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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS COMPARADOS DE
LITERATURAS DE LNGUA PORTUGUESA
ALEXANDRE GOMES NEVES
Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no Atlntico
So Paulo 2008
2
UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS COMPARADOS DE
LITERATURAS DE LNGUA PORTUGUESA
Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no Atlntico
Alexandre Gomes Neves Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras. Orientador: Profa. Dra. Rita Chaves
So Paulo 2008
3
Para Vera
4
AGRADECIMENTOS
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, pela
bolsa concedida.
Rita Chaves, por me fazer conhecer as Literaturas Africanas de Lngua
Portuguesa e por me orientar neste trabalho.
Aos Professores Vagner Gonalves Silva e Tnia Celestino de Macedo, pelas
crticas e sugestes decisivas.
Ao amigo Antonio Pereira, pelo apoio e primeiras leituras de cada etapa desta
dissertao.
Camila Zanon, pela amizade e generosidade nos muitos auxlios que me ofereceu.
Juliana Florentino, pela amizade e pela reviso do texto.
Aos colegas do Programa de Ps-graduao em Estudos Comparados de Literaturas
de Lngua Portuguesa, pelo dilogo sempre rico e afetuoso.
5
RESUMO
NEVES, Alexandre Gomes. Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no
Atlntico. 2008. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.
O presente trabalho tem por objetivo propor aproximaes entre os autores Cmara
Cascudo e Oscar Ribas. O primeiro pertencente ao sistema literrio brasileiro e o segundo
ao angolano. Buscamos a comparao entre ambos, considerando as semelhanas entre seus
percursos. Ao longo de suas carreiras, os autores dividiram-se entre a produo literria e a
pesquisa folclrica. A proposta que executamos apropria-se do conceito de macrossistema
literrio defendido por Benjamin Abdala Jnior. Em sua perspectiva, macrossistema
definido pelos contatos que podem ser estabelecidos entre os sistemas literrios nacionais
no contexto das literaturas de lngua portuguesa. Nosso estudo centra-se sobre dois
romances: Canto de muro (1959) de Cmara Cascudo e Uanga (feitio) (1951) de Oscar
Ribas. A anlise destas obras nos permite apreciar textos fracionados entre o fazer literrio
e o compromisso com a divulgao de dados de pesquisa. A dualidade nas carreiras dos
intelectuais espelhada na composio de seus romances. Realizamos tambm uma leitura
do livro de ensaios Made in frica (1965) de Cmara Cascudo, no qual nos deparamos com
um Cascudo leitor de Oscar Ribas e preocupado com os matizes africanos da cultura
brasileira.
Palavras-chave: Cmara Cascudo; Oscar Ribas; macrossistema literrio.
6
ABSTRACT
NEVES, Alexandre Gomes. Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no
Atlntico. 2008. Dissertao (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.
The present work aims to propose some relations between the writers Cmara
Cascudo and Oscar Ribas considering the similarity in their literary journey, the former
belonging to the Brazilian literary system and the latter to the Angolan literary system.
During their careers, those writers dedicated themselves to the literary production as well as
the research on folklore. The study approach is the concept of literary macrosystem
defended by Benjamin Abdala Jnior, which is defined by the contacts that can be
established among the national literary systems in the context of Portuguese-language
literatures. It focuses on two novels, Cmara Cascudo's Canto de muro (1959) and Oscar
Ribas's Uanga (feitio) (1951). The analysis of both works allows us to appreciate texts
parceled into the literary making and the commitment to publishing their researches. That
dualism in both intellectual careers is reflected in the composition of their novels. The
reading of Cmara Cascudo's essay book, Made in frica (1965), has allowed us to see
Cmara Cascudo as a reader of Oscar Ribas's works and a writer concerned about the
African hue of Brazilian culture.
Keywords: Camara Cascudo; Oscar Ribas; literary macrosystem.
