205

Caixa de Passaros - Josh Malerman

Embed Size (px)

DESCRIPTION

livro de suspense

Citation preview

  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Copyright Josh Malerman, 2014

    TTULO ORIGINALBird Box

    PREPARAOIsabela Fraga

    REVISOMarcela de OliveiraCarolina Rodrigues

    DESIGN DE CAPA HarperCollinsPublishers Ltd 2014

    ADAPTAO DE CAPAMrcia Quintella

    FOTOGRAFIA DE CAPA Julio Calvo/Millennium Images

    REVISO DE EPUBFernanda Neves

    GERAO DE EPUBIntrnseca

    E-ISBN978-85-8057-653-5

    Edio digital: 2015

    Todos os direitos desta edio reservados

    EDITORA INTRNSECA LTDA.Rua Marqus de So Vicente, 99/3o andar22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

  • sumrio

    CapaFolha de rostoCrditosMdias sociaisDedicatria

    UmDoisTrsQuatroCincoSeisSeteOitoNoveDezOnzeDozeTrezeQuatorzeQuinzeDezesseisDezesseteDezoitoDezenoveVinteVinte e umVinte e doisVinte e trsVinte e quatroVinte e cincoVinte e seisVinte e seteVinte e oitoVinte e nove

  • TrintaTrinta e umTrinta e doisTrinta e trsTrinta e quatroTrinta e cincoTrinta e seisTrinta e seteTrinta e oitoTrinta e noveQuarentaQuarenta e umQuarenta e doisQuarenta e trs

    Agradecimentos

    Sobre o autorLeia tambm

  • s vezes eu gostaria de ser arquiteto para poder dedicar um edifcio a uma pessoa. Uma superestrutura que romperia asnuvens e continuaria subindo at o mago do cu. E se este livro fosse feito de tijolos em vez de palavras, eu realizaria umacerimnia, convidaria todas as minhas lembranas obscuras e cortaria a fita inaugural com um machado para que todospudessem ver o nome do edifcio pela primeira vez. Ele se chamaria Debbie.

    Me, este livro para voc.

  • um

    Malorie est na cozinha, pensando.Tem as mos midas. Treme. Bate o p, nervosa, no piso de azulejos rachados. cedo. O

    sol ainda deve estar surgindo no horizonte. Ela observa a luz parca clarear as pesadas cortinaspretas e pensa:

    Isso foi a neblina.As crianas dormem sob a grade de arame coberta com tecido preto, no fim do corredor.

    Talvez tenham escutado a me alguns momentos antes no quintal, de joelhos. Qualquer barulhoque ela possa ter feito com certeza passou pelos microfones e chegou at os amplificadores aolado de suas camas.

    Ela olha para as mos e detecta um brilho sutil luz da vela. , esto midas. O orvalho damanh continua fresco sobre elas.

    Na cozinha, Malorie respira fundo antes de soprar a vela. Ela observa o pequeno cmodo,notando os utenslios enferrujados e a loua rachada. A caixa de papelo usada como lata delixo. Algumas das cadeiras que s se mantm inteiras amarradas com barbante. As paredesesto sujas. Marcas dos ps e das mos das crianas. Mas h manchas mais antigas tambm. Aparte inferior das paredes do corredor mudou de cor por causa de manchas de um roxoprofundo, que foram ficando amarronzadas com o tempo. So de sangue. O carpete da sala deestar tambm no recupera a cor original, no importa quanto Malorie o esfregue. No hprodutos na casa para ajud-la a limp-lo. Muito tempo atrs, Malorie encheu baldes comgua do poo e, vestindo um palet, tentou tirar as manchas da casa inteira. Mas elas serecusaram a sair. At as menos persistentes se mantiveram, talvez uma sombra do tamanhooriginal, mas ainda eram horrivelmente visveis. Uma caixa de velas esconde uma mancha nohall de entrada. O sof da sala fica posicionado em um ngulo estranho para disfarar duasmarcas que, para Malorie, parecem cabeas de lobo. No segundo andar, perto da escada dosto, uma pilha de casacos mofados camufla riscos roxos entranhados no p da parede. Trsmetros frente fica a mancha mais escura da casa. Malorie no usa aquela parte naextremidade do segundo andar porque no consegue passar por ali.

    Um dia, esta j foi uma bela casa em um belo bairro dos arredores de Detroit. Um dia, elafoi segura, perfeita para uma famlia. H apenas cinco anos, um corretor de imveis a teriaexibido com orgulho. Mas, nesta manh, as janelas esto tapadas com papelo e tbuas demadeira. No h gua corrente. Um grande balde de madeira est apoiado na bancada dacozinha. Exala um cheiro ruim. No h brinquedos convencionais para as crianas. Pedaos damadeira de uma cadeira foram entalhados na forma de pequenos bonecos. Pintaram rostinhosneles. Os armrios esto vazios. No h quadros nas paredes. Fios passam por baixo da porta

  • dos fundos e chegam at os quartos do primeiro andar, onde amplificadores alertam Malorie eas crianas para qualquer barulho que venha de fora da casa. Os trs vivem assim. Ficambastante tempo sem sair. E, quando saem, esto vendados.

    As crianas nunca viram o mundo exterior casa. Nem pelas janelas. E Malorie no o vh mais de quatro anos.

    Quatro anos.Ela no precisa tomar a deciso hoje. outubro em Michigan. Est frio. Uma viagem de

    trinta e dois quilmetros pelo rio vai ser difcil para as crianas. Talvez ainda sejam muitopequenas. E se uma delas cair na gua? O que Malorie faria, vendada?

    Um acidente, pensa ela. Que horror. Depois de tanta luta, de tanta sobrevivncia. Morrerpor causa de um acidente.

    Malorie olha para as cortinas. Comea a chorar. Quer gritar com algum. Quer implorar aqualquer pessoa que possa ouvir. Isso no justo, diria. cruel.

    Ela olha por cima do ombro para a entrada da cozinha e para o corredor que leva ao quartodas crianas. Naquele cmodo sem porta, seus filhos dormem profundamente, cobertos por umtecido preto, escondidos da luz e da vista. No se mexem. No mostram sinal algum deestarem acordados. Mas talvez estejam escutando a me. s vezes, por conta de toda apresso que sofrem para prestarem ateno aos sons, por toda a importncia que depositou nosouvidos deles, Malorie acredita que os dois so capazes de ouvi-la pensar.

    Ela poderia esperar por um cu mais ensolarado, por calor, por mais ateno ao barco.Poderia informar as crianas, ouvir o que tm a dizer. As sugestes delas talvez fossem boas.Tm apenas quatro anos, mas foram treinadas para ouvir. So capazes de ajudar a guiar umbarco s cegas. Malorie no conseguiria fazer a viagem sem elas. Precisa dos ouvidos dosfilhos. Ser que tambm poderia considerar os conselhos deles? Ser que, aos quatro anos,aquelas crianas poderiam opinar sobre quando seria o melhor momento para abandonar acasa para sempre?

    Malorie desaba em uma cadeira na cozinha e luta contra as lgrimas. O p descalo aindabate, nervoso, no piso de linleo gasto. Devagar, ela olha para o alto da escada do poro. Aliconversou certa vez com um homem chamado Tom sobre um homem chamado Don. Olha paraa pia, para onde Don, em outra ocasio, levou baldes de gua do poo, tremendo, abalado porter sado da casa. Inclinando-se para a frente, ela capaz de ver o hall de entrada, ondeCheryl costumava preparar a comida dos pssaros. E entre a cozinha e a porta da frente est asala de estar, silenciosa e escura, carregada de lembranas demais de pessoas demais, quaseimpossveis de digerir.

    Quatro anos, pensa ela, querendo socar a parede.Malorie sabe que quatro anos podem facilmente virar oito. Oito se tornaro doze em um

    instante. E ento as crianas sero adultas. Adultos que nunca viram o cu. Nunca olharam poruma janela. O que doze anos vivendo como gado fariam com suas cabeas? Ser que h ummomento em que as nuvens do cu passam a existir apenas em suas mentes e o nico lugar

  • onde os filhos se sentiro vontade ser atrs do tecido negro das vendas?Malorie engole em seco e se imagina criando os filhos sozinha at que se tornem

    adolescentes.Ser que ela conseguiria? Seria capaz de proteg-los por mais dez anos? Conseguiria

    cuidar deles at que pudessem cuidar dela? E para qu? Para que tipo de vida ela os estprotegendo?

    Voc uma pssima me, pensa Malorie.Por no encontrar uma maneira atravs da qual os filhos possam conhecer a vastido do

    cu. Por no achar um jeito que os permita correr livres pelo quintal, pela rua, pelo bairro decasas vazias e carros velhos. Ou por nunca conceder a eles uma nica olhadela rpida para oespao, no momento em que o cu de repente escurece e tomado por lindas estrelas.

    Voc est salvando a vida deles para que tenham uma vida que no vale a pena.Com a viso embaada pelas lgrimas, Malorie observa as cortinas clarearem mais um

    tom. Se houver uma neblina do lado de fora, no durar muito tempo. E, se aquilo puder ajud-la, se puder escond-la com as crianas enquanto caminham at o rio, para o barco a remo,ento ela tem que acord-las naquele momento.

    Malorie bate a mo na mesa da cozinha e enxuga os olhos.Levanta-se, deixa a cozinha, entra no corredor e, depois, no quarto das crianas. Garoto! grita. Menina! Acordem.O quarto est escuro. A nica janela est tapada com tantos cobertores que, mesmo em seu

    auge, a luz do sol no consegue entrar. H dois colches, um em cada canto do quarto. Acimadeles h domos negros. Muito tempo atrs, a grade de arame que sustenta o tecido era usadapara cercar o pequeno jardim prximo ao poo, no quintal da casa. Mas, nos ltimos quatroanos, ela serviu como armadura, protegendo as crianas no do que poderia v-las, mas doque elas poderiam ver. Embaixo do arame, Malorie ouve os filhos se movimentarem e seajoelha para soltar a grade pregada ao cho de madeira do quarto. J est tirando as vendas dobolso quando as duas crianas olham para ela com expresses sonolentas, surpresas.

    Mame? Levantem-se. Agora. Mame precisa que vocs sejam rpidos.As crianas reagem depressa. No reclamam nem choramingam. Para onde vamos? pergunta a Menina.Malorie entrega a venda a ela e diz: Ponha isto. Vamos para o rio.Os dois pegam as vendas e amarram o tecido preto com firmeza sobre os olhos. Conhecem

    bem aquele gesto. So especialistas nisso, se que possvel ser especialista em algumacoisa aos quatro anos. Aquilo parte o corao de Malorie. So apenas crianas e deveriamestar curiosas. Deveriam perguntar me por que esto indo naquele dia para o rio, um rioonde nunca estiveram.

    No entanto, apenas fazem o que ela manda.

  • Malorie ainda no coloca a prpria venda. Vai arrumar as crianas primeiro. Leve seu quebra-cabea pede Menina. E peguem os cobertores, vocs dois.A agitao que ela sente indescritvel. Est mais para histeria. Andando de um cmodo

    para outro, Malorie confere tudo, pequenos objetos de que podem precisar. De repente, sente-se terrivelmente despreparada. Est insegura, como se a casa e a terra abaixo dela houvessemdesaparecido, expondo-a ao mundo exterior. Entretanto, no desespero daquele momento, ela seagarra com fora ao conceito da venda. No importa quais ferramentas leve, no importa qualobjeto da casa seja usado como arma, ela sabe que as vendas so a maior proteo para ela eos filhos.

    Tragam seus cobertores! lembra Malorie s crianas, ouvindo os dois pequenoscorpos se prepararem.

    Ento ela entra no quarto para ajud-las. O Garoto, pequeno para a idade mas com umaresistncia da qual Malorie se orgulha, est decidindo entre duas camisetas grandes demaispara ele. Ambas pertenceram a um adulto, que se foi h muito tempo. Malorie escolhe umapara ele e observa seu cabelo escuro desaparecer em meio ao tecido e depois brotar de novopela gola. Naquele estado de ansiedade, ela percebe que o Garoto cresceu um pouco nosltimos tempos.

    A Menina, de tamanho normal para a idade, est tentando enfiar um vestido pela cabea,uma roupa que ela e Malorie costuraram a partir de um lenol velho.

    Est frio l fora, Menina. Um vestido no ser suficiente.A Menina franze a testa. Seu cabelo louro est bagunado, pois ela acordou h pouco

    tempo. Vou botar uma cala tambm, mame. E vamos levar nossos cobertores.A raiva irrompe em Malorie. Ela no quer resistncia alguma. No naquele dia. Mesmo que

    a Menina esteja certa. Nada de vestido hoje.O mundo exterior, os shoppings e os restaurantes vazios, os milhares de carros

    abandonados, os produtos esquecidos nas prateleiras ociosas das lojas: tudo exerce umapresso sobre a casa. Tudo sussurra o que os espera l fora.

    Ela pega um casaco para as crianas no armrio de um pequeno quarto no fim do corredor.Ento sai do cmodo pelo que sabe que ser a ltima vez.

    Mame chama a Menina, encontrando-a no corredor. Vamos precisar das buzinasde bicicleta?

    Malorie suspira. No responde. Vamos ficar todos juntos. A viagem toda.Enquanto a Menina volta para o quarto, Malorie pensa em como aquilo pattico, o fato de

    buzinas de bicicleta serem a maior diverso de seus filhos. Os dois brincam com elas h anos.A vida toda buzinaram pela sala. O barulho alto costumava deixar Malorie irritada. Mas elanunca proibiu as buzinas. Nunca as escondeu. Mesmo nos primeiros anos ansiosos da

  • maternidade, ela entendia que, naquele mundo, tudo que fazia as crianas rirem era algo bom.Mesmo que assustassem Victor com aquilo.Ah, como Malorie sente falta daquele cachorro! Quando comeou a criar os filhos sozinha,

    os planos de navegar pelo rio incluam Victor, o border collie, sentado ao lado dela no barcoa remo. Victor a alertaria se algum animal se aproximasse. Ele poderia at conseguir afastaralguma coisa.

    Certo diz Malorie, com o corpo magro encostado na porta do quarto das crianas. Pronto. Agora vamos.

    Houve momentos, tardes sossegadas, noites tempestuosas, em que Malorie avisou aosfilhos que aquele dia poderia chegar. Sim, ela j havia falado sobre o rio. Sobre uma viagem.Tomara cuidado para nunca chamar aquilo de fuga porque no admitia a possibilidade de ascrianas pensarem que a vida delas era algo de que precisavam fugir. Em vez disso, ela osalertava sobre uma possvel manh, quando os acordaria, com pressa, e exigiria que seaprontassem para deixar a casa para sempre. Sabia que os dois percebiam a insegurana dame, assim como podiam ouvir uma aranha subindo pelo vidro de uma janela coberta. Duranteanos, ela separara uma pequena bolsa de comida, que ficava reservada num canto do armrioat estragar, sendo sempre substituda, sempre abastecida. Essa era a prova de Malorie, aevidncia de que ela poderia acord-los como dizia que iria fazer. A comida no armrio fazparte de um plano, pensava ela enquanto conferia as cortinas, nervosa, entenderam?

    E agora o dia havia chegado. Aquela manh. Aquela hora. Aquela neblina.O Garoto e a Menina se aproximam e Malorie se ajoelha diante deles. Ela confere as

    vendas. Esto bem firmes. Naquele instante, olhando de um rostinho para outro, compreendeque, finalmente, a jornada dos trs para fora dali comeou.

    Escutem o que vou dizer comea Malorie, segurando o queixo dos filhos. Vamosdescer o rio em um barco a remo hoje. Pode ser uma viagem longa. Mas fundamental quevocs dois faam tudo que eu mandar. Entenderam?

    Entendemos. Entendemos. Est frio l fora. Vocs esto com os cobertores. E com as vendas. No vo precisar de

    mais nada agora. Entenderam? Entendemos. Entendemos. Nenhum de vocs pode tirar a venda, sob nenhuma circunstncia. Se fizerem isso, vou

    machucar vocs. Entenderam? Entendemos. Entendemos. Preciso dos ouvidos de vocs. Preciso que escutem com o mximo de ateno que

    puderem. No rio, vo ter que ouvir alm da gua, alm da floresta. Se ouvirem algum animalna floresta, me avisem. Se ouvirem qualquer coisa na gua, me avisem. Entenderam?

  • Entendemos. Entendemos. No faam perguntas que no tenham relao com o rio. Voc vai ficar sentado na frente

    diz, dando um tapinha no ombro do Garoto. Depois, toca a Menina. E voc, na parte detrs. Quando entrarmos no barco, vou gui-los para esses lugares. Vou ficar no meio, remando.No quero que conversem, a no ser que seja sobre algo que ouviram na floresta. Ou no rio.Entenderam?

    Entendemos. Entendemos. No vamos parar por motivo algum. No at chegarmos aonde estamos indo. Vou avisar

    quando for a hora. Se ficarem com fome, comam algo desta bolsa.Malorie leva a bolsa at as pequenas mos dos filhos. No durmam. No durmam de jeito nenhum. Preciso dos ouvidos de vocs, hoje mais

    do que nunca. Vamos levar os microfones? pergunta a Menina. No.Enquanto fala, Malorie olha de um rosto vendado para o outro. Quando sairmos daqui, vamos dar as mos e seguir o caminho at o poo. Entraremos

    pela pequena clareira na floresta que fica atrs da nossa casa. O caminho at o rio cheio demato. Talvez a gente tenha que soltar as mos em alguns momentos, ento, se for preciso,quero que segurem no meu casaco ou no casaco um do outro. Entenderam?

    Entendemos. Entendemos.Ser que esto com medo? Prestem ateno. Vamos para um lugar que nenhum de vocs conhece. Nunca estiveram

    to longe desta casa. Muitas coisas l fora podem acabar machucando vocs ou a mame seno me ouvirem agora, hoje.

    As crianas esto em silncio. Entenderam? Entendemos. Entendemos.Malorie treinou bem os filhos. Tudo bem diz, e sua voz revela um sinal de histeria. Vamos embora. Vamos

    embora agora. Vamos embora.Ela pressiona a cabea dos dois na prpria testa.Depois pega as crianas pela mo. Os trs atravessam a casa rapidamente. Na cozinha,

    trmula, Malorie enxuga os olhos e tira a prpria venda do bolso. Ela a amarra em torno dacabea e do cabelo escuro e comprido. E para, com a mo na maaneta, diante da porta que seabre para o caminho que j percorreu tantas vezes para pegar baldes de gua.

  • Est prestes a abandonar a casa. A concretude do momento a deixa atordoada.Quando abre a porta, o ar frio entra e Malorie d um passo frente, a cabea zonza, cheia

    de medo e possibilidades terrveis demais para mencionar diante das crianas. Ela gagueja aofalar e quase grita:

    Segurem a minha mo. Os dois.O Garoto pega a mo esquerda de Malorie. A Menina aperta a direita com seus dedinhos.Vendados, os trs saem da casa.O poo fica a quase vinte metros dali. Pequenos pedaos de madeira, antes parte de

    molduras, marcam o caminho e foram colocados para indicar a direo certa. Ambas ascrianas j tocaram na madeira com a ponta dos sapatos inmeras vezes. Malorie, certa vez,disse a elas que a gua do poo era o nico remdio de que poderiam precisar. Ela sabe que,por isso, seus filhos sempre respeitaram o poo. Nunca reclamaram de buscar gua com ame.

    Agora no poo, o cho fica irregular sob os ps dos trs. Parece pouco natural, macio. Aqui est a clareira avisa Malorie.Ela guia as crianas com cuidado. Outro caminho se inicia a dez metros do poo. Sua

    entrada estreita e demarca o comeo da floresta. O rio fica a menos de cem metros dali. Nolimite da floresta, Malorie solta a mo das crianas por um instante para procurar a entrada.

    Segurem-se no meu casaco!Ela tateia os galhos at encontrar uma blusa amarrada a uma rvore no comeo da trilha. A

    prpria Malorie a amarrou ali mais de trs anos atrs.O Garoto segura no bolso da me e ela sente a Menina agarrar o casaco dele. Ela os chama

    enquanto caminha, perguntando constantemente se esto segurando um no outro. Galhos dervores arranham o rosto dela. Malorie no grita.

    Logo os trs chegam ao marco que ela enterrou na areia. A perna farpada de uma dascadeiras da cozinha, enfiada no meio da trilha para que ela tropece e a reconhea.

    Ela descobriu o barco a remo quatro anos atrs, atracado a apenas cinco casas de distnciada sua. Faz mais de um ms desde que conferiu pela ltima vez se ele ainda estava ali, mas elaacredita que esteja. Mesmo assim, difcil no imaginar o pior. E se algum o pegouprimeiro? Outra mulher, no muito diferente da prpria Malorie, que mora a cinco casas dali,na outra direo, e usou cada dia dos ltimos quatro anos para reunir coragem suficiente parafugir. Uma mulher que um dia tropeou na mesma margem escorregadia e sentiu a mesmapossibilidade de salvao com a ponta de ferro do barco a remo.

    O ar faz os arranhes no rosto de Malorie arderem. As crianas no reclamam.Isso no infncia, pensa Malorie, conduzindo-as para o rio.Ento ela escuta. Antes de chegar ao cais, ouve o barco balanando na gua. Ela para,

    confere a venda das crianas e aperta os ns das duas. Depois as conduz at a plataforma demadeira.

    Pronto, pensa, ele ainda est aqui. Assim como os carros ainda esto estacionados na rua

  • em frente casa deles. E da mesma forma que as casas da rua continuam vazias.Faz mais frio ali na floresta, longe de casa. O som da gua to assustador quanto

    entusiasmante. Ajoelhando-se onde acha que o barco est, ela solta as mos das crianas etateia, procurando a ponta de ferro. Seus dedos encontram a corda que a segura primeiro.

    Garoto diz Malorie, puxando a ponta gelada do barco para o cais. Na frente. Entrena frente.

    Ela o ajuda. Quando ele est equilibrado, segura o rosto do filho com ambas as mos e dizmais uma vez:

    Escute. Para alm da gua. Escute.Malorie pede Menina que fique no cais enquanto desamarra a corda s cegas, sobe com

    cuidado no barco e para em frente ao banco do meio. Ainda mais ou menos de p, ela ajuda aMenina a subir. O barco balana com violncia e Malorie aperta a mo da filha com muitafora. A Menina no grita.

    H folhas, gravetos e gua no fundo do barco. Malorie vasculha para procurar os remosque guardou no lado direito. A madeira est fria. mida. Tem cheiro de mofo. Ela acomoda osremos nos apoios de ferro. Usa um deles para afastar o barco do cais e ele lhe parece firme eforte. E ento...

    Esto no rio.A gua est calma. Mas h sons ao redor. Movimentos na floresta.Malorie pensa na neblina. Espera que tenha ocultado a fuga da famlia.No entanto, a neblina vai se dissipar. Crianas pede Malorie, ofegante , escutem.Enfim, depois de quatro anos de espera e treino, tentando encontrar coragem para ir

    embora, ela rema para longe do cais, da margem e da casa que protegeu a ela e aos seus filhospelo que pareceu uma vida inteira.

  • dois

    Ainda faltam nove meses para as crianas nascerem. Malorie mora com a irm, Shannon, numamodesta casa alugada que nenhuma das duas decorou. Mudaram-se h trs semanas, apesar dapreocupao dos amigos. Malorie e Shannon so mulheres populares e inteligentes, mas,quando esto juntas, tendem a se tornar insuportveis, como aconteceu logo no dia em quecarregaram suas caixas para dentro da casa.

    Estava pensando que faz mais sentido eu ficar com o quarto maior disse Shannon,parada na beira da escada, no segundo andar. J que tenho a maior cmoda.

    Ah, fala srio respondeu Malorie, segurando uma caixa de leite cheia de livros nolidos. A janela daquele quarto melhor.

    As irms discutiram sobre isso por muito tempo, ambas com medo de brigar e provar j naprimeira tarde juntas que os amigos e a famlia tinham razo. Por fim, Malorie concordou emdeixar um cara ou coroa decidir, o que terminou com a vitria de Shannon resultado queMalorie ainda acredita ter sido forjado de algum jeito.

    Nesse dia, no entanto, Malorie no est pensando nas pequenas coisas que a irm faz que aenlouquecem. No est limpando em silncio a baguna de Shannon, fechando as portas dosarmrios, seguindo as trilhas de suteres e meias que ela deixa pelos corredores. No estbufando, resignada, nem balanando a cabea enquanto liga o lava-loua ou empurra uma dascaixas nunca desfeitas de Shannon do meio da sala para fora do caminho das duas. Em vezdisso, est em frente ao espelho do banheiro do primeiro andar, nua, analisando a prpriabarriga.

    J houve uma vez que a sua menstruao no veio, diz a si mesma. Mas aquilo no umconsolo porque Malorie est ansiosa h semanas, sabendo que deveria ter sido maiscuidadosa com Henry Martin.

    O cabelo negro pende sobre os ombros. Os lbios se curvam para baixo formando umacareta curiosa. Ela pe as mos na barriga reta e balana a cabea lentamente. No importacomo justifique a situao, ela se sente grvida.

    Malorie! grita Shannon da sala. O que voc est fazendo a?Ela no responde. Vira-se de lado e inclina a cabea. Seus olhos azuis parecem cinzentos

    luz plida do banheiro. Apoia uma das mos no linleo rosado da pia e arqueia as costas. Esttentando fazer a barriga diminuir, como se isso pudesse provar que no h nenhuma vidinhadentro dela.

    Malorie! grita Shannon de novo. Est passando outra reportagem na TV!Aconteceu alguma coisa no Alasca.

    Malorie ouve a irm, mas o que est acontecendo no mundo exterior no tem muita

  • importncia para ela agora.Nos ltimos dias, a internet enlouqueceu com uma histria que as pessoas esto chamando

    de Relatrio Rssia. Nela, um homem que viajava de carona num caminho por uma estradanos arredores de So Petersburgo pediu ao amigo, o motorista, que parasse o carro, entoatacou-o e arrancou os lbios do colega com as unhas. Depois, tirou a prpria vida na neve,usando a serra de mesa que estava na carroceria do caminho. Uma histria pavorosa, cujanotoriedade Malorie atribua maneira aparentemente ilgica da internet de tornar fatosaleatrios famosos. Mas ento uma segunda histria surgiu. Circunstncias similares. Dessavez em Yakutsk, a cerca de cinco mil quilmetros de So Petersburgo. Naquela cidade, umame, estvel segundo os conhecidos, enterrou os filhos vivos no jardim da famlia antes dese matar, usando as pontas afiadas de pratos quebrados. At que uma terceira histria, emOmsk, na Rssia, mais de trs mil quilmetros a sudeste de So Petersburgo, surgiu na internete rapidamente se tornou um dos assuntos mais discutidos em todas as redes sociais. Daquelavez, havia um vdeo. Pelo tempo que conseguiu, Malorie assistiu a um homem com a barbavermelha de sangue tentando atacar com um machado o cinegrafista que no podia ser visto.Por fim, ele conseguiu. Mas Malorie no viu essa parte. Evitou continuar acompanhandoaquele assunto. No entanto, Shannon, sempre mais dramtica, insistia em contar as notciasassustadoras.

    No Alasca! repete Shannon pela porta do banheiro. Isso fica nos Estados Unidos,Malorie!

    O cabelo louro de Shannon denuncia as razes finlandesas da me delas. Malorie se parecemais com o pai: olhos fortes e fundos e pele clara e lisa caracterstica do Norte. Por teremcrescido na Pennsula Superior do Michigan, ambas sonhavam em morar no sul do estado,perto de Detroit, onde imaginavam que havia festas, shows, oportunidades de emprego ehomens em abundncia.

    Este ltimo item no havia se provado vantajoso para Malorie at ela conhecer HenryMartin.

    Ai, merda berra Shannon. Talvez tenha acontecido alguma coisa no Canadtambm. Isso srio, Malorie. O que voc est fazendo a?

    Malorie liga a torneira e deixa a gua fria correr por entre os dedos. Joga um pouco norosto. Olhando para o espelho, ela pensa nos pais, ainda na Pennsula Superior do Michigan.Os dois no sabem nada sobre Henry Martin. Nem ela falou com ele desde aquela nica noite.Mesmo assim, aqui est ela, provavelmente ligada a ele para sempre.

    De repente, a porta do banheiro se abre. Malorie pega uma toalha. Pelo amor de Deus, Shannon. Voc me ouviu, Malorie? Essa histria est sendo noticiada em tudo quanto canto. As

    pessoas esto comeando a dizer que est relacionado com o fato de as vtimas terem vistoalguma coisa. No estranho? Acabei de ouvir na CNN que isso a nica coisa em comumem todos os incidentes. Que as vtimas viram alguma coisa antes de atacar as pessoas e de se

  • matar. D para acreditar nisso? D?Malorie se vira devagar para a irm, com o rosto totalmente inexpressivo. Ei, voc est bem, Malorie? No parece muito bem.Malorie comea a chorar. Morde o lbio inferior. J pegou a toalha, mas ainda no se

    cobriu. Continua parada diante do espelho como se examinasse a barriga nua. Shannonpercebe isso.

    Ai, merda exclama ela. Voc acha que est...Malorie j faz que sim com a cabea. As duas se aproximam no banheiro cor-de-rosa e

    Shannon abraa a irm, dando tapinhas leves na cabea dela, acalmando-a. Ok diz. No vamos surtar. Vamos comprar um teste. isso que as pessoas fazem.

    Ok? No se preocupe. Aposto que mais da metade das mulheres que faz testes descobre queno est grvida.

    Malorie no responde. Apenas suspira profundamente. Ok repete Shannon. Vamos l.

  • trs

    Quo longe uma pessoa consegue ouvir?Remar vendada ainda mais difcil do que Malorie havia imaginado. J aconteceu de

    muitas vezes o barco bater nas margens e ficar preso por vrios minutos. Durante esse tempo,ela foi tomada por imagens de mos invisveis tirando as vendas dos olhos das crianas.Dedos emergindo da gua, surgindo da lama das margens. As crianas no berraram, nochoramingaram. So pacientes demais para isso.

    Mas quo longe uma pessoa consegue ouvir?O Garoto ajudou a soltar o barco ao levantar-se e empurrar um tronco coberto de musgo.

    Ento Malorie voltou a remar. Apesar desses primeiros obstculos, ela sente que estoprogredindo. animador. Pssaros cantam nas rvores agora que o sol nasceu. Animais vagamentre a folhagem espessa da floresta que os cerca. Peixes pulam, espirrando gua e deixandoMalorie nervosa. Escutam tudo isso. Mas no veem nada.

    Desde que nasceram, as crianas foram treinadas a ouvir os sons da floresta. Quando erambebs, Malorie amarrava camisetas sobre os olhos delas e as levava at a beira da floresta.Ali, apesar de saber que eram pequenas demais para entender alguma coisa do que lhes dizia,ela descrevia os sons da mata.

    Folhas ondulando, dizia. Um animal pequeno, como um coelho. Sempre consciente de quepoderia ser algo muito pior. Pior at do que um urso. Naquela poca, e nos dias que seseguiram, quando as crianas j tinham idade suficiente para aprender, Malorie treinava a simesma enquanto treinava os filhos. Mas ela nunca escutaria to bem quanto eles. J tinha vintee quatro anos quando conseguiu perceber, usando apenas a audio, a diferena entre uma gotade chuva e uma batida na janela. Malorie fora criada com foco na viso. Ser que isso faziadela a professora errada? Quando carregava folhas para dentro de casa e dizia s crianas,vendadas, para identificarem a diferena entre pisar em uma e amassar outra com uma dasmos, ser que essas eram as lies certas a ensinar?

    Quo longe uma pessoa consegue ouvir?O Garoto gosta de peixes e ela sabe disso. Malorie muitas vezes pescava um no rio, usando

    uma vara enferrujada feita de um guarda-chuva encontrado na despensa. O Garoto gostava deobservar os peixes se debatendo no balde na cozinha. Comeara a desenh-los tambm.Malorie se lembra de ter pensado que precisaria pegar todos os animais do planeta e lev-lospara casa para que as crianas soubessem como eles eram. Do que mais gostariam se tivessema chance de ver? O que a Menina acharia de uma raposa? De um guaxinim? At mesmo oscarros eram uma lenda para os dois, pois tinham apenas os desenhos amadores de Maloriecomo referncia. Botas, arbustos, jardins, vitrines, prdios, ruas e estrelas. Ela precisaria ter

  • recriado o mundo todo para eles. Mas s conseguiam peixes. E o Garoto os adorava.Agora, no rio, ao ouvir outro pequeno salto na gua, ela teme que a curiosidade o faa tirar

    a venda.Quo longe uma pessoa consegue ouvir?Malorie precisa que as crianas ouam para alm das rvores, para alm do vento, para

    alm das margens sujas que levam a todo um mundo de criaturas vivas. O rio um anfiteatro,pensa Malorie enquanto rema.

    Mas tambm um tmulo.As crianas precisam ouvir.Malorie no consegue afastar a imagem de mos emergindo da escurido, agarrando a

    cabea das crianas e deliberadamente desamarrando o que as protege.Suando, ofegante, ela reza para que seja possvel ouvir o caminho at um lugar seguro.

  • quatro

    Malorie est dirigindo. As irms usam o carro dela, um Ford Festiva de 1999, porque temmais gasolina no tanque. Esto a apenas cinco quilmetros de casa, mas j percebem sinais deque as coisas mudaram.

    Olhe! exclama Shannon, apontando para vrias casas. Cobertores nas janelas.Malorie est tentando prestar ateno ao que Shannon diz, mas seus pensamentos continuam

    voltando para a prpria barriga. A exploso do Relatrio Rssia na mdia a preocupa, mas elano leva isso to a srio quanto a irm. Outras pessoas na internet esto, como Malorie, maiscticas. Ela leu blogs, especialmente o Silly People, que posta fotos de pessoas tomandocertas precaues e depois acrescenta legendas engraadas abaixo das imagens. EnquantoShannon aponta alternadamente para uma janela e protege os olhos, Malorie pensa em uma dasimagens: a de uma mulher pendurando um cobertor na janela. Embaixo dela, a legenda dizia:Querido, o que voc acha de trazer a cama para c?

    D para acreditar? pergunta Shannon.Malorie assente em silncio. Ela se vira para a esquerda. Ah, fala srio insiste Shannon. Voc tem que admitir que isso est ficando

    interessante.Parte de Malorie concorda. interessante mesmo. Na calada, um casal passa com o jornal

    cobrindo o rosto at as tmporas. Alguns motoristas dirigem com os retrovisores virados paracima. Distante, Malorie se pergunta se aqueles so sinais de que a sociedade est comeandoa acreditar que h algo de errado. E se houver, o que ?

    Eu no entendo afirma Malorie, em parte tentando se distrair dos prpriospensamentos, em parte comeando a se interessar pelo assunto.

    No entende o qu? Eles acham que no seguro olhar para fora? Olhar para qualquer lugar? Isso responde Shannon. exatamente o que acham. Era o que eu estava lhe

    dizendo.Shannon, pensa Malorie, sempre foi dramtica. Bem, isso me parece uma maluquice diz Malorie. E veja s aquele cara!Shannon olha para onde Malorie est apontando. Ento desvia o olhar. Um homem de terno

    anda com uma bengala de cego. Est com os olhos fechados. Ningum mais tem vergonha de agir assim explica Shannon, o olhar voltado para os

    prprios sapatos. A bizarrice j chegou a esse nvel.Quando as duas estacionam na farmcia, Shannon ergue a mo para proteger os olhos.

    Malorie percebe isso e depois olha para o outro lado do estacionamento. Mais pessoas esto

  • fazendo o mesmo. Voc est com medo de ver o qu? pergunta ela. Ningum sabe essa resposta ainda.Malorie j viu a enorme placa amarela da farmcia milhares de vezes. No entanto, nunca

    pareceu to pouco acolhedora.Vamos l comprar seu primeiro teste de gravidez, pensa, saindo do carro. As irms

    atravessam o estacionamento. Ficam perto dos remdios, eu acho sussurra Shannon, abrindo a porta da frente da

    loja, ainda com os olhos cobertos. Shannon, pare com isso.Malorie guia o caminho at o setor de anticoncepcionais. L, encontra quase dez marcas de

    testes de gravidez. Tem tantos... comenta Shannon, pegando um da prateleira. Ningum mais usa

    camisinha hoje em dia? Qual deles devo levar?Shannon d de ombros. Este aqui parece to bom quanto os outros.Um homem no fim do corredor abre uma caixa de curativos. Ento pe um deles sobre o

    olho.As irms levam o teste ao balco. Andrew, que tem a idade de Shannon e uma vez a

    convidou para sair, est trabalhando no caixa. Malorie s quer que aquele momento chegue aofim.

    Uau! exclama Andrew, analisando a caixinha. Cale a boca, Andrew diz Shannon. para a nossa cadela. Vocs tm uma cadela agora? Temos responde Shannon, pegando a sacola com o teste. E ela muito popular na

    nossa vizinhana.A volta para casa uma tortura para Malorie. A sacola de plstico entre os bancos sugere

    que a vida dela j mudou. Olhe diz Shannon, apontando pela janela do carro com a mesma mo que usa para

    tapar os olhos.As irms se aproximam devagar de uma placa de Pare. Do lado de fora da casa de

    esquina, veem uma mulher numa pequena escada pregando um edredom janela. Quando a gente chegar, vou fazer a mesma coisa afirma a irm de Malorie. Shannon.A rua delas, normalmente repleta de crianas, est vazia. No h triciclos azuis cheios de

    adesivos. Nem tacos de beisebol.J dentro de casa, Malorie vai para o banheiro e sua irm imediatamente liga a TV. Acho que voc s precisa fazer xixi nisso! grita Shannon.

  • Do banheiro Malorie consegue ouvir o telejornal.Quando a irm chega porta do banheiro, Malorie j est encarando a faixa cor-de-rosa,

    balanando a cabea. Caramba! exclama Shannon. Tenho que ligar para mame e papai afirma Malorie.Parte dela j comea a se preparar, pois sabe que, apesar de estar solteira, vai ter esse

    beb. Voc precisa ligar para Henry Martin lembra Shannon.Malorie observa a irm por um momento. Ela passou o dia todo pensando que Henry

    Martin no teria um papel muito importante na criao daquela criana. De certa forma, jaceitou isso. Shannon acompanha a irm at a sala, onde caixas ainda cheias de objetosentulham o espao em frente TV. Na tela, est passando um funeral. Os ncoras da CNNcomentam. Shannon vai at a TV e baixa o volume. Malorie se senta no sof e liga para HenryMartin do celular.

    Ele no atende. Ento ela manda uma mensagem de texto. importante. Me ligue quando puder.De repente, Shannon d um pulo do sof e grita: Voc viu aquilo, Malorie? Um caso no Michigan! Acho que disseram que foi na

    Pennsula Superior!Malorie j est pensando nos pais. Quando Shannon aumenta o volume de novo, as irms

    descobrem que um casal de idosos de Iron Mountain foi encontrado enforcado numa rvore nobosque prximo casa onde moravam. O ncora diz que eles usaram os prprios cintos.

    Malorie liga para a me. Ela atende depois de dois toques. Malorie. Me. Tenho certeza de que est ligando por causa dessas notcias. No. Estou grvida, me. Ai, meu Deus do cu, Malorie.A me fica quieta por um instante. Malorie consegue ouvir a TV ao fundo. Est namorando algum? No, foi um acidente.Shannon est de p em frente TV. Com os olhos arregalados. Fica apontando para o

    aparelho, como se quisesse lembrar a Malorie como aquilo importante. A me est emsilncio do outro lado da linha.

    Voc est bem, me? Bem, agora estou mais preocupada com voc, querida. . Foi o pior momento possvel. J tem quantas semanas? Umas cinco, eu acho. Talvez seis.

  • E vai ter o beb? J tomou essa deciso? Vou. Quer dizer, acabei de descobrir. Faz s alguns minutos. Mas vou. Sim. J avisou ao pai? Escrevi para ele. Vou ligar tambm. Malorie faz uma pausa. Ento continua: Vocs

    esto se sentindo seguros a, me? Esto bem? No sei, simplesmente no sei. Nenhum de ns sabe nada e estamos com muito medo.

    Mas agora estou mais preocupada com voc.Na tela, uma mulher, usando um diagrama, explica o que pode ter acontecido. Ela desenha

    uma linha que parte de uma pequena estrada onde o carro do casal foi encontrado abandonado.A me de Malorie est lhe dizendo que sabe de algum que conhecia o casal idoso. Osobrenome deles era Mikkonen, afirma ela. A mulher na tela est parada sobre o que pareceser uma poa de sangue na grama.

    Meu Deus! exclama Shannon. Ai, eu queria que seu pai estivesse em casa diz a me. E voc est grvida. Ai,

    Malorie...Shannon pega o telefone. Pergunta se a me sabe de mais algum detalhe sobre o caso. O que

    esto dizendo por l? Foi o nico incidente? As pessoas esto tomando precaues?Enquanto Shannon continua falando desesperada ao telefone, Malorie se levanta do sof,

    vai at a porta da frente e a abre. Analisando toda a rua, pensa: Isso srio mesmo?No h vizinhos nos quintais. Nenhum rosto nas janelas das outras casas. Um carro passa e

    Malorie no consegue ver o rosto do motorista. Ele o esconde com uma das mos.Na grama, ao lado do caminho que leva porta, est o jornal que foi entregue de manh.

    Malorie vai at ele. A manchete da primeira pgina sobre o nmero crescente de incidentes.Simplesmente diz: MAIS UM. Shannon j deve ter contado a ela tudo o que o jornal tem a dizer.Malorie o pega e, ao vir-lo, para em uma notcia na pgina de trs.

    um classificado. Uma casa em Riverbridge est abrindo as portas para desconhecidos. um local seguro, diz o anncio. Um refgio. Um lugar que os proprietrios esperam quesirva como um santurio, medida que as notcias terrveis se multiplicam com o passardos dias.

    Malorie, sentindo os primeiros arrepios reais de medo, volta a olhar para a rua. Ela v aporta da casa de um vizinho se abrir e se fechar depressa. Ainda segurando o jornal, olha porcima do ombro, para dentro de casa, onde a TV continua ligada no volume mximo. No fundoda sala, Shannon est prendendo um cobertor a uma das janelas.

    Venha logo pede ela. Entre aqui. E feche essa porta.

  • cinco

    Faltam seis meses para as crianas nascerem. A barriga de Malorie j est aparecendo.Cobertores tapam todas as janelas da casa. A porta da frente nunca fica destrancada nemaberta. Relatos de acontecimentos inexplicveis tm surgido com uma frequncia alarmante. Oque antes era manchete duas vezes por semana agora acontece todos os dias. Os porta-vozesdo governo so entrevistados na TV. Com histrias vindas de todos os cantos, do Maine Flrida, ambas as irms esto tomando precaues. Shannon, que acessa uma dezena de blogsdiariamente, teme uma confuso de ideias, um pouco de tudo que l. Malorie no sabe no queacreditar. Novas histrias aparecem na internet de hora em hora. a nica coisa sobre a qualas pessoas falam nas redes sociais e o nico tema abordado nas pginas dos jornais. Sitesrecm-criados dedicam-se inteiramente a acompanhar o assunto. Um deles exibe apenas ummapa-mndi com pequenos rostos vermelhos sobre as cidades onde algo aconteceu. Da ltimavez que Malorie conferiu havia mais de trezentos rostos. Na internet, a situao est sendochamada de o Problema. Existe uma teoria bem disseminada segundo a qual, seja l qual foro Problema, ele sem dvida comea quando uma pessoa v alguma coisa.

    Malorie se recusou a acreditar enquanto pde. As irms brigavam constantemente, comMalorie citando as pginas que ridicularizavam a histeria em massa e Shannon citando todo oresto. No entanto, Malorie teve que ceder quando os sites que acessava comearam a publicarhistrias sobre os entes queridos dos autores dos blogs e eles passaram a admitir que estavampreocupados.

    Dvidas, pensou ela na poca. At entre os cticos.Durante alguns dias, Malorie vivia uma espcie de vida dupla. Nenhuma das irms saa

    mais de casa. As duas mantinham as janelas cobertas. Assistiam CNN, MSNBC e FoxNews at no conseguirem mais ver as mesmas histrias sendo repetidas. S que enquantoShannon ficava mais sria, e at mais sombria, Malorie se agarrava a um fio de esperana deque tudo aquilo simplesmente acabaria.

    Mas no acabou. E ficou pior.Depois de trs meses vivendo como ermits, o pior medo de Malorie e Shannon se

    concretizou quando seus pais pararam de atender ao telefone. E tambm deixaram deresponder aos e-mails.

    Malorie queria ir de carro at a Pennsula Superior. Mas Shannon recusou a ideia. S podemos torcer para que estejam seguros, Malorie. Vamos ter que torcer para que o

    telefone tenha sido cortado. Dirigir para qualquer lugar agora seria burrice. Ir at o mercadoj seria. Dirigir nove horas, ento, seria suicdio.

    O Problema sempre resultava em um suicdio. A Fox News havia mencionado essa

  • expresso com tanta frequncia que passou a usar sinnimos. Autodestruio.Autoimolao. Haraquiri. Um ncora descreveu a situao como um apagamentopessoal, expresso que no pegou. Instrues do governo eram constantemente exibidas. Umtoque de recolher nacional foi decretado. As pessoas foram aconselhadas a trancar as portas,tapar as janelas e, acima de tudo, a no olhar para fora. No rdio, as msicas foram totalmentesubstitudas por debates.

    um blecaute, pensa Malorie. O mundo, o exterior, est sendo desligado.Ningum tem respostas. Ningum sabe o que est acontecendo. As pessoas esto vendo

    alguma coisa que as leva a machucar os outros. A machucar a si mesmas.As pessoas esto morrendo.Mas por qu?Malorie tenta se acalmar pensando na criana que est crescendo dentro dela. Parece estar

    sofrendo de todos os sintomas mencionados no livro sobre bebs, Grvida. Sangramento leve.Seios sensveis. Cansao. Shannon critica as mudanas de humor de Malorie, mas so osdesejos que a esto enlouquecendo. Receosas demais para irem ao mercado, as irms tm quese contentar com os alimentos que estocaram pouco depois de comprarem o teste de gravidez.Mas o gosto de Malorie mudou. Alimentos comuns lhe do nojo. Por isso ela mistura coisas.Brownies de laranja. Frango ao molho cocktail. Torradas com peixe cru. Ela sonha comsorvete. Muitas vezes, ao olhar para a porta da frente, pensa em como seria fcil entrar nocarro e dirigir at o mercado. Sabe que levaria apenas quinze minutos. No entanto, toda vezque est prestes a fazer isso, a TV anuncia outra histria devastadora. Alm do mais, comosaber se os funcionrios do mercado ainda esto indo trabalhar?

    O que voc acha que as pessoas esto vendo? pergunta Malorie a Shannon. No sei, Mal. Realmente no sei.As irms fazem essa pergunta uma para a outra o tempo todo. impossvel contar o nmero

    de teorias que surgiram na internet. Todas deixam Malorie apavorada. Doenas mentaiscausadas pelas ondas de rdio dos aparelhos sem fio uma delas. Um salto evolutivo errneoda humanidade outra. Os integrantes do movimento Nova Era dizem que a humanidade esttendo contato com um planeta prestes a explodir ou com um sol que est morrendo.

    Alguns acreditam que existem criaturas por a.O governo no diz nada a no ser: Tranquem as portas.Malorie, sozinha, est sentada no sof, acariciando a barriga lentamente, enquanto assiste

    TV. Est preocupada porque no h nada de positivo para assistir, e o beb pode sentir suaansiedade. Grvida lhe disse que isso poderia acontecer. O beb sente as emoes da me.Mesmo assim, ela no consegue tirar os olhos da tela. Numa mesa encostada na parede atrsdo sof, o computador est ligado. O rdio toca baixinho. Juntos, os aparelhos fazem Maloriese sentir como se estivesse num centro de operaes de guerra. No meio de tudo, enquanto omundo desmorona. sufocante. E est ficando aterrorizante. No h mais comerciais. E osncoras fazem interrupes longas nos noticirios, sem vergonha de revelar a prpria surpresa

  • ao receberem atualizaes ao vivo.Acima desse zumbido miditico, Malorie ouve Shannon andando no segundo andar.Ento, enquanto Gabriel Townes, um dos principais ncoras da CNN, l um papel que

    acabou de ser entregue a ele, Malorie ouve um barulho no andar de cima. Ela fica imvel. Shannon! grita. Voc est bem?Gabriel Townes no parece bem. Ele tem aparecido muito na TV nos ltimos tempos. A

    CNN avisou que muitos de seus reprteres pararam de ir ao estdio. Townes tem dormido l.Vamos superar isso juntos seu novo slogan. O cabelo do ncora no est mais perfeito. Eleusa pouca maquiagem. Mais preocupante a maneira exausta como narra as notcias. Townesparece deprimido.

    Shannon. Venha aqui. Parece que Townes recebeu uma notcia.Mas no h resposta. Apenas silncio no andar de cima. Malorie se levanta e baixa o som

    da TV. Shannon!Baixinho, Gabriel Townes anuncia uma decapitao em Toledo. Fica a menos de cento e

    trinta quilmetros de onde Malorie est assistindo TV. Shannon! O que voc est fazendo a em cima?Nenhuma resposta. Townes fala baixinho na TV. No h grficos acompanhando a notcia.

    Nem msica. Ou qualquer imagem.Malorie, parada no meio da sala, olha para o teto. Ela baixa ainda mais o volume da TV,

    ento desliga o rdio e vai at a escada.Ao lado do corrimo, olha lentamente para cima, para o cho acarpetado. As luzes esto

    apagadas, mas um raio fino do que parece ser a luz do sol se espalha pela parede. Apoiando amo no corrimo, Malorie pisa no carpete. Olha por cima do ombro, para a porta da frente, eimagina uma mistura de todas as notcias que ouviu.

    Ela sobe a escada. Shannon.Malorie chega ao segundo andar. Tremendo. Ao atravessar o corredor, v a luz do sol

    vindo do quarto de Shannon. Devagar, alcana a porta aberta e olha para dentro.A quina da janela est exposta. Uma parte do cobertor, solta, est pendurada.Malorie desvia o olhar rapidamente. No h movimento no quarto, e um zumbido fraco vem

    da TV ligada no andar de baixo. Shannon.No fim do corredor, a porta do banheiro est aberta. A luz, acesa. Malorie vai at l. Ento

    prende a respirao e se vira para olhar.Shannon est no cho, o rosto virado para o teto. H uma tesoura enfiada em seu peito.

    Sangue a circunda, formando uma poa nos ladrilhos do cho. Parece haver mais sangue doque o corpo dela poderia conter.

    Malorie grita, agarrando o batente, e escorrega no cho, chorando desesperadamente. A luz

  • severa do banheiro expe cada detalhe. A fixidez dos olhos da irm. A maneira como a camisade Shannon afunda em seu peito com as lminas da tesoura.

    Malorie se arrasta at a banheira e vomita. O sangue da irm gruda em seu corpo. Ela tentaacord-la, mas sabe que isso no vai funcionar. Malorie se levanta, falando com Shannon,dizendo que vai procurar ajuda. Limpando o sangue das mos, corre para o primeiro andar eencontra seu celular no sof. Liga para a polcia. Ningum atende. Liga de novo. Ningumatende. Ento liga para os pais. Mais uma vez, ningum atende. Ela se vira e corre para a portada frente. Precisa conseguir ajuda. A mo agarra a maaneta, mas Malorie percebe que noconsegue gir-la.

    Meu Deus, pensa. Shannon nunca faria isso por vontade prpria. Meu Deus, verdade!Tem alguma coisa l fora.

    E, o que quer que Shannon tenha visto, deve estar perto da casa.Um pedao de madeira tudo que separa Malorie daquilo que matou sua irm. Do que sua

    irm viu.Para alm da floresta, ela ouve o vento. No h outros sons. Nenhum carro. Nenhum

    vizinho. Apenas silncio.Ela est sozinha. Ento, desesperada, percebe que precisa de algum. Precisa ter

    segurana. Tem que achar um jeito de sair daquela casa.Com a imagem de Shannon vvida na cabea, Malorie corre para a cozinha. Puxa uma pilha

    de jornais de sob a pia. Folheia-os que nem uma manaca. Ofegante, com os olhos arregalados,confere o verso de cada um.

    Por fim, encontra.O anncio. Riverbridge. Estranhos convidando estranhos para sua casa. Malorie o l mais

    uma vez. Ento l de novo. Cai de joelhos, agarrando o jornal.Riverbridge fica a vinte minutos dali. Shannon viu alguma coisa l fora e aquilo a matou.

    Malorie precisa levar o filho a um lugar seguro.De repente, sua respirao ofegante se transforma em um fluxo interminvel de lgrimas.

    Malorie no sabe o que fazer. Nunca sentiu tanto medo. Tudo dentro dela parece quente, comose estivesse pegando fogo.

    Chora compulsivamente. Atravs dos olhos molhados, l o anncio mais uma vez.E suas lgrimas caem no papel.

  • seis

    O que foi, Garoto? Voc ouviu isso? O qu? O que voc ouviu? Diga! Escute.Malorie obedece. Para de remar e escuta. Ela ouve o vento. O rio. O distante grasnido

    agudo de pssaros e o movimento ocasional de pequenos animais nas rvores. Ouve tambmsua respirao e seu corao disparado. E, alm de todo esse barulho, de algum lugar dentrodele, h um som que ela passa imediatamente a temer.

    Alguma coisa est na gua com eles. No falem! sibila Malorie.As crianas ficam em silncio. Ela apoia os remos nas pernas dobradas e fica imvel.H algo grande frente do barco, no rio. Algo que sobe e espirra gua.Apesar de todo o esforo que fez para proteger as crianas da loucura, Malorie se pergunta

    se os preparou o bastante para as antigas realidades.Como os animais selvagens que reivindicariam espao no rio que o ser humano no usa

    mais.O barco a remo vira para a esquerda de Malorie. Ela sente o calor de algo tocando a borda

    de ferro, onde a ponta do remo est apoiada.Os pssaros nas rvores ficam em silncio.Ela prende a respirao, pensando nas crianas.O que est encostando na ponta do barco? uma criatura?, pensa ela, histrica. Por favor, no, Deus, que seja um animal. Por

    favor!Malorie sabe que, mesmo que as crianas tirassem as vendas, mesmo que gritassem at

    enlouquecer, ainda assim ela no abriria os olhos.Sem que ela reme, o barco se move de novo. Ela segura um dos remos e se prepara para

    us-lo como arma.Ento ouve o barulho de algo entrando na gua. A coisa se move. Parece estar mais longe.

    Malorie est to ofegante que chega a engasgar.Ouve um rudo entre os galhos da margem sua esquerda e imagina que a coisa tenha se

    arrastado at a costa.Ou talvez tenha andado.Ser que uma criatura est parada ali? Analisando os galhos das rvores e a lama a seus

    ps?

  • Pensamentos como esse a fazem se lembrar de Tom. Do doce Tom, que passava todas ashoras de todos os dias tentando encontrar uma maneira de sobreviver nesse terrvel mundonovo. Malorie queria que ele estivesse ali. Ele saberia o que fez aquele som.

    um urso-negro, diz a si mesma.O canto dos pssaros recomea. A vida nas rvores continua. Voc foi muito bem gagueja Malorie, com a voz tomada pelo nervosismo.Volta a remar e logo o som da Menina mexendo nas peas do quebra-cabea se junta ao

    barulho dos remos na gua.Ela imagina as crianas, cegas pelo tecido negro das vendas, incomodadas com a

    visibilidade provocada pelo sol, descendo o rio. Sua prpria venda mida aperta a cabea.Irrita a pele prxima s orelhas. s vezes, ela consegue ignorar isso. Outras, s conseguepensar em coar. Apesar do frio, molha repetidamente os dedos no rio e umedece o tecido quecobre a regio irritada. Bem acima das orelhas. A ponte do nariz. A parte de trs da cabea,onde est o n. Molhar o tecido ajuda, mas Malorie nunca vai se acostumar totalmente com asensao do pano em seu rosto. At seus olhos, pensa ela enquanto rema, at seus clios secansam do contato com a venda.

    Um urso-negro, diz a si mesma de novo.Mas no tem tanta certeza.Questes assim regeram todos os movimentos de Malorie nos ltimos quatro anos e meio.

    Desde o momento em que decidiu responder ao anncio no jornal e foi para a casa emRiverbridge. Cada barulho que ouviu desde ento criou imagens de coisas muito piores do quequalquer animal terrestre.

    Vocs fizeram um bom trabalho diz para as crianas, tremendo.A inteno acalm-las, mas sua voz denuncia o medo.

  • sete

    Riverbridge.Malorie j esteve nessa rea, muitos anos antes. Numa festa de ano-novo. Ela mal se

    lembra do nome da moa que deu a festa. Marcy alguma coisa. Maribel, talvez. Shannon aconhecia e foi quem dirigiu naquela noite. As estradas estavam lamacentas de neve. Montescinzentos de neve suja emolduravam as ruas. As pessoas usavam o gelo dos telhados parafazer drinques. Algum ficou seminu e escreveu 2009 na neve. Agora est no auge do vero, e Malorie quem dirige. Com medo, sozinha e de luto.

    A viagem at a casa angustiante. Dirigindo a menos de trinta quilmetros por hora,Malorie procura freneticamente placas e outros carros. Fecha os olhos e depois os abre denovo, sem parar de dirigir.

    As ruas esto vazias. Toda casa pela qual passa tem cobertores ou tbuas de madeiratapando as janelas. Vitrines esto vazias. Estacionamentos de shoppings, desertos. Ela mantmos olhos no asfalto imediatamente sua frente e dirige, seguindo o caminho marcado no mapaa seu lado. Suas mos parecem fracas ao volante. Seus olhos doem de tanto chorar. Ela senteum fluxo interminvel de culpa por ter deixado a irm, morta, no cho do banheiro de casa.

    Malorie no a enterrou. Apenas foi embora.Nos hospitais, no atenderam ao telefone. Nem nas funerrias. Malorie cobriu parte do

    corpo da irm com um cachecol azul e amarelo que Shannon adorava.O rdio entra e sai de sintonia. Um homem fala sobre a possibilidade de uma guerra. Se a

    humanidade se unir, diz ele, mas a esttica se sobrepe sua voz. Ela passa por um carroabandonado no acostamento. As portas esto abertas. Uma jaqueta pende do banco do carona etoca no cho. Malorie olha para a frente de novo, depressa. Depois fecha os olhos. Emseguida, os abre.

    O rdio est funcionando. O homem continua falando sobre guerra. Algo se move para adireita e ela v de relance. No olha. Fecha o olho direito. Mais frente, no meio da estrada,um pssaro pousa e voa outra vez. Quando chega at ali, Malorie percebe que a ave estavainteressada num co morto. Ela passa por cima do animal. O carro sacode. Ela bate a cabeano teto, a mala balanando no banco de trs. Est tremendo. O cachorro no parecia apenasmorto, mas tambm retorcido. Ela fecha os olhos. Depois os abre.

    Um pssaro, talvez o mesmo, grasna no cu. Malorie passa pela rua Roundtree. RuaBallam. Horton. Sabe que est perto. Algo dispara esquerda. Ela fecha o olho esquerdo.Passa por um caminho dos correios vazio. As cartas esto espalhadas pelo concreto. Umpssaro voa baixo demais e quase bate no para-brisa. Ela grita, fecha os olhos e os abre. E,nesse momento, v a placa que est procurando.

  • Shillingham.Malorie vira direita, freando enquanto faz a curva para entrar na rua Shillingham. No

    precisa conferir o mapa para saber que o nmero 273. Ele esteve em sua mente durante todaa viagem.

    Alm de alguns carros estacionados em frente a uma casa direita, a rua est vazia. Avizinhana parece comum, tpica de um bairro residencial. A maioria das casas igual. Agrama est alta em todos os jardins. Todas as janelas esto cobertas. Ansiosa, Malorie olhapara a casa onde os carros esto estacionados e sabe que a que est procurando.

    Ela fecha os olhos e pisa no freio.Est parada e ofegante. A imagem desbotada da casa permanece em sua mente.A garagem fica direita. O porto, bege, est fechado. Um telhado amarronzado se apoia

    sobre tbuas e tijolos brancos. A porta da frente de um marrom mais escuro. As janelas estotapadas. H um sto.

    Tomando coragem, com os olhos ainda fechados, Malorie se vira e pega a ala da mala. Acasa deve estar a cerca de quinze metros de onde parou. Ela sabe que no est perto do meio-fio. Mas no se importa. Para tentar se acalmar, respira fundo, devagar. A mala est a seu ladono banco do carona. De olhos fechados, ela escuta. Como no ouve nada do lado de fora, abrea porta do motorista e sai, pegando suas coisas.

    O beb chuta.Malorie leva um susto e se atrapalha com a bagagem. Quase abre os olhos para espiar a

    barriga. Em vez disso, a acaricia. Chegamos sussurra.Ela pega a mala e, sem enxergar, caminha com cuidado at o jardim em frente casa.

    Quando sente a grama sob os ps, anda mais rpido, deparando-se com um pequeno arbusto.Os espinhos das flores arranham seus pulsos e seu quadril. Malorie d um passo para trs esente o concreto sob os sapatos. Anda com cuidado at onde acha que a porta da frente fica.

    Ela est certa. Fazendo barulho ao apoiar a mala na varanda, tateia os tijolos e encontrauma campainha. Toca.

    De incio, ningum atende. Ela tomada por uma sensao desanimadora de que aquilo seu fim. Ser que dirigiu at ali, enfrentou o mundo, por nada? Toca a campainha de novo. Ede novo. Mais uma vez. Ningum responde. Bate na porta, desesperada.

    Ningum responde.Ento... Malorie ouve vozes abafadas dentro da casa.Ai, meu Deus! Tem algum aqui! Tem algum em casa! Oi diz, baixinho, assustando-se com o som da prpria voz na rua vazia. Ol! Eu vi

    o anncio de vocs no jornal!Silncio. Malorie espera, ouvindo com ateno. Ento algum grita para ela. Quem voc? pergunta um homem. De onde veio?Malorie sente alvio e esperana. Tem vontade de chorar.

  • Meu nome Malorie! Vim de Westcourt!H uma pausa. Ento: Seus olhos esto fechados? indaga a voz de outro homem. Esto! Meus olhos esto fechados. Esto fechados h muito tempo?S me deixem entrar!, pensa ela. ME DEIXEM ENTRAR! No responde Malorie. Ou esto. Vim dirigindo de Westcourt. Mantive os olhos

    fechados pelo mximo de tempo que consegui.Ela ouve vozes baixas. Algumas esto irritadas. As pessoas esto discutindo se devem

    deix-la entrar ou no. Eu no vi nada! grita Malorie. Juro. Estou bem. Meus olhos esto fechados. Por

    favor. Eu vi o anncio no jornal. Continue de olhos fechados diz um homem, por fim. Vamos abrir a porta. Quando

    fizermos isso, entre o mais rpido que puder. Est bem? Est bem. Sim. Est bem.Ela aguarda. O ar est parado, calmo. Nada acontece. Ento ela ouve o clique da porta e

    entra rapidamente. Mos a puxam para dentro. A porta bate atrs dela. Agora espere pede uma mulher. Precisamos tatear tudo para garantir que voc

    entrou sozinha.Malorie fica ali de p, com os olhos fechados, e escuta. Parece que esto batendo nas

    paredes com cabos de vassoura. Vrias mos tocam seus ombros, seu pescoo, suas pernas.Algum est atrs dela agora. Ela ouve dedos sobre a porta fechada.

    Muito bem afirma um homem. Estamos seguros.Quando abre os olhos, Malorie v cinco pessoas paradas diante dela. Lado a lado, enchem

    o hall. Ela os encara. E a encaram de volta. Um homem est usando uma espcie de capacete.Os braos dele esto cobertos com o que parecem ser bolas de algodo e fita adesiva.Canetas, lpis e outros objetos afiados se projetam da fita como se aquela fosse uma versoinfantil de uma armadura medieval. Dois outros seguram vassouras.

    Ol diz o homem da armadura. Meu nome Tom. Voc, claro, entende por queatendemos a porta desse jeito. Alguma coisa poderia entrar com voc.

    Apesar do capacete, Malorie v que Tom tem cabelo castanho-claro. Feies marcadas.Seus olhos azuis brilham com inteligncia. No muito mais alto do que ela. A barba porfazer quase ruiva.

    Eu entendo afirma Malorie. Westcourt repete Tom, aproximando-se dela. uma viagem e tanto. Foi muito

    corajoso da sua parte. Por que no se senta para conversarmos sobre o que voc viu nocaminho?

    Malorie faz que sim com a cabea, mas no se mexe. Est agarrando a mala com tanta foraque as juntas dos dedos esto brancas e doloridas. Um homem maior e mais alto se aproxima

  • dela. Pronto diz. Pode deixar que eu seguro isso. Obrigada. Meu nome Jules. Estou aqui h dois meses. Como a maioria de ns. Tom e Don

    chegaram um pouco antes.O cabelo escuro e curto de Jules tem aspecto sujo. Como se o homem tivesse trabalhado ao

    ar livre. Ele parece ser gentil.Malorie olha para os rostos dos novos companheiros de casa. H uma mulher e quatro

    homens. Eu sou Don.Ele tambm tem cabelo escuro. Um pouco mais comprido. Usa uma cala preta e uma

    camisa roxa de boto cujas mangas esto dobradas at os cotovelos. Parece mais velho queMalorie, vinte e sete, vinte e oito anos.

    Voc assustou muito a gente. Ningum bate nessa porta h semanas. Desculpem. No se preocupe diz o quarto homem. Todos ns fizemos a mesma coisa que voc.

    Eu sou Felix.Felix parece cansado. Malorie acha que ele jovem. Vinte e um, vinte e dois anos. O nariz

    comprido e o cabelo castanho armado lhe do um aspecto caricato. Ele alto, como Jules,embora seja mais magro.

    E meu nome Cheryl apresenta-se a mulher, estendendo a mo.Malorie a cumprimenta.A expresso de Cheryl menos acolhedora do que a de Tom e Felix. O cabelo castanho

    cobre parte do rosto dela. Est usando uma regata. Tambm parece ter trabalhado pesado. Jules, voc me ajuda a tirar essas coisas? pede Tom.Ele est tentando tirar o capacete, mas a armadura falsa atrapalha. Jules o ajuda.Sem o capacete, Malorie consegue v-lo melhor. O cabelo castanho-claro e bagunado

    contrasta com a barba. Leves sardas colorem seu rosto. A barba bem rala, mas o bigode mais denso. A camisa de boto xadrez e a cala marrom a fazem lembrar de um professor queela teve na escola.

    Observando-o pela primeira vez, Malorie mal percebe que Tom est olhando para a barrigadela.

    No quero ser rude, mas voc est grvida? Estou responde Malorie, baixinho, com medo de isso ser um problema. Ai, porra exclama Cheryl. Voc s pode estar brincando. Cheryl diz Tom. Voc vai assustar a moa. Olhe, Malorie, no ? fala Cheryl. No quero parecer m ao dizer isso, mas ter

    uma grvida dentro desta casa uma responsabilidade enorme.Malorie fica em silncio. Encara cada rosto, observando as expresses de todos. Parecem

  • que a esto estudando. Decidindo se so capazes de abrigar algum que um dia dar luz. Derepente, Malorie percebe que no pensou nisso antes. Durante a viagem, ela no considerouque seria aqui que o beb nasceria.

    As lgrimas esto surgindo.Cheryl balana a cabea e, cedendo, aproxima-se dela. Meu Deus... Venha aqui. Eu no estava sozinha explica Malorie. Minha irm, Shannon, estava comigo. S

    que ela morreu. Eu a deixei l.Malorie est chorando. Atravs da viso embaada, percebe que os quatro homens a

    observam. Parecem sentir pena. No mesmo instante, ela entende que todos esto de luto, ssuas maneiras.

    Venha chama Tom. Vamos mostrar a casa para voc. Pode usar o quarto prximo escada do segundo andar. Vou dormir aqui embaixo.

    No retruca Malorie. No posso ficar com o quarto de nenhum de vocs. Eu insisto afirma Tom. Cheryl dorme no final do corredor do segundo andar. Felix

    est no quarto ao lado do que voc vai ficar. Afinal, voc est grvida. Vamos ajud-la damelhor maneira possvel.

    Eles caminham por um corredor. Passam por um quarto esquerda. Depois por umbanheiro. Malorie v o prprio reflexo no espelho e desvia depressa o olhar. esquerda, vuma cozinha. No balco h baldes grandes.

    Esta diz Tom a sala de estar. A gente fica muito aqui.Malorie se vira para ver a mo do homem apontar para um cmodo maior. H um sof.

    Uma mesa de canto com um telefone. Abajures. Uma poltrona. Um tapete. Um calendrio foidesenhado na parede, entre os quadros, com algo que parece hidrocor. As janelas foramtapadas com cobertores pretos.

    Malorie ergue o olhar quando um co entra na sala de repente. um border collie. Ocachorro olha para a moa com curiosidade antes de se aproximar dos ps dela e esperar queo acaricie.

    Este Victor diz Jules. Ele tem seis anos. Eu o peguei quando era filhote.Malorie faz carinho no cachorro. Acha que Shannon teria gostado dele. Ento Jules sai da

    sala, carregando a mala de Malorie por uma escada acarpetada. Na parede, h quadrospendurados. Alguns so fotos, outros, pinturas. No topo da escada, ela v Jules entrar numquarto. Mesmo do primeiro andar, percebe que um cobertor cobre a janela do cmodo.

    Cheryl a leva at o sof. Malorie se senta ali, exausta por causa da tristeza e do choque.Cheryl e Don dizem que vo preparar um pouco de comida.

    So produtos enlatados explica Felix. Fomos comprar no dia em que cheguei.Pouco antes do primeiro incidente na Pennsula Superior. O homem do mercado achou queestivssemos malucos. Ainda temos o bastante para mais uns trs meses.

    Um pouco menos agora diz Don, entrando na cozinha.

  • Malorie se pergunta se ele estava insinuando que, com a chegada dela, h mais bocas paraalimentar.

    Ento Tom senta-se ao lado da recm-chegada no sof e pergunta o que ela viu na viagemat ali. Est curioso sobre tudo. Tom do tipo que usaria qualquer informao que ela lhedesse, mas Malorie sente que os detalhes insignificantes de que se lembra no podem ajudarem nada. Conta a ele sobre o cachorro morto. Sobre o caminho dos correios. As vitrines e asruas vazias e o carro abandonado com a jaqueta.

    Tenho que explicar algumas coisas a voc comea Tom. Em primeiro lugar, estacasa no pertence a nenhum de ns. O proprietrio morreu. Conto essa histria para vocdepois. No temos internet. No funciona desde que chegamos aqui. Temos quase certeza deque as pessoas que controlam as torres de transmisso pararam de trabalhar. Ou esto mortas.No recebemos mais cartas nem jornais. Voc conferiu seu celular nos ltimos dias? Osnossos pifaram umas trs semanas atrs. Mas temos um telefone fixo funcionando, o que umatremenda sorte. S no sei para quem poderamos ligar.

    Cheryl entra na sala trazendo um prato com cenouras e ervilhas. E um pequeno copo degua tambm.

    O telefone fixo ainda funciona explica Tom pela mesma razo que as luzes aindaacendem. A usina local de energia hidroeltrica. No posso lhe afirmar se ela tambm vaiparar de funcionar um dia, mas, se os homens que trabalham l tiverem deixado as comportasabertas da maneira certa, a energia pode durar por um bom tempo. Isso significa que o rio afonte de eletricidade desta casa. Voc sabia que tem um rio passando aqui atrs? Caso nohaja um desastre, enquanto ele fluir, talvez tenhamos sorte. E chances de sobreviver. Ser queisso pedir demais? Provavelmente. Mas, quando voc for at o poo pegar um pouco degua, e essa a gua que usamos para tudo, vai poder ouvir o rio fluindo a uns setenta metrosda casa. No temos gua encanada. Ela parou de circular logo depois que cheguei. Para ir aobanheiro, usamos baldes e nos revezamos para levar os que esto cheios at as latrinas. Soumas valas que cavamos na floresta. claro que tudo isso tem que ser feito usando uma venda.

    Jules desce para o primeiro andar. Victor, o cachorro, o segue. J est tudo pronto diz, acenando para Malorie. Obrigada responde ela, baixinho.Tom aponta para uma caixa de papelo em uma pequena mesa encostada na parede. As vendas ficam ali. Pode usar qualquer uma, sempre que quiser.Todos olham para ela. Cheryl est sentada no brao da poltrona. Don, parado na porta da

    cozinha. Jules se ajoelha ao lado de Victor ao p da escada. Felix est de p ao lado de umadas janelas cobertas.

    Todos sofreram, pensa Malorie. Estas pessoas passaram por coisas horrveis, assim comoeu.

    Enquanto bebe do copo que Cheryl lhe entregou, Malorie se vira para Tom. No conseguetirar Shannon da cabea. Ainda assim, se esfora e conversa com Tom, mesmo cansada:

  • O que era aquilo que voc estava usando quando cheguei? A armadura? . Ainda no tenho certeza responde Tom, sorrindo. Estou tentando construir uma

    armadura. Alguma coisa que proteja mais do que s os nossos olhos. Ningum sabe o que vaiacontecer se uma dessas coisas encostar na gente.

    Malorie olha para os outros moradores da casa. E depois se volta para Tom. Vocs acreditam que existem criaturas por a? Acreditamos diz Tom. George, o dono dessa casa, viu uma. Pouco antes de

    morrer.Malorie no sabe o que dizer. Ela instintivamente pe a mo na barriga. No estou tentando assustar voc afirma ele. E em breve vou lhe contar a histria

    de George. Mas o rdio est dizendo a mesma coisa. Acho que agora consenso. Algumacoisa viva est fazendo isso com a gente. E basta v-la por um segundo, talvez menos que isso.

    Para Malorie, tudo no cmodo parece escurecer. Ela se sente zonza, atordoada. Seja l o que for continua Tom , nossas mentes no conseguem entender. Pelo que

    parece, as criaturas so como o infinito. Algo complexo demais para nossa cabea. Sabe?Malorie sente que as palavras de Tom esto, de alguma forma, sumindo. Victor arqueja aos

    ps de Jules. Cheryl pergunta se ela est bem. Tom ainda est falando.Criaturas... Infinito... Nossas mentes tm limites, Malorie... Essas coisas... Esto alm

    deles... Mais profundas do que eles... Fora de alcance... Fora de...Nesse ponto, Malorie desmaia.

  • oito

    Malorie acorda no quarto novo. Est escuro. Por um ltimo momento abenoado, ela acordacom a sensao de que todas as notcias sobre criaturas e loucura foram apenas um pesadelo.Zonza, lembra-se de Riverbridge, de Tom, de Victor, da viagem, mas nada disso est claro atela perceber, ao encarar o teto, que nunca havia acordado naquele quarto.

    E Shannon continua morta.Sentando-se devagar na cama, ela olha para a nica janela do quarto. Um cobertor preto

    est pregado parede, mantendo-a a salvo do mundo exterior. frente dos seus ps h umavelha penteadeira. A cor rosada da madeira est desbotada, mas o espelho parece limpo. Noreflexo, Malorie est mais plida do que o normal. Por isso, seu cabelo preto parece aindamais escuro. Na base do espelho h mais pregos, parafusos, um martelo e uma chave inglesa.Com exceo da cama, a penteadeira o nico mvel do quarto.

    Ao levantar-se, Malorie passa os ps pela beira do colcho e v, no carpete cinza, outrocobertor preto, dobrado com esmero. Este sobrou, pensa. Ao lado dele, h uma pequena pilhade livros.

    Ela olha para a porta do quarto e ouve vozes vindo do primeiro andar. Ainda no conheceaquelas pessoas e no sabe dizer quem est falando, a no ser que seja Cheryl, a nica mulher,ou Tom, cuja voz a guiar durante anos.

    Quando fica de p, o carpete parece spero e velho sob seus ps. Ela atravessa o quarto eespia o corredor. Sente-se bem. Descansada. No est mais zonza. Usando as mesmas roupascom as quais desmaiou na noite anterior, Malorie desce as escadas at a sala de estar.

    Pouco antes de chegar ao piso de madeira, Jules passa, carregando uma pilha de roupas. Oi cumprimenta ele.Malorie o observa caminhar at o banheiro no fim do corredor. Depois, escuta-o mergulhar

    as roupas num balde de gua.Ao se virar para a cozinha, ela v Cheryl e Don perto da pia. Malorie entra na cozinha

    enquanto Don tira um copo com gua de um balde. Cheryl a escuta e se vira. Voc deixou a gente preocupado ontem noite diz ela. Est se sentindo melhor?Malorie, ao perceber que desmaiou na noite anterior, fica um pouco envergonhada. Estou, estou bem. s muita coisa para assimilar. Foi assim com todos ns explica Don. Mas voc vai se acostumar. Logo, logo vai

    estar dizendo que a gente tem uma vida de luxo. Don um cnico afirma Cheryl com simpatia. No sou nada responde Don. Adoro este lugar.Malorie toma um susto quando Victor lambe sua mo. Ao se ajoelhar para fazer carinho no

  • cachorro, ela ouve uma msica vir da sala de jantar. Atravessa a cozinha e olha para o outrocmodo. No tem ningum, mas o rdio est ligado.

    Ela olha de volta para Cheryl e Don prximos pia. Atrs deles fica a porta para o poro.Malorie est prestes a perguntar sobre ele quando ouve a voz de Felix vindo da sala de estar.Ele est recitando o endereo da casa.

    Shillingham, 273... Meu nome Felix... Estamos procurando qualquer pessoa que estejaviva... Sobrevivendo...

    Malorie espia a sala de estar. Felix usa o telefone fixo. Ele est ligando para nmeros aleatrios.Malorie leva outro susto, desta vez ao ouvir a voz de Tom, que agora observa a sala de

    estar ao lado dela. No temos uma lista telefnica? pergunta ela. No. E isso uma constante fonte de frustrao para mim.Felix est discando outro nmero. Tom, segurando um pedao de papel e um lpis,

    pergunta: Quer ir at a despensa comigo?Malorie o segue at a cozinha. Voc vai conferir o estoque? pergunta Don enquanto Tom abre a porta do poro. Vou. Me diga como est a situao. Claro.Tom entra primeiro. Malorie o segue pela escada de madeira. O piso do poro de terra

    batida. No escuro, ela consegue sentir o cheiro da terra e tate-la com os ps descalos.O cmodo se ilumina de repente quando Tom puxa a cordinha de uma lmpada. Malorie

    fica assustada com o que v. O lugar lembra mais um depsito do que uma despensa.Prateleiras de madeira que parecem infinitas esto lotadas de alimentos enlatados. Do cho deterra ao teto, o lugar parece um bunker.

    George construiu isso tudo diz Tom, indicando as prateleiras de madeira com a mo. Ele realmente estava frente na situao.

    esquerda, apenas parcialmente iluminada pela luz, Malorie v uma cortina de tapeariatransparente pendurada. Atrs dela ficam uma lavadora e uma secadora.

    Parece muita comida explica Tom, apontando para as latas. Mas no . E Donquem mais se preocupa com a quantidade que ainda temos.

    Com que frequncia vocs conferem o estoque? pergunta Malorie. Uma vez por semana. Mas, s vezes, quando fico inquieto, deso para conferir as coisas

    um dia depois de ter feito isso. Est frio aqui. Est. Um clssico poro frio para estocagem. o ideal. O que acontece se ficarmos sem comida?

  • Tom a encara. Os traos dele parecem suaves quela luz. Vamos buscar mais. Vasculhar mercados. Outras casas. Tudo o que conseguirmos. Entendi responde ela, assentindo.Enquanto Tom escreve no papel, Malorie examina o poro. Ento este deve ser o cmodo mais seguro da casa diz ela.Tom faz uma pausa. Ele pensa a respeito. Acho que no. Acho que o sto mais seguro. Por qu? Voc notou a tranca daqui? A porta muito antiga. D para trancar, mas frgil. Parece

    que este poro foi construdo primeiro, h anos, antes de decidirem acrescentar uma casa aele. Mas a porta do sto... Aquela tranca incrvel. Se precisssemos nos proteger, se umadaquelas coisas entrasse na casa, eu diria que para o sto que gostaramos de ir.

    Malorie instintivamente olha para cima. Ela coa os ombros.Se precisssemos nos proteger. A julgar pela comida que ainda temos continua Tom , vamos conseguir viver mais

    trs ou quatro meses com isso. Parece bastante tempo, mas passa muito rpido aqui. Os diascomeam a se misturar. Foi por isso que fizemos o calendrio na parede da sala de estar.Sabe, o tempo no significa mais nada, de certa forma. Mas uma das poucas coisas querestaram das nossas antigas vidas.

    A passagem do tempo? . E o que fazemos com ele.Malorie vai at um banquinho de madeira e se senta. Tom ainda est fazendo anotaes. Vou lhe explicar todas as tarefas que temos quando voltarmos l para cima diz ele, e

    ento aponta para o espao entre as prateleiras e a cortina. Est vendo aquilo ali?Malorie olha, mas no entende o que ele quer dizer. Venha aqui.Tom a leva at a parede, onde alguns dos tijolos esto quebrados. Uma terra surge por trs

    deles. No sei se isso me d medo ou se acho bom afirma ele. Como assim? Bem, o cho est exposto. Ser que isso significa que a gente poderia comear a cavar?

    Construir um tnel? Outro poro? Mais espao? Ou esse s mais um jeito de entrar na casa?Os olhos de Tom ficam ntidos e brilhantes luz do poro. O problema que, se as criaturas realmente quisessem entrar na nossa casa... no

    encontrariam dificuldade para fazer isso. E acho que j teriam feito.Malorie encara o buraco com terra aparente. Ela se imagina se arrastando por tneis,

    grvida. Imagina as minhocas.Depois de um breve silncio, pergunta: O que voc fazia antes disso acontecer?

  • Meu trabalho? Eu era professor. Do oitavo ano.Malorie assente. Bem que eu achei que voc parecia professor. Sabia que j ouvi isso? Muitas vezes! Acho que gosto dessa histria.Ele finge que est ajeitando o colarinho da camisa. Turma diz , hoje vamos aprender tudo sobre comida enlatada. Ento, por favor,

    calem a porra da boca.Malorie ri. O que voc fazia? pergunta Tom. Eu ainda no tinha chegado to longe responde ela. Voc perdeu a sua irm, no foi? indaga Tom gentilmente. Perdi. Sinto muito diz ele, e ento completa: Perdi uma filha. Meu Deus, Tom...Ele hesita, como se refletisse se deveria contar mais ou no. Mas ento prossegue: A me da Robin morreu no parto. Pode ser cruel estar contando isso, por causa da sua

    condio. Mas, se a gente vai se conhecer de verdade, uma histria que voc precisa saber.Robin era uma criana incrvel. Mais esperta do que o pai j aos oito anos. Ela gostava dascoisas mais estranhas. Do manual de um brinquedo mais do que do prprio brinquedo, porexemplo. Dos crditos de um filme em vez do prprio filme. Da maneira como alguma coisaera escrita. De uma expresso minha. Uma vez ela me disse que me achava parecido com o solpor causa do meu cabelo. Perguntei se eu brilhava como o sol e ela me respondeu: No,papai, voc brilha mais como a lua, quando est escuro l fora.

    Quando os casos foram noticiados e as pessoas comearam a levar aquilo a srio, fui umdaqueles pais que disse que no ia viver com medo. Eu me esforcei muito para continuar coma nossa rotina. E mais que tudo quis passar essa ideia para Robin. Ela ouvira coisas na escola.Eu s no queria que ela sentisse tanto medo. Mas, depois de um tempo, no consegui maisfingir. Logo os pais comearam a tirar as crianas da escola. Depois a prpria escola fechou.Temporariamente. Ou at que tivesse a confiana da comunidade para continuar a fornecer umambiente seguro para as crianas. Foram dias muito difceis, Malorie. Eu tambm eraprofessor, voc sabe, e a escola em que trabalhava fechou as portas mais ou menos na mesmapoca. Ento, de repente, comeamos a passar muito tempo juntos em casa. Percebi como elatinha crescido. Sua mente estava se desenvolvendo tanto... Mesmo assim, era nova demaispara entender como as histrias nos jornais eram assustadoras. Fiz o que pude para noesconder nada dela, mas o pai dentro de mim algumas vezes no conseguiu se segurar e mudoude estao.

    O rdio acabou sendo demais para ela. Robin comeou a ter pesadelos. Eu passava muitotempo acalmando minha filha. Sempre sentia que estava mentindo para ela. Concordamos quenenhum de ns olharia mais pela janela. Concordamos que ela no sairia mais sem a minha

  • permisso. De alguma forma, eu tinha que fazer com que ela acreditasse que as coisas eramseguras e absurdamente perigosas ao mesmo tempo.

    Ela comeou a dormir na minha cama, mas, certa manh, acordei e ela no estava l.Robin tinha falado na noite anterior que queria que as coisas voltassem a ser como eram.Dissera que queria a me, que nunca conheceu. Aquilo acabou comigo, ouvi-la falar daquelejeito. Tinha apenas oito anos e j me dizia que a vida era injusta. Quando acordei e no aencontrei, disse a mim mesmo que ela s estava se acostumando com a situao. Com aquelavida nova. Mas acho que talvez Robin tenha perdido um pouco da sua inocncia na noiteanterior, quando percebeu, antes de mim, como era grave a situao ao nosso redor.

    Tom faz uma pausa. Olha para o cho. Eu a encontrei na banheira, Malorie. Flutuando. Os pequenos pulsos cortados com a

    gilete com a qual ela tinha visto eu me barbear milhares de vezes. A gua estava vermelha. Osangue pingava da borda da banheira. Havia sangue nas paredes. Era uma criana. Oito anos.Ser que olhou pela janela? Ou ela mesma simplesmente decidiu fazer aquilo? Nunca vousaber a resposta.

    Malorie se aproxima de Tom e o abraa.Mas ele no chora. Em vez disso, depois de um instante, vai at a prateleira e volta a fazer

    anotaes no papel.Malorie pensa em Shannon. Ela tambm morreu no banheiro. Tambm tirou a prpria vida.Quando termina, Tom pergunta se Malorie est pronta para voltar l para cima. Enquanto

    estende a mo para puxar a cordinha da lmpada, ele percebe que ela est olhando para oburaco aberto na parede.

    D medo, no d? pergunta Tom. D. Bem, no deixe que d. s um dos medos do velho mundo que a gente persiste em

    carregar. Que medo? O do poro.Malorie assente.Ento Tom puxa a cordinha e a luz se apaga.

  • nove

    Criaturas, pensa Malorie. Que palavra boba.As crianas esto quietas, e as margens, silenciosas. Ela consegue ouvir os remos cortando

    a gua. O ritmo das remadas est em sintonia com as batidas de seu corao, mas depois seperde. Quando as cadncias se opem, ela sente que poderia morrer.

    Criaturas.Malorie nunca gostou dessa palavra. De alguma forma parece errada. Acha que as coisas

    que a assombram h mais de quatro anos no so criaturas. Uma lesma de jardim umacriatura. Um porco-espinho tambm. Mas o que se esgueirava por trs das janelas cobertas e amanteve vendada no do tipo que um exterminador de pestes poderia matar.

    Brbaro tambm no bom. Um brbaro imprudente. Assim como um brutamontes.A distncia, um pssaro canta, bem alto no cu. Os remos cortam a gua, balanando a cada

    remada.Gigante no se pode provar. Elas podem ser to pequenas quanto uma unha.Apesar de a famlia estar no incio da jornada pelo rio, os msculos de Malorie doem de

    tanto remar. Sua camisa est encharcada de suor. Seus ps esto frios. A venda continua airrit-la.

    Demnio. Diabo. Vampira. Talvez tudo isso.A irm dela morreu porque viu uma dessas coisas. Os pais devem ter encontrado o mesmo

    destino.Capeta bondoso demais. Selvagem, humano demais.Malorie no est s com medo das coisas que podem entrar no rio. Elas tambm a

    fascinam.Ser que sabem o que fazem? Ser que querem fazer o que fazem?Naquele instante, ela sente que o mundo inteiro est morto. Sente como se aquele barco a

    remo fosse o nico lugar onde h vida humana. O resto do mundo se espalha a partir da pontado barco, um mundo vazio, florescendo desabitado a cada remada.

    Se no sabem o que fazem, no podem ser viles.As crianas esto quietas h muito tempo. Ouve-se outro canto de pssaro no cu. Um peixe

    pula. Malorie nunca viu este rio. Como ser que ele ? Ser que as rvores ocupam asmargens? As casas margeiam a costa?

    So monstros, pensa Malorie. Mas ela sabe que so mais do que isso. So o infinito. Mame! grita o Garoto de repente.Uma ave de rapina grasna. O eco atravessa o rio. O que foi, Garoto?

  • Parece um motor. O qu?Malorie para de remar imediatamente. Ela ouve com ateno.Ao longe, alm do curso do rio, surge o som de um motor.Malorie o reconhece no mesmo instante. o barulho de outro barco se aproximando.Em vez de ficar animada com a possibilidade de encontrar outro ser humano no rio,

    Malorie sente medo. Abaixem-se, vocs dois ordena.Ela deixa os remos descansarem em seus joelhos. O barco flutua.O Garoto ouviu, diz a si mesma. O Garoto ouviu porque voc o criou bem e agora ele

    escuta melhor do que jamais vai conseguir enxergar.Respirando fundo, Malorie espera. O barulho do motor fica mais alto. O barco est

    viajando rio acima. Ai! reclama o Garoto. O que foi? Minha orelha! Uma rvore bateu em mim.Para Malorie, isso bom. Se uma rvore bateu no Garoto, o barco deve estar prximo de

    uma das margens. Talvez, por alguma providncia divina, a folhagem d cobertura a eles.O outro barco est muito mais perto agora. Malorie sabe que, se abrisse os olhos, poderia

    v-lo. No tirem a venda ordena ela.E ento o barulho do barco est no mesmo volume que o do deles. Ele no segue o rio.Quem quer que seja, pensa Malorie, pode nos ver.O motor do barco desligado de repente. O ar cheira a gasolina. Passos atravessam o que

    deve ser o deque. Ol! diz uma voz.Malorie no responde. Ol! Est tudo bem. Podem tirar as vendas! Sou s um homem comum. No, no podem afirma Malorie para as crianas. No tem nada aqui alm de ns, senhora. Pode acreditar em mim. Estamos sozinhos.Malorie fica parada. Por fim, sentindo que no tem alternativa, responde: Como o senhor sabe? Senhora diz ele. Estou olhando para vocs. Fiquei de olhos abertos durante toda a

    viagem de hoje. E a de ontem tambm. No d para simplesmente olhar afirma ela. O senhor sabe disso.O estranho ri. srio. No h nada a temer. Pode confiar em mim. Somos apenas ns dois neste rio.

    S duas pessoas comuns que se cruzaram. No! grita Malorie para as crianas.

  • Ela solta a Menina e pega os remos de novo. O homem suspira. No precisa viver assim, senhora. Pense nessas crianas. Voc tiraria delas a chance de

    ver um dia lindo e alegre como este? Fique longe do nosso barco diz Malorie, com a voz firme.Silncio. O homem no responde. Malorie se prepara. Ela se sente presa. Vulnervel.

    Naquele barco atracado margem. Naquele rio. Naquele mundo.Alguma coisa pula na gua. Malorie se sobressalta. Senhora diz o homem , a vista incrvel, se no se importar com um pouco de

    neblina. Quando foi a ltima vez que olhou para fora? J faz anos? Voc j viu este rio? Ocu? Aposto que nem se lembra de como o cu.

    Ela se lembra muito bem do mundo exterior. Lembra-se de voltar andando para casa depoisda escola e passar por um tnel de flores amareladas pelo outono. Lembra-se dos quintais ejardins e das casas dos vizinhos. Lembra-se de deitar na grama do quintal com Shannon edecidir quais nuvens pareciam os meninos e as meninas da sua turma.

    Vamos manter as vendas informa Malorie. Eu desisti disso, senhora afirma ele. J superei. Por que no faz o mesmo? Deixe a gente em paz agora ordena ela.O homem suspira de novo. No podem assombrar voc para sempre argumenta o homem. No podem forar

    voc a viver assim para sempre. Sabe disso, no , senhora?Malorie posiciona o remo direito em um ponto de onde acredita que pode empurrar a

    margem. Eu mesmo deveria tirar essas vendas de vocs diz o homem de repente.Malorie no se mexe.Ele parece ranzinza. Um pouco irritado. Somos s duas pessoas continua. Que se encontraram nesse rio. Quatro, se

    incluirmos os pequenos. E eles no podem ser culpados pela maneira como voc os cria. Souo nico aqui que tem coragem suficiente para olhar para fora. A sua preocupao s mantmvoc a salvo para que possa ficar ainda mais preocupada.

    A voz dele est vindo de outro lugar. Malorie acha que o homem foi para a frente do barco.Ela s quer passar por ele. S quer se afastar mais da casa onde estava de manh.

    E vou lhe dizer uma coisa afirma o sujeito de repente, de um lugar terrivelmenteperto. Eu vi um deles.

    Malorie agarra o Garoto e o puxa pelas costas da camisa. Ele bate no fundo do barco egrita.

    O homem ri. No so to feios quanto voc imagina, senhora.Ela lana o remo na direo da margem. E se atrapalha. difcil achar alguma coisa

    slida. Parecem gravetos e razes. Lama.

  • Ele vai ficar maluco, pensa Malorie. E vai machucar vocs. Para onde voc vai? grita o homem. Vai chorar toda vez que ouvir um graveto

    quebrar?Malorie no consegue liberar o barco. No tirem as vendas! berr