en síntomas, calidad de vida y
sobrevida
37,7
Medicamento está indicado y es la mejor opción 18,7
No ha recomendado el medicamento 4,6
Evidencia en literatura apoya la indicación/beneficio 3,3
El paciente puede recibir la terapia y cumple requisitos 3,3
El medicamento es la primera línea 0,8
No se indica en la sentencia 18,5
Otro 2,5
Fuente: elaboración propia a partir de la base de datos de sentencias emitidas por la Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica, del 2009 al 2018.
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La tabla 2 resume los criterios que utiliza el Comité Central de Farmacoterapia para
rechazar la compra de un medicamento que no está incluido en la Lista Oficial de
Medicamentos. En 32,2 % de los casos, las razones del Comité Central de Farmacoterapia
se basan en aspectos científicos como que la evidencia científica insuficiente o que existen
otros medicamentos alternativos que son apoyados por la institución
Solo en 4,9 % de los casos se indica que la relación costo/beneficio no justifica el uso.
En 22,7 % de los casos, el medicamento no ha sido solicitado al Comité Central de
Farmacoterapia o la solicitud está en trámite, y el paciente acude a la Sala Constitucional
alegando la vulneración a sus derechos. En 1,8 % de los casos, el medicamento fue
rechazado porque no tiene una indicación aprobada para el uso en la patología.
Tabla 2. Criterio del Comité Central de Farmacoterapia (CCF)
Criterio Porcentaje total
Evidencia científica insuficiente (no han demostrado el beneficio en las
diferentes variables)
16,0
Existen alternativas LOM y no LOM apoyadas por la CCSS 16,2
No existe solicitud ante el CCF o CLF 10,5
Medicamento no se ha denegado, solicitud se está tramitando 8,8
Beneficio limitado del medicamento 7,1
Relación costo/beneficio no justifica el uso 4,9
Medicamento no es superior a las opciones LOM o no LOM apoyadas 3,7
Solicitud incompleta de medicamento no LOM 3,3
Paciente no cumple con los criterios de los protocolos o lineamientos que
existen en la CCSS
3,3
No existe evidencia científica 2,2
Paciente no cumple con los criterios para el uso del medicamento 3,3
Medicamento no tiene indicación aprobada 1,8
Medicamento está contraindicado 0,8
Otros 8,6
No se indica 2,7
No aplica 8,1
Fuente: elaboración propia a partir de la base de datos de sentencias emitidas por la Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica, del 2009 al 2018.
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Como se desprende de la tabla 1 y 2, los criterios que emite el profesional que
prescribe y los argumentos del Comité Central de Farmacoterapia son en su mayoría
aspectos científicos relacionados con la evidencia científica que justifica el uso de
determinado medicamento.
Se discute la evidencia que soporta el beneficio para un paciente de la terapia, por lo
cual existe la posibilidad de que haya criterios científicos divergentes. Que el médico
especialista considere la terapia adecuada y que el comité considere lo contrario. Esta
situación crea una disyuntiva para el Tribunal Constitucional. El recurso de amparo es un
proceso sumarísimo que no permite incorporar la cantidad de pruebas o elementos que, si
permite un proceso ordinario, así que el Tribunal debe decidir en un periodo muy corto con
la información que disponga.
Esta situación condujo a que se incorporara el criterio de un organismo técnico propio
del Poder Judicial, como apoyo a las sentencias del Tribunal. La Sala Constitucional solicita
el criterio a la Sección Clínica Médico Forense del Organismo de Investigación Judicial, del
Poder Judicial de Costa Rica. Esta sección realiza valoraciones del estado físico en personas
vivas a solicitud de una Autoridad Judicial, con la finalidad de rendir un dictamen médico
legal en el cual se informa sobre los hallazgos médicos y su relación con los hechos
investigados4.
La figura 2 muestra el aumento en las consultas que se realizan a la Sección Clínica
Médico Forense, a partir del año 2017, la mayoría de los casos han sido remitidos para que
esta sección analice el caso y rinda su criterio técnico.
4 Información disponible en: https://sitiooij.poder-judicial.go.cr/index.php/oficinas/departamento-de-medicina-legal/clinica-medico-forense
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Figura 2. Cantidad de casos en que se consultó el criterio de la Sección Clínica Médico
Forense del Poder Judicial
Fuente: elaboración propia a partir de la base de datos de sentencias emitidas por la Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica, del 2009 al 2018.
La tabla 3 muestra los principales criterios que manifiesta la Sección Clínica Médico
Forense desde el año 2016 al 2018. El criterio en pocos casos es el mismo que el CCF, el
principal señalamiento que realiza es que la terapia es beneficiosa para el paciente, mejora
los síntomas, la calidad de vida o la sobrevida. Se indica que el medicamento prescrito es la
mejor opción. El criterio de esta sección determina el resultado del voto del tribunal
constitucional. Si el criterio de la sección es positivo respecto de la terapia, la sentencia será
resuelta a favor del paciente.
Esta situación plantea muchos retos para la Sección Clínica Médico Forense ya que
debe realizar un análisis exhaustivo del estado de paciente, que implica una lectura
minuciosa del expediente clínico del paciente, una valoración física, además de una revisión
exhaustiva de la evidencia clínica disponible. Debe analizar el criterio del médico tratante y
el análisis del CCF, criterios que normalmente son antagónicos. Todo este análisis debe ser
0 0 1 5 15 732
97
232
293
13797
120 118
195
10581
81
9
36
9
89 10
2
6 17
24
50
35
0
50
100
150
200
250
300
350
400
2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Se consultó No se consultó No aplica
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realizado en un periodo muy corto de tiempo para no afectar la salud de las personas que
requieren del medicamento.
Tabla 3. Principales criterios de la Sección Clínica Médico Forense
Criterio de Medicina Forense 2016 2017 2018
La terapia es beneficiosa al paciente/mejoría en síntomas,
calidad de vida y sobrevida 12,4 15,1 26,1
Medicamento/prescripción está indicada/adecuada/mejor
opción 9,4 5,5 31,6
Evidencia en literatura apoya la indicación/beneficio 5,9 4,1 5,2
Se apega al criterio médico 1,0 25,1 3,0
No se localizó/evaluó el paciente 2,0 4,8 2,2
Mismo criterio que CCF 4,5 12,0 3,0
No aplica 52,0 20,3 19,5
Otro 12,9 13,0 9,3
Fuente: elaboración propia a partir de la base de datos de sentencias emitidas por la Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica, del 2009 al 2018.
Conclusiones
Del análisis de las sentencias emitidas por la Sala Constitucional de Costa Rica del
año 2009 al año 2018, se evidencia que, cada año aumenta la cantidad de resoluciones de
recursos de amparo relacionados con medicamentos. Estos casos se originan
especialmente del rechazo para otorgar un medicamento.
El análisis de los casos plantea discusiones complejas, el criterio del médico tratante,
así como del Comité Central de Farmacoterapia se centran en aspectos científicos que
deben ser cuidadosamente analizados para resolver el caso. A partir del 2006, el criterio de
la Sección Clínica Médico Forense tiene un papel fundamental en la resolución de los casos,
al brindar una opinión imparcial que permite al Tribunal Constitucional decidir la forma de
resolver los casos.
Referencias
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Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 100 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.718
2. Costa Rica. Asamblea Legislativa de Costa Rica. Ley de Jurisdicción Constitucional Nº 7135, del 19 de octubre de 1989. La Gaceta [Internet]. 19 de octubre de 1989;34(198). Disponible en: http://www.pgrweb.go.cr/scij/Busqueda/Normativa/Normas/nrm_texto_completo.aspx?param1=NRTC&nValor1=1&nValor2=38533&nValor3=87797&strTipM=TC 3. Costa Rica. Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica. Resolución Nº 3683-11, de 22 de março del 2011. [Internet]. Disponible en: https://nexuspj.poder-judicial.go.cr/document/sen-1-0007-507033 4. Costa Rica. Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica, Resolución Nº 2794-03, de 08 de Abril de 2002. [Internet]. Disponible en: https://nexuspj.poder-judicial.go.cr/document/sen-1-0007-256862 5. Norheim O. F. y Wilson, B.M. Health Rights Litigation and Access to Medicines: Priority Classification of Successful Cases from Costa Rica’s Constitutional Chamber of the Supreme Court. Health and Human Rights [Internet]. 2014;16(2):47- 61. Disponible en: https://www.hhrjournal.org/2014/10/health-rights-litigation-and-access-to-medicines-priority-classification-of-successful-cases-from-costa-ricas-constitutional-chamber-of-the-supreme-court/ 6. Costa Rica. Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica. Resolución Nº 03337-2014 de 11 de Marzo del 2014. Disponible en: https://nexuspj.poder-judicial.go.cr/document/sen-1-0007-602488 7. Rodríguez O, Morales S, Norheim O F, Wilson BM. Revisiting Health Rights Litigation and Access to Medications in Costa Rica: Preliminary Evidence from the Cochrane Collaboration Reform. Health and Human Rights [Internet]. 2018;20(1):79- 91. Disponible en: https://www.hhrjournal.org/2018/06/revisiting-health-rights-litigation-and-access-to-medications-in-costa-rica-preliminary-evidence-from-the-cochrane-collaboration-reform/ 8. Reveiz L, Chapman E, Torres R, Fitzgerald JF, Mendoza A, Bolis M, et al. Litigios por derecho a la salud en tres países de América Latina: revisión sistemática de la literatura. Rev Panam Salud Publica [Internet]. 2013;33(3):213–22. Disponible en: https://iris.paho.org/handle/10665.2/9197?locale-attribute=es 9. Costa Rica. Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica. Resolución Nº 3363-04 de 31 de Marzo del 2004. Disponible en: https://nexuspj.poder-judicial.go.cr/document/sen-1-0007-263928 10. Costa Rica. Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica. Resolución Nº 16170-11 de 01 de Noviembre del 2011 [Internet]. Disponible en: https://nexuspj.poder-judicial.go.cr/document/sen-1-0007-537985 11. Costa Rica. Sala Constitucional de la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica. Resolución Nº 14924-11 de 25 de Noviembre del 2011. Disponible en: https://nexuspj.poder-judicial.go.cr/document/sen-1-0007-531015
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 101 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.718
Submetido em: 19/07/20 Aprovado em: 10/11/20
Como citar este artigo: Mora FA. Análisis de los recursos de amparo relativos al acceso de medicamentos ante la Sala Constitucional de Costa Rica. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 89-101.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.718
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 102 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.715
Cloroquina e hidroxicloroquina: uso off-label em processos judiciais no estado de Minas Gerais Chloroquine and hydroxychloroquine: off-label use in lawsuits in the State of Minas Gerais, Brazil Cloroquina e hidroxicloroquina: uso fuera de lo indicado en demandas en el estado de Minas Gerais, Brasil
Patrícia de Oliveira1
Camila Cátia Vilela Viana2
Orozimbo Henriques Campos Neto3
Giovana Gonçalves Pereira4
André Soares Santos5
Keli Bahia Felicíssimo Zocratto6
Resumo Objetivo: analisar os processos judiciais relacionados à cloroquina e hidroxicloroquina, segundo indicações e registros na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), bem como nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), considerando as doenças que motivaram os pleitos, sob o olhar da bioética para o uso off-label. Metodologia: estudo documental, exploratório-descritivo, transversal, quantitativo. Foram analisados os processos judiciais por hidroxicloroquina e cloroquina, nos últimos 20 anos em Minas Gerais. Realizou-se a análise descritiva, considerando as seguintes variáveis: doença; CID-10; medicamentos; ano de incorporação no componente especializado da assistência farmacêutica (CEAF); e ano da ação judicial. Foi utilizado o software SPSS® versão 19 na análise dos dados. Resultados: dos 155 processos analisados, 148 (95,5%) apresentaram demanda por hidroxicloroquina 400mg e 7 (4,5%) por cloroquina 250mg. Os medicamentos analisados possuíam registros na Anvisa e o uso off-label foi constatado em 8,1% para
1 Mestranda em Gestão de Serviço de Saúde, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; coordenadora, Assistência Farmacêutica, Superintendência Regional de Saúde de Belo Horizonte, Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-6116-7889. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Gestão de Serviço de Saúde, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; diretora de Regulação de Urgência e Emergência, Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-7659-9310. E-mail: [email protected] 3 Doutor em Saúde Pública, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professor, Faculdade Ciências da Vida/Instituto Vida e Saúde, Sete Lagoas, Minas Gerais, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6415-3709. E-mail: [email protected] 4 Mestranda em Gestão de Serviço de Saúde, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; coordenadora, Assistência Farmacêutica, Superintendência Regional de Saúde de Pirapora, Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, Pirapora, MG, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-0479-793X. E-mail: [email protected] 5 Doutor em Medicamentos e Assistência Farmacêutica; residente pós-doutoral, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. https://orcid.org/000-0002-2856-7100. E-mail: [email protected] 6 Doutora em Saúde Pública, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil; professora adjunta, Departamento de Gestão em Saúde (DGES), Universidade Federal de Minas Gerais. https://orcid.org/0000-0002-5742-0570. E-mail: [email protected]
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hidroxicloroquina e 14,3% para cloroquina. Discussão: as demandas judiciais para a hidroxicloroquina e cloroquina estiveram relacionadas às suas indicações registradas em bula e dentro dos PCDT. No entanto, a presença no estudo de seu uso off-label demonstrou que o Judiciário defere os pleitos, trazendo implicações bioéticas ao impactar nos princípios da autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Conclusão: a judicialização de medicamento off-label interfere no planejamento, execução e financiamento das políticas públicas de saúde, além de causar exposição do cidadão a riscos desconhecidos, ao utilizar medicamentos com indicações não amparadas pelas evidências científicas, pela Anvisa e pela própria indústria produtora do medicamento. Palavras-chave Judicialização da saúde. Bioética. Hidroxicloroquina. Cloroquina. Abstract Objective: to analyze the lawsuits related to chloroquine and hydroxychloroquine, according to indications and records at the National Health Surveillance Agency (Anvisa) as well as in the Clinical Protocols and Therapeutic Guidelines (PCDT) considering the diseases that motivated the claims, under the view of the bioethics for off-label use. Methodology: documentary, exploratory-descriptive, transversal, quantitative study. The hydroxychloroquine and chloroquine lawsuits in the last 20 years in Minas Gerais were analyzed. Descriptive analysis was performed by considering the following variables: disease; ICD-10; medicines; year of incorporation into the specialized pharmaceutical assistance component (CEAF); and year of the lawsuit. SPSS® software version 19 was used to analyze the data. Results: the corpus of 155 processes analyzed, 148 (95.5%) presented demand for 400mg hydroxychloroquine and 7 (4.5%) for 250mg chloroquine. The analyzed drugs were registered with Anvisa and off-label use was found in 8.1% for hydroxychloroquine and 14.3% for chloroquine. Discussion: the judicial demands for hydroxychloroquine and chloroquine were related to their indications registered in the package leaflet and within the PCDT. However, the presence in the study of its off-label use demonstrated that the Judiciary grants the claims, bringing bioethical implications by impacting the principles of autonomy, non-maleficence, beneficence, and justice. Conclusion: the judicialization of off-label medicine interferes in the planning, execution and financing of public health policies, in addition to causing citizen exposure to unknown risks, when using medicines with indications not supported by scientific evidence, by Anvisa and by the production industry itself of the medicine. Keywords Health's judicialization. Bioethics. Hydroxychloroquine. Chloroquine. Resumen Objetivo: analizar los juicios relacionados con la cloroquina y la hidroxicloroquina, de acuerdo con las indicaciones y registros de la Agencia Nacional de Vigilancia Sanitaria (Anvisa), así como en los Protocolos Clínicos y Guías Terapéuticas (PCDT), considerando las enfermedades que motivaron las reclamaciones, bajo la óptica de la bioética para uso no indicado en la etiqueta. Metodología: estudio documental, exploratorio-descriptivo, transversal, cuantitativo. Se analizaron los juicios de hidroxicloroquina y cloroquina de los últimos 20 años en Minas Gerais. Se realizó un análisis descriptivo, considerando las siguientes variables: enfermedad; ICD-10; medicamentos; año de incorporación al componente de asistencia farmacéutica especializada (CEAF); y año de la demanda. Se utilizó el software SPSS® versión 19 para analizar los datos. Resultados: de los 155 procesos analizados, 148 (95,5%) presentaron demanda de 400 mg de hidroxicloroquina y
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7 (4,5%) de 250 mg de cloroquina. Los medicamentos analizados se registraron en Anvisa y el uso fuera de lo indicado se encontró en 8.1% para hidroxicloroquina y 14.3% para cloroquina. Discusión: las demandas judiciales de hidroxicloroquina y cloroquina estaban relacionadas con sus indicaciones registradas en el prospecto y dentro del PCDT. Sin embargo, la presencia en el estudio de su uso fuero de lo indicado demostró que el Poder Judicial otorga los reclamos, trayendo implicaciones bioéticas al incidir en los principios de autonomía, no maleficencia, beneficencia y justicia. Conclusión: la judicialización de los medicamentos fuera de lo indicdo interfiere en la planificación, ejecución y financiamiento de las políticas de salud pública, además de provocar la exposición ciudadana a riesgos desconocidos, al utilizar medicamentos con indicaciones no sustentadas en evidencia científica, por Anvisa y por la propia industria productora. de la medicina. Palabras clave Judicialización de la salud. Bioética. Hidroxicloroquina. Cloroquina
Introdução A cloroquina e a hidroxicloroquina são aminoquinolinas de ação antimalárica,
registradas no Brasil para tratamento de doenças autoimunes como lúpus e artrite
reumatoide (1). Novos ensaios clínicos são necessários para se realizar o reposicionamento
ou reaproveitamento desses medicamentos para novas indicações terapêuticas que ainda
não estejam aprovadas. A avaliação clínica de reposicionamento pode representar uma boa
estratégia quando o meio científico enfrenta o desafio de encontrar medicamentos seguros
e eficazes para infecções virais emergentes que se expandem, causando um número
crescente de óbitos (2,3).
Para a utilização de medicamentos de forma segura as evidências disponíveis sobre
seus benefícios na utilização devem ser suficientes e, enquanto não haja evidências
científicas de melhor qualidade sobre a eficácia e segurança dos medicamentos avaliados,
é recomendável que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente
registrados, aprovados e eticamente aceitáveis (4). Em 2003, foi lançada a hipótese de que
a cloroquina poderia ser útil para tratar a síndrome respiratória aguda grave (SARS), um ano
após o vírus SARS-CoV ter sido identificado como o agente etiológico da SARS (2).
Em 2020, um universo integralmente novo – relacionado à pandemia da Covid-19,
doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 – se caracterizou como uma emergência em
saúde pública de importância internacional, conforme apontada pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) (5). No contexto da saúde pública brasileira, o Sistema Único de Saúde
(SUS) se depara com mais uma situação adversa para cumprir os princípios doutrinários do
direito constitucional à saúde: universalidade, equidade e integralidade. A complexidade do
momento impõe desafios adicionais à vigilância epidemiológica, às relações internacionais
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e à programação de políticas públicas, sobretudo por meio de medidas que reduzam as
desigualdades de acesso às ações e serviços de saúde (6).
Desde 16 de março de 2020, quando pesquisadores franceses publicaram que o
medicamento hidroxicloroquina curou pacientes com a Covid-19, os quais se encontravam
em leitos de UTI, a esperança pela cura superou qualquer racionalidade sobre os possíveis
efeitos adversos (2). Dilemas como esses alcançam os operadores do direito no Ministério
Público e no Judiciário, que precisam se posicionar para determinar ações que, em teoria,
correspondam ao cumprimento do direito à saúde pelo SUS.
Nos últimos anos, tem-se observado uma explosão de processos judiciais por
prestações individuais, solicitações de medicamentos, procedimentos e equipamentos para
a saúde. As decisões judiciais atreladas a esses processos podem resolver uma situação
pontual e individual, mas não modificam o sistema em termos de aprimoramento ou correção
das políticas públicas. A realocação de recursos públicos para o cumprimento de decisões
judiciais acirra a disputa com as políticas de saúde, uma vez que pode favorecer o autor do
processo judicial, penalizando a coletividade que utiliza o SUS (7). A pandemia da Covid-19
traz à tona o conhecido desafio enfrentado pelo Judiciário que, ao evidenciar as decisões
vinculadas a processos de caráter individual e para a utilização de medicamentos sem
comprovação científica, podem trazer distorções frente à equidade, especialmente quando
se está diante de uma doença que afeta toda a população em termos sociais, econômicos e
sanitários, podendo inclusive trazer agravos à saúde da população brasileira (8,9).
O presente estudo buscou trabalhar o caso concreto dos processos judiciais pelos
medicamentos cloroquina e hidroxicloroquina, no estado de Minas Gerais, de maio de 2000
a maio de 2020, com abrangência em período anterior e no momento da pandemia da Covid-
19. O objetivo foi analisar os processos judiciais relacionados às referidas terapias
farmacológicas, conforme os registros desses medicamentos na Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), as categorias de registros realizados pelos laboratórios
(genérico, similar e referência), bem como a padronização nos Protocolos Clínicos e
Diretrizes Terapêuticas (PCDT), considerando as doenças que motivaram os pleitos
judiciais. Nessa trajetória, um olhar sobre o uso off-label norteou o estudo para que o debate
acerca dos fundamentos da bioética aplicada compusesse o artigo.
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Metodologia
Estudo documental, exploratório-descritivo, transversal, de caráter quantitativo, cujo
objeto de análise corresponde às demandas por hidroxicloroquina e cloroquina requisitadas
por meio de processos judiciais, em que o estado de Minas Gerais e seus representantes
figuram como réus.
Os dados foram obtidos mediante análise da relação dos medicamentos judicializados
dos últimos 20 anos (31 de maio de 2000 a 31 de maio de 2020), pela Secretaria de Estado
de Saúde de Minas Gerais (SES/MG). A relação dos medicamentos foi disponibilizada pela
Coordenação de Planejamento e Distribuição do Núcleo de Judicialização em Saúde
(CPD/NJS) da SES/MG, em uma planilha do Microsoft Office Excel 2016, contendo o registro
dos processos judiciais. Foram selecionados os processos que continham os princípios
ativos difosfato de cloroquina e sulfato de hidroxicloroquina. Realizou-se a identificação das
dosagens, forma farmacêutica e categoria do registro pelo laboratório produtor (genérico,
similar e referência), para cada princípio ativo.
Com base nos processos judiciais selecionados, foram realizadas consultas no
Sistema de Gerenciamento da Assistência Farmacêutica da Judicialização (SIGAFJUD) –
sistema de registro das informações relacionadas às demandas judiciais em saúde do
estado de Minas Gerais – para busca das informações sobre a doença e sua respectiva
Classificação Internacional de Doenças (CID.10).
Para a identificação do uso off-label da cloroquina e hidroxicloroquina, utilizou-se a
bula profissional e o registro dos seus princípios ativos. Verificou-se a existência de registros
vigentes de cada um dos princípios ativos na Anvisa, por meio de pesquisa no banco de
dados Consulta a Medicamentos e Hemoderivados, disponível no sítio eletrônico
https://consultas.anvisa.gov.br/#/medicamentos/. A pesquisa foi realizada no dia 20 de junho
de 2020. Para verificar as indicações terapêuticas registradas, foi acessada a bula
profissional para cada medicamento no Bulário eletrônico da Anvisa
(http://www.anvisa.gov.br/datavisa/fila_bula/index.asp).
A análise descritiva, por meio de frequências absolutas e relativas, traçou o perfil dos
processos judiciais por difosfato de cloroquina e sulfato de hidroxicloroquina, utilizando as
seguintes variáveis: a doença; código na CID-10; medicamentos (dosagem, forma
farmacêutica e categoria do registro pelo laboratório produtor); ano de incorporação no
PCDT do medicamento por código da CID-10; e ano da ação judicial. Foi utilizado o software
SPSS® versão 19 na análise dos dados e a apresentação foi feita em tabela e gráfico.
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Resultados No período de 31 de maio 2000 a 31 de maio de 2020, foram encontrados 155
processos judiciais para os medicamentos estudados, dentre os quais, 148 (95,5%) com
demanda por sulfato de hidroxicloroquina 400mg, comprimido revestido; e sete (4,5%) por
difosfato de cloroquina 250mg, comprimido (Tabela 1).
Tabela 1. Perfil dos pleitos judiciais por cloroquina e hidroxicloroquina (maio/2000 a
maio/2020)
Medicamento n %
Sulfato de hidroxicloroquina 400mg 148 95,5
Difosfato de cloroquina 250mg 7 4,5
Total 155 100
Fonte: banco de dados dos medicamentos judicializados contra a SES-MG (2000-2020).
A primeira demanda judicial para os medicamentos estudados foi registrada em
outubro de 2005, seguindo uma distribuição disforme ao longo do período analisado. Entre
os anos de 2013 a 2019, foram ajuizadas 126 (85,14%) processos judiciais por esses
medicamentos, tendo o maior registro de volume anual no ano de 2014 (n= 34), relacionado
ao pleito exclusivo de hidroxicloroquina. Não houve registro de processos judiciais por esses
medicamentos no ano de 2020 (Gráfico 1).
Gráfico 1. Evolução das ações judiciais por difosfato de cloroquina e sulfato de
hidroxicloroquina no estado de Minas Gerais (maio/2000 a maio/2020)
Fonte: Sistema de Gerenciamento da Assistência Farmacêutica da Judicialização (SIGAFJUD), SES/MG.
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Considerando o ano de registro do processo judicial e a disponibilidade dos
medicamentos analisados no SUS no mesmo ano, observou-se que, em três demandas
(1,9%), o medicamento pleiteado não estava disponível no SUS, no componente
especializado da assistência farmacêutica (CEAF). Essas três ações foram ajuizadas em
2005, 2006 e 2007. Em 29,7% (n= 46) dos processos, entre os anos de 2008 a 2018, os
medicamentos estavam padronizados no SUS, mas a doença do demandante não estava
contemplada nos PCDT, publicados pelo Ministério da Saúde. Havia a disponibilidade no
SUS, de acordo com os PCDT, para 81 (52,3%) dos processos judiciais pelos medicamentos
analisados. Por fim, em 25 (16,1%) demandas analisadas, não foi possível cruzar a
informação sobre a disponibilidade do item no SUS e o CID-10, por não estar identificada a
doença do requerente (Tabela 2).
Tabela 2. Perfil dos pleitos judiciais por cloroquina e hidroxicloroquina e por período de
disponibilização no CEAF do SUS, conforme vigência do PCDT ou Nota Técnica (maio/2000
a maio/2020).
Disponibilidade no SUS no
CEAF e PCDT
2000* a 2007 2008 a 2012 2013 a 2019 2020*
TOTAL
Sem PCDT PCDT: Artrite
PCDT: Artrite/Lupus
PCDT: Artrite/Lupus Nota Técnica:
Covid-19
n % n % n % n % n %
Indisponível no SUS
3 100 0 0 0 0 0 0 3 1,9
Indisponível no PCDT
0 0 20 76,9 26 20,6 0 0 46 29,7
Disponível no PCDT
0 0 2 7,7 79 62,7 0 0 81 52,3
Sem informação 0 0 4 15,4 21 16,7 0 0 25 16,1
Total 3 100 26 100 126 100 0 0 155 100
Fonte: banco de dados dos medicamentos judicializados contra a SES-MG (2000-2020).
*maio de 2000 e maio 2020
Os medicamentos analisados neste estudo possuíam, até 20 de junho de 2020,
registros ativos na Anvisa. Foram encontrados seis registros válidos de cinco diferentes
laboratórios privados para o sulfato de hidroxicloroquina 400mg (Sanofi, Apsen
Farmacêutica, Germed Farmacêutica, Eurofarma Laboratórios e EMS S/A) e três registros
válidos de três diferentes laboratórios para o difosfato de cloroquina 250mg, sendo dois
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laboratórios públicos (Fundação Oswaldo Cruz e Laboratório Químico Farmacêutico do
Exército) e um privado (Cristália Produtos Químicos Farmacêuticos Ltda.).
De acordo com as bulas para os profissionais de saúde, as indicações aprovadas e
registradas pela Anvisa para ambos medicamentos foram: afecções reumáticas e
dermatológicas (reumatismo e problemas de pele); artrite reumatoide (inflamação crônica
das articulações); artrite reumatoide juvenil (em crianças); lúpus eritematoso sistêmico
(doença multissistêmica); lúpus eritematoso discoide (lúpus eritematoso da pele); condições
dermatológicas (problemas de pele) provocadas ou agravadas pela luz solar; malária
(doença causada por protozoários), para tratamento das crises agudas e tratamento
supressivo de malária por Plasmodium vivax, P. ovale, P. malariae e cepas (linhagens)
sensíveis de P. falciparum (protozoários causadores de malária) e tratamento radical da
malária provocada por cepas sensíveis de P. falciparum.
Entre os 155 processos judiciais analisados, 148 tratavam de pleito por
hidroxicloroquina, sendo que 112 (75,7%) apresentaram demandas relacionadas a
tratamento de doenças com indicações registrados em bula e 12 (8,1%) tratavam de uso off-
label. Em 24 (16,2%) processos judiciais, não foi possível identificar nos registros analisados
a doença do demandante. Em relação à cloroquina, dos 7 processos judiciais pesquisados,
57,1% (n=4) eram demandas relacionadas a tratamento de doenças com indicações
registrados em bula; 14,3% (n=1) tratavam de uso off-label; e em 28,6% (n=2%) dos
processos judiciais não foi possível identificar a doença do demandante nos registros
analisados (Tabela 3).
Tabela 3. Perfil dos pleitos judiciais por cloroquina e hidroxicloroquina, conforme registro da
indicação dos medicamentos (maio/2000 a maio/2020)
Indicação em bula pela Anvisa Hidroxicloroquina Cloroquina
n % n %
Sem indicação (Off label) 12 8,1 1 14,3
Sem informação suficiente 24 16,2 2 28,6
Com indicação 112 75,7 4 57,1
Total 148 100 7 100
Fonte: banco de dados dos medicamentos judicializados contra a SES-MG (2000-2020).
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Nas demandas por sulfato de hidroxicloroquina 400mg, em relação à exigência por
laboratório fabricante, 101 (68,2%) processos judiciais não definiram laboratório para o
cumprimento da decisão; 42 (28,4%) exigiam que a demanda fosse cumprida com o
medicamento registrado na categoria de similar do laboratório Apsen; e 5 (3,4%) com o
medicamento referência produzido pelo laboratório Sanofi. Para as demandas por difosfato
de cloroquina 250mg não houve especificação de marcas (Tabela 4).
Tabela 4. Perfil dos pleitos judiciais por cloroquina e hidroxicloroquina, conforme categoria
de registro na Anvisa (maio/2000 a maio/2020)
Categoria do Registro pela Anvisa Hidroxicloroquina Cloroquina
n % n %
Medicamento Referência 5 3,4 0 0
Medicamento Similar 42 28,4 0 0
Sem Definição 101 68,2 7 100
Total 148 100 7 100
Fonte: Banco de Dados dos Medicamentos Judicializados contra a SES-MG (2000-2020)
Discussão
A presença de processos judiciais pleiteando a hidroxicloroquina foi anterior ao da
cloroquina, sendo que a maioria dos medicamentos pleiteados estavam inseridos no PCDT
e disponibilizados no CEAF. A definição de marca e laboratório, assim como o uso off-label
foram observadas nas decisões analisadas, exceto no período da pandemia. As decisões
judiciais acabam por fixar políticas públicas na saúde, fazendo que o Judiciário, ao atuar
como promotor da garantia de direitos passe a assumir o papel de administrador do sistema
com uma visão restrita, impactando no atendimento aos princípios da bioética.
A maioria das demandas judiciais foi para o medicamento hidroxicloroquina 400mg,
sendo que os processos judiciais para ambos os medicamentos foram entre os anos de 2005
a 2019. Não houve demanda judicial no ano de 2020 para nenhum dos medicamentos
estudados, mesmo com toda repercussão na atribuição aos referidos medicamentos
potenciais propriedades no combate à infecção humana pelo novo coronavírus, inclusive por
orientação do Ministério da Saúde (10). Tal situação gerou um desabastecimento dos
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medicamentos nas farmácias e drogarias, dificultando o acesso aos pacientes com
acometimentos de saúde que possuem indicação médica para utilizá-los (11).
Em relação à contemplação e disponibilização no SUS por meio dos PCDT do CEAF,
os medicamentos pleiteados nos processos em sua grande maioria estavam inseridos no
PCDT e disponibilizadas pela Assistência Farmacêutica. A cloroquina e a hidroxicloroquina,
que atualmente fazem parte de estudos clínicos para avaliação da indicação no tratamento
da Covid-19, estão incorporadas e disponibilizadas no SUS por meio do CEAF desde 2008
para o tratamento de artrite reumatoide. A partir de 2013, houve a incorporação e
disponibilização da hidroxicloroquina e cloroquina no PCDT de lúpus eritematoso sistêmico
(12).
Atualmente, a cloroquina também é incorporada no SUS como opção terapêutica para
o tratamento de pacientes com malária, doença de perfil endêmico no Brasil e que demanda
a inclusão de tratamento farmacológico no CEAF (13). Em 2020, o Ministério da Saúde
disponibiliza, sem submissão à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias
(Conitec) no SUS, a cloroquina como terapia adjuvante no tratamento de formas graves da
Covid-19 por meio da Nota Informativa nº 5/2020-DAF/SCTIE/MS e, posteriormente, orienta
o manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19, por meio
da publicação da Nota Informativa nº 9/2020-SE/GAB/SE/MS (14).
No Brasil, desde 2011, foi atribuída à Conitec a responsabilidade de incorporação,
exclusão ou alteração de medicamentos, produtos e procedimentos ofertados pelo SUS,
bem como a constituição ou a alteração dos PCDT (15). Para a avaliação dessas
tecnologias, são consideradas a existência de evidências científicas de eficácia, efetividade
e segurança da tecnologia avaliada em comparação às demais, bem como o impacto
orçamentário da incorporação (16). A Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) assumiu
um papel de destaque no sistema de saúde nos últimos anos, principalmente frente à
limitação de recursos que se agravou após a Emenda Constitucional n° 95/2016,
responsável por alterações que implicam na redução do orçamento destinado à saúde
pública (17,18).
A presença de indicação de marca do medicamento para cumprimento do processo
judicial, que define assim o laboratório produtor do item, foi observada em alguns processos
analisados no presente estudo. Diante do cenário de restrição de recursos financeiros
imposto pela EC nº 95/2016, a definição de marca impõe uma seleção prévia e direciona o
processo licitatório, com vedação prevista na Lei nº 8.666/1993, e fere os princípios legais
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da isonomia, da impessoalidade, da moralidade e da probidade administrativa. A legislação
que institui o medicamento genérico no país – a Lei Federal nº 9.787/19 – estabelece que a
prescrição de medicamentos pela rede pública deve ser realizada utilizando a Denominação
Comum Brasileira (DCB), ou seja, a utilização da denominação do fármaco ou princípio
farmacologicamente ativo. A prescrição e a consequente solicitação judicial por uma marca
específica deveriam ser feitas somente em casos excepcionais, mediante notificação junto
à Anvisa da ocorrência de efeitos adversos ou inefetividade terapêutica, conforme Resolução
Anvisa nº 4, de 10 de fevereiro de 2009 (19).
O presente estudo evidenciou que, dentre os processos judiciais analisados existem
demandas com uso sem indicação registradas em bula pela Anvisa, denominado uso off-
label. Tal fato demonstra que o Judiciário nem sempre defere os pleitos judiciais amparado
pelas evidências científicas, pelas normativas da Anvisa, e pela própria indústria produtora
do medicamento, criando uma jurisprudência perigosa, ao considerar somente a prescrição
médica e desconsiderar possíveis falhas ou influências na mesma (7). A não observância,
pelo Judiciário, da evidência científica ao deferir pedidos de solicitação de medicamentos
uso off-label ou não inseridos nos PCDT desperta questionamentos sobre o prisma dos
princípios da bioética, como a autonomia, não maleficência, beneficência e justiça.
A autonomia refere à autodeterminação do indivíduo de tomar decisões que afetam
sua vida, sua integridade física e psíquica e suas relações sociais. É a capacidade de decidir
e agir livre e independentemente, após receber informações claras sobre os benefícios,
contra-indicações, potenciais efeitos colaterais para sua decisão, muitas vezes
documentado no termo de consentimento informado livre e esclarecido (TCILE). O TCILE –
também chamado de termo de esclarecimento e responsabilidade (TER) – reflete, em
particular, o direito moral da pessoa à integridade corporal e o direito de autonomia na
participação ativa da tomada de decisões conducentes à manutenção da sua saúde e à
própria adesão à terapêutica, o que pressupõe adequada informação e uma decisão livre e
esclarecida (20).
A autonomia e vulnerabilidade da pessoa humana mantém-se inalienáveis, mesmo
que a terapêutica seja disponibilizada pelo sistema público de saúde. Assim, o TER pode
adquirir caráter de documento assertivo ao contemplar medidas protetivas ao paciente (21).
No SUS, quando o medicamento é contemplado no PCDT do CEAF, sua utilização é
mediada pela aplicação obrigatória do TER, de modo a garantir a participação consciente do
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 113 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.715
paciente na tomada de decisão sobre o seu tratamento. No cenário de indicação off-label,
não se pode afirmar que isso aconteça.
A não maleficência é entendida como obrigação da ação do profissional de saúde
causar o menor prejuízo ou agravos à saúde do paciente, sendo consagrado por meio do
aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não prejudicar). Já na beneficência, o
profissional de saúde deve ter a convicção e informações técnicas possíveis que assegurem
o tratamento ser benéfico ao paciente, comprometendo a perseguir o máximo de benefícios,
reduzindo ao mínimo os possíveis danos e riscos (22). A prescrição de off-label muitas vezes
ocorre sem a existência de ensaios clínicos, que são instrumentos capazes de avaliar a
toxicidade do produto e estabelecer as dosagens adequadas para cada tratamento (23).
Seus resultados visam garantir informações necessárias para a tomada de decisão do
profissional de saúde de forma segura, com vistas ao atendimento dos preceitos da não
maleficência e beneficência.
O princípio de justiça pressupõe a equidade, a universalidade e a distribuição justa. A
judicialização de medicamentos off-label desconsidera esse princípio, ao impor ao gestor
público o fornecimento de medicamento não padronizado na política pública existente. A
judicialização da saúde interfere no arranjo organizacional estabelecido pela política pública
e na decisão da alocação de recursos públicos no SUS, visto que o cumprimento das
determinações judiciais por produtos e serviços acarreta o deslocamento orçamentário para
as referidas ações (24).
Considerações finais
A judicialização da saúde de medicamentos off-label, apesar de ser uma
representação pequena no estudo relacionado à cloroquina e hidroxicloroquina, demonstrou
o comportamento do Judiciário como ordenador do Sistema Único de Saúde (SUS) e como
co-prescritor e gera duas situações adversas. A primeira é a interferência no planejamento,
execução e financiamento das políticas públicas de saúde, ao levar à realocação de recursos
orçamentários que seriam aplicados em busca do atendimento universal e equânime da
população. A segunda é a exposição do cidadão a riscos desconhecidos, ao deferir
medicamentos com indicações não amparadas em medicina baseada em evidência,
ultrapassando os princípios da bioética, como autonomia, não maleficência, beneficência e
justiça.
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 114 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.715
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Colaboradores
Oliveira P, Viana CCV, Campos Neto OH, Zocratto KBF contribuíram para a
concepção/desenho do artigo; análise e interpretação de dados; redação do artigo; revisão
crítica e aprovação da versão final. Pereira GG e Santos AS contribuíram para a aprovação
da versão final do artigo.
Submetido em: 16/07/20 Aprovado em: 09/09/20
Como citar este artigo: Oliveira P, Viana CCV, Campos Neto OH, Pereira GG, Santos AS, Zocratto KBF. Cloroquina e hidroxicloroquina: uso off-label em processos judiciais no estado de Minas Gerais. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 102-116.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.715
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 117 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.670
Determinantes da judicialização da saúde: uma análise bibliográfica Determinants of health judicialization: a bibliographical analysis Determinantes de la judicialización de la salud: un análisis bibliográfico
André Luís Bonifácio de Carvalho1
Andrey Maia Silva Diniz2
Bianca Nóbrega de Medeiros Batista3
Daniella de Souza Barbosa4
Edjavane da Rocha Rodrigues de Andrade Silva5
Otávio Augusto Nasser Santos6
Raquel Veloso do Nascimento7
Resumo Objetivo: a judicialização da saúde é um fenômeno multifacetado e requer a construção de caminhos que possibilitem a análise de fatores que, isolada ou conjuntamente, influenciam em sua constituição; assim, torna-se necessário identificar quais são os fatores apontados pela literatura científica nacional como causas da judicialização no campo da saúde. Metodologia: foi feita uma revisão integrativa de literatura, fundamentada no estudo exploratório-descritivo e bibliográfico de 101 publicações contidas na base de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, usando cinco descritores compatíveis com a pesquisa, a saber: judicialização e saúde e Brasil; judicialização da saúde e Direito; judicialização e saúde e causas; judicialização e saúde e consequências; e judicialização e direito à saúde. Resultados: dos 101 artigos catalogados, 30 foram selecionados; tal amostra foi organizada em três categorias, a partir de sua temática: 14 artigos discutiam a judicialização da assistência farmacêutica; 10 artigos abordavam a judicialização do direito à saúde; e 6 artigos debatiam sobre a judicialização com ênfase nas práticas de gestão. Conclusão: ainda é incipiente a produção intelectual brasileira para a identificação e sistematização dos determinantes da judicialização. Contudo, foi possível identificar caminhos que permitiram uma leitura preliminar sobre a temática, que foram
1 Doutor em Ciências da Saúde, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, Distrito Federal, Brasil; professor adjunto I, Departamento de Promoção da Saúde, Centro de Ciências Médicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-0328-6588. E-mail: [email protected] 2 Graduando em Medicina, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-5572-7018. E-mail: [email protected] 3 Graduanda em Fisioterapia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-7865-1311. E-mail: [email protected] 4 Doutora em Educação, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil; professora adjunta I, Departamento de Promoção da Saúde, Centro de Ciências Médicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-3533-146X. E-mail: [email protected] 5 Mestranda em Saúde Coletiva, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7854-5751. E-mail: [email protected] 6 Graduando em Medicina, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-5489-0545. E-mail: [email protected] 7 Graduanda em Medicina, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4814-7488. E-mail: [email protected]
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divididos em três categorias: judicialização da assistência farmacêutica; judicialização do direito à saúde; e judicialização e práticas de gestão. Palavras-chave Judicialização da assistência farmacêutica. Judicialização do direito à saúde. Judicialização da saúde pública. Judicialização da saúde. Abstract Objective: health judicialization is a multifaceted phenomenon; thus, it is necessary to identify what are the factors that cause this phenomenon in Brazilian scientific literature. Methods: it was conducted an integrative literature review, based on an exploratory-descriptive and bibliographic study of 101 publications available in Capes database. The search used 5 descriptors: judicialization and health and Brazil; health judicialization and law; judicialization and health and causes; judicialization and health and consequences; and judicialization and the right to health. Results: of a corpus of 101 articles, the authors selected 30, which were organized into three categories based on its theme: 14 articles discussed the judicialization of pharmaceutical assistance; 10 articles addressed the judicialization of the right to health; and 6 articles discussed judicialization with emphasis on management practices. Conclusion: Brazilian intellectual production is still incipient to identify and systematize the determinants of health judicialization. However, it was possible to have a preliminary understanding of the main themes, which were divided into three categories: the judicialization of pharmaceutical assistance, the judicialization of the right to health and the judicialization and management practices. Keywords Judicialization of pharmaceutical assistance. Judicialization of the right to health. Judicialization of public health. Health judicialization. Resumen Objetivo: la judicialización de la salud es un fenómeno multifacético y requiere la construcción de caminos que permitan analizar los factores que, individualmente o en conjunto, inciden en su constitución; por tanto, se hace necesario identificar cuáles son los factores señalados por la literatura científica nacional como causas de judicialización en el campo de la salud. Metodología: se realizó una revisión integradora de la literatura, a partir de un estudio exploratorio-descriptivo y bibliográfico de 101 publicaciones contenidas en la base de datos de la Coordinación para el Perfeccionamiento del Personal de Educación Superior, utilizando cinco descriptores compatibles con la investigación, a saber: judicialización y salud. y Brasil; judicialización de la salud y el derecho; judicialización y salud y causas; judicialización y salud y consecuencias; y judicialización y derecho a la salud. Resultados: de los 101 artículos catalogados, se seleccionaron 30; esta muestra se organizó en tres categorías, en función de su temática: 14 artículos discutieron la judicialización de la asistencia farmacéutica; 10 artículos abordaron la judicialización del derecho a la salud; y 06 artículos discutieron la judicialización con énfasis en las prácticas de gestión. Conclusión: la producción intelectual brasileña es aún incipiente para la identificación y sistematización de los determinantes de la judicialización. Sin embargo, fue posible identificar caminos que permitieron una lectura preliminar sobre el tema, que se dividió en tres categorías: la primera, judicialización de la asistencia farmacéutica, seguida de la judicialización del derecho a la salud y finalmente, judicialización y prácticas de gestión. Palabras clave Judicialización de la asistencia farmacéutica. Judicialización del derecho a la salud. Judicialización de la salud pública. Judicialización de la salud.
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Introdução
A Constituição de 1988, em seu art. 196, estabeleceu a saúde como direito de todos
e dever do Estado, definindo o acesso às ações e aos serviços de saúde como uma condição
inerente à cidadania no Brasil (1). Tal disposição constitucional não só alterou as relações
entre o Estado e a Sociedade no âmbito do sistema de proteção social do país, como
também mudou a dinâmica de relações entre os poderes públicos, conferindo novo status
ao poder judiciário como potencial esfera garantidora do acesso e da utilização de tais
serviços aos cidadãos. Desde então, a estratégia de recorrer à via jurídica para exigir a
garantia do direito tem sido uma prática crescente em todos os estados brasileiros, tornando
o fenômeno da judicialização da saúde um dos principais temas da agenda nacional da
saúde (2).
Empregada, inicialmente, na primeira metade dos anos 1990, por portadores de HIV
para exigir que a União garantisse o fornecimento de medicamentos antirretrovirais, seu uso
se diversificou nas décadas seguintes, tornando-se uma porta de entrada específica e
paralela às vias gerenciais do Sistema Único de Saúde (SUS), para o acesso a um amplo
conjunto de bens e serviços no campo da saúde (2). A dimensão e a relevância que a
judicialização da saúde tem assumido, nos últimos anos, podem ser percebidas tanto pela
evolução de seus impactos financeiros quanto pelas iniciativas político-institucionais e
técnicas desenvolvidas em âmbito nacional e regional para gerenciar sua evolução, como
verificado pela consultoria jurídica da Advocacia Geral da União junto ao Ministério da
Saúde, no período de 2007 a 2016, no qual houve um aumento de quase 5.000% nos gastos
com judicialização: de R$ 26 milhões (2007) para mais de R$ 1,325 bilhão de reais (2016),
só no âmbito da União (3, 4).
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) convocou uma audiência pública
nacional de ampla representação para debater as diferentes visões sobre a judicialização da
saúde e apontar os caminhos. As principais estratégias estabelecidas para lidar com a
judicialização da saúde, a partir desse debate, consistiram na instituição de espaços de
diálogo entre os Poderes Judiciário e Executivo, no fortalecimento da regulação federal
sobre o mercado nacional de bens e serviços em saúde, na definição de diretrizes para a
incorporação de tecnologias em saúde no SUS e na instalação de instâncias de
assessoramento técnico em saúde aos magistrados (5). A implementação do direito à saúde
vem ganhando contornos peculiares, obrigando os operadores do direito em diversas
instâncias de atuação a lidarem com temas vinculados ao Direito Sanitário e a sua correlação
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 120 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.670
com a implantação das políticas públicas de saúde nos três níveis de governo. De maneira
correlata, os gestores públicos de saúde são permanentemente provocados a lidarem com
a garantia efetiva desse direito social, seja individual ou coletivamente, por meio de
determinações oriundas do Poder Judiciário e que, por vezes, contradiz o que está
preconizado na política pactuada da assistência à saúde, como também os processos que
dizem respeito à logística do sistema de saúde (6).
Cabe destacar que a Constituição Federal de 1988 garante o direito a saúde como
um direito social, mediante a elaboração de políticas sociais e econômicas por parte do
Estado. Por sua vez, as políticas públicas destinam-se a racionalizar a prestação coletiva do
Estado, baseando-se, para tanto, nas principais necessidades de saúde da população,
buscando promover a tão aclamada justiça distributiva, inerente à própria natureza dos
direitos sociais, representando assim a própria garantia desses direitos (7-10).
Uma das recentes evoluções jurídicas no SUS foi o Decreto nº 7.508/2011, de 28 de
junho de 2011, que regulamentou a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, dispondo sobre
a organização o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa
e outras providências (7). Marques e Dallari (11) sustentam que as políticas públicas
estabelecidas em matéria de assistência à saúde devem ser conhecidas pelo Poder
Judiciário, ao garantir efetivamente o direito à saúde nos casos concretos que são
submetidos à sua apreciação, pois, dessa maneira, seria possível conjugar os interesses
individuais com os coletivos, formalizados mediante tais políticas.
Segundo Marques (6), se por um lado a crescente demanda judicial acerca do acesso
a medicamentos, produtos para a saúde, cirurgias, leitos de UTI, dentre outras prestações
positivas de saúde pelo Estado, representa um avanço em relação ao exercício efetivo da
cidadania por parte da população brasileira, por outro, significa um ponto de tensão perante
os elaboradores e executores da política no Brasil, pois passam a atender um número cada
vez maior de ordens judiciais, que representam gastos públicos e ocasionam impactos
significativos na gestão pública da saúde no País.
Segundo Pepe et al (3), a judicialização da saúde é um fenômeno multifacetado, que
expõe limites e possibilidades institucionais estatais e instiga a produção de respostas
efetivas pelos agentes públicos do setor saúde e do sistema de justiça. A intervenção judicial
no âmbito da gestão do setor da saúde tem sido alvo de intenso debate e, recentemente,
ganhou destaque no STF, com a realização de audiência pública que possibilitou a
interlocução entre atores envolvidos.
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 121 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.670
A esse novo papel exercido pelo Poder Judiciário na garantia de direitos individuais,
tem sido atribuída a noção de judicialização (12). Com o aumento exponencial das ações e
a impossibilidade de previsão orçamentária dos gastos por elas acarretados, os gestores do
sistema de saúde, nos três âmbitos, tentam resolver de diversas maneiras os impasses
criados. Um dos desafios é conhecer as principais demandas judiciais e promover políticas
públicas que atendam às necessidades que, na judicialização, pode aparecer como
individual, mas que se constitui um fenômeno de muitos e, por isso, torna-se uma demanda
coletiva, indicando a necessidade de reorganização da oferta de políticas públicas, na
tentativa de diminuir as demandas judiciais e as despesas cada vez mais imprevisíveis nos
orçamentos estaduais. Qualificando a discussão, Fleury (13), destaca que a judicialização
da saúde no Brasil foi vista até agora como uma interferência indevida sobre a capacidade
de planejamento e ação do Executivo e como uma ameaça à ação dos gestores locais. A
autora crê que essa fase está sendo superada e defende que a judicialização é, hoje, a maior
aliada do SUS.
Conhecer esse fenômeno, que é multifacetado, requer a construção de caminhos que
possibilitem a análise de fatores que, isolada ou conjuntamente, influem em sua constituição.
O presente artigo busca problematizar a seguinte questão norteadora: quais são os fatores
apontados pela literatura científica nacional como causas da judicialização no campo da
saúde? Para tanto se faz necessário o aprofundamento do tema e a identificação dos
elementos que o induzem, seja no âmbito da gestão, na conformação do perfil dos
demandantes; na organização da agenda dos gestores e na dinâmica de implementação
das políticas.
Metodologia
Foi realizada uma revisão integrativa de literatura, fundamentada no estudo
exploratório-descritivo e bibliográfico. A partir da identificação, localização e compilação dos
dados escritos em artigos de revistas especializadas (13), do acervo da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), foi feita uma coleta de dados –
realizada a partir de fontes secundárias –, por meio do cumprimento de seis etapas
metodológicas para elaboração do corpus documental da presente pesquisa.
Tais etapas foram assim organizadas, em sua ordem cronológica: 1) escolha da
questão norteadora (“quais os determinantes do processo de judicialização da saúde no
Brasil?”); 2) busca no banco de dados online da Capes, a partir dos descritores selecionados
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(judicialização e saúde e Brasil; judicialização da saúde e Direito; judicialização e saúde e
causas; judicialização e saúde e consequências; e judicialização e direito à saúde); 3)
definição dos critérios de inclusão (artigos publicados na íntegra e em língua portuguesa a
partir do ano de 2008; conter a temática de pelo menos um dos descritores listados acima;
responder a pergunta norteadora) e de exclusão (ser artigo de revisão de literatura; ser tese,
dissertação, trabalho monográfico ou de conclusão de curso); 4) avaliação e organização
dos artigos incluídos nos resultados, a partir das seguintes categorias temáticas:
judicialização da assistência farmacêutica; judicialização do direito à saúde; e judicialização
da saúde pública); 5) discussão dos resultados à luz da literatura vigente com relação à
temática trazida pela questão norteadora; e 6) apresentação da revisão integrativa (14).
A proposta sugerida para a identificação dos determinantes da judicialização da saúde
no Brasil foi a questão norteadora da pesquisa. Combinados, por meio do operador de
pesquisa (booleano) AND no banco de dados da Capes, foram encontrados,
respectivamente, 34 estudos para os descritores 1; 28 estudos para o 2; 16 estudos para o
3; 9 estudos para o 4; e 14 estudos para o 5. Dos 101 artigos que foram catalogados a partir
de tais descritores, 30 artigos foram selecionados, pois atendiam aos critérios de inclusão e
exclusão (Figura 1).
Figura 1. Fluxograma de análise dos estudos da revisão
Fonte: elaborada pelos autores.
101 estudos identificados
56 estudos foram incluídos por responderem a questão
norteadora
26 estudos excluídos por serem teses ou artigos de
revisão
30 estudos incluídos na
revisão
45 estudos excluídos por não responderem a questão norteadora
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Dos 30 artigos selecionados para a quarta etapa da pesquisa, 14 artigos discutiam a
judicialização da assistência farmacêutica, perfazendo a categoria de análise 1; 10 artigos
abordavam a judicialização do direito à saúde, completando a categoria de análise 2; e seis
artigos debatiam sobre a judicialização da saúde pública, preenchendo a categoria de
análise 3. Sobre tal organização temática, vale destacar que a distribuição dos artigos se
deu tanto pelos descritores utilizados na pesquisa quanto pelo conteúdo de tais publicações.
Ou seja, aqueles que abordavam a temática da judicialização em saúde como a busca pelo
sistema judiciário como a última alternativa para a obtenção do medicamento ou tratamento
ora negado pelo sistema de saúde público ou privado se enquadravam na categoria 1. Já
aqueles que condiziam com a categoria 2 se alinharam ao tema da judicialização em saúde
como expressão das reivindicações e modos de atuação legítimos de cidadãos e
instituições, para a garantia e promoção dos direitos de cidadania amplamente afirmados
nas leis. Por fim, os artigos que se adaptavam a categoria 3 anunciavam o tema da
judicialização em saúde como modelo adversarial entre a sociedade, que figura como
demandante, e o Estado, que é o responsável pelas políticas públicas de saúde (Executivo)
ou por resolver conflitos no âmbito da saúde de ordem política, social ou moral (Judiciário).
Resultados e Discussão
Dentre as 30 publicações encontradas, a maioria concentra-se no período de 2014 a
2017, onde verificamos a publicação de 19 artigos, representando (62%) dos artigos
identificados, com destaque para o ano de 2014, que contabiliza sete publicações, ou seja
(37%) dos artigos do período (Gráfico 1).
Gráfico 1. Quantidade de artigos analisados, divididos por ano de publicação (2008 a 2017)
Fonte: elaborado pelos autores.
2
1
4
2
3
0
7
4 4 4
0
1
2
3
4
5
6
7
8
Ano2008
Ano2009
Ano2010
Ano2011
Ano2012
Ano2013
Ano2014
Ano2015
Ano2016
Ano2017
Qu
an
tida
de
de a
rtig
os
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Podemos verificar que, dos 30 trabalhos analisados que versam sobre a temática da
judicialização da saúde, a grande maioria deles abordam a conceituação do tema sobre três
grandes categorias (judicialização e assistência farmacêutica; judicialização e direito à
saúde; e judicialização e práticas de gestão), conforme Quadro 1.
Ao se analisar os dados, verificamos o predomínio do tema da judicialização vinculada
à assistência farmacêutica, com ênfase no acesso a medicamentos, totalizando cerca de
47% dos artigos, seguido pelo eixo judicialização do direito à saúde que configura 33% e,
por fim, o eixo da judicialização e práticas de gestão como o menor índice (20%) dos
trabalhos avaliados.
Quadro 1. Artigos organizados por categorias e os possíveis determinantes da judicialização
(2008 a 2017)
Categorias vinculadas à judicialização
Possíveis determinantes para a judicialização
Judicialização da assistência farmacêutica (14 artigos - 47%)
• incentivo à cultura de medicalização;
• preços abusivos de medicamentos;
• falta de estoque de medicamentos;
• falta de padronização do uso;
• medicamentos que não constam na lista de assistência farmacêutica;
• requerimento de medicamentos em fases ainda experimentais de pesquisa clínica;
• associação entre médicos e escritórios de advocacia nas solicitações dos medicamentos;
• vazios assistenciais (na hipótese de doença que não tem protocolo clínico elaborado pelo SUS);
• conflito entre evidência científica e opinião médica (quando há prescrição de medicamento fora da bula ou discordante dos protocolos do SUS
• ineficiência estatal em muitos aspectos da prestação do serviço à saúde da população.
Judicialização do direito à saúde (10 artigos - 33%)
• o baixo financiamento, a ausência de parâmetros que orientem o padrão de integralidade;
• a gestão pública insatisfatória;
• a falta de sentimento de pertencimento da população com o direito a saúde;
• incapacidade do modelo operacional do SUS;
• falta de políticas públicas de saúde que apoiem ou coincidam com as reinvindicações do paciente;
• falha da autoridade de saúde pública em cumprir com as políticas existentes, geralmente devido à falta de uma definição clara da divisão de autoridade entre entidades federais.
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 125 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.670
Judicialização e práticas de gestão (6 artigos - 20%)
• necessidade de concepção de saúde como direito;
• limitações do SUS real;
• falta de recursos do estado e suplantando o somatório dos ligados à insuficiência da rede de serviços e de médicos;
• falhas encontradas nas políticas públicas;
• deficiências no acesso e cobertura as ações e serviços de saúde no SUS.
• Falta de resolutividade, por parte do SUS, frente as necessidades individuais e coletivas de saúde.
Fonte: elaborado pelos autores.
As três abordagens temáticas trazem leituras diferentes do tema: a primeira categoria
entende a judicialização como um novo papel do Poder Judiciário, identificando-o como um
fenômeno desafiador e multifacetado, e normalmente faz um recorte da judicialização
tratando apenas da vertente de acesso a medicamentos, por ser uma das maiores demandas
da judicialização.
Algumas causas são apontadas como fomentadora da judicialização da assistência
farmacêutica, principalmente para a solicitação de medicamentos, como por exemplo, a
pressão da indústria farmacêutica, a falta de medicamentos disponíveis com regularidade,
falta de padronização do uso e registro de medicamento no país, pela cultura da
medicalização etc.
Segundo Biehl (15), o sistema público de saúde é visto menos como prevenção e
assistência básica, e mais como acesso a medicamentos e assistência terceirizada à
comunidade – ou seja, a saúde pública tem sido cada vez mais farmaceuticalizada e
privatizada. Percebe-se que o interesse do capital das indústrias farmacêuticas é um
elemento que reverbera o entrave da judicialização.
Muitas vezes, os magistrados tomam suas decisões sem a devida análise técnica a
respeito da real utilidade e segurança do remédio, uma vez que muitas demandas são de
medicamentos que não chegaram nem a serem registrados por órgãos regulatórios
nacionais, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que pode trazer,
inclusive, danos à saúde do indivíduo. A garantia imediata do direito à saúde por meio de
fármacos contorna questões sobre as limitações da política e de recursos, bem como a base
de evidências da eficácia de novos medicamentos (16).
Apesar da maioria das demandas judiciais focarem em fármacos de alto custo, outro
determinante encontrado diz respeito à judicialização de medicamentos que já são
disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que pode ser um indicador de falhas
administrativas em alguma etapa da garantia da entrega do remédio. Vieira (17), em sua
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pesquisa, verificou que 62% dos itens solicitados fazem parte de listas de medicamentos de
programas do SUS. Esse novo viés encontrado pode ser sugestivo para a falta de
conhecimento do médico acerca dos remédios ofertados por listas oficiais do sistema, como,
por exemplo, a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Pepe et al (18)
ratifica esse pensamento ao afirmar que esse fato aponta para a existência de problemas
relacionados à aquisição, distribuição e dispensação de medicamentos pelo setor público.
Como possíveis consequências, pode-se haver o comprometimento da Política Nacional de
Medicamentos (PNM), a equidade no acesso e o uso racional de medicamentos no Sistema
Único de Saúde.
Cabe destacar que deficiências na esfera jurídica também podem ser um fator que
corrobora com o agravamento desse evento. De fato, a judicialização da saúde é uma
temática que cresceu exponencialmente nos últimos anos e necessita de uma abordagem
mais refinada, haja vista seus profundos impactos no orçamento da saúde pública. Para
dimensionar as proporções que esse fenômeno atingiu no Poder Judiciário, em abril e maio
de 2009 o STF realizou uma audiência pública com a finalidade de averiguar os desafios
apresentados pela judicialização da saúde.
Como um dos resultados dessa audiência, consoante Ribeiro (19), surgiu a
Recomendação nº 31/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dispondo sobre
orientações aos Tribunais brasileiros sobre a melhor forma de julgamento das ações em
saúde. Entre suas principais recomendações, pode-se citar: a orientação para que o
Judiciário ouça, quando possível, gestores de saúde antes de deferirem o pedido de
urgência, possibilitando um maior diálogo entre órgãos; estabeleçam convênios
disponibilizando apoio técnico de médicos e farmacêuticos para subsidiarem suas decisões;
e que evitem fornecer autorização de medicamentos ainda não padronizados pela Anvisa.
Como se não bastasse, muitos juízes têm o entendimento de que, ao julgarem seus
casos positivamente, embora causem um descompasso às políticas de saúde, estão
exercendo sua função constitucional de preencher um déficit que é de responsabilidade do
Estado, sendo esses processos uma forma de auxiliar o pleno exercício da democratização
dos direitos do cidadão. De acordo com Biehl (16), juízes empregam lógicas idiossincráticas
e criam seus próprios padrões ao adjudicar casos sobre o direito à saúde.
Wang et al (20) aprofundam ainda mais essa discussão e afirmam que o Judiciário
brasileiro também tende a desconsiderar o impacto orçamentário de uma decisão judicial
que obriga o sistema de saúde a fornecer um determinando tratamento. Para os juízes, em
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geral, questões relativas ao orçamento público, como a escassez de recursos e a não
previsão de gasto, bem como o não pertencimento do medicamento pedido às listas de
medicamentos do SUS, não são razões suficientes para se denegar o pedido de um
tratamento médico, dado que este encontra respaldo no direito à saúde assegurado pela
Constituição Federal.
A segunda categoria, judicialização do direito à saúde, pauta o entendimento da
judicialização com base na Constituição Cidadã de 1988, apontando-a como uma estratégia
dos sujeitos para garantir o acesso a bens e serviços de saúde. Nesse sentido, direcionando
a judicialização para resposta do Estado frente uma solicitação do sujeito de direito. Desde
que a Constituição Federal de 1988 passou-se a reconhecer a saúde como direito de todos
e dever do Estado, o entendimento social desse direito se reorganizou também
juridicamente. Desde então quando as demandas não são atendidas via SUS, passa a ser
requerida do Judiciário uma resposta à necessidade de saúde. Alguns fatores podem ter
contribuído para o aumento das publicações entre os anos de 2014 a 2017, por exemplo a
visibilidade do tema no âmbito nacional e, posteriormente, a instituição de arcabouços
jurídicos determinados para tratar inicialmente de atender o grande fluxo das demandas que
cresciam constantemente.
Podemos citar a Audiência Pública nº 04, realizada entre abril a maio de 2009 pelo
STF; e como resultado dessa Audiência a Recomendação n. 31/2010 do CNJ; em 2010 a
criação do Fórum Nacional para o monitoramento e resolução das demandas de assistência
à saúde, através da Resolução nº 107 do CNJ; e da Recomendação de nº 43 também do
CNJ no ano de 2013, que versa sobre a criação de Varas especiais, estabelecendo que os
Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais promovam a especialização de
Varas para processar e julgar ações que tenham por objeto o direito à saúde pública e para
priorizar o julgamento dos processos relativos à saúde suplementar. Assim, em 2013 a
preocupação não versava apenas em atender o grande fluxo de demandas judiciais, mas
entendê-las e buscar soluções para o impacto nos orçamentos destinados à política de
saúde.
Para Ferraz (21), a judicialização do direito à saúde gera realidades sociomédicas
extremamente complexas, além de enormes desafios administrativos e fiscais que, segundo
especialistas, têm o potencial de aumentar as desigualdades na prestação de serviços de
saúde.
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Em síntese, entende-se que esse fenômeno é uma estratégia cada vez mais usada
pelos usuários a fim de garantir o seu direito, quando lesado. Em contrapartida, como os
custos com as demandas judiciais não fazem parte do orçamento da saúde, há o surgimento
de uma problemática que afeta, sobretudo, a coletividade da população em detrimento de
demandas individuais daqueles com maior poder de reivindicação.
Por isso, a judicialização é um processo que influi de certa forma no aporte de
recursos para o atendimento de demandas particulares, gerando um desequilíbrio
orçamentário responsável por acentuar o enfraquecimento da política de saúde. Essa
redução do orçamento, inclusive, pode ser um fator catalisador do próprio fenômeno, uma
vez que ocorrerá a hipossuficiência de setores da saúde responsável por causar mais
insatisfação do usuário e uma maior probabilidade de recorrência ao Poder Judiciário, a fim
de solucionar essa situação.
Os usuários têm recorrido ao Poder Judiciário como solução para o acesso a
medicamentos de alto custo, diagnósticos, internações ou procedimentos. Esse ato,
conjuntamente com a requisição de procedimentos e medicamentos não fornecidos pelo
SUS, é conhecido por todos como o fenômeno da judicialização da saúde (22). Apesar desse
evento ser visto de uma boa maneira por boa parte dos juristas, haja vista que é uma forma
de garantir a plenitude dos direitos de qualquer cidadão através da exigência do Estado pela
prestação do amparo à saúde, a judicialização causa impactos acentuados, sobretudo no
âmbito da gestão dos recursos públicos.
Os números também são expressivos quando se compara a evolução desse
fenômeno ao longo dos anos no âmbito nacional. O gasto do Ministério da Saúde com
medicamentos cuja dispensação foi determinada por ordem judicial passou de R$ 2.5
milhões em 2005 para aproximadamente R$ 266 milhões em 2011 (23). Com relação a essa
situação Carvalho (24), em recente pesquisa inerente ao perfil dos gestores municipais de
saúde, identificou que 64% dos respondentes apontam a necessidade de ampliar o
conhecimento dos órgãos de controle sobre a dinâmica da gestão no âmbito do SUS como
agenda nacional, com relação à judicialização.
Para Ventura et al (2), a problemática central trazida para o Direito e a Saúde – que
se expressa no fenômeno da judicialização da saúde – é a de como o Estado, no âmbito dos
Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, deve proteger as pessoas dos riscos das
novidades oferecidas pelo mercado de saúde, que, não raramente, cria necessidades para
vender soluções.
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Além disso, foi constatado que nem sempre os profissionais médicos têm o cuidado
em prescrever o medicamento mais acessível à comunidade, podendo ser considerado um
determinante à medida que o paciente, muitas vezes, não conseguirá acesso ao remédio.
Leitão (25), em sua pesquisa, afirma que apesar da falta de acesso aos receituários, durante
a análise, foi possível identificar nos autos processuais que não havia o compromisso da
maioria dos prescritores em registrar na receita o medicamento pelo nome genérico.
Diametralmente oposto a isso, a Lei nº 9.787/1999 determina a obrigatoriedade da adoção
do nome genérico nas prescrições médicas.
Na terceira categoria, a judicialização é entendida como a relação que envolve os
operadores do direito e aspectos inerentes às práticas de gestão, apontando aspectos
amplos e diversificados para a causa da judicialização, passando por processos que para
Ramos et al (26) vão desde a necessidade de um maior entendimento sobre a concepção
por parte dos usuários sobre o direito à saúde, envolvendo a falta de recursos financeiros,
que somados à insuficiência da rede de serviços e de médicos, encontra nas fragilidades da
implantação das políticas de saúde, fortes componentes que apontam a limitação do SUS
real.
Ramos et al (26), outrossim, apontam que para esses sujeitos, a judicialização facilita
o acesso às ações e aos serviços públicos de saúde, mesmo que signifique a resolução de
problemas pontuais, não sendo capaz de gerar política ou de aprimorar a política atual,
tendendo a individualizar as ações em detrimento do acesso coletivo.
Ainda que a individualização das solicitações por direito à saúde pública não aprimore
a política atual, o entendimento das múltiplas determinações das ações judiciais pode
apontar caminhos para ampliar e garantir acesso – menos individuais e mais coletivos –
qualificando assim a política pública.
Embora seja um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso a esse
serviço ainda não é feito de forma equânime entre todas as pessoas. As noções de
universalidade e equidade estão relacionadas ao princípio da igualdade que, por sua vez,
está associado à ideia de justiça no pensamento dos principais filósofos (27). Uma vez não
respeitado esse fundamento, a ocorrência de entraves maiores decorrentes desse problema
inicial é inerente, como no caso de se recorrer à justiça para a garantia dessa igualdade de
acesso não só a procedimentos, como também a outros instrumentos de cuidado ofertados
pelo sistema, gerando um déficit no orçamento na prestação dos serviços de saúdes para
os outros pacientes.
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Fica claro que a complexidade desse fenômeno ocorre devido às subjetividades que
estão inerentes ao próprio processo, independentemente de qual esfera ou fluxo foi utilizado
para a garantia do direito universal à saúde resguardando pela nossa Constituição Federal
de 1988. Entretanto, ao se deparar com um novo prisma, percebemos a escassez da
sistematização de informações sobre quais as causas da judicialização, que chamamos de
determinantes da judicialização da saúde.
Em suma, a judicialização da saúde, por um lado, é um acontecimento positivo.
Tornou-se mais um instrumento para a garantia da saúde, sendo um direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação (1).
Em contrapartida, esse fenômeno atesta lacunas do Estado em promover uma saúde
igualitária para todos, ratificando a insuficiência na garantia plena desse direito, tendo como
principal efeito negativo o desequilíbrio na administração dos recursos destinados à saúde,
o que afeta o cumprimento, em parte, de ações e serviços de saúde. Constata-se, ainda,
que é um evento de extrema complexidade, o qual possui causas multifacetadas e, muitas
vezes, enraizadas em ações já solidificadas e familiarizadas no contexto em que vivemos.
Deve-se encontrar alternativas que minimizem esse processo, de modo que o Estado
garanta a efetivação dos direitos sociais, sem precisar da intervenção do Poder Judiciário, e
isso aparece de forma robusta na revisão realizada.
Foi possível também, por meio da leitura dos artigos da revisão de literatura, inferir
que o fenômeno da judicialização da saúde não pode ser classificado como algo pejorativo
ou oneroso para o Sistema Único de Saúde, visto que se obteve diversas conquistas
históricas no âmbito da saúde como: 1) o direito ao tratamento dos usuários portadores do
vírus da imunodeficiência humana (HIV); 2) o direito ao tratamento e assistência dos
pacientes portadores de doenças raras e raríssimas; 3) procedimentos de alto custo
(cirurgias, exames) e 4) medicamentos que ainda não se encontram na lista da Rename.
Conclusão
A revisão de literatura com os trabalhos que versam sobre a temática da judicialização
da saúde nos possibilita afirmar que ainda é baixa a produção científica no que tange a
identificação e sistematização de aspectos que tratem dos determinantes da judicialização
da saúde no Brasil. Por isso, a produção de estudos e pesquisa que propiciem não só a
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discussão conceitual sobre a temática é importante, mas principalmente a discussão
inerente aos processos e práticas vinculados aos determinantes da judicialização na área
da saúde, na perspectiva de apontar caminhos para o seu enfrentamento.
Mesmo com as limitações que o estudo apresentou, quanto à quantidade das bases
de dados consultadas, foi possível identificar caminhos que permitem uma leitura preliminar
sobre a temática e que dizem respeito à busca da articulação de processos e aspectos
inerentes à efetiva garantia do direito à saúde, à observação do descumprimento de normas
e regras que tem como desfecho a aplicação de uma sanção ao gestor na perspectiva da
prestação do serviço ao cidadão e no desconhecimento da dinâmica do SUS.
Outros aspectos a serem destacados dizem respeito à pressão da mídia e da indústria
farmacêutica, com a introdução de novas drogas; e tratamentos muitas vezes não
regulamentados pelas instituições sanitárias, pela fragilidade do modelo de atenção que tem
como uma das consequências os vazios assistências, a dificuldade no acesso a ações e
serviços de saúde e a consequente (re)pressão de demanda no componente do
financiamento, a qual deixa claro a relação direta entre a falta ou a má aplicação dos
recursos e a judicialização.
Sendo assim, existe a necessidade de se ampliar o rol de descritores, incluindo a
pesquisa em livros e dissertações, processos que consideramos imprescindíveis no
aprimoramento da construção de estudos que nos auxiliem a compreender de forma
sistémica as características dos fatores vinculados aos determinantes da judicialização,
sendo para tanto imprescindível a realização de novos estudos que abordem essa temática.
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Colaboradores
Carvalho ALB e Santos OAN contribuíram com a concepção e desenho do artigo;
redação do artigo, revisão crítica do seu conteúdo e aprovação da versão final. Diniz AMS e
Nascimento RV contribuíram com a concepção do artigo e análise e interpretação de dados.
Batista BNM e Barbosa DS contribuíram com a redação do artigo e revisão crítica de seu
conteúdo. Andrade Silva ERR contribuiu com a análise e interpretação de dados, redação
do artigo e revisão crítica de seu conteúdo.
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 134 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.670
Submetido em: 22/04/20 Aprovado em: 24/05/20
Como citar este artigo: Carvalho ALB, Diniz AMS, Batista BNM, Barbosa DS, Andrade Silva ERR, Santos OAN, Nascimento RV. Determinantes da judicialização da saúde: uma análise bibliográfica. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 117-134.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.670
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O modelo de assistência à saúde mental das pessoas em uso problemático de drogas: uma reflexão sob a ótica dos Direitos Humanos dos Pacientes The mental health care model of people with problematic drug use in Brazil: a reflection from the perspective of Patient Human Rights El modelo de la atención a la salud mental de las personas con consumo problemático de drogas en Brasil: una reflexión desde la perspectiva de los Derechos Humanos de los Pacientes
Ângela Maria Rosas Cardoso1
Aline Albuquerque2
Resumo Objetivo: analisar o modelo de atenção em saúde mental fundamentado na Lei nº 10.216, de 2001 e as mudanças previstas na Lei nº 13.840, de 2019, relacionadas ao tratamento de pessoas em uso problemático de drogas. Metodologia: pesquisa teórica e documental, baseada em literatura específica sobre as pessoas que fazem uso problemático de drogas, sustentada no arcabouço teórico-normativo dos Direitos Humanos dos Pacientes. Resultados: o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é um dispositivo substitutivo à internação psiquiátrica, que promove a reabilitação psicossocial e a reinserção social dos pacientes. A Lei nº 13.840, de 2019, ao dispor sobre a internação involuntária de pessoas que fazem uso problemático de drogas e reforçar o modelo de abstinência, de institucionalização e das comunidades terapêuticas, mantém a lógica do cuidado centrado na estigmatização e no isolamento social, desrespeitando os princípios do cuidado centrado no paciente. Conclusão: as ações do governo mostram claramente que ainda há muitos caminhos de lutas e movimentações sociais para a garantia dos direitos adquiridos, visando a manutenção do tratamento digno ao paciente. Palavras-chave Direitos Humanos. Pacientes. Bioética. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. Abstract Objective: to analyze the mental health care model based on the Law No. 10.216 of 2001 and the changes foreseen in the Law No. 13.840 of 2019, related to the treatment of people with problematic drug use. Methods: this is a theoretical and documentary research, based on specific literature on people in problematic drug use, supported by the theoretical-normative framework of Patients' Human Rights. Results: the Psychosocial Care Center is a substitute device for psychiatric hospitalization, which promotes psychosocial rehabilitation and social reinsertion of patients. Thus, the Law No. 13.840 of 2019, while dealing with the involuntary admission of people with problematic drug use and reinforces the model of abstinence, institutionalization and therapeutic communities, maintains the logic of care
1 Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Bioética, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil; enfermeira. https://orcid.org/0000-0002-3865-4320. E-mail: [email protected] 2 Pós-doutora em Direitos Humanos, Universidade de Essex, Colchester, Essex, Reino Unido; professora, Programa de Pós-graduação em Bioética, Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-5568-0790. E-mail: [email protected]
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focused on stigmatization and social isolation, disregarding the principles of patient-centered care. Conclusion: The government's actions clearly show that there are still many paths of struggle and social movements to guarantee acquired rights, aiming at maintaining dignified treatment to the patient. Keywords Human Rights. Patients. Bioethics. Substance-related disorders. Resumen Objectivo: analizar el modelo de atención de salud mental, basado en la Ley N.º 10.216/2001 y los cambios previstos en la Ley N.º 13.840/2019, relacionados con el tratamiento de las personas con consumo problemático de drogas. Metodología: Investigación teórica y documental, basada en estudios de la literatura específica sobre las personas con consumo problemático de drogas, respaldado por el marco teórico-normativo de los Derechos Humanos de los Pacientes. Resultados: El Centro de Atención Psicosocial – CAPS- es un dispositivo sustituto de la internación psiquiátrica, que promueve la rehabilitación psicosocial y la reinserción social de los pacientes. La Ley N.º 13.840 de 2019 al establecer la internación involuntaria de las personas con consumo problemático de drogas y reforzar el modelo de abstinencia, de institucionalización y de las comunidades terapêuticas, mantiene la lógica del cuidado centrada en la estigmatización y en el aislamiento social, no respetando los principios del cuidado, que tiene al paciente como figura central. Conclusión: Las acciones del gobierno muestran claramente que quedan muchos caminos de lucha y movilizaciones sociales para garantizar los derechos adquiridos, con la finalidad de mantener un tratamiento digno para el paciente. Palabras clave Derechos humanos. Los pacientes. Bioética. Trastornos relacionados con el uso de sustancias.
Introdução
A Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, denominada de Lei da Reforma Psiquiátrica,
estabeleceu a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redirecionou o
modelo de cuidado em saúde mental no Brasil (1). É considerada o marco legal da reforma
psiquiátrica, e endossou, de forma histórica, as diretrizes da saúde mental na esfera do
Sistema Único de Saúde (SUS), ao garantir às pessoas acometidas de transtornos mentais
a universalidade de acesso aos serviços de saúde e o direito à assistência integral.
Igualmente, a Lei da Reforma Psiquiátrica previu a descentralização do modelo de
atendimento, ao determinar a estruturação de serviços mais próximos do convívio social de
seus usuários, configurando redes assistenciais atentas às desigualdades existentes no
Brasil (2). Esse redirecionamento objetivou o fortalecimento dos direitos humanos de
pacientes, usuários e familiares ao propor modelos substitutivos à internação psiquiátrica, a
partir da rede comunitária e territorial de serviços de saúde mental (1).
Com base na Lei nº 10.216, de 2001, a Portaria nº 336 do Ministério da Saúde (MS),
de 19 de fevereiro de 2002, efetivou a reorientação do modelo de cuidado em saúde mental,
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priorizando a reabilitação psicossocial e a reinserção social das pessoas com transtornos
mentais e das pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas. Tal efetivação
ocorreu ao se instituir os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como componentes do
atendimento aos pacientes com transtornos mentais severos e persistentes em sua área
territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo (3). Ainda,
foram demarcadas as distintas modalidades de CAPS, dentre as quais, os serviços
destinados às pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas (3, 4).
A organização dos serviços de atenção em saúde mental como Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) foi instituída com a publicação da Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro
de 2011, do Ministério da Saúde (MS), com os objetivos de ampliar o acesso à atenção
psicossocial e de garantir a articulação de pontos de atenção à saúde, no âmbito do SUS
(5). A criação da RAPS implementou o cuidado em saúde integral – com diferentes graus de
complexidade –, possibilitando maior integração social, autonomia, protagonismo e
participação das pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas. Salienta-
se que a RAPS tem como diretriz o respeito aos Direitos Humanos, garantindo a autonomia
e a liberdade das pessoas, estando em consonância com a Lei nº 10.216, de 2001 (1, 5).
Especificamente, em relação às pessoas que fazem uso problemático de álcool e
outras drogas, em 2004, foi criada a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral
a Usuários de Álcool e outras Drogas, na qual o Ministério da Saúde reconhece o atraso
histórico na adoção de medidas acerca da temática pelo SUS, salientando que o consumo
de álcool e outras drogas é um grave problema de saúde pública. A Política aborda a
estratégia de redução de danos, mediante o desenvolvimento de ações de prevenção e
cuidados prioritários às singularidades do paciente e o respeito à sua autonomia pessoal (6).
Em 2006, foi aprovada a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que instituiu o
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e prescreveu medidas para
prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de pessoas que fazem uso
problemático de tais substâncias (7). Registre-se que a Lei nº 11.343, de 2006, foi alterada
substantivamente pela Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019, ao permitir a internação
involuntária de usuários de drogas, reforçando o modelo de abstinência e das comunidades
terapêuticas em detrimento da política de redução de danos e dos Centros de Atenção
Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). Com o advento dessa lei, a internação poderá ser
solicitada por familiar ou responsável legal, servidor público da área de saúde, de assistência
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social ou de órgãos públicos integrantes do SISNAD, sendo formalizada por decisão médica
(8).
As alterações advindas da Lei nº 13.840, de 2019, são consideradas retrocesso em
relação às conquistas decorrentes da adoção do modelo de atenção em saúde mental
preconizado pela Lei nº 10.216, de 2001, que visa à construção de redes ampliadas e
intersetoriais de atenção, de base comunitária, com ênfase na articulação entre serviços de
diferentes níveis de complexidades e tendo como equipamento articulador central, o CAPS,
apostando em ações humanizadoras na perspectiva de reabilitação psicossocial e redução
do estigma e preconceito. As alterações foram objetos de crítica pela Organização das
Nações Unidas (ONU) e estudiosos dos direitos humanos, que se ancoraram em diretrizes
internacionais referentes ao tratamento de pessoas que fazem uso problemático de drogas,
objetivando traçar caminhos para o enfrentamento dessa questão mediante afirmação da
dignidade humana e do rechaço ao isolamento social (9).
A alteração legislativa contribui para políticas e práticas sociais contrárias aos direitos
humanos das pessoas que fazem uso problemático de drogas (10) neste, por isso, este
artigo parte do pressuposto de que as alterações efetuadas no modelo de atenção em saúde
mental não se ajustam às diretrizes do SUS e da RAPS, que priorizam a atenção integral à
pessoa em seu território, respeitando sua dignidade e autonomia.
No campo dos cuidados em saúde mental, a partir do fim do século XX, os Direitos
Humanos têm-se constituído uma ferramenta essencial para salvaguardar a dignidade e a
autonomia pessoal das pessoas com transtornos mentais e das pessoas que fazem uso
problemático de drogas e para assegurar uma série de direitos específicos aplicados à esfera
da saúde, tais como o direito à vida, à privacidade e à liberdade (11-13). Sua aplicação ao
campo da saúde mental é essencial para evitar o retorno da institucionalização e a
segregação de pessoas com transtornos mentais e daquelas que fazem uso problemático
de drogas.
Peyraube (14) assinala que, em qualquer estratégia eleita para o tratamento de
pessoas que fazem uso problemático de drogas, o respeito aos Direitos Humanos constitui
um comando fundamental balizador do modelo de atenção à saúde mental. Ou seja, tal
respeito se correlaciona com a prevenção de danos à saúde e à integridade pessoal, bem
como da exclusão social do paciente.
Neste artigo, faz-se uso dos Direitos Humanos dos Pacientes (DHP), que constituem
um referencial com arcabouço principiológico próprio e que contemplam as especificidades
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dos cuidados em saúde (15), composto pelos seguintes princípios: princípio do cuidado
centrado no paciente; princípio da autonomia relacional; princípio da responsabilidade dos
pacientes; e o princípio da dignidade humana (12). Este estudo enfatizará o princípio do
cuidado centrado no paciente e tal escolha relaciona-se à importância dos seus elementos
centrais – a dignidade e respeito, o compartilhamento de informação, participação e
colaboração – na discussão do cuidado em saúde da pessoa que faz uso problemático de
drogas no âmbito da RAPS. Registre-se que a aplicação dos direitos humanos no campo
dos cuidados em saúde – particularmente ao paciente como sujeito de direito – encontra-se
em construção, havendo escassos artigos e obras sobre a temática.
Este estudo objetiva analisar o modelo de atenção em saúde mental comunitário
fundamentado na Lei n.º 10.216, de 2001, considerando o CAPS como eixo organizador e
substitutivo à internação psiquiátrica, contrapondo-se ao modelo de atenção à saúde
preconizado pela Lei n.º 13.840, de 2019, com base no referencial dos DHP, precisamente
no princípio do cuidado centrado no paciente.
Metodologia
Trata-se de pesquisa teórica e documental, baseada em estudos teóricos de literatura
específica sobre a temática, bem como nos documentos produzidos pelo Relator Especial
da ONU sobre Direito à Saúde (16) e nos Princípios para a Proteção das Pessoas com
Transtornos Mentais e a Melhoria da Atenção à Saúde Mental, adotados pela Assembleia
Geral da ONU por meio da Resolução n.º 46/119, de 1991 (17), e da Legislação sobre Saúde
Mental (18). Referente ao marco teórico, esta pesquisa sustenta-se no arcabouço teórico-
normativo dos DHP, particularmente no princípio do cuidado centrado no paciente (12,19-
20). Quanto à escolha dos documentos assinalados, registra-se que o Relator Especial da
ONU sobre Direito à Saúde é um especialista na temática, internacionalmente reconhecido,
cujos relatórios são balizadores da atuação dos Estados, de organizações da sociedade civil
e de entidades privada na esfera da saúde. Os Princípios para a Proteção das Pessoas com
Transtornos Mentais e a Melhoria da Atenção à Saúde Mental são normas internacionais
que norteiam as elaborações legislativas dos Estados, e a Legislação sobre Saúde Mental é
uma produção da OMS que busca estabelecer parâmetros globais para a produção de leis
em saúde mental.
Na primeira seção do texto, é contextualizada a construção da organização das
políticas públicas na área de saúde mental no Brasil. Na segunda seção, é realizada uma
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contextualização do processo histórico da organização da política de saúde mental a partir
da Lei nº 10.216, de 2001, e dos documentos do Ministério da Saúde da Política de Atenção
Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, em 2003, até a publicação da Lei nº 13.840,
de 2019. Na terceira seção, é exposto o referencial teórico dos DHP, tendo em vista os
princípios e direitos humanos no contexto dos cuidados em saúde. E, por fim, a discussão
sobre a relação entre os princípios do cuidado centrado no paciente e as normativas
brasileiras relacionadas ao modelo de atenção em saúde mental comunitário fundamentado
nos CAPS e na RAPS, considerando o CAPS como eixo organizador e substitutivo à
internação psiquiátrica, contrapondo-se ao modelo de atenção à saúde preconizado pela Lei
nº 13.840, de 2019.
O processo histórico da organização da construção do modelo de assistência à
saúde mental no Brasil
O modelo de assistência à saúde mental no Brasil é norteado pela reforma psiquiátrica
e orientado pelo paradigma psicossocial. A partir dessa proposta, rompeu-se com o modelo
manicomial de assistência à saúde mental, o qual tinha, como objeto do cuidado, a doença
mental e adotava como estratégias de intervenção predominantes o isolamento e a
resolutividade pela medicalização, cujo agente do cuidado é o médico e o lugar do cuidado,
o hospital (21). Por outro turno, o paradigma psicossocial possui, como objeto de cuidado, a
existência e o sofrimento da pessoa, sendo considerado um campo transdisciplinar com
diversidades de intervenção, no qual há múltiplos profissionais e atores no cuidado (22). A
reorganização da rede de atenção psicossocial se fundamenta em um modelo baseado no
acesso universal e na promoção de direitos das pessoas, na convivência social e na
articulação de ações e serviços de saúde em diferentes níveis de complexidade (23).
No desenho da RAPS, o CAPS é considerado o equipamento articulador central, no
qual as necessidades e demandas dos usuários são norteadoras de ações territoriais que
servem de suporte ao plano integrado de cuidados em saúde (5). Ainda, o CAPS tem como
objetivo oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o
acompanhamento clínico e a reinserção social dos pacientes pelo acesso ao trabalho, lazer,
exercício dos direitos e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de
atendimento de saúde mental criado para ser substitutivo às internações em hospitais
psiquiátricos, destinado ao atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e
persistentes (23).
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A proposta do CAPS é a efetivação de práticas transformadoras no campo da saúde
mental, a partir do entendimento de que é possível construir novas formas de se enfrentar o
sofrimento psíquico. O CAPS parte da compreensão do paciente em sua complexidade,
buscando assegurar seus direitos, rompendo com o isolamento, a exclusão e a
estigmatização a que está submetido, quando a única possibilidade de enfrentamento é
aquela ofertada pelo modelo psiquiátrico tradicional (24). A ruptura com o modelo manicomial
significa muito mais que a busca pelo fim das internações psiquiátricas, pois aponta para
uma construção profunda acerca do fenômeno do adoecimento mental, visando à reinserção
social, ao resgate da autonomia, da cidadania e do reconhecimento das pessoas em
sofrimento psíquico como sujeitos de direitos (25).
Entretanto, diante dessas diferenças paradigmáticas, há entraves para a implantação
dos CAPS. Pante e Amarante ressaltam que “os mecanismos de institucionalização podem
se dar mesmo em alguns serviços territoriais, ainda que estes tenham o objetivo de substituir
o hospital psiquiátrico” (26, p.2075). Peres et al (27) apontam que para a efetivação do
modelo psicossocial e da proposta do CAPS, há a necessidade da mobilização efetiva e da
implicação dos diversos atores estatais nessa construção. Conforme as competências
definidas em Lei, cabe ao Poder Executivo Federal formular e coordenar a execução da
Política Nacional sobre Drogas, a fim de garantir a efetivação da política nos Estados e
Munícipios. Entretanto, a despeito da política pública ser competência dos órgãos de saúde
dos entes da federação, nos termos da repartição de competências constantes da Lei
Orgânica da Saúde, destaca-se a competência dos Conselhos de Saúde para atuar na
formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde.
A publicação Saúde Mental em Dados: 2003 – 2010, de 2015, descreve a expansão
anual do CAPS desde o ano de 1998, mantendo uma taxa anual de crescimento
relativamente estável, o que o Ministério da Saúde aponta como a consolidação desse
modelo de atenção para pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes
do uso de álcool e outras drogas, bem como para a ampliação de ofertas de cuidado de base
territorial e comunitária (28). No entanto, os resultados de uma pesquisa documental, cujo
objetivo foi identificar os avanços dos novos dispositivos implementados a partir da reforma
psiquiátrica, indicaram que ainda existem importantes desafios para se ampliar a assistência
ao paciente com transtorno mental, como: o aumento da cobertura dos CAPS; a implantação
de leitos psiquiátricos em hospitais gerais; a integração da saúde mental com a atenção
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primária; e a desinstitucionalização de pessoas em situação de longa permanência
hospitalar (29).
Novas discussões visando à reorganização da assistência para pessoas com
sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas, no âmbito do SUS, foram realizadas nas esferas legislativa e executiva sobre
a Política de Saúde Mental, a partir da publicação da Resolução CIT nº 32, de 14 de
dezembro de 2017, da Comissão Intergestores Tripartite, instância de pactuação
interfederativa dos aspectos operacionais da gestão do SUS (30), e da Portaria nº 3588, de
21 de dezembro de 2017, do Ministério da Saúde (31). Nesses documentos, foram incluídos,
a unidade de acolhimento (adulto e infanto-juvenil); enfermarias especializadas em hospital
geral; hospital psiquiátrico; hospital-dia; comunidades terapêuticas; e o ambulatório
multiprofissional de saúde mental como dispositivos de assistência na RAPS (31).
Entre outros dispositivos da RAPS citados no relatório Saúde Mental em Dados (28),
está o aumento dos serviços residências terapêuticas (SRTs) ou comunidades terapêuticas,
justificado diante das principais preocupações do processo de desinstitucionalização de
pacientes psiquiátricos de longa permanência nos últimos anos. No entanto, apesar da
proposta inicial das comunidades terapêuticas que “continham em si, a luta contra a
hierarquização ou verticalidade dos papéis sociais, ou enfim, um processo de
horizontalidade e democratização das relações”, conforme apontado por Amarante (32), elas
atualmente reproduzem o modelo de institucionalização psiquiátrica, o que tem sido
amplamente criticado por estudiosos, profissionais e militantes da reforma psiquiátrica,
conforme será discutido posteriormente.
Em face das novas normativas que representam significativo retrocesso diante das
importantes conquistas oportunizadas pela reforma psiquiátrica, torna-se fundamental tratar
da construção e da atualização da política pública concernente à assistência das pessoas
em uso problemático de drogas.
A construção e a atualização da Política Nacional sobre Drogas no Brasil
As demandas relacionadas aos problemas decorrentes do uso de drogas pertencem
ao campo de atenção à saúde mental, que vem passando por importantes transformações
conceituais e operacionais. Pautada nos princípios do SUS, a atenção à saúde mental
reorienta o modelo antes centrado na referência hospitalar para um novo modelo de atenção
descentralizado e de base comunitária. O Ministério da Saúde lançou, em 2003, a Política
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de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, que preconizou a estruturação
e o fortalecimento de uma rede de assistência centrada na atenção comunitária e ênfase na
reabilitação e reinserção social das pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras
drogas. Essa rede está alicerçada no CAPS AD, articulada à RAPS e ao restante da rede de
saúde (2).
O III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas Pela População Brasileira,
realizado em 2017 pela Fundação Oswaldo Cruz e Secretaria Nacional de Políticas sobre
Drogas, apontou que 3,3 milhões de pessoas maiores de 12 anos apresentaram critérios
para dependência de álcool ou alguma substância psicoativa – exceto tabaco – nos 12
meses anteriores à pesquisa, representando 2,2% da população pesquisada, sendo que a
maior prevalência se encontra na faixa etária de 25 a 34 anos (33). Em face desses aspectos,
essas instituições ressaltam que o uso problemático de drogas se apresenta como um
complexo problema de saúde pública, sendo necessários esforços nas ações de prevenção,
tratamento e na reinserção da pessoa que faz uso problemático de álcool e outras drogas
na sociedade (33).
A Lei n.º 11.343, de 2006, instituiu o SISNAD, cujos objetivos consistem em
prescrever as medidas preventivas ao uso indevido, atenção e reinserção social das pessoas
que fazem uso problemático de álcool e outras drogas, pois adota como premissa que essas
pessoas deveriam ser assistidas pelas instituições de saúde e assistência social, a partir de
ações de promoção e prevenção à saúde, a fim de reduzir os fatores de risco associados ao
uso problemático e vulnerabilidade (7).
A partir da quebra de paradigmas no cuidado às pessoas que fazem uso problemático
de álcool e outras drogas, houve a adoção da Política de Redução de Danos (PRD),
constituindo um conjunto de estratégias de saúde pública voltadas para a minimização das
consequências adversas causadas pelo uso abusivo de drogas (34). A pessoa que usa
substâncias psicoativas, na perspectiva da PRD, é vista como ser ativo, capaz e útil para
seus pares e a sociedade, sendo o protagonista de sua própria história de vida, e não
relegado a um papel passivo. A pessoa é um sujeito de direitos, e não os deve ter suprimidos
por fazer uso de substâncias psicoativas ilícitas (35).
O CAPS AD, como dispositivo da atenção psicossocial, é considerado substitutivo aos
hospitais e leitos psiquiátricos, e nele os pacientes que fazem uso problemático de álcool e
drogas encontram seu lugar na comunidade. É nesse ambiente que terão lugar as práticas
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terapêuticas, preventivas e educativas de maior impacto sobre os chamados fatores de risco
para o uso problemático (2).
Perrone (36), ao analisar a trajetória da reforma psiquiátrica e do movimento de luta
antimanicomial como marco de um processo de mudança na atenção em saúde mental,
avalia que muitos hospitais psiquiátricos foram fechados, e, concomitantemente, foram
abertas vagas em outros dispositivos visando à desinstitucionalização dos pacientes. No
entanto, o problema da dependência do álcool e outras drogas tem se tornado cada vez mais
alarmante, o que provoca, em função de ausência de políticas públicas consistentes e
eficazes no campo do trabalho e da saúde, a proliferação de internação de pessoas
principalmente em comunidades terapêuticas (CTs).
As CTs, como serviços de atenção em regime residencial, propostas na Portaria nº
3.088, de 2011, e reafirmadas na Portaria nº 3.588, de 2017, ambas do Ministério da Saúde,
foram idealizadas como equipamentos voltados à reinserção social dos pacientes e
consideradas fundamentais para a desinstitucionalização de pacientes com história de longa
permanência em hospitais psiquiátricos (31). Embora, em sua origem histórica, o movimento
para implementação das CTs se aproxime do proposto pela reforma psiquiátrica e do
movimento de luta antimanicomial, na prática, a realidade se mostrou diferente, como
confirmado por diversos relatórios de inspeção (37). Com efeito, inspeções citadas no
Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas - 2017, elaborado em
conjunto pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e
Combate à Tortura, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e Ministério Público
Federal e publicado em 2018 (37), apontam que uma boa parte das CTs no Brasil possui
práticas tão desumanas e iatrogênicas quanto às das antigas instituições asilares
manicomiais, sem garantir minimamente a preservação dos direitos humanos mais básicos.
Por outro lado, Perrone (36) também ressalta que a grande maioria das CTs não recebe
nenhuma forma de fiscalização, não se encontrando cadastrada em nenhum serviço de
referência que regulamente sua prática, o que facilita ainda mais a proliferação de violações
de direitos.
Outros problemas apontados por vários estudiosos quanto à proposta das CTs – tais
como a inclusão das CTs no SUS e medidas relativas ao tratamento às pessoas que fazem
uso problemático de drogas – têm levantado críticas e debates por parte de profissionais de
saúde, conselhos de categorias profissionais e outras entidades interessadas. Esses atores
sociais consideram que as propostas de financiamento das CTs substituem o tratamento
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médico por um programa terapêutico cuja eficácia não é comprovada cientificamente com
recursos públicos, e impedem o investimento na ampliação da rede pública de saúde
(37)(38)(39)(40).
Atualmente, as práticas utilizadas nas CTs remetem àquelas adotadas nos antigos
asilos, colônias e reformatórios do início do século XX, que não apresentam registros de
resultados positivos para os pacientes. Ademais, a história indica que esses modelos e
práticas de saúde preconizam a segregação e a internação prolongada. Os problemas
relacionados às CTs são ainda mais devastadores ao se analisar a Lei nº 13.840, de 2019,
que altera importantes aspectos da assistência às pessoas em uso problemático de drogas.
Principalmente ao inserir o acolhimento em CTs como parte dos planos terapêuticos que
visem à abstinência, mesmo diante das inúmeras fragilidades dessa modalidade apontadas
nas inspeções realizadas por órgãos estatais.
Pita (39) sustenta que “se a vida é crônica, precisamos aprender a cuidar dos nossos
usuários cronicamente, em liberdade, diuturnamente, oferecendo-lhes chances de sobrevida
digna nos diversos cenários em que a vida de todos os humanos se dá”. Igualmente,
enquadra as CTs como asilo-manicomiais que devem ser substituídas progressivamente,
com ações efetivas que reforcem a consolidação do modelo de atenção à saúde mental
proposto pela Lei nº 10.216, de 2001.
É importante ressaltar que uma parte da população de pessoas em uso problemático
de drogas vive em situação de risco social, sem acesso aos equipamentos sociais básicos
necessários ao pleno desenvolvimento humano, além da falta de emprego e demais meios
de geração de renda, acentuados níveis de pobreza e sem infraestrutura sanitária. É
necessário ampliar cada vez mais o conjunto de ações de integração e apoio às populações
vulneráveis e excluídas, que são marginalizadas, desassistidas e desinformadas de métodos
de prevenção e das vias de acesso aos insumos de prevenção (41). Uma lei que reforça o
uso da internação involuntária para tratamento de uso de drogas, atribuindo papel central às
CTs dentro do plano terapêutico visando à abstinência, pode fortalecer uma prática
higienista, atribuindo poder aos atores estatais para retirar pessoas em situação de rua,
desrespeitando a sua autonomia pessoal e liberdade de locomoção.
As informações apresentadas no Relatório Mundial sobre Drogas 2018 ilustram a
magnitude sem precedentes e a complexidade dos mercados globais de drogas.
Consequências adversas para a saúde, causadas pelo consumo de drogas continuam a ser
significativas, como as epidemias contínuas de opiáceos (42). Delgado (43) alerta que,
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 146 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.611
apesar da gravidade da situação, não se pode usar o terror e o pânico gerados pela questão
das drogas para legitimar a internação prolongada, própria da ultrapassada cultura
manicomial.
Os esforços para apoiar a prevenção e o tratamento do uso de drogas também
incluem fornecer às pessoas que fazem uso problemático de drogas o necessário
conhecimento e habilidades para prevenir overdoses (42). Mas tais esforços apenas serão
eficazes se forem baseados em evidências científicas e no respeito aos direitos humanos;
e, ainda, na erradicação do estigma associado ao uso de drogas, a partir da compreensão
de que os transtornos decorrentes do uso crônico de drogas e recidivas requerem
intervenções multidisciplinares.
A nova Lei que orienta o tratamento às pessoas em uso problemático de uso de
drogas no Brasil está na contramão das diretrizes mundiais, que reforçam a importância de
ações de redução de danos. Ademais, os padrões internacionais preconizam ações que
visem proporcionar e garantir o desenvolvimento e o retorno das pessoas à socialização –
com a inserção em atividades de trabalho, educação, lazer –, e que possam ampliar as
perspectivas de vida, oferecendo melhores condições de desenvolvimento pessoal nos
diferentes contextos nos quais estão inseridos.
Diante desses aspectos, o referencial dos Direitos Humanos dos Pacientes
apresenta-se como um importante marco conceitual para subsidiar ações que visem a
garantia dos direitos humanos dessas pessoas, em face do aumento das desigualdades e
iniquidades sociais.
Os Direitos Humanos dos Pacientes
Os DHP consistem em um referencial normativo-teórico construído a partir de
normativas de direitos humanos, aplicando-as ao contexto dos cuidados em saúde (12).
Neste estudo, enfatiza-se os princípios do cuidado centrado no paciente e da dignidade
humana, que são norteadores do fortalecimento das ações de saúde no cuidado ao paciente
em uso problemático de drogas e a sua família. A efetiva aplicação dos princípios dos DHP
concorre para o incremento da qualidade do cuidado, pois visam assegurar que o tratamento
em saúde atenda às necessidades social, emocional e física do paciente, levando-se em
conta seus valores e preferências (12).
No que tange ao princípio do cuidado centrado no paciente, destacam-se os pilares –
dignidade e respeito; compartilhamento de informação; participação; e colaboração – e seus
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componentes – a comunicação entre os profissionais de saúde e os pacientes; informação
em relação ao processo de cuidado, procedimentos e efeitos colaterais; cultura
organizacional que avalie as necessidades dos pacientes e estimule a sua participação e de
seus familiares e amigos na elaboração; e acompanhamento do plano terapêutico (12).
O cuidado centrado no paciente considera o paciente como pessoa, e não como
objeto da doença ou do cuidado; explora os sintomas apresentados por ela, considerando
seus contextos de vida, bem como enfatiza a importância de se incluir a perspectiva de cada
paciente a partir de uma visão biopsicossocial mais ampla. Assim, o cuidado centrado no
paciente busca promover condições de agência a ele, e tomada de decisão compartilhada
quanto ao tratamento (44).
O cuidado centrado no paciente também preconiza o estabelecimento de uma relação
de confiança e respeito entre o paciente e o profissional de saúde, em que o profissional
deve trabalhar o potencial humano e as competências de cada pessoa e a sua família (44),
ao invés de enfocar nas deficiências ou fragilidades do paciente, o que é usual no cuidado
em saúde de pessoas com transtornos mentais (19).
Freeth (19) reforça a necessidade de mudança dos profissionais quanto à confiança
no potencial inato e na capacidade do paciente de superar e lidar com as suas dificuldades.
Assim, o cuidado centrado no paciente assume que a adoção do suporte adequado às
vulnerabilidades e ao seu adoecimento mental pode impactar positivamente em sua
condição de saúde. Segundo o autor, esse tipo de abordagem visa aumentar o senso de
liberdade e a responsabilidade das pessoas. Para tanto, o profissional deve assumir que os
pacientes precisam de condições facilitadoras para exercer as suas capacidades.
O modelo de atenção psicossocial no Brasil e os princípios do cuidado centrado no
paciente
Considerando os avanços e os retrocessos do modelo de atenção em psicossocial no
Brasil e suas diretrizes para o funcionamento e a articulação dos dispositivos da rede de
assistência psicossocial, tem-se como objetivo analisar o CAPS sob a ótica dos princípios
do cuidado centrado no paciente e da dignidade humana, segundo os DHP. Sendo
dispositivo da RAPS, o CAPS, nas suas diferentes modalidades, é considerado o principal
instrumento de implementação da assistência à saúde mental, por isso, esse dispositivo
deve ser entendido como uma estratégia de transformação da assistência que se concretiza
em uma ampla rede de cuidados em saúde mental (45).
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O CAPS tem valor estratégico para a reforma psiquiátrica brasileira, porquanto sua
atribuição é prestar atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando, assim, as
internações hospitalares. Para tal, busca promover a inserção social das pessoas com
transtornos mentais e que fazem uso problemático de álcool e outras drogas por meio de
ações intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na
sua área de atuação; e organizar a rede de atenção a pessoas com doenças mentais (3, 4).
O CAPS deve ser substitutivo e não complementar aos hospitais psiquiátricos,
oferecendo atenção às pessoas com transtornos psíquicos graves e persistentes e que
fazem uso problemático de álcool e outras drogas, procurando preservar e fortalecer os laços
sociais do paciente em seu território. A presença da família de pacientes nos serviços de
saúde mental está contemplada no CAPS, sendo considerada uma unidade cuidadora que
possibilita o apoio e a busca de soluções para as dificuldades enfrentadas na vida cotidiana
dos pacientes (45). O CAPS, ao incorporar a família no processo de cuidado do sujeito em
sofrimento mental, se articula com o princípio do cuidado centrado no paciente, visto que
nesse modelo é estabelecida uma parceria entre profissionais, pacientes e suas famílias.
Segundo o princípio do cuidado centrado no paciente, a família, considerada pelo
paciente como tal, é compreendida como um elemento fundamental, sendo essencial para
ele em alguns casos (12). Em estudo que analisou a participação da família no cuidado ao
paciente no CAPS, identificou-se que a sua presença se constitui como um recurso que
possibilita a construção de atividades de tratamento direcionadas ao paciente. Ademais,
quando a família está presente, aumenta a oportunidade de esclarecer dúvidas,
compreender o estado de saúde do paciente, receber orientações que auxiliam no
enfrentamento de preconceitos, obter informações sobre o tipo de tratamento que o paciente
receberá (46).
Os componentes do cuidado centrado no paciente, tais como a comunicação entre os
profissionais de saúde e os pacientes, a informação em relação ao processo de cuidado,
estímulo ao suporte afetivo de familiares e amigos, a participação do paciente na elaboração
e acompanhamento do plano terapêutico, são encontrados na proposta de assistência do
CAPS em suas diferentes modalidades.
Portanto, ao conferir ao paciente o direito de participar da construção de estratégias
que incrementem sua saúde mental – com respeito à sua autonomia e dignidade –, esse tipo
de cuidado também fortalece a relação entre o profissional e o paciente, reduzindo o
abandono e o fracasso terapêutico (24). As alterações advindas com a Lei nº 13.740, de
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2019 – notadamente quanto ao incentivo às internações psiquiátricas – impulsionam a
adoção de ações de saúde focadas no adoecimento e na decisão quanto ao tratamento
exclusivamente pelo médico e instituições de saúde.
Sublinha-se que o cuidado centrado no paciente tem como premissa a autonomia da
pessoa e adota três dimensões: a primeira é que as pessoas têm o direito de tomar suas
próprias decisões e realizar escolhas – mesmo que outras possam considerá-las irracionais
–, também constituindo um princípio ético a ser adotado por todos os profissionais de saúde.
A segunda, valoriza a capacidade de tomada de decisão do paciente, ressaltando que o
objetivo principal de toda forma de cuidado deve ser promover a autonomia. A terceira
dimensão diz respeito ao cuidado do paciente com transtorno mental, considerando os seus
direitos e a capacidade de tomar as próprias decisões (19).
A implementação de ações de saúde visando ao cumprimento das diretrizes
propostas na política de saúde mental devem ser norteadas pelo tratamento em saúde que
atenda às necessidades social, emocional e física do paciente, considerando sua vontade e
preferências (12). O CAPS se apresenta como um importante dispositivo da RAPS para a
efetivação dessa proposta. Portanto, a ampliação de CTs e o aumento do número de leitos
em hospitais em oposição à falta de investimento na ampliação do CAPS caracterizam-se
como um passo atrás no processo de construção de um modelo de atenção à saúde mental
centrado no paciente e na promoção da sua dignidade.
Considerando a cronicidade do transtorno mental, também é importante ressaltar o
papel do paciente no seu tratamento como um processo, pois o cuidado deve se basear na
perspectiva do paciente para pensar no seu adoecimento e nos critérios de sucesso visando
às intervenções, considerando que os cuidados devem possibilitar o aumento da capacidade
do seu autocuidado. Assim, o tratamento bem-sucedido será definido não em termos de
cessação da morbidade ou dos sintomas, mas na aquisição de competências e estratégias
para conseguir alívio ao sofrimento e possibilitar a condução da vida de forma mais
autônoma e como sujeito da sua história (20). Portanto, a internação involuntária como parte
do tratamento do uso problemático de drogas não reconhece o paciente como sujeito de
direitos ao desconsiderar sua capacidade de decisão e ao privá-lo de liberdade. Conforme o
previsto na Lei nº 13.840, de 2019, ao dispor como alternativa de tratamento a internação
involuntária apenas com o aval do profissional médico em unidades de saúde e hospitais
gerais, tal diretriz reforça o cuidado centrado no adoecimento e nos processos históricos de
exclusão social dessas pessoas, excluindo as demais áreas da saúde, a assistencial social
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e o paciente da construção do projeto terapêutico. Isto é, ela reforça a perspectiva médica
do uso problemático de drogas centrada e reducionista, que visa apenas ao tratamento da
patologia, apartando-se do contexto no qual as pessoas estão inseridas, bem como outras
possibilidades de tratamento ou até mesmo de não tratamento.
Assim, presume-se que as pessoas em uso problemático de drogas são incapazes,
pois, mesmo que não desejem se tratar e não sejam interditadas, o médico pode interná-las
forçadamente. Segundo a Lei nº 13.840, de 2019, a constatação da dependência abusiva do
uso de drogas permite a internação – mesmo que não haja necessidade terapêutica –,
apontando para a fragilidade do cuidado e o aumento de chance de tratamentos desumanos
e degradantes de pessoas com transtorno mental.
Considerando que o SISNAD tem como princípio o respeito aos direitos humanos,
especialmente quanto à sua autonomia e liberdade, observa-se clara ambiguidade entre os
seus princípios e as propostas de efetivação da assistência aos pacientes em situação de
uso problemático de álcool e outras drogas. Esses aspectos são apontados pelo Ministério
Público Federal (47) ao destacar que a nova política desenhada pelo Ministério da Saúde
apenas incentiva a manutenção de hospitais psiquiátricos e CTs. Ou seja, as novas diretrizes
públicas negam às pessoas com transtorno mental o direito de serem cuidadas em serviços
territorializados, sem o risco de segregação, que contribui para o agravo das condições de
saúde das pessoas que fazem uso problemático de uso de drogas, violando a Lei nº 10.216,
de 2001. Portanto, esses aspectos ressaltados quanto às mudanças e aos retrocessos
relativos ao tratamento das pessoas que fazem uso problemático de drogas se revelam em
descompasso com os princípios do cuidado centrado no paciente.
Considerações finais
O princípio do cuidado centrado no paciente é norteador das ações de saúde ao
paciente com transtorno mental e uso problemático de uso de drogas e sua família. Tais
ações apontam para o cuidado singular, no qual o paciente participa do processo de
construção do plano de tratamento, e atendem às pessoas em suas necessidades na
perspectiva de proteção e de garantia de seus direitos humanos. A efetiva aplicação dos
princípios dos Direitos Humanos do Paciente concorre para o incremento da qualidade do
cuidado, pois visam assegurar que o tratamento em saúde atenda às necessidades social,
emocional e física do paciente, levando em conta seus valores e preferências (12).
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Essas intervenções apontam claramente a intervenção do Estado na privação da
liberdade, privacidade e autodeterminação, o que favorece condições de violação dos
direitos humanos, principalmente quanto à dignidade humana. As ações do governo
mostram claramente que ainda há muitos caminhos de lutas e movimentações sociais para
a garantia dos direitos adquiridos, e do resgate em prol da manutenção do tratamento digno
ao paciente com transtorno mental grave e persistente e uso problemático de uso de álcool
e outras drogas.
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Colaboradores
Todos os autores contribuíram com a concepção, elaboração, redação, revisão e
aprovação do artigo.
Submetido em: 01/12/19 Aprovado em: 19/11/20
Como citar este artigo: Cardoso AMR, Albuquerque A. O modelo de assistência à saúde mental das pessoas em uso problemático de drogas: uma reflexão sob a ótica dos Direitos Humanos dos Pacientes. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 135-155.
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Análise da capacidade jurídica dos pacientes idosos no Brasil a partir do referencial dos Direitos Humanos Analysis of the legal capacity of elderly patients in Brazil from the Human Rights perspective Análisis de la capacidad legal de los pacientes mayores en Brasil desde el marco de los Derechos Humanos
Denise G.A.M. Paranhos1
Resumo Objetivo: o artigo visa discutir a capacidade jurídica dos pacientes idosos a partir do referencial dos Direitos Humanos, de modo a fomentar o debate acerca da inadequação da legislação brasileira para aferir a capacidade decisional e a consequente mitigação da autonomia. Metodologia: estudo teórico-documental baseado na pesquisa de Albuquerque sobre capacidade jurídica e Direitos Humanos e, internacionalmente, na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e na Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos. No campo nacional, abordou-se a regulamentação dos Códigos Civil e de Processo Civil sobre interdição e curatela. Resultados: constatou-se que o método de aferição da capacidade jurídica no Brasil está dissociado do novo paradigma internacional, pois a avaliação ocorre por meio de perícia médica que busca aferir deficiências mentais, e não a habilidade para a tomada de decisões específicas. Conclusão: o paciente idoso pode ser protagonista ativo de sua terapêutica, desde que tenha a sua autonomia promovida mediante a utilização dos suportes adequados de tomada de decisão, que carecem de ser incorporados no país. Palavras-chave Paciente idoso. Capacidade jurídica. Capacidade mental. Autonomia. Direitos Humanos. Abstract Objective: the article discusses the legal capacity of elderly patients from the human rights perspective and debate about the inadequacy of Brazilian legislation to assess the decision-making capacity and therefore leading to the mitigation of autonomy. Methods: the theoretical and documentary study conducted was based on Albuquerque's research on legal capacity and human rights; on the principles of the Convention on the Rights of Persons with Disabilities and the Inter-American Convention on the Protection of the Human Rights of Older Persons; and the Brazilian regulation of the Civil and Civil Procedure Codes on guardianship. Results: the method for assessing the legal capacity in Brazil is dissociated from the international paradigm, because the assessment is based on the measurement of mental deficiencies or disorders, and not the ability to make specific decisions. Conclusion: elderly patients can be active protagonists of their therapy if their autonomy is promoted through the appropriate decision-making support to still be applied in Brazil. Keywords Elderly patient. Legal capacity. Mental ability. Autonomy. Human Rights.
1 Doutora em Bioética, Universidade de Brasília, Cátedra Unesco de Bioética, Brasília, DF, Brasil; membro do Observatório Direitos dos Pacientes, Cátedra Unesco/PPGBioética, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil; analista judiciário Seção Judiciária de Goiás, Justiça Federal, Goiânia, GO, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-4956-2314. E-mail: [email protected]
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Resumen
Objetivo: el artículo tiene como objetivo discutir la capacidad legal del paciente anciano desde el marco de los derechos humanos, con el fin de fomentar el debate sobre la insuficiencia de la legislación brasileña, los mecanismos equivocados para evaluar la capacidad de toma de decisiones y la consiguiente mitigación de la autonomía. Metodología: el estudio teórico y documental aquí realizado se basó en la investigación de Albuquerque sobre capacidad jurídica y derechos humanos y, internacionalmente, en la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad y la Convención Interamericana para la Protección de los Derechos Humanos de las Personas Mayores. En el ámbito nacional, se abordó la regulación de los Códigos de Procedimiento Civil y Civil sobre interdicción y tutela. Resultados: se descubrió que el método para medir la capacidad legal en Brasil está disociado del nuevo paradigma internacional, porque la evaluación se lleva a cabo a través de la experiencia médica que busca medir discapacidades o trastornos mentales, y no la capacidad de tomar decisiones específicas. Conclusión: los pacientes de edad avanzada pueden ser protagonistas activos de su terapia, siempre que se promueva su autonomía, mediante el uso de los apoyos adecuados para la toma de decisiones, que que deben incorporarse en el país. Palabras clave Paciente anciano. Capacidad legal. Habilidad mental. Autonomía. Derechos Humanos.
Introdução
Preconiza-se, em nosso ordenamento jurídico, que a capacidade é a regra.
Entretanto, em relação à pessoa idosa, existe uma crença cultural arraigada de que o
envelhecimento é uma causa necessária de declínio das capacidades cognitivas e
consequente comprometimento da habilidade decisional (1). Há preconceitos diversos em
razão da idade. O processo de estigmatização e etiquetamento da pessoa idosa é pernicioso
e resulta na mitigação da autonomia em vários âmbitos da vida, inclusive no que diz respeito
às tomadas de decisão em saúde (1). Apesar da idade, da fragilidade física e do eventual
comprometimento cognitivo, as pessoas idosas podem ser administradoras competentes de
suas vidas e do seu processo terapêutico, desde que devidamente capacitadas para tal fim
(2).
Várias normativas internacionais e nacionais sustentam a necessidade de respeito à
autonomia das pessoas idosas para tomarem decisões sobre a sua vida. Destaca-se, no
Brasil, a Lei nº 10.741/2003, que aprovou o Estatuto do Idoso (3). Na Organização dos
Estados Americanos (OEA), foi aprovada a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos
Direitos Humanos dos Idosos (CPDHI) (4). Além da ênfase ao combate a toda forma de
discriminação, inclusive por razão de idade, a CPDHI ressaltou, dentre os seus princípios
gerais, o respeito à “dignidade, independência, protagonismo e autonomia do idoso”,
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consoante o seu artigo 3º, letra ‘c’ (4). O que se vê, no entanto, é que não raramente o intuito
de proteção à pessoa de idade mais avançada esbarra em condutas paternalistas por parte
dos familiares, dos profissionais da saúde e da própria sociedade, de modo que o direito de
autodeterminação acaba mitigado pela vontade de terceiros, que se julgam mais aptos a
tomar decisões em nome da pessoa idosa (2).
Uma situação que ilustra a substituição da vontade do paciente idoso encontra-se
prevista no próprio Estatuto do Idoso (EI). Não obstante o reconhecimento do valoroso papel
do EI na promoção dos direitos das pessoas de mais de 60 anos, verifica-se, do próprio texto
da lei, situações em que a capacidade decisional da pessoa idosa é colocada em xeque. No
capítulo IV, que trata do direito à saúde, o artigo 17 dispõe que “ao idoso que esteja no
domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de
saúde que lhe for reputado mais favorável” (3). A seguir, no parágrafo único, elenca, em
ordem preferencial, as pessoas incumbidas de optar pelo tratamento de saúde que for
reputado melhor para o doente. À primeira vista, o artigo 17 parece indicar o intuito de
proteger as pessoas idosas, pressupondo-as vulneráveis. No entanto, traz à tona uma grave
questão de direitos humanos. Ao mesmo tempo em que a lei declara o respeito à
autodeterminação da pessoa idosa, a mitiga, restringindo o exercício do direito de escolha,
pois sua opção é previamente determinada por um agente externo. Isto é, não só se associa
idade com perda das faculdades mentais, como se condiciona a escolha de tratamento de
saúde ao que terceiros julgarem mais adequado. Assim, constata-se que as pessoas idosas
não podem decidir se querem ou não ser tratadas, escolher um tratamento que apenas elas
consideram favorável, ou optar por tratamento que não lhes seja mais favorável. Tal situação
configura violação ao direito humano à privacidade e à autodeterminação (5). Nesse ponto,
o artigo 17 se revela um preceito cerceador do direito dos pacientes idosos de conduzirem
suas próprias vidas, pois parte do pressuposto preconceituoso e discriminatório de que as
pessoas de idade mais avançada não são capazes de julgar os cursos de ação relativos aos
seus cuidados em saúde (2).
A despeito da previsão legal de proteção das pessoas idosas contra ingerências
indevidas em sua vida privada e o estímulo à autodeterminação, não são raros os pedidos
de interdição de pessoas de idade mais avançada no Brasil (6). Apesar das normativas de
direitos humanos que preconizam um novo modelo de capacidade jurídica, em que se tem
a autonomia como ponto central e as decretações de interdição e curatela como situações
excepcionais, no Brasil, o modelo civilista vigente mantém o modelo superado de
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substituição da vontade. Desse modo, sob o pretexto da proteção, um grande número de
pessoas idosas no país é interditado e alijado de seus direitos, por ser considerado incapaz
de cuidar de si mesmo (7).
Capacidade jurídica, capacidade mental ou decisional e mecanismos de tomada de
decisão são questões que se relacionam com o tema da autonomia. Embora a discussão
sobre autonomia esteja conectada com diversos campos do saber, como a bioética, a
psicologia, a sociologia, dentre outros, a opção de pesquisa deste trabalho foram os Direitos
Humanos. O objetivo do artigo é discutir a capacidade jurídica do paciente idoso a partir do
referencial dos Direitos Humanos, trazendo à tona o tema da autonomia como promoção.
Visa-se, assim, fomentar o debate acerca da inadequação da legislação brasileira e dos
mecanismos equivocados para se aferir a capacidade decisional nos processos de interdição
e decretação de curatela no país.
Na esfera do Direito brasileiro, ainda não se discute sobre a inadequação da forma
de se avaliar a capacidade de alguém nos processos de curatela, ou seja, não se verifica a
distinção crucial entre capacidade jurídica e capacidade mental. O presente trabalho propõe
extrapolar o debate puro e simples dos efeitos da curatela sobre a autonomia das pessoas
e abordar a possibilidade de capacitação dos pacientes idosos para tomar decisões em
saúde quando têm a sua autonomia promovida.
Com base em normativas internacionais e no referencial dos Direitos Humanos,
procurou-se demonstrar a falha do sistema judiciário brasileiro em chancelar a capacidade
de alguém com esteio na deficiência intelectual ou no transtorno mental, apurado em perícia
médica. No Brasil, não há avaliação da capacidade mental para se curatelar uma pessoa,
bem como há ampla confusão entre avaliação de capacidade mental e avaliação
biopsicossocial. Assim, a proposta do artigo é abordar a questão macro relacionada à
capacidade mental de um grupo bem específico, que é a pessoa idosa, lançando luz sobre
aspectos que não são comumente abordados, como a introdução da ideia de capacidade
mental/decisional no ordenamento jurídico e a noção de autonomia como promoção.
Metodologia
Foi realizada pesquisa de cunho teórico-documental e, para discutir o modelo legal
de capacidade jurídica, utilizou-se, como referencial, o estudo sobre capacidade jurídica
desenvolvido por Albuquerque (8), investigadora precursora da temática no Brasil. É a partir
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de tal modelo, ilustrado por contribuições de outros autores, que foram tecidas as reflexões
sobre autonomia como promoção relativamente ao paciente idoso.
Além do referencial de capacidade jurídica desenvolvido por Albuquerque, a pesquisa
se dedicou, no plano documental, às normativas nacionais e internacionais de Direitos
Humanos que cuidam do assunto.
No campo nacional, o debate centrou-se no processo de interdição e curatela
previstos no Código Civil (10) e no Código de Processo Civil (11) para, a partir, deles,
pavimentar o caminho de discussão sobre a necessidade de alterações do ordenamento
jurídico vigente, mediante a internalização do referencial de Direitos Humanos.
No campo internacional, o estudo teve como base a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (9) e a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos
Humanos dos Idosos (4).
Para conferir um cunho didático ao artigo, o trabalho foi estruturado da seguinte
maneira. Primeiramente, foi feita uma abordagem acerca da capacidade jurídica defendida
nas normativas de Direitos Humanos e sua contraposição ao modelo brasileiro vigente.
Após, foram apresentadas reflexões sobre a inadequada chancela de incapacidade mental
às pessoas idosas pelo modelo de capacidade jurídica vigente, alertando-se para a
necessidade de internalização de instrumentos de apoio à tomada de decisão no país, para
fim de prevenir a substituição da vontade. Por fim, foram apresentadas algumas
considerações finais, voltadas a estimular a assimilação da ideia de autonomia como
promoção, como forma de preservar o protagonismo das pessoas idosas em seus cuidados
em saúde.
O modelo legal de capacidade jurídica
No Brasil, a capacidade jurídica é amplamente denominada de capacidade civil e
encontra-se regulamentada no Código Civil Brasileiro (CC/2002) (10) e no Código de
Processo Civil (CPC/2015) (11). De acordo com o nosso sistema legal, existem dois tipos de
capacidade: a capacidade de direito ou de gozo, considerada a capacidade universal, cujo
único requisito é o nascimento com vida, conforme preconizam os artigos 1º e 2º do CC/2002
(10); e a capacidade de fato ou de exercício, que pressupõe a capacidade de direito, e é
entendida como a aptidão do indivíduo de exercer pessoalmente os atos da vida civil (10).
Para que seja reconhecida a capacidade de fato, alguns requisitos foram traçados pelo
legislador, tais como possuir o sujeito “discernimento para se autodeterminar” (7). Assim,
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existe ainda no CC/2002 a classificação de pessoas como absolutamente incapazes e
relativamente incapazes (artigos 3º e 4º, CC/2002), cujo exercício da capacidade de fato,
sob o pretexto da proteção, exige que tais pessoas sejam representadas ou assistidas (7).
Da leitura do rol de incapazes do CC/2002, percebe-se que o exercício da capacidade de
fato vincula-se a algumas características do indivíduo, tais como a idade, o grau de saúde e
o desenvolvimento intelectual ou mental, bem como ao resultado de possíveis ações, como
no caso do pródigo. Vê-se, assim, que o modelo da capacidade jurídica brasileira se atrela
às abordagens com base no status ou no resultado, repudiadas pelo modelo instituído pela
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). A CDPD, em seu artigo
12, reconhece o direito de igualdade às pessoas com deficiência e a garantia, perante os
Estados, do apoio necessário ao exercício da capacidade legal (9).
A declaração de incapacidade de pessoa maior é feita por meio de um processo de
interdição, que culmina na instituição da curatela, institutos esses balizados pelo Código de
Processo Civil (CPC/2015), em seus artigos 747 a 758 (11). Para a decretação de interdição,
são utilizados, como elementos de prova, laudo médico a ser apresentado pelo autor da
ação; entrevista de convencimento do juiz sobre a capacidade para praticar atos da vida
civil; perícia; e outros meios de prova entendidos pertinentes pelo magistrado. Ao final,
compete ao juiz decretar ou não a interdição, nomear a pessoa que julgar mais indicada para
substituir a vontade do interdito, podendo, ainda, fixar os limites da curatela, segundo a
capacidade apurada (11).
Araújo (12) apresenta ponderações pertinentes quanto à realidade das interdições no
Brasil, apontando que, no geral, o que se vê é que a decisão mais fácil e segura para todos
é a interdição total. Questiona, no entanto, onde restaria guardada a dignidade, que deriva
do aproveitamento das potencialidades, lembrando que o conceito jurídico de deficiência não
é mais um conceito médico. O autor pontua que o CPC/2015, em seu artigo 751, deixa todas
as possibilidades ao juiz, como se este tivesse conhecimentos de Serviço Social, Medicina,
Psicologia, e pudesse aferir, em uma breve entrevista, todas as potencialidades da pessoa.
Ressalta que o magistrado se apoia, na maioria das vezes, nas informações de um perito
único, geralmente um médico, retornando a discussão da capacidade ao modelo médico, já
ultrapassado. Segundo o autor, o juiz não pode se basear apenas em um médico para decidir
o futuro de uma vida. Ao contrário, deveria se servir, para fundamentar adequadamente a
sua decisão, de uma gama de expertos, com variedades de formação (12).
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Do breve panorama legal acima apontado, verifica-se que a legislação brasileira se
encontra apartada das normativas internacionais de direitos humanos sobre a temática, em
especial da CDPD, que buscou alterar o entendimento acerca do que seja capacidade para
os fins do regime da capacidade jurídica. O artigo 12 da CDPD (9), em seu item 02,
estabeleceu a supressão da incapacidade jurídica das pessoas com deficiência, modelo
ainda vigente no Código Civil brasileiro, onde se perpetua o entendimento de que a pessoa
com deficiência ou transtorno mental está incapacitada para fazer prevalecer a sua vontade.
Essa nova ótica trazida pelos Direitos Humanos exige uma completa reformulação do
modelo brasileiro, que perpassa desde a ruptura com o modelo exclusivamente biomédico,
até a incorporação de estratégias de apoio que contribuam para que, ao invés de terem a
vontade substituída, pessoas com dificuldades decisórias possam receber o suporte
necessário para que possam ser incluídas no processo de tomada de decisão sobre os mais
diversos campos de sua vida (13).
Conforme pesquisa de Albuquerque (8), com o advento da CDPD, das atividades do
Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de pesquisas e do ativismo
pelos Direitos Humanos, a autonomia passou a ser colocada no centro do regime da
capacidade jurídica. Passou-se a reconhecer que o discurso da proteção se encontra
permeado de estigma, preconceito e paternalismo disfarçados. Segundo a autora, o novo
paradigma do regime de capacidade jurídica baseado no referencial dos Direitos Humanos
enuncia que a capacidade jurídica engloba a capacidade legal – que corresponde a ser
sujeito de direito – e a agência legal – que compreende o exercício de direitos, na forma
preconizada pelo Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (14). Capacidade
legal e a agência legal não se confundem com a capacidade mental ou decisional, que é a
habilidade para tomar decisões (8). Desse modo, o regime da capacidade jurídica não pode
ser confundido com a capacidade mental ou decisional, salientando-se, no entanto, que,
quando a disciplina legal envolve também a capacidade mental, além da jurídica, adota-se
o termo Modelo Legal de Capacidade (8).
De acordo com Albuquerque (8), existe no país uma confusão entre a incapacidade
decisional (ou mental) e a deficiência intelectual ou transtorno mental. Não há ainda a
compreensão de que o regime da capacidade jurídica diz respeito à capacidade para tomada
de decisão, e não à saúde mental ou à deficiência da pessoa. Apesar da CDPD ter sido
adotado no Brasil com o status de emenda constitucional, constata-se que as decisões
judiciais de interdição e a instituição da curatela fundamentam-se em um diagnóstico de
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transtorno mental ou deficiência, apurado por perícia médica realizada por profissional
designado pelo juízo e que chancela a condição de não cidadão a alguém por meio de um
código constante da Classificação Internacional de Doenças (CID). Ou seja, não se aplica
uma avaliação da capacidade mental fundamentada em evidências científicas e passível de
apurar a habilidade para tomada de decisões específicas (8). Importante pontuar que não
existe ainda, no Brasil, um teste padronizado de capacidade mental para apurar a habilidade
decisional das pessoas sujeitas a curatela. Tais testes, entretanto, vêm sendo aplicados em
outros lugares do mundo, conforme se vê na pesquisa realizada por Purser (15), que aponta
a existência de testes diversos para a aferição da capacidade decisional acerca de questões
específicas, como financeiras, de saúde, matrimonial etc. Os testes mais usados são o
MacCAT-T; The Capacity Assessment Toolkit; The Six Step Capacity Assessment Process;
Standardised Tests; Tje Two Stage Capacity Assessment Model; The Finacial Capacity
Assessment Model (15). Tais testes, no entanto, não serão aqui alvo de debate, pois, por
sua especificidade e riqueza, merecem um artigo próprio.
Assim, o que se visa chamar a atenção é para o fato de que o novo Modelo Legal de
Capacidade deve contemplar a avaliação da capacidade decisional por meio de critérios
outros, que não os puramente biomédicos, constantes da Classificação Internacional de
Doenças (CID) e Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde
(CIF), que se limitam à verificação da saúde mental ou deficiência (8). É relevante destacar
que tais testes de avaliação da capacidade mental só devem ser aplicados quando
esgotados os suportes para tomada de decisão apoiada (8).
Fora as situações em que a capacidade mental possa ser afetada por condições
extremas, como o estado vegetativo, coma persistente ou demências severas, que exigem
a substituição da vontade (8), todas as pessoas têm capacidade de tomar decisões por si
mesmas. Entretanto, o exercício do direito de decidir é muitas vezes obstado por relações
abusivas, contextos de violência e meios sociais opressivos (1). O modelo fundamentado
nos Direitos Humanos rechaça o paternalismo protetivo, ancorando-se no modelo centrado
na pessoa e no respeito à autonomia pessoal, cuja preservação ocorre quando oferecidos
instrumentos de apoio à tomada de decisão (8).
A seguir, serão trazidas reflexões sobre a necessidade de promoção da autonomia
do paciente idoso para que possa participar dos cuidados em saúde, com referência aos
possíveis mecanismos de apoio, em substituição aos processos equivocados de substituição
da vontade.
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A capacidade decisional do paciente idoso e a autonomia como promoção
Herring (1), ao discutir a posição da pessoa idosa na sociedade e perante a lei, chama
a atenção para a complexa questão dos inúmeros abusos pelos quais passam esse grupo
etário. Para ele, tais abusos apenas evidenciam os preconceitos ageístas que prevalecem
em nosso meio e as falhas legais em combatê-los. Como forma de ilustrar o incremento da
vulnerabilidade, a perda da autodeterminação e as inúmeras violações de Direitos Humanos
a que estão sujeitos os pacientes idosos, o autor relata sobre uma campanha que foi iniciada
pela Sociedade Britânica de Geriatria (16). A campanha era para que as pessoas idosas que
viviam em casas de repouso pudessem usar os banheiros com as portas fechadas. A partir
de tal exemplo, o autor problematiza a violação à dignidade e ao direito à privacidade desses
pacientes, ao ponto de motivar uma campanha de conscientização dos cuidadores. Herring
enfatiza que isso não ocorre apenas com pessoas idosas internadas, mas também nas
próprias casas, revelando a necessidade de uma resposta mais ampla e eficaz aos abusos.
Segundo o autor, enquanto as pessoas mais velhas não receberem o respeito a que têm
direito, não forem reconhecidas como iguais cidadãs e encorajadas a participarem como
verdadeiros membros da sociedade, continuarão a sofrer abusos e a terem sua vontade
substituída (1).
No campo da saúde, pode-se dizer que os pacientes idosos são dotados de uma
dupla vulnerabilidade: a decorrente da doença e que é acrescida pela idade (2). Assim,
muitas vezes, apresentam maior embaraço para compreender e participar das terapêuticas,
sofrem perdas auditivas, visuais e cognitivas, estão mais propensos a ceder à pressão dos
profissionais da saúde e dos familiares, são postos ao largo do processo de cuidados e são
vítimas comuns de posturas paternalistas (2). Some-se a isso a formação do profissional em
saúde, em que se prioriza o saber técnico em detrimento de aspectos pessoais, e o modelo
de atendimento que requer agilidade nas consultas, incompatível com o perfil dos pacientes
idosos, que levam mais tempo para entender e se manifestar sobre as terapêuticas (2).
Diante de tantos fatores adversos, questiona-se se seria possível envolver nos cuidados um
paciente que tem a capacidade cognitiva diminuída, dificuldades de se comunicar e de se
fazer entender (17).
Embora o novo paradigma de capacidade jurídica tenha suas raízes na CDPD, tal
regime abarca todas as pessoas que possam apresentar dificuldades no processo de
tomada de decisão, dentre elas as pessoas idosas (8). Importante destacar, no entanto, que
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não se pode confundir envelhecimento com deficiência, associando-se as fases mais
avançadas da vida ao necessário comprometimento das faculdades mentais (2).
O envelhecimento está coberto de preconceitos e estereótipos, que em muito
influenciam o cuidado em saúde direcionado. Uma das maneiras de se assegurar cuidados
respeitosos e de qualidade aos pacientes idosos é capacitá-los a participarem do tratamento
(2). O artigo 7º da CPDHI estabelece que os Estados-partes deverão tomar todas as medidas
necessárias para assegurar, mediante programas, políticas, ações e mecanismos eficientes
de punição, o direito das pessoas idosas de tomarem decisões sobre suas vidas, de forma
autônoma e independente, em igualdade de condições e respeitados seus valores, crenças
e tradições (4).
Existe uma interconexão entre o conceito de autonomia e de capacidade jurídica e
mental. Conforme antes tratado, o novo paradigma da capacidade jurídica reconhece que
ela deve ser igual para todos e que tal regime deve ter o sujeito e a sua autonomia no centro
do sistema (8). Ainda que se compreenda que toda pessoa tem capacidade jurídica na forma
estabelecida pela CDPD, persistem dificuldades quanto à compreensão do exercício da
autonomia por pessoas com capacidade mental comprometida, quer por problemas de
saúde, quer por se inserirem em contextos abusivos que não permitam a expressão da
vontade e desejos (1). Albuquerque (8) traz à tona o modelo da autonomia como promoção,
presente nas normativas dos Direitos Humanos.
A autonomia como promoção se apodera de elementos do modelo da autonomia
relacional, isto é, concebe que o paciente é a fonte principal da decisão e responsável pelos
seus cuidados, mas que se encontra entrelaçado por uma rede, seus meios familiares,
sociais, culturais e econômicos, que influenciam no processo decisório (18). Por isso, a
autonomia como promoção vai além. Ela reconhece o peso que os relacionamentos possam
ter na tomada de decisão, sobretudo em contextos abusivos, motivo pelo qual sustenta que
a autonomia deve ser promovida. Ou seja, é possível, por meio de medidas estatais ou
sociais, desenvolver habilidades que estimulem o exercício da capacidade de se
autodeterminar (8). Albuquerque pontua que
(...) o modelo da autonomia como promoção não se contenta com o reconhecimento do traço relacional da autonomia, pois tem como desiderato ir além e fomentar a adoção de medidas que a façam valer na prática, como de instrumentos que permitem a tomada de decisão apoiada, bem como enfrentar os contextos opressivos e abusivos. (8, pg. 22).
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Com relação ao paciente idoso, ainda que não se chegue ao extremo da interdição
ou curatela, sua capacidade mental/decisional é constantemente posta em xeque pela
família e profissionais da saúde na tomada de decisões sobre o processo terapêutico. O
respeito à autonomia pressupõe a compreensão dos limites inerentes às condições
individuais, a oferta de informações adequadas, manifestações de sua vontade, sem
submissão à coação, influência, indução ou intimidação da pessoa idosa. Entretanto, não
raro, ao invés de serem informados em linguagem acessível, ouvidos e estimulados a
participar das decisões sobre sua saúde, pacientes idosos são alijados dos rumos da
terapêutica de uma forma culturalmente naturalizada, pois acredita-se que os familiares,
cuidadores ou profissionais da saúde sabem o que é melhor para o paciente (2). Tal conduta
vai na contramão do Relatório dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas (19) que, ao
correlacionar autonomia e capacidade jurídica e incorporar as dimensões individual,
relacional e promocional da autonomia, bem como os aspectos econômicos e sociais, alerta
para a necessidade de se estimular para que a sociedade seja mais sensível ao processo
de envelhecimento, criando ambientes propícios de apoio, de modo que a pessoa idosa
possa tomar decisões sobre si mesma e adotar seus planos de vida.
Além da necessidade de se estabelecer uma cultura de cuidados centrados no
paciente (17), é preciso que, antes que se submeta um paciente idoso à interdição e curatela,
por meio de critérios de avaliação que não medem a capacidade decisória, mas apenas
buscam estabelecer diagnósticos médicos de incapacidade ou transtorno intelectual por
meio de perícia, mecanismos mais consentâneos com os preceitos de Direitos Humanos
sejam incorporados no Brasil. Vários países mais avançados já agregaram mecanismos não
jurídicos e jurídicos de suportes para tomada de decisão em seu ordenamento. Dentre os
primeiros, podemos citar o Ombudsman Pessoal na Suécia, o Diálogo Aberto na Finlândia,
o Advocacy Independente na Escócia, o Apoio de Pares nos Estados Unidos, os Círculos de
Suporte no Reino Unido. Ainda, como mecanismos jurídicos, destacam-se a designação
permanente, as diretivas antecipadas ou os acordos de tomada de decisão apoiada (8). O
objetivo deste trabalho não é esmiuçar tais mecanismos de apoio à tomada de decisão, tema
a ser discutido em artigo próprio. O que se visa é esclarecer sobre a sua existência e alertar,
como forma de fortalecer a problematização teórica aqui realizada, que a utilização desses
mecanismos colabora para suprimir abusos, evitar a substituição desenfreada da vontade e
mitigar a vulnerabilidade do paciente idoso, mediante a promoção da sua autonomia para
participar da terapêutica, mesmo que de forma apoiada.
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A implementação de mecanismos de suporte para a tomada de decisão não é uma
tarefa fácil, pois demanda alterações legislativas significativas, recursos públicos e,
sobretudo, mudanças culturais de padrões engessados. Entretanto, é preciso que o Brasil
ajuste suas leis à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos. O paciente
idoso pode ser participante ativo de seus cuidados em saúde, mas precisa ser estimulado,
reconhecido em sua vulnerabilidade, protegido contra a ingerência de terceiros em sua vida
privada, apoiado no processo de tomada de decisões específicas. Ou seja, a substituição de
sua vontade, chancelada por um processo de interdição que não mede sua capacidade
decisional, só deve ocorrer quando esgotados todos os meios disponíveis para que possa
decidir por si próprio.
Considerações finais
Todas as pessoas possuem capacidade jurídica e potencial para se autodeterminar.
No entanto, a capacidade decisional pode ser mitigada por fatores externos, tais como meios
sociais opressivos ou relacionamentos abusivos. Também, em certas fases da vida, a
tomada de decisão pode ser dificultada por problemas de saúde, mas tal não significa a
possibilidade de substituição desenfreada da vontade, sobretudo quando se fala de grupos
vulneráveis.
Algumas pessoas têm facilidade para tomar decisões sobre questões afetivas, mas
não se sentem habilitadas para gerir seus negócios; outras decidem com clareza sobre a
educação dos filhos, mas não se sentem habilitadas para tomar decisões em saúde, e isso
faz parte da vulnerabilidade universal a que todos estamos sujeitos (20).
Certas pessoas fazem parte de grupos de vulnerabilidade acrescida, dentre elas, os
pacientes idosos que, vítimas do etiquetamento da idade, sofrem preconceitos e
discriminações em relação à sua capacidade de se autodeterminar. Existe um embate
importante quanto à necessidade de proteção, pelo Estado, de grupos de vulnerabilidade
acrescida e o desejo de tais grupos de serem protegidos (20). Muitas vezes, sob o manto da
proteção, posturas parternalistas levam a cabo ingerências indevidas na vida privada,
retirando de adultos vulneráveis a voz, a capacidade de ser reconhecido como sujeito ativo
e a própria dignidade (20).
Pessoas idosas no Brasil são alvos comuns de processo de interdição e curatela. Sob
a pecha de falta de discernimento para conduzir a própria vida, são alijados dos processos
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de decisão sobre os seus negócios, a sua saúde, onde desejam morar, e colocados em uma
posição de cidadãos de segunda categoria. Associa-se, de forma indevida, o envelhecimento
às perdas das faculdades cognitivas, como se envelhecer fosse a consequência inevitável
do se inabilitar. Assim, ao invés de serem instituídos mecanismos de apoio à tomada de
decisão pelas pessoas idosas, ou a adequada avaliação dessas quanto à capacidade
decisional, são submetidas, nos processos de interdição, a perícias médicas que, por meio
de um CID, chancelam uma incapacidade jurídica com base em critérios pouco científicos e
que não evidenciam a falta de habilidade para tomar decisões específicas.
O envelhecimento acelerado da população exige que nosso modelo de capacidade
jurídica seja revisado, de modo que os preceitos da CDPD e da CPDHI não se limitem ao
papel. A interdição e curatela são medidas extremas, que devem ser utilizadas apenas
quando esgotados outros mecanismos, jurídicos e não jurídicos, de tomada de decisão
apoiada. Só assim poderemos superar o paternalismo protetivo, reconhecer que a
capacidade decisional não é sinônimo de deficiência ou transtorno mental e construir um
novo regime de capacidade jurídica para o Brasil, fundamentado no respeito à autonomia
como promoção, conforme norteado pelos Direitos Humanos.
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Submetido em: 25/05/20 Aprovado em: 30/07/20
Como citar este artigo: Paranhos DGAM. Análise da capacidade jurídica dos pacientes idosos no Brasil a partir do referencial dos Direitos Humanos. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 156-170.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.680
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 171 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.617
Tomada de decisão compartilhada no contexto do paciente adolescente em programa de reabilitação Shared decision-making in the context of adolescent patient in rehabilitation program Toma de decisiones compartida en el contexto del paciente adolescente en programa de rehabilitación
Isabel Cristina Correia1
Kalline Carvalho Gonçalves Eler2
Aline Albuquerque3
Cíntia Maria Tanure Bacelar Antunes4
Resumo Objetivo: analisar a aplicação da tomada de decisão compartilhada no contexto do paciente adolescente, com base no referencial dos Direitos Humanos dos Pacientes (DHP). Metodologia: baseia-se em pesquisa teórica, que se fundamenta no marco teórico dos DHP, desenvolvido por Albuquerque e Eler e nos estudos sobre a tomada de decisão compartilhada, de acordo com Sullivan. A aplicação do proposto neste artigo foi exemplificada pelo relato de experiência de enfermeiros em hospital de referência em reabilitação no Distrito Federal. Resultados: os Direitos Humanos dos Pacientes como referencial normativo e teórico, bem como a tomada de decisão compartilhada aplicada ao paciente adolescente, asseguram o direito à participação no programa de reabilitação, impactando positivamente nos resultados dos cuidados. Considerações finais: o reconhecimento do adolescente enquanto protagonista do seu cuidado em saúde, além de efetivar as determinações de direitos humanos, produz resultados positivos para o tratamento, contribuindo para a adesão, o bem-estar, do paciente, e reduz efeitos adversos e ansiedades. Palavras-chave Adolescente. Reabilitação. Tomada de decisão compartilhada. Abstract Objective: to discuss, based on the Patient Human Rights principles, shared decision-making applied to adolescent patients. Methods: it is a theoretical research which application was exemplified by the experience of nurses from a rehabilitation hospital in Federal District, Brazil. Results: Patient Human Rights, as a normative and theoretical principle as well as shared decision-making applied to adolescent patients, ensure the right to participate in the
1 Mestranda, Cátedra Unesco de Bioética, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil; enfermeira, Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, Brasília, DF, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4454-4099. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Bioética, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil; professora, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Juiz de Fora, Governador Valadares, Minas Gerais, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-5016-579X. E-mail: [email protected] 3 Pós-doutora em Direitos Humanos, Universidade de Essex, Colchester, Reino Unido; professora, Programa de Pós-graduação em Bioética, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-5568-0790. E-mail: [email protected] 4 Mestre em Enfermagem, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil; enfermeira, Secretaria de Saúde do DF, Brasília, Distrito Federal, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6699-7681. E-mail: [email protected]
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rehabilitation program, with positive impacts to health care outcomes. Conclusion: the recognition of adolescents as protagonists of their own health care, in addition to complying to human rights determinations, produces positive results, contributing to patient compliance, well-being, and reducing adverse effects and anxieties. Keywords Adolescent. Rehabilitation. Shared decision-making. Resumen Objetivo: discutir la toma de decisiones compartidas en el contexto de pacientes adolescentes, en base al marco de Derechos Humanos de los Pacientes, basado en un programa de rehabilitación. Metodología: se basa en la investigación teórica, basada en el marco teórico de Derechos Humanos de los Pacientes desarrollado por Albuquerque y Eler, e en estudios sobre la toma de decisiones compartidas, según Sullivan. La aplicación de lo que se propuso en este artículo fue ejemplificada por la experiencia de enfermería en un hospital de referencia en rehabilitación en el Distrito Federal. Resultados: los derechos humanos de los pacientes como referencia normativa y teórica, así como la toma de decisiones compartidas aplicadas a pacientes adolescentes, aseguran el derecho a participar en el programa de rehabilitación, impactando positivamente los resultados de la atención. Consideraciones finales: el reconocimiento de los adolescentes como protagonistas de su atención médica, además de hacer determinaciones de derechos humanos, produce resultados positivos para el tratamiento, lo que contribuye al cumplimiento del paciente, el bienestar y reduce los efectos adversos y las ansiedades. Palabras clave Adolescente. Rehabilitación. Toma de decisiones compartida.
Introdução
O conceito de cuidado centrado no paciente tem recebido ampla atenção na área
acadêmica desde meados da década de 1950 e é um componente essencial da qualidade
do cuidado à saúde (1). Por sua vez, a tomada de decisão compartilhada (TDC) é um
processo pelo qual pacientes e médicos atuam juntos, visando à realização de escolhas em
cuidados de saúde. Segundo Sullivan (1) a TDC se fundamenta na construção de acordos
entre o paciente e o médico sobre as metas que se almejam nos cuidados, contudo, é
importante salientar que os objetivos principais são pessoais e específicos do paciente.
Tradicionalmente, a tomada de decisão na saúde era privativa do profissional de
saúde e, ao cotejá-la com a TDC, que vem sendo desenvolvida na atualidade, identifica-se
a distinção entre os papéis, tanto do paciente, quanto do profissional (2). A TDC pressupõe
um papel ativo do paciente, enquanto protagonista do cuidado, e um papel de facilitador do
profissional de saúde (1, 2), sendo assim, implica a adoção de uma postura colaborativa, na
qual paciente e profissionais de saúde atuam em conjunto para fazer escolhas na área da
saúde, compartilhando as evidências científicas disponíveis.
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Quanto à paciente criança e adolescente, segundo Hickey (3), no passado não eram
considerados legalmente capazes de tomar decisões médicas e eram vistos como incapazes
por causa de sua idade, sendo delegada aos pais ou responsáveis a autoridade para
consentir ou recusar o tratamento. A autoridade dos pais foi derivada do Direito
Constitucional em relação a questões familiares, regra de direito comum e uma presunção
geral de que os pais ou responsáveis agiriam no melhor interesse do seu filho. Porém, a
partir da metade do século XX, os tribunais reconheceram que crianças e adolescentes
menores de 18 anos que demonstram maturidade e competência poderiam ter voz na
determinação de seu curso de tratamento médico.
Embora a TDC seja o modelo preferencial sob a ótica dos direitos humanos nos
cuidados em saúde dos pacientes adultos, em relação aos adolescentes, tal modelo ainda
não é amplamente aplicável (4, 5). Tal fato pode ser atribuído à escassez de conteúdos de
direitos humanos na formação dos profissionais de saúde, bem como à lacuna na formação
do profissional de saúde como promotor dos direitos humanos dos pacientes criança e
adolescente (5).
Atualmente, o referencial dos Direitos Humanos dos Pacientes (DHP), enquanto
corrente teórica da Bioética Clínica, vem sendo utilizado como ferramenta de análise de
questões emergentes dos cuidados em saúde. O referencial dos DHP parte das seguintes
premissas: os DHP prima facie devem ser respeitados pelos profissionais de saúde; o
paciente é ator principal dos cuidados em saúde; e a linguagem dos DHP é a dos direitos e
não das obrigações dos profissionais (2). Com efeito, a inserção do referencial teórico-
normativo dos direitos humanos na esfera dos cuidados em saúde é essencial para mudança
de paradigmas na atuação dos profissionais de saúde em relação ao adolescente como
protagonista da sua saúde e como participante ativo na TDC.
Com o fito de contextualizar a aplicação da TDC nos cuidados em saúde de paciente
adolescente, optou-se por relato de experiência ocorrida em um serviço de reabilitação. Essa
escolha deu-se em razão da reabilitação envolver a mudança no estilo de vida e
readaptações na maneira de realizar as atividades de vida diária, o que implica a adesão do
paciente. A falta de adesão do paciente poderá acarretar o insucesso no programa de
reabilitação, e, por outro lado, a inclusão do paciente na tomada de decisão promove tanto
a sua adesão como uma melhor reabilitação (1).
Partindo dessa ótica, este artigo objetiva analisar a aplicação da TDC no contexto dos
cuidados em saúde do paciente adolescente, com base no referencial dos DHP,
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empregando como exemplo o emprego da TDC em um programa de reabilitação de paciente
adolescente.
Metodologia
Trata-se de pesquisa teórica, que se fundamenta no marco teórico dos DHP
desenvolvido por Albuquerque (2), pesquisadora precursora no Brasil no desenvolvimento
de aportes teóricos sobre a aplicação do referencial dos direitos humanos aos cuidados em
saúde, e por Eller (6), pesquisadora que se ocupa de estudos sobre os Direitos Humanos
Dos Pacientes crianças e adolescentes no encontro clínico. Quanto à tomada de decisão
compartilhada, optou-se pelas investigações levadas a cabo por Sullivan, na obra The
patient as agent of health and health care (1), por ser pesquisa inovadora acerca da
participação e do empoderamento dos pacientes. Com o objetivo de aprofundar a reflexão
sobre a aplicação da TDC do paciente adolescente, inicialmente, analisou-se a literatura
escolhida pelas autoras; em seguida, aplicou-se os aportes extraídos na literatura citada ao
contexto específico do paciente adolescente; por fim, fez-se uso das reflexões prévias para
se aprofundar o exame do objeto do artigo, por meio de relato de experiência de TDC de
TDC com paciente em reabilitação na unidade de internação pediátrica da Rede Sarah,
hospital de referência em reabilitação no Distrito Federal.
Cabe registrar que esta pesquisa não envolve revisão da literatura ou pesquisa
bibliográfica, porquanto se trata de pesquisa teórica, que pressupõe a aplicação de
determinado referencial teórico a um objeto de estudo (7).
O adolescente no processo de tomada de decisão sobre seus cuidados em saúde
A adolescência pode ser definida de diferentes formas. Segundo Eisenstein (8), trata-
se de um período do desenvolvimento físico, mental, emocional sexual e social e pelos
esforços que o indivíduo tem em alcançar objetivos relacionados à cultura da sociedade em
que ele vive. Cronologicamente, entende-se adolescência como o período de
desenvolvimento situado entre a infância e a idade adulta, delimitado pela Organização
Mundial da Saúde como a faixa dos 10 aos 19 anos de idade (9). No Brasil, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 1990, considera adolescência como a faixa
etária de 12 a 18 anos de idade (artigo 2º) e, em casos excepcionais e quando dispostos na
lei, o estatuto e aplicável até os 21 anos de idade (artigos 121 e 142) (10).
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A adolescência abrange, além da puberdade, os componentes psicológicos e sociais
característicos dessa fase da vida. Está sujeita, portanto, às influências sociais e culturais.
Quanto ao desenvolvimento, sabe-se que a adolescência é um período difícil, onde o
indivíduo se prepara para o exercício pleno de sua autonomia (10).
Segundo Garanito e Zaher-Rutherford (11), a capacidade dos adolescentes, enquanto
grupo, para tomar uma decisão é intermediária entre a capacidade de crianças e a
capacidade dos adultos, e, partindo desse princípio, o envolvimento no processo de tomada
de decisão no que concerne à saúde também deveria ocorrer em nível semelhante. Nessas
circunstâncias, os prestadores de cuidados de saúde são geralmente os responsáveis por
avaliar a capacidade do paciente adolescente e em que medida e situação ele pode vir a
tomar uma decisão sobre sua saúde (11).
No que diz respeito à tomada de decisão, é razoável defini-la como o processo de
escolha entre duas ou mais alternativas concorrentes, exigindo uma análise de custo e
benefício para cada opção, bem como uma estimativa de suas consequências no curto,
médio e longo prazo. Uma vez que os resultados das decisões tomadas são incertos, pode-
se dizer que a tomada de decisão envolve a análise de risco e que esse processo está
intimamente relacionado com a capacidade de controlar impulsos (11). Portanto, pode-se
considerar que a tomada de decisão é indispensável para a adaptação social do indivíduo,
e é particularmente difícil quando há maior necessidade de pesar recompensas e/ou perdas
imediatas e futuras (11).
De acordo com Lorda (12), os seguintes requisitos são fundamentais para tomar
decisões de forma autônoma:
a) falta de coerção externa que restringe significativamente a liberdade de decidir; b) informações verdadeiras sobre os elementos envolvidos no processo decisório; c) reconhecimento ético e jurídico, em nível suficiente de habilidades psicológicas, que permitem realizar o processo mental de deliberação; d) um grau de experiência de vida adequado que nutre sabedoria e prudência no processo de deliberação; e) um meio ambiente (familiar, social, econômico, político, cultural, etc.) que permite desenvolver as possibilidades de um sujeito deliberativo de forma ativa e positiva (12).
Diante das habilidades que são necessárias para demonstrar a capacidade decisória,
observa-se que essa capacidade não é determinada pela idade cronológica e, por isso,
foram propostos modelos de capacidade para tomar decisões em saúde. Dentre esses
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modelos, destacam-se a competência Gillick, do Direito britânico, e a doutrina do menor
maduro (13).
No modelo da competência Gillick, as habilidades decisionais dos menores de 16
anos são consideradas sem pressuposições abstratas baseadas na idade e, como Herring
(13) esclarece, assegura o direito aos menores de 16 anos de consentirem com tratamentos
médicos se apresentarem habilidades decisionais para tanto. Para decidir sobre a
capacidade da criança, junto com a análise da habilidade decisional, os profissionais de
saúde envolvidos no cuidado irão analisar se a decisão também atende aos seus melhores
interesses. Para ser considerado capaz, o adolescente deve compreender problemas
médicos relevantes; ter uma visão própria e não apenas reproduzir os pontos de vista de
outros; compreender as questões morais e familiares envolvidas, bem como as questões
médicas; apresentar uma capacidade estável, ou seja, sua aptidão para compreender os
diversos fatores concernentes à tomada decisão não pode ser flutuante (13). Nenhum
tribunal pode declarar a incapacidade por considerar a decisão do adolescente incorreta. Em
relação aos adolescentes de 16 e 17 anos, não se investiga a competência Gillick, pois
presumem-se legalmente capazes para consentir sobre sua própria saúde, salvo se o
contrário for demonstrado (13).
A doutrina do menor maduro, denominada pela jurisprudência americana, confere ao
menor a possibilidade de ser considerado capaz de tomar suas próprias decisões em saúde
uma vez preenchidos requisitos que variam conforme o estado (14, 15), posto não ser
expressamente reconhecida pela legislação federal e pela Suprema Corte dos Estados
Unidos. Assim, a análise das jurisdições estaduais demonstra que o modelo do menor
maduro pode ser aplicado em três hipóteses: a) a partir de determinada idade, que pode ser
14, 15, 16, 18 anos ou ter completado o Ensino Médio, independente da avaliação da
maturidade; b) o menor de determinada idade, 16 anos, ou que seja maduro e capaz de
consentir pode fazê-lo se seus responsáveis não estiverem disponíveis ou não desejarem
consentir; c) todos os menores que forem maduros e capazes de consentir, a despeito da
idade, podem expressar sua vontade que será vinculante (14).
Nos estados que aceitam a exceção do menor maduro, há ainda outra legislação
específica que isenta os pais da responsabilidade financeira dos cuidados médicos
prestados sem o seu consentimento e apresentam restrições quanto à recusa de tratamento,
ponderando esse tipo de decisão com outros interesses do estado, tais como: a) preservar
a vida; b) proteger terceiros; c) prevenir o suicídio; e d) manter a integridade ética da
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profissão médica (13). Em geral, nos casos em que a exceção ao consentimento dos pais
foi aplicada, além de ter sido avaliada a capacidade sanitária do menor, o tratamento foi
realizado em seu benefício e não de terceiros, ou seja, o objetivo do tratamento foi melhorar
o estado de saúde do menor e não satisfazer aos interesses dos pais, como por exemplo,
nas situações que, devido à crença religiosa, os pais recusavam a transfusão de sangue.
Além disso, os procedimentos não colocavam a vida da criança em risco (14, 15).
Observa-se, portanto, que maioria dos estados americanos não incorpora o direito do
menor de recusar tratamento médico ou tratamento vital, embora existam exceções como o
caso de Benny Agrelo, um adolescente de 15 anos que, depois de ter sido submetido a dois
transplantes de fígado, recusou-se a tomar o medicamento experimental antirrejeição. O
medicamento afetava as atividades normais de Benny devido aos efeitos colaterais, como
dores de cabeça e irritabilidade, mas sem o fármaco, seu sistema rejeitaria o novo fígado e
ele morreria. Apesar do estado da Flórida não admitir o direito de recusa do menor, Benny
foi considerado maduro para decidir e conseguiu retornar para casa sem a medicação,
falecendo poucos meses depois (16).
De acordo com Partridge (17), no contexto estadunidense, o movimento para apoiar
a tomada de decisão independente pelos adolescentes – fornecendo informações a eles e
assegurando seu consentimento à parte de seus pais – é incentivado por aqueles
entendimentos legais que sustentam que os menores não-emancipados devem geralmente
ser considerados como decisão efetiva. A função dos pais nesse caso entra como um
paternalismo colaborativo, a fim de proteger os adolescentes de suas próprias escolhas. A
família sempre está presente nessas decisões, ainda que a opinião do adolescente seja
preservada e respeitada.
Para além dos modelos de capacidade para tomar decisões em saúde anteriormente
mencionados, destaca-se o modelo baseado nos Direitos Humanos, que se assenta no
reconhecimento da criança – a pessoa menor de 18 anos de idade – enquanto sujeito de
direitos. Esse modelo coloca o adolescente como protagonista dos seus cuidados em saúde,
sendo dotado de direitos específicos compatíveis com o reconhecimento da sua
vulnerabilidade acrescida e o dever ético-jurídico de protegê-lo (18). Diante disso, sublinha-
se o referencial dos DHP, que também se aplica aos adolescentes, pois, sendo reconhecidos
como sujeitos de direito, titularizam direitos específicos no âmbito dos cuidados em saúde.
Aplicação do referencial dos Direitos Humanos do Paciente ao adolescente
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O modelo biomédico foi historicamente construído em um patamar centrado na cultura
paternalista de detenção do poder e da informação, na qual a ação era tomada em benefício
do paciente, alheia à sua vontade ou desejos. O profissional de saúde decidia, isoladamente,
sob o fundamento de ter a melhor percepção do bem para o enfermo. Atualmente, esse
modelo vem sendo reconstruído, a partir do reconhecimento de que o paciente é detentor
de direitos, em especial, o direito ao respeito à autonomia sobre o seu processo de saúde-
doença, podendo assim, participar ativamente de suas escolhas e do seu tratamento (2).
Segundo Eler e Albuquerque (19), o referencial dos DHP é considerado adequado
para a proteção dos pacientes, pois, além de impor ao Estado as responsabilidades de
respeitar, proteger e realizar os direitos dos pacientes, parte de uma visão ampliada de
serviços de saúde, não se restringindo ao acesso aos bens ou aos serviços de saúde. A
ênfase é colocada no cuidado que significa zelar pela autonomia, segurança, privacidade,
entre outros bens éticos essenciais para se alcançar melhores resultados em saúde e o
incremento do bem-estar do paciente (19). Esclarece-se que esse referencial se dirige,
precipuamente, ao Estado, enquanto ator responsável por cumprir os comandos de Direitos
Humanos quando ratifica um tratado ou convenção. Assim, o Estado obriga-se perante seus
jurisdicionados e a comunidade internacional e tem o dever de introduzir, no seu
ordenamento jurídico, as normas de Direitos Humanos por ele ratificadas. Especificamente,
no âmbito da saúde, compete ao Estado zelar pelo cumprimento dessas normas na prática
cotidiana dos profissionais (19).
Enquanto ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, os DHP referem-se à
aplicação dos Direitos Humanos a todos os indivíduos submetidos a cuidados em saúde e
seu arcabouço teórico é conformado pelos princípios da dignidade humana, da autonomia
relacional, do cuidado centrado no paciente e da responsabilidade (2, 18).
Considerando que este trabalho ressalta o protagonismo do paciente adolescente em
seus cuidados, afigura-se de suma importância a adoção do modelo do cuidado centrado,
pois, o paciente é concebido como o agente fundamental do processo terapêutico dotado de
liberdade para deliberar sobre as opções de tratamento, conforme suas condições físicas e
psicológicas, seu contexto e seus desejos. O cuidado centrado no paciente vem sendo
desenvolvido por escolas diferentes, desde a década de 1950, nos Estados Unidos e,
atualmente, tal modelo, inicialmente restrito à relação médico e paciente, expandiu-se para
um enfoque multidisciplinar, incrementando a importância do papel de outros profissionais
de saúde (20).
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A centralidade no paciente estabelece que ele é agente imprescindível dos cuidados
em saúde e o maior beneficiário desses serviços (21). Por isso, cabe ao profissional de
saúde compreender o contexto e as especificidades de cada paciente, de modo a identificar
suas preferências e atender suas necessidades, construindo, assim, uma relação de
confiança. Busca-se, com o cuidado centrado no paciente, suplantar o paternalismo
existente na relação entre o profissional de saúde e o paciente, assegurando que o
tratamento em saúde atenda às necessidades sociais, emocionais e físicas do paciente,
levando em consideração seus valores e preferências (18, 20).
Embora o paciente seja o ator central dos seus cuidados, sua autonomia deve ser
concebida a partir de uma perspectiva relacional. Isso significa que a identidade do paciente
e sua competência decisional são dinâmicas, na medida em que se entrelaçam e são
efetivadas conforme seu contexto relacional (18). De acordo com Albuquerque, a família é
um elemento crucial no cuidado centrado no paciente, pois, em muitos casos, faz-se
necessário envolvê-la no processo terapêutico. Importante ressaltar que cabe ao paciente
delimitar quem é sua família e como se dará a participação dos familiares em seu tratamento
(2, 18).
A TDC está ganhando importância internacionalmente e as razões para essas
mudanças incluem o conhecimento crescente dos pacientes sobre doenças e tratamentos
por meio da mídia, um número crescente de opções de tratamento disponíveis e as
preferências dos pacientes e médicos por um envolvimento mais ativo dos pacientes. A TDC
envolve pelo menos um paciente e um profissional de saúde. Ambas as partes tomam
medidas para participar ativamente do processo de tomada de decisão, compartilhar
informações e, juntos, chegar a uma decisão de tratamento com responsabilidade
compartilhada (22)
Esse entendimento aplica-se aos adolescentes que foram reconhecidos enquanto
sujeito de direitos, no cenário internacional, a partir da Convenção sobre os Direitos da
Criança (CDC), de 1989 (19). A adoção da CDC pela Assembleia da Organização das
Nações Unidas (ONU) foi precedida de longos debates que buscaram conciliar as diferentes
visões dos Estados sobre a infância e, ao mesmo tempo, estabelecer um rol amplo de
direitos que traduzisse uma perspectiva centrada na criança. Assim, a CDC previu, pela
primeira vez no Direito Internacional dos Direitos Humanos, o menor de 18 anos enquanto
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sujeito de direitos, modificando a percepção segundo a qual eles seriam objeto de proteção
e propriedade dos seus genitores (19)5.
O Comitê sobre os Direitos da Criança desencoraja os Estados a introduzirem, por lei
ou na prática, limites de idade que restrinjam o direito do adolescente de ser ouvido em todos
os assuntos que a afetam, uma vez que a idade em si não é fator determinante para indicar
se a opinião do adolescente será tomada em consideração, pois, como acentua o Comitê,
os níveis de compreensão dos adolescentes não estão ligados de maneira uniforme a sua
idade biológica. Os estudos reiteram que o adolescente não precisa ter conhecimento
exaustivo do problema que o afeta, mas sim uma compreensão sobre o assunto suficiente
para formar sua opinião própria (19).
O direito à participação assegura que a inclusão do adolescente na tomada de decisão
deve ser: i) amigável, de modo que ele se sinta seguro e confortável para externar suas
opiniões; ii) seguro, ao ponto de reduzir ao mínimo o risco dos adolescentes sofrerem
violência, exploração ou outras consequências negativas; iii) responsável, no sentido de que
os adolescentes têm o direito de receber um retorno acerca da forma com a qual sua
participação influenciou no resultado; iv) transparente e informativo; v) voluntário, não
podendo o adolescente ser obrigado a expressar sua opinião; vi) relevante, ou seja, as
questões a respeito das quais os adolescentes expressam suas opiniões devem ter
pertinência autêntica para suas vidas (17, 19).
Estudos apontam para a dificuldade que alguns adolescentes encontram para
expressar suas preferências e vontades, tornando-se necessário um pouco de conhecimento
de psicologia infantil para que a comunicação seja efetiva. Por meio de uma linguagem
adequada, deve-se fornecer uma descrição da sua condição de saúde e das opções
disponíveis de cuidado, bem como dos benefícios e encargos esperados de determinado
tratamento (6, 19, 24). A compreensão das informações pelo adolescente faz parte do
conteúdo do direito à informação, de modo que o profissional de saúde precisa empregar
5 A CDC é considerada o primeiro documento a efetivamente reconhecer a criança como sujeito do Direito Internacional, pois a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, embora tenha incorporado a linguagem de direitos, não foi constituída como um instrumento jurídico vinculante, sendo apenas uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, de modo que é possível inferir apenas a força moral dessa Declaração. Dessa forma, na Declaração de 1959, a criança apenas começa a ser vista como sujeito de direitos, mas isso, somente será concretizado, de fato, na CDC. Além disso, como explica Van Bueren (23), o aumento dos esforços em direção à elaboração da CDC deu-se, entre outras razões, justamente porque os Estados reconheceram que tanto a Declaração de 1959 quanto a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 não eram instrumentos jurídicos suficientes para abarcar as peculiaridades em torno dos direitos da criança, sendo o mesmo raciocínio aplicável ao Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, que apenas reconheceu os direitos à proteção, ao registro, ao nome e a nacionalidade da criança. Assim, sedimentou-se o entendimento de que seria necessário providenciar um documento de direitos que fosse mais apropriado às demandas especiais das crianças e facilmente acessível por aqueles que atuavam no campo dos direitos da criança. Em suma, era necessário introduzir um documento jurídico vinculante centrado na criança enquanto sujeito de direitos.
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esforços para que o adolescente entenda claramente os riscos materiais concernentes a
determinado tratamento. A revelação das informações também promove a capacidade do
adolescente para tomar decisões sobre cuidados em saúde/ aumenta sua confiança nos
profissionais envolvidos em seus cuidados/ e incrementa a qualidade do cuidado (19, 24).
A tomada de decisão acerca dos cuidados em saúde corresponde ao nível mais
elevado de participação e denota o respeito das capacidades evolutivas dos adolescentes,
previsto no art. 5º da CDC. A expressão parasse refere aos processos de amadurecimento
e de aprendizado por meio dos quais crianças e adolescentes adquirem, progressivamente,
conhecimento, competências e compreensão, em particular, a compreensão dos seus
direitos e como eles podem ser realizados da melhor forma (25).
O direito do adolescente de exercer níveis cada vez mais crescentes de
responsabilidades não anula as obrigações que incumbem aos pais e ao Estado,
notadamente, a obrigação de protegê-lo. O abandono gradual da proteção da família,
somado à relativa inexperiência e falta de poder dos adolescentes pode ocasionar violações
aos seus direitos. Por essa razão, o Comitê dispõe que a busca pelo equilíbrio entre o
respeito pelo desenvolvimento das capacidades evolutivas dos adolescentes e os níveis
adequados de proteção deve considerar uma série de fatores que influenciam a tomada de
decisão, por exemplo, o nível de risco envolvido; a possibilidade de exploração; a
compreensão do desenvolvimento do adolescente; a consideração das suas experiências
individuais; e o reconhecimento de que as habilidades decisionais diferem conforme o tipo
de decisão a ser tomada (19, 25, 26).
Relato de experiência na TDC com adolescentes no programa de reabilitação
Segundo Martini (27), podemos definir a reabilitação como um trabalho com aspectos
educacionais, sociais e terapêuticos em que uma pessoa que sofre algum tipo de deficiência
procura restabelecer ou criar recursos para retomar as atividades de sua vida da melhor
forma possível. Consistirá no trabalho lento e contínuo que leva, passo a passo, ao melhor
discernimento das próprias limitações e possibilidades.
Sistemas de saúde, com concepção holística e abrangente, estabelecem conceitos
medulares6 do cuidado centrado no paciente e na família em sua visão de trabalho. A Rede
Sarah de Hospitais de Reabilitação implementa uma concepção moderna de reabilitação,
trazendo o paciente como ponto central do cuidado em seus princípios (28). Trata-se de uma
6 Utilizados em reabilitação, têm conotação de essencial, ou seja, são conceitos essenciais.
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instituição que se iniciou em Brasília, na década de 1960, com método de neurorreabilitação,
numa abordagem que incorpora a família e o contexto de cada pessoa no processo de
neurodesenvolvimento. A terapia de reabilitação não está restrita apenas ao ambiente
hospitalar, é necessário ter como objetivo a transitoriedade de acontecimentos durante o
processo de tratamento, onde cada momento do paciente, ao longo do dia, deve ser
organizado para estimular seu desenvolvimento.
Tradicionalmente, o enfoque dos programas de reabilitação costumava voltar-se para
a avaliação das perdas funcionais decorrentes de acidente ou doença (29). Já o programa
de reabilitação segundo o método Sarah atua na potencialização das funções preservadas,
ou seja, é determinado pelas capacidades que permaneceram, permitindo o alcance de um
objetivo funcional, independentemente da maneira como o indivíduo o realize ou execute
(28). Portanto, dá-se a importância ao programa individualizado e personalizado, onde o
paciente é o centro do cuidado. A atuação da equipe de reabilitação concentra-se
predominantemente no que aquele indivíduo consegue realizar e não naquilo que deixou de
fazer. De acordo com Braga e Campos da Paz (30):
MÉTODO SARAH: integra equipe multidisciplinar e família para que, juntos, encontrem caminhos para facilitar a aprendizagem e os processos do neurodesenvolvimento da criança e do adolescente, tomando como base, motivações, capacidades e interesses individuais dentro de seu contexto familiar e sociocultural. (30)
Neuropsicólogos, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais,
professores, nutricionistas, fonoaudiólogos, demais profissionais buscam constantemente
aprimorar o cuidado em saúde para tornar possível se colocar diante da fragilidade do outro
sem impor uma relação de poder para que a condição de sujeito possa desenrolar-se ao
longo do processo de reabilitação.
Pais, amigos, familiares e pessoas que formam a rede de apoio do paciente
adolescente são componentes importantes que poderão auxiliar a equipe de profissionais
de saúde na integração do paciente na comunidade no momento da alta hospitalar. Trata-
se, portanto, da subversão do conceito tradicional de reabilitação, em uma vertente de
vanguarda, a reabilitação ecológica (28). Nessa ótica, insere-se a interação do adolescente
com a família, do jovem com seu grupo, do idoso com suas áreas de interesse, entre outras.
No programa de reabilitação em avaliação, o adolescente possui metas a alcançar e
a tomada de decisão compartilhada é algo essencial na relação entre o paciente e a equipe.
A mudança no estilo de vida e readaptações na maneira de realizar as atividades de vida
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 183 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.617
diária implicam necessariamente na adesão do paciente em mudar de conduta, pois, caso
não haja adesão, o programa de reabilitação não alcançará resultados satisfatórios, haja
vista que se trata de uma abordagem personalizada, no qual o adolescente é inserido no
processo e na discussão de saúde-doença que o compromete, dentro do modelo centrado
no paciente, por meio da tomada de decisão compartilhada. O programa de reabilitação ao
adolescente é voltado para o autocuidado e para o esclarecimento da patologia, fornecendo
informações adequadas e compatíveis ao seu entendimento. Nessa fase, visa-se preservar
o direito à privacidade, posto que se encontra em uma etapa de formação de sua
personalidade e independência (características da fase da adolescência), concomitante a
mudanças físicas e de imagem, que corroboram para os processos de construção da
identidade e da cidadania, os quais costumam ser determinantes na experiência das
pessoas e para a sua saúde (31).
Adolescentes com deficiência física no programa de reabilitação da Rede Sarah
passam por um processo minucioso de avaliação com uma equipe interdisciplinar, onde é
realizada a anamnese detalhada e levantamento dos diagnósticos e metas a serem
traçadas, com delimitação do tempo para cada uma delas. Demandas de relevância físicas,
motoras, cognitivas e sociais são colocadas como metas, com enfoque no autocuidado. Para
que ocorra a TDC, é essencial que todas as informações do processo sejam disponibilizadas
ao paciente e à família ou responsável legal cabe o papel de apoiador e mediador do
processo de reabilitação. A educação e o lazer, por exemplo, são temas pouco abordados
pela equipe, mas estão constantemente nas prioridades do adolescente, o que denota a
importância de abranger os valores do paciente na TDC.
A satisfação e a adesão do paciente às orientações – quando é ele um participante
ativo nas suas decisões – são resultados adquiridos nessa prática diária.
Considerações finais
Este estudo demonstrou que, no âmbito do modelo do cuidado de saúde alicerçado
na tomada de decisão compartilhada (TDC), o adolescente, embora vulnerável em virtude
da sua maturidade em desenvolvimento, também é detentor de direitos, que lhe asseguram
um papel central na esfera dos cuidados em saúde. Igualmente, sob o enfoque dos Direitos
Humanos do Paciente (DHP), o adolescente é reconhecido como protagonista dos seus
cuidados, dotado de direitos específicos, compatíveis com o reconhecimento da sua
vulnerabilidade acrescida e o dever ético-jurídico de protegê-lo. O envolvimento do
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 184 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.617
adolescente no seu próprio cuidado importa no reconhecimento do seu direito de participar
e tomar decisões em relação aos seus próprios cuidados. Nesse contexto, a família não é
excluída do processo de tomada de decisão. Por essa razão, as decisões sobre cuidados
em saúde não são simplesmente decisões individuais; elas afetam os outros e são eventos
interpessoais ou familiares. Neste trabalho, sustenta-se que é possível obter um processo
de reabilitação compartilhado e centrado no paciente, promovendo a autonomia do
adolescente, proporcionando seu engajamento nos cuidados e a satisfação com o
tratamento proposto, por meio do uso da TDC. Nos cuidados de reabilitação, é
imprescindível dar voz ao paciente. O reconhecimento do adolescente enquanto
protagonista do seu cuidado em saúde, além de ser compatível com as determinações de
Direitos Humanos, produz resultados positivos para o tratamento, satisfação e bem-estar,
podendo reduzir efeitos adversos e ansiedades.
Referências
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Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 187 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.617
Colaboradores
Correia IC contribuiu com a concepção e desenho do artigo, análise e interpretação
dos dados, redação e aprovação da versão final. Eler KCG contribuiu com a redação, revisão
crítica e aprovação da versão final do artigo. Albuquerque A contribuiu com a concepção,
desenho e revisão crítica do artigo. Antunes CMTB contribuiu com a revisão crítica do artigo.
Submetido em: 10/12/19 Aprovado em: 07/11/20
Como citar este artigo: Correia IC, Eler KCG, Albuquerque A, Antunes CMTB. Tomada de decisão compartilhada no contexto do paciente adolescente em programa de reabilitação. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 171-187.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.617
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 188 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.741
Comunicação breve Busca ativa ou testagem em massa? Brief communication Active search or mass testing? Communicación breve ¿Búsqueda activa o pruebas masivas?
Marilusa Cunha da Silveira1
Eduardo de Azeredo Costa2
Há algumas semanas o noticiário brasileiro traduz a iniciativa de busca ativa de casos
da COVID-19 como testagem de massa, sem explicá-la, tornando a atividade de testagem
um mero indicador para comparações de ações entre países. Como o Brasil não pratica a
busca ativa, foi criada a corrida pela testagem, quando nem mesmo conseguimos agregar
dados de resultados dos testes de rotina dos serviços de saúde para fins diagnósticos.
No afã dos primeiros preparativos para a epidemia no Brasil, embora fosse natural
que a expansão dos leitos de UTI, um dever de Estado, fosse uma prioridade a ser realizada
pelo conjunto dos serviços, ficou claro que, sem uma orientação epidemiológica, não se
conseguiria equilibrar as grandes desigualdades no acesso aos hospitais, em um país com
enorme concentração de renda e que não dispõe de planejamento voltado para a equidade
na saúde. Falhas na comunicação e primeiras decisões, até certo ponto esperadas numa
situação inteiramente nova, levaram a que as pessoas evitassem a busca para o
atendimento precoce. Em consequência, começamos a ter óbitos não assistidos em casa e
uma pletora de casos já graves nos serviços de saúde.
Ainda que não se deva minimizar a ação desorganizadora e danosa do Governo
Federal e do Presidente da República até agora, já clara e universalmente reconhecida, há
problemas que, na ausência de uma estrutura administrativa ágil, precisam ser ventilados
para todos os prestadores de serviços de saúde, dispersos e fragmentados devido ao tipo
de organização do SUS, poderem realizar atividades com foco e eficiência. Faltou clareza –
1 Mestre em Desenvolvimento em Políticas Públicas, Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil; analista de gestão em saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7014-6385.E-mail: [email protected] 2 PhD em Epidemiologia, London School of Hygiene & Tropical Medicine, Londres, Reino Unido; assessor de cooperação internacional, Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-3111-9103. E-mail: [email protected]
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 189 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.741
ou apoio epidemiológico competente – em todo o processo de enfrentamento à COVID-19.
Embora a disseminação da informação seja ineficiente, há conhecimento disciplinar histórico
sobre as ações de combate às doenças agudas de alta contagiosidade que permite agir com
eficácia (1).
A testagem de massa soa como mais uma quimera, que precisa ser desconstruída
para o uso correto da testagem. É sabido que há disponibilidade de testes sem uso em
alguns locais, pela simples falta de plano ou de pessoal treinado para seu uso. Há alguns
municípios brasileiros que estão trabalhando corretamente nesse sentido, mas o resultado
pode ser falho em termos nacionais se todos não se capacitarem.
Os países asiáticos tiveram enorme sucesso no controle rápido da epidemia. Além de
dirigentes qualificados e respeitados pelos seus povos, usaram a epidemiologia clássica
para poderem ser bem-sucedidos. De um lado, o foco no isolamento geral, realizado pela
conscientização da população e desmobilização de serviços não essenciais, e de outro, a
busca ativa e o rastreamento de casos. No caso da China, essas atividades de vigilância
epidemiológica se iniciaram antes que os testes diagnósticos estivessem disponíveis, o que
permitiram que os testes ficassem mais eficientes
Em que consistem o rastreamento e a busca ativa?
O rastreamento parte de casos conhecidos que procuram atenção médico-hospitalar.
A equipe de visitação sanitária (agentes de saúde e profissionais de enfermagem) é
comunicada imediatamente nos pontos de atendimento e, se o paciente estiver positivado,
vão à residência e ao trabalho e testa todos os membros da família e seus amigos mais
próximos para a presença do vírus na garganta (infectantes) e testes sorológicos. Todos os
que tiverem febre e outros sintomas compatíveis com o diagnóstico inicial de síndrome gripal
serão postos em isolamento se tiverem condições favoráveis em casa, seguindo
recomendações e, se possível, em contato diário para acompanhar a evolução da doença.
Se necessário, as pessoas são encaminhadas para um local de isolamento comunitário
qualificado. Note-se que o uso de telefonia celular e internet viabiliza que essa ação seja
rápida.
A busca ativa foca nos grupos profissionais que não podem parar, como a área da
saúde, frigoríficos, indústria de alimentos, transportes coletivos, motoristas de carga, entre
outros; faz-se swab indiscriminado nos trabalhadores para a coleta de material não só
faríngeo, que é repetido periodicamente, mas também exames de imagem e testes
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 190 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.741
sorológicos. Os casos positivos são isolados e postos em observação com o mesmo trabalho
de rastreamento. A busca ativa na entrada e saída de cidades pequenas devem ter
consequências sanitárias: além de desestimular a movimentação desnecessária, devem
servir para que o paciente positivado possa ser localizado e as autoridades sanitárias
notificadas.
O complemento ao uso de testes para diagnóstico são os estudos sorológicos
sequenciais em painéis da população por amostragem, como realizado pela Universidade
Federal de Pelotas (2). Com esses testes, pode-se agregar segurança ao acompanhamento
nacional da epidemia.
Essas ações estão sendo feitas com sucesso, simultaneamente ao isolamento social
indiscriminado, em países da América Latina e devem continuar depois que a epidemia for
controlada, para não sermos surpreendidos por uma segunda onda.
Para essas ações, não é necessário importar 42 milhões de testes: 10% a 20% dessa
quantidade já seriam muito bons, se usados adequadamente. Com isso, é possível
racionalmente flexibilizar algumas atividades de isolamento social e ainda assim ter a
supressão da epidemia. Há modelos que demonstram a eficácia, especialmente quando o
objetivo é reduzir a taxa de reprodução de casos de menos de 1,5 para abaixo de 1 (3, 4, 5).
A estratégia de testagem em massa pode ser importante ferramenta de controle e
avaliação da situação epidemiológica e sanitária decorrente da COVID-19, especialmente
para reforçar a necessidade de definição das medidas a serem adotadas, seja o
afrouxamento ou um maior rigor do isolamento social. A testagem, segundo epidemiologistas
(3), aproxima o cenário de disseminação do vírus à realidade das pessoas. Se elas têm
certeza de que estão contaminadas, o isolamento deixa de ser opção adotada por uma
questão de consciência social e se torna uma exigência de proteção sanitária.
Por fim, as testagens condizem com a boa técnica de segurança não só dos
profissionais de saúde, mas também da população em geral. Vale considerar que a questão
precisa ser examinada diante dos recursos disponibilizados pelo Estado para o combate ao
COVID-19.
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Colaboradores
Todos os autores contribuíram com a concepção, elaboração, redação, revisão e
aprovação do artigo.
Submetido em: 23/10/20 Aprovado em: 09/12/20
Como citar este artigo: Silveira MC, Costa EA. Busca ativa ou testagem em massa? Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 188-191.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.741
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Comunicação breve Politização da vacina é irresponsabilidade sanitária Brief communication Vaccine politicization is sanitary irresponsibility Communicación breve La politización de las vacunas es irresponsabilidad sanitaria
Jairo Bisol1
“Quem pensa pouco, erra muito” Leonardo da Vinci
Estamos a um passo da maior campanha de vacinação em massa da história. Em
tempo recorde, múltiplas candidatas vacinais contra a Covid-19 foram desenvolvidas e se
encontram em fase final de testes, prestes a obterem a liberação para o uso em vários países
(1). Confirmados os estudos, é de se esperar que o Brasil insira algumas dessas vacinas em
seu Programa Nacional de Imunização (PNI), visando a sua aquisição, eventual produção,
distribuição e dispensação em todo território nacional. Uma campanha de imunização desse
porte nos impõe imensos desafios de planejamento e de logística.
É moeda corrente entre os especialistas que a imunização da população brasileira
implicará no uso de mais de uma dentre essas vacinas. Algumas delas demandam estrutura
de refrigeração em temperaturas muito baixas para transporte, armazenamento e
dispensação, dificultando e encarecendo o manejo do imunizante. Mais ainda: necessitam
da aplicação de duas doses, replicando a campanha de vacinação. Estamos falando de
números gigantescos.
Num país continental e com mais de 210 milhões de habitantes, ainda que se opte
por planos de baixo índice de imunização, e a depender da necessidade de dose dupla,
estaremos lidando com a aquisição, a eventual produção e o manejo de algo em torno de
uma ou duas centenas de milhões de doses de vacina com seus respectivos frascos,
tampas, seringas, agulhas, etc., além de um número gigantesco de caixas e embalagens
térmicas. Tudo isso sem falar na malha de transporte e armazenamento em câmaras frias
1 Doutor em Direito, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil; Promotor de Justiça, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, DF, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-9246-6147. E-mail: [email protected]
Cad. Ibero-amer. Dir. Sanit., Brasília, 9(4): out./dez., 2020 193 https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.751
para enfrentar a distribuição no território nacional, bem como os recursos humanos
envolvidos.
Não devemos esquecer que, em face do caráter pandêmico da Covid-19,
praticamente todos os países do mundo estão lidando com desafios da mesma ordem, de
modo que os riscos de escassez desses itens, bem como de novos desequilíbrios no
mercado com aumentos vertiginosos de preço, são consideráveis. Ademais, para
racionalizar ao máximo o uso dos recursos disponíveis é preciso levar em consideração os
estudos e pesquisas no campo das perdas vacinais (2). A Organização Mundial da Saúde
(OMS) alerta que cerca da metade das vacinas chegam degradadas ou sem eficácia em
seus locais de dispensação nas campanhas de imunização pelo mundo afora (3).
Por todas essas razões, é de suma importância dispor de um planejamento
minucioso, capaz de responder de forma consistente aos imensos desafios da pandemia em
nosso país, dotado de uma estrutura logística compatível para se garantir o êxito da
vacinação.
A ciência avança no conhecimento sobre a letalidade e os riscos da Covid-19. A
possibilidade de reinfecção (4), inclusive por cepas variantes do vírus, é um dado alarmante
que impõe cautela nas análises prospectivas de cenários. Entre outras coisas, esse
fenômeno põe em xeque a aplicação de conceitos como o de imunidade de rebanho para a
Covid-19, apontando eventual necessidade de se vacinar a imensa legião dos que já se
curaram da doença.
Além de quase um milhão e meio de pessoas que foram a óbito vitimadas pela
pandemia ao redor do planeta, há um número gigantesco de outras vítimas não
contabilizadas. São os que foram atingidos pelos gravíssimos efeitos colaterais do vírus,
padecentes de sequelas nos sistemas circulatório, respiratório ou nervoso, resultantes do
quadro mais grave da doença. Tais sequelas, muitas vezes irreversíveis, atingem
especialmente os idosos e os portadores de comorbidades como diabetes, doenças
cardíacas e imunodepressivas, e vão impactar cada vez mais os sistemas de saúde. Mas o
vírus não poupa também jovens saudáveis que, embora em número menor, padecem
desses quadros mais graves, indo inclusive a óbito. Por último, não devemos desconsiderar
o imenso exército de vítimas indiretas da Covid-19, pacientes que demandam ações e
serviços de saúde em função de outras patologias, mas que estão submetidos a um quadro
acentuado de desatenção, especialmente nas redes de saúde pública, em face da
concentração dos esforços e dos recursos disponíveis no combate à pandemia.
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Não bastasse isso, um estudo clínico randomizado, desenvolvido nos últimos seis
meses em 405 hospitais distribuídos em mais de 30 países, publicado recentemente em
preprint na MedRxiv (5), é conclusivo no sentido de que os antivirais utilizados no tratamento
da Covid-19 – muitos deles submetidos a uma politização que perdurou por meses e acabou
se mostrando uma disputa de forte matiz ideológico e eleitoreiro – não produzem os efeitos
prometidos. Os resultados do estudo escancaram o fracasso da imensa maioria dos
antivirais utilizados pelo mundo afora desde o início do surto pandêmico: remdesivir,
hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir e interferon beta-1a não produzem efeitos significativos
contra a Covid-19, ou seja, não ajudam na recuperação dos pacientes, não impedem o
agravamento da doença, não diminuem o número de mortes e nem reduzem o tempo de
internação dos acometidos pela doença.
Diante dessas novas informações, ganha destaque negativo o caso exemplar de
irracionalidade coletiva estimulada por lideranças políticas e por grupos operadores de fake
news, qual seja, o embate entre medicamentos infantilmente tachados como de esquerda e
de direita (6), remdesivir versus hidroxicloroquina, ambos igualmente ineficazes conforme os
novos estudos. Aliás, o Brasil ostenta hoje o triste posto de líder mundial em fake news sobre
a hidroxicloroquina. Essa indústria da desinformação, irresponsável e criminosa, impõe
graves obstáculos ao combate da pandemia e tem custado milhares de vidas.
Ainda não existem medicamentos, ou mesmo protocolos de abordagem terapêutica,
com razoável unanimidade entre os profissionais de saúde, que se mostrem capazes de
impedir os óbitos e as sequelas dos pacientes acometidos pelas formas mais graves da
doença. Desconhecemos também as exatas razões que levam alguns, dentre os infectados,
a evoluírem para esses quadros mais graves e outros não.
A boa notícia é que a única alternativa que a ciência apresenta ao nosso horizonte
parece ser, ao mesmo tempo, a melhor delas: uma cobertura vacinal de alcance global, feita
com imunizantes comprovadamente seguros e eficazes. Enquanto essas vacinas beiram o
encerramento do ciclo científico de desenvolvimento e aguardam a liberação pelos órgãos
de controle sanitário, devemos evitar o colapso das redes de saúde pela manutenção e
estímulo das medidas de controle não farmacológico da pandemia, como o uso de máscaras;
as práticas de higienização; o distanciamento físico; a proibição de aglomerações; a política
de testagem, de rastreamento e de isolamento de casos; dentre tantas outras. Estamos
vivendo o início de uma segunda onda pandêmica.
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Esse cenário aponta a necessidade de estarmos preparados, com planejamento e
logística bem definidos, para proceder a imunização da população assim que as vacinas
estiverem disponíveis. A própria Constituição Federal reconhece o direito universal e integral
à saúde (7), o que implica inequivocamente o acesso às vacinas que se mostrarem seguras
e eficazes. A esse direito corresponde o dever do Estado em dispensar tais imunizantes a
toda a população da forma mais célere possível, à medida em que os estudos forem se
concluindo e as vacinas liberadas. É inaceitável que lideranças nacionais manipulem
irresponsavelmente a questão das vacinas e coloquem suas aspirações políticas e eleitorais
acima da saúde da população, ora se apropriando politicamente de umas como se fossem
suas, ora se opondo ideologicamente a outras (8). Não devemos esquecer que as vacinas
poupam milhares de vidas e são fundamentais para a saúde pública. Ademais, a atuação
politiqueira em cima de questões cruciais como a da vacinação certamente irá provocar uma
onda desnecessária de judicialização, trazendo consigo todas as irracionalidades estruturais
que a utilização em massa da via judicial impõe à gestão do sistema de saúde.
As decisões sobre a condução da pandemia devem ser pautadas na ciência e
tomadas de acordo com critérios absolutamente técnicos e objetivos. Será uma nova afronta
ao interesse público politizar as vacinas como se politizou os antivirais. No entanto,
insensíveis aos apelos da ciência, líderes políticos nacionais parecem inclinados ao
recrudescimento do processo de politização da vacina, prestando um imenso desserviço à
sociedade e ao interesse público em geral, com atitudes ensimesmadas que provocam
polêmicas desnecessárias e geram desconfiança na população.
Os políticos brasileiros devem estancar imediatamente essa escalada insana de
politização da vacina para a Covid-19, assumindo o compromisso maior com a sociedade e
se unindo em torno do objetivo comum da imunização. Para tanto, precisam responder à
necessidade urgente de prover os gestores da saúde com as ferramentas e os recursos
necessários ao desenvolvimento de uma imensa e desafiadora logística de vacinação em
massa da população. A expectativa é no sentido de que o governo federal assuma a
liderança no processo de vacinação, adotando as vacinas por se mostrarem seguras e
comprovadamente eficazes, com a aprovação técnica dada pela Anvisa. Isso irá evitar que
se crie um consórcio de governadores para conduzir o processo, em rota de colisão com o
governo federal. Sem dúvida alguma, será imperdoável as autoridades públicas
negligenciarem seus deveres nesse momento crucial da pandemia e, pior ainda, por
obstáculos ao uso de qualquer uma dessas vacinas, seja qual for, por questões de natureza
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ideológica ou por eventuais interesses eleitorais. Cabe aos órgãos de controle fiscalizar essa
situação explosiva com diligência, aplicando os rigores da lei tanto no âmbito criminal como
administrativo: não devemos olvidar que a pandemia da Covid-19 está juridicamente
qualificada como emergência em saúde pública nacional, o que impõe gravíssimos deveres
às autoridades políticas e administrativas.
Referências
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Submetido em: 30/11/20 Aprovado em: 02/12/20
Como citar este artigo: Bisol J. Politização da vacina é irresponsabilidade sanitária. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 192-197.
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Resenha Temas avançados de Direito da Saúde: tutelas jurídicas da saúde Review Advanced health law themes: legal health tutelage Reseña Temas de derecho de salud avanzado: tutela legal de salud
Edith Maria Barbosa Ramos1
Laísse Lima Silva Costa2
Natalie Maria de Oliveira de Almeida3
A obra Temas Avançados de Direito da Saúde: tutelas jurídicas da saúde, organizada
pelo professor e pesquisador Marcelo Lamy, é constituída de seis partes: Direto da Saúde e
Tutela Penal; Direito da Saúde e Tutela Civil; Direito da Saúde e Tutela Trabalhista; Direito
da Saúde e Meio Ambiente; Direito da Saúde e Políticas; e Direito da Saúde e o SUS, com
um total de 20 artigos. Os artigos são resultado final ou parcial de pesquisas realizadas pelos
docentes discentes e egressos do Programa de Pós-Graduação Direito da Saúde:
Dimensões Individuais e Coletivas, da Universidade Santa Cecília (Unisanta).
A primeira parte aborda o direito da saúde e tutela penal e encontra-se composta por
três artigos. No primeiro, nomeado Mandados de criminalização e proteção à saúde (1),
Fontes analisa de que maneira e em que medida o bem jurídico saúde, considerado
interesse fundamental, humano e social, se revela um interesse que possui dignidade,
merecimento e necessidade de tutela penal.
No segundo, Mandado de criminalização do tráfico ilícito de entorpecentes: o caso
das drogas sintéticas (2), Gouveia e Souza pretendem indicar as dificuldades enfrentadas
pela força policial em cumprir o mandado de criminalização referente ao crime de tráfico
ilícito de entorpecentes, previsto no artigo 5º, inciso XLIII, 2ª parte, e no artigo 243, parágrafo
único, da Constituição Federal, no caso específico das drogas sintéticas, bem como buscar
soluções para essas questões.
1 Pós-doutora em Direito Sanitário, Fundação Oswaldo Cruz, Brasília, Brasília, DF, Brasil; professora, Faculdade de Direito, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6064-1879. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6181-9405. E-mail: [email protected] 3 Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-1731-460X. E-mail: [email protected]
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No terceiro artigo, Saúde e doenças no cárcere: fatores de produção e negligência
estatal (3), Felício e Lamy asseveram a existência de um verdadeiro abismo entre o direito
à saúde formalmente admitido e a sua concretização no âmbito da saúde prisional. Elencam
uma série de fatores de produção de doenças, que agravariam o quadro nacional de
enfermidades e gerariam um contexto prisional gravemente infecto, refletindo a negligência
estatal, já que não haveria um combate, de forma estrutural, aos problemas sanitários do
cárcere.
A segunda parte da obra trata-se do direito da saúde e tutela civil, e está dividida em
quatro artigos. No primeiro, intitulado Deficiências da perícia nas alienações parentais (4),
assevera Bastos que, em razão de uma quantidade expressiva e crescente de ações que
envolvem a alienação parental, o Poder Judiciário estaria sobrecarregado, atuando de
maneira insuficiente, diante da escassez de profissionais para a realização de perícias,
imprescindíveis para subsidiar as decisões judiciais nessas questões.
O segundo artigo, O Ministério Público Federal e a tutela do direito à saúde mental (5)
de autoria de Silva e Cohn, expõe considerações acerca da tutela da saúde mental pelo
Ministério Público Federal, assim como os consequentes reflexos da atuação dessa
instituição na indução de políticas públicas destinadas para a proteção dos indivíduos com
transtornos mentais e na superação do modelo de tratamento denominado de
hospitalocêntrico, existente anteriormente. No terceiro artigo, A mediação como mecanismo
de tutela do direito da saúde (6), os seus autores, Andrade e Lamy, declaram que há um
elevado e crescente número de ações judiciais relacionadas à saúde, fato que enseja, em
algumas ocasiões, ineficiência do Poder Judiciário e, nesse cenário, é preciso buscar
métodos alternativos de soluções de conflitos, tal como a mediação sanitária, que tem
produzido resultados positivos em algumas experiências desenvolvidas no país.
No quarto artigo, os autores Massarelli Júnior e Almeida abordam os impactos da lei
de liberdade econômica sobre as sociedades médicas limitadas e a EIRELI (7), investigando
a responsabilidade do médico decorrente das diversas possibilidades de configuração da
pessoa jurídica prestadora de serviços médicos, a partir da promulgação da Lei nº
13.874/2019, denominada de Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que trouxe
alterações em diversos dispositivos legais, assim como a existência de um possível conflito
com as novas regras da sociedade limitada e as relativas à empresa individual de
responsabilidade limitada.
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A terceira parte da obra em análise diz respeito ao direito da saúde e tutela trabalhista
e encontra-se dividida em dois artigos. No primeiro, Gestão sustentável da jornada de
trabalho no sistema bancário e seus impactos no direito à saúde (8), Oliveira e Pinto buscam
avaliar a gestão estratégica e sustentável da jornada de trabalho no sistema bancário e seus
impactos para o direito da saúde, ante as alterações decorrentes da reforma trabalhista.
No segundo artigo, Síndrome de burnout: assédio moral e causalidade (9), Carvalho
procura demonstrar que há fatores no ambiente de trabalho que contribuem para o
desenvolvimento da referida síndrome, mas, para que seja possível responsabilizar o
empregador, é necessária a comprovação da existência do nexo de causalidade entre o
quadro clínico e fatores estressores do ambiente laboral.
A quarta parte da obra trata do direito da saúde e meio ambiente e divide-se em três
artigos. No primeiro, Poluição atmosférica e saúde física e mental humana (10), Roldan e
Lamy buscam explicitar as respostas para importantes indagações a respeito do direito à
saúde física e mental e meio ambiente saudável e equilibrado como direitos humanos e
fundamentais (10). No segundo artigo, Responsabilidade socioambiental das instituições
financeiras no financiamento para aquisição de ônibus movidos a combustíveis fósseis, o
foco de Senger e Lamy é mostrar a possibilidade de construção do entendimento de que
uma instituição que financia a aquisição de meios de transporte em massa movidos a
combustíveis fósseis pode ser responsabilizada, no âmbito socioambiental, por danos
causados ao meio ambiente e à saúde da população urbana (11).
No terceiro capítulo, A degradação dos manguezais e os reflexos na saúde pública
(12), o objetivo de Batista é tratar da ocupação irregular de manguezais como um reflexo de
fatores como desemprego e endividamento, quando todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, ao mesmo tempo em que essa degradação resulta das
necessidades de uma comunidade carente, que não tem acesso ao mínimo existencial.
A quinta parte do livro é composta por 5 artigos sobre o tema direito da saúde e
políticas públicas. Movimentos diaspóricos e saúde: o caso das grávidas venezuelanas no
Brasil, de autoria de Silva, Toledo e Cabral, aponta as consequências geradas na saúde dos
venezuelanos, principalmente quanto à ginecologia-obstetrícia e seus reflexos na realidade
brasileira. Com o colapso do sistema de saúde da Venezuela, muitos migram para o Brasil,
especialmente para Roraima, para receberem tratamentos de saúde, de modo que o Brasil
tem atendido todos os casos de parturientes venezuelanas, assim como tem enviado
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esforços para contribuir na reposição de medicamentos e outros materiais da área médica e
fornecer um atendimento igualitário (13).
O segundo artigo, Perspectivas do rastreamento mamográfico na prevenção
secundária do câncer de mama, de Rubin e Lafasse (14) identifica as políticas públicas
referentes à prevenção secundária ao câncer de mama no Brasil, analisando e avaliando a
eficácia e a segurança do rastreamento mamográfico, ao qual muitas mulheres precisam se
submeter como prevenção. Concluem que, para que os programas de rastreamento de
câncer sejam eficazes em uma população, é precisa testar um grande número de mulheres
saudáveis, que muitas vezes são mal informadas pelos governos e sobrediagnosticadas,
submetidas a procedimentos invasivos e dolorosos, tratadas com terapias prejudiciais à
saúde.
No terceiro capítulo, Os prejuízos sanitário da política industrial farmacêutica no Brasil
(15), Costa analisa alguns prejuízos percebidos pela comunidade científica, originados da
venda de medicamentos em embalagens indivisíveis. Tal fato ocasiona que o consumidor
adquira mais medicamentos do que o necessário ou prescrito, sendo urgente a dispensação
prudente. No quarto artigo, Depressão em homens e a necessidade de criação de programas
específicos de prevenção ao suicídio para o gênero masculino, os autores Felipe, Costa e
Almeida fundamentam a necessidade da criação de programas de prevenção específicos
para o gênero masculino, dadas as suas várias ocupações na sociedade (16).
No último artigo, Avaliação da demanda de atendimentos emergenciais no pronto-
socorro da cidade de Cubatão e o direito constitucional à saúde, Gonzalez Cação, Santana
Cação e Pinto (17) versam sobre a procura aos serviços de urgência e emergência pelos
usuários do SUS, quando grande parte das queixas pode ser solucionada na rede de
atenção básica, o que resulta no aumento da demanda do pronto-socorro, prejudicando a
qualidade do atendimento.
A sexta e última parte da obra, trata do direito da saúde e o SUS e divide-se em três
artigos. O primeiro, de autoria de Kozyreff, intitulado A remuneração do SUS e o impacto
nas entidades filantrópicas prestadoras de serviço público de saúde (18), retrata o impacto
que a Constituição de 1988 teve na estrutura da saúde no Brasil e entidades sem fins
lucrativos – a latere do Estado – como prestadoras de serviço de saúde, anteriormente
mantidas com poucos recursos provenientes da sociedade civil.
No segundo artigo, Ressarcimento ao Sistema Único de Saúde pelas operadoras de
saúde e a improbidade administrativa (19) Zagarino pesquisa a existência ou não de
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controles nas redes de saúde nos municípios, que possibilite a conferência quanto ao
cumprimento dos valores ressarcidos ao Fundo Nacional de Saúde pelos planos, e
posteriormente repassados aos municípios.
Por fim, no último capítulo da obra, Dever de incorporação de medicamentos para
doenças raras: o caso SPINRAZA (20), de autoria de Santos e Akaoui, o escopo é discutir a
incorporação de medicamentos raros ao sistema de saúde por meio do Spinraza® (2), único
tratamento recomendado e disponível no mundo para atrofia muscular espinhal (AME).
O que se pode depreender da presente obra é a confirmação da complexidade do
direito à saúde, razão pela qual a leitura se faz indispensável. O Prof. Dr. Marcelo Lamy
organiza temas atuais, trazendo-os de forma amadurecida, não oferecendo ao leitor repostas
prontas, mas permitindo análises contundentes capazes de moldar possíveis soluções para
problemas públicos e sociais do direito à saúde.
Referências
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Colaboradores
Todos os autores contribuíram com a concepção, elaboração, redação, revisão e
aprovação da resenha.
Submetido em: 27/11/20
Como citar esta resenha: Ramos EMB, Costa LLS, Almeida NMO. Temas avançados de Direito da Saúde: tutelas jurídicas da saúde. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário. 2020 out./dez.; 9(4): 198-204.
https://doi.org/10.17566/ciads.v9i4.750