7
SUMRIO
Introduo........................................................................................................ 9
Captulo 1
Canto de muro e Uanga (feitio): o entrecruzar de estilos discursivos. .....15
1.1 Entre personagens e objetos de pesquisa:
nos aproximando de Canto de muro...........................................................16
1.2 Dilogo com um narrador-autor naturalista..............................................22
1.3 Os tons da voz do professor........................................................................26
1.4 Ribas: entre a narrao de uma trama e a documentao de tradies....28
1.5 Uanga (feitio): dilogo com um narrador-autor etngrafo......................32
Captulo 2
Colecionadores, arquivistas ...........................................................................38
2.1 Cultura popular: algumas notas..................................................................38
2.2 Canto de muro no conjunto da obra de Cmara Cascudo..........................47
2.3 Oscar Ribas: primeiros arquivos.................................................................57
Captulo 3
Literatos ...........................................................................................................64
3.1 A recepo crtica de Oscar Ribas...............................................................64
3.2 Um breve passeio pela obra de Oscar Ribas................................................67
3.3 A recepo crtica de Cmara Cascudo........................................................72
3.4 Outro breve passeio: algumas obras de Cmara Cascudo...........................75
3.5 Cmara Cascudo e Oscar Ribas: literatos....................................................78
Captulo 4
Canto de muro e Uanga (feitio): contradies ...............................................86
4.1 O conservadorismo em Canto de muro..........................................................86
4.2 Uanga (feitio)...............................................................................................95
4.3 Gentes ignaras x Erudio popular......................................................99
8
Captulo 5
Cmara Cascudo e Oscar Ribas: dilogos no Atlntico................................105
5.1 A intertextualidade de Made in frica......................................................... 107
5.2 Relaes frica Brasil: notcia de alguns estudos.....................................119
Concluses .........................................................................................................123
Bibliografia dos autores....................................................................................127
Bibliografia utilizada.........................................................................................138
9
Introduo
Vamos chamar o vento Vamos chamar o vento Vento que d na vela Vela que leva o barco Barco que leva a gente (O vento, Dorival Caymmi)
Estes belos versos de O vento de Dorival Caymmi, sem dvida um poeta ainda
por ser examinado para alm da fora da cano, nos embalam como msica de fundo nas
travessias que realizaremos em busca da outra margem do Atlntico. Em busca de um autor
que dedicou a sua vida para registrar os movimentos da cultura popular de Angola. A obra
de Oscar Ribas um arquivo de memrias no qual podemos desvendar os ritmos e os
gestos das danas populares; os repertrios narrativos e poticos que preenchem as noites
no entorno da fogueira; os rituais de nascimento e morte; toda a sorte de imaginrios
pertencentes s identidades dos homens de sua terra natal. De volta s margens do nosso
territrio, com os ventos e as velas do mesmo barco regressamos ao encontro de Cmara
Cascudo, autor que igual e exaustivamente empenhou-se, ao longo de sua vida, em nos
fornecer arquivos nos quais podemos nos embrenhar para o conhecimento das culturas
populares brasileiras. Religio, alimentao, objetos do cotidiano, gestuais, narrativas orais,
nada esteve fora do foco deste que considerado nosso folclorista maior.
Estes nossos pesquisadores em cultura popular assemelham-se tambm por terem
realizado incurses no gnero romance. Referimo-nos ao Canto de muro (1959), de Cmara
Cascudo e Uanga (feitio) (1951), de Oscar Ribas. Nosso trabalho apresenta-se como
crtica literria a estas obras que constituem peas nicas no conjunto da produo dos
autores. Relacion-las contribui para a apreciao de cada obra em particular, e nos permite
contemplar semelhanas entre dois autores pertencentes a distintos e entrelaados sistemas
literrios, o brasileiro e o angolano, nos inserindo na proposio terica de Benjamin
Abdala (2007).
10
O conceito de macrossistema literrio proposto por Abdala, parte do conceito de
sistema definido por Antonio Candido em Formao da literatura brasileira: momentos
decisivos. Nada melhor do que trazer as palavras do mestre:
Para compreender em que sentido tomada a palavra formao, e porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convm principiar distinguindo manifestaes literrias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores so, alm das caractersticas internas, (lngua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgnico da civilizao. Entre eles se distinguem: a existncia de um conjunto de produtores literrios, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. (CANDIDO, 1959, p.17)
Segundo Antonio Candido, o conjunto destes trs elementos, autor, pblico e a
linguagem que liga os autores forma o sistema literrio. Um sistema de comunicao inter-
humana em que os homens representam e interpretam suas realidades. A estes elementos o
professor acrescenta a importncia da tradio. preciso que os conjuntos de autores de um
determinado tempo se conecte a outros conjuntos de tempos anteriores, para aceit-los ou
rejeit-los. Isto garante a continuidade literria.
As manifestaes literrias referem-se s obras que, ainda que grandiosas,
permanecem isoladas, fora das articulaes definidas pela idia de sistema. So obras
plenamente vinculadas inspirao de um indivduo ou ao contato com literaturas
estrangeiras, mas cujos autores no esto integrados entre si e nem a um pblico leitor.
Como nos diz Abdala, ao iniciarmos o estudo das literaturas de lngua portuguesa
nos damos conta de uma histria comum marcada pela colonizao. Temos assim, entre
Portugal, Brasil e os pases africanos de colonizao portuguesa, uma aproximao
estabelecida pelo uso do mesmo cdigo lingstico. dentro dessa dinmica da
comunicao em portugus que Abdala propor a existncia de um macrossistema
11
marcado como um campo comum de contatos entre os sistemas literrios nacionais.
(ABDALA, 2007, p.35)
Nas literaturas africanas de lngua portuguesa encontraremos conjuntos de autores
conectados entre si e j possuidores de um repertrio nacional que lhes fornece uma
tradio. Alm disso, tambm se conectam com conjuntos de autores brasileiros e
portugueses e aos pblicos j existentes fora de seus territrios nacionais. Ao construrem
uma literatura em lngua portuguesa, angolanos, moambicanos e cabo-verdianos, contam
com um repertrio em portugus de Portugal e Brasil. E contam tambm com os pblicos
destes pases aproximados pela lngua.
Tal fato nos leva a aproximar os trabalhos de Cmara Cascudo e Oscar Ribas tendo
em vista similaridades contextuais: ambos iniciam suas carreiras na literatura e ambos se
dividem entre a literatura e a pesquisa em cultura popular.
A proposio terica de Abdala privilegia autores considerados engajados. Ou seja,
autores cuja produo literria busca a ruptura com a dominao exercida pela metrpole
portuguesa. Neste sentido so textos que buscam os fundamentos para a construo de uma
identidade nacional. Nas palavras do professor:
O processo de aculturao do colonialismo portugus visava a desculturao dos outros povos. Se Portugal imps seus padres, tambm foi marcado, por sua vez, pelo sistema que estabeleceu, ao voltar-se obsessivamente para o sonho do ultramar. Desprendeu-se em parte da Europa e tambm foi envolvido pela veiculao de patterns literrios que circulavam em lngua portuguesa. Temos hoje sistemas nacionais que no se conformam a hegemonias neocoloniais ou, mesmo, imperialismos, quando consideramos suas produes engajadas. (ABDALA, 2007, p. 37)
Segundo o pesquisador, podemos verificar as trocas entre os sistemas literrios de
lngua portuguesa, que incluem tambm a antiga metrpole, tratando-as com igual
interesse, afastando-nos de qualquer idia ligada superioridade e dependncia. Assim,
Abdala por num mesmo plano autores africanos posicionados contra o regime colonial
portugus, autores portugueses contrrios ditadura salazarista e autores brasileiros cujas
produes mostram-se afinadas com os nossos conflitos sociais, representando, em relao
a estes conflitos, sempre uma possibilidade a mais de reflexo.
12
Neste estudo no contemplamos autores engajados no sentido trabalhado por
Abdala. Veremos que Cmara Cascudo e Oscar Ribas so intelectuais imersos em
profundas contradies. A representao de imagens da cultura popular em suas obras,
muitas vezes, fazem do universo humano descrito algo de primitivo e extico.
No entanto, a anlise dos romances nos permitir nuanar esta idia. Cmara
Cascudo, ao coadunar vozes populares com vozes eruditas registra a possibilidade de
ambas constiturem saberes dignos de citao. Oscar Ribas, a partir do encontro com
saberes populares e tradicionais do seu contexto, registra formas de cultura que a violncia
do governo colonial tentara rasurar.
Veremos que os autores executam movimentos opostos. Podem tanto dignificar o
popular quanto coloc-lo na esfera do primitivo e do extico. A apreciao crtica destes
autores permitir compreender melhor a posio que ocupam em cada sistema literrio.
Permitir tambm a introduo de um tema a ser perseguido para a compreenso do
macrossistema, ou seja, a cultura popular, seus significados, suas possibilidades, suas
interpretaes pelos intelectuais de cada sistema nacional.
Nosso trabalho est dividido em cinco captulos. No primeiro, Canto de muro e
Uanga (feitio): o entrecruzar de estilos discursivos, nos debruamos sobre a estrutura
destes livros que se encontram divididos entre o traado ficcional e divulgao de dados de
pesquisa.
No segundo captulo, Colecionadores, arquivistas, buscamos, num primeiro
momento, algumas notas sobre o conceito de cultura popular, de modo que possamos
compreender melhor o quadro intelectual em que nossos pesquisadores se inserem; e, num
segundo momento, promovemos uma articulao entre os romances e o conjunto de suas
obras.
No terceiro captulo, Literatos, o interesse que nos move dirige-se para as
carreiras de Cmara Cascudo e Oscar Ribas, de modo a compreender que o fazer literrio
sempre esteve presente em suas publicaes, ainda que numa viso de conjunto as obras
dedicadas investigao em cultura popular sejam mais numerosas e mais significativas.
No quarto, Canto de muro e Uanga (feitio): algumas contradies, os livros so
vistos em conjunto nos seus pontos conservadores. Canto de muro ao se propor como
crtica ao homem moderno, evoca em seu ltimo captulo valores tradicionais vinculados
13
religio e fora moral vista na famlia. Uanga (feitio), ao pr as culturas europias em
alta conta, prende o homem angolano nos grilhes do primitivismo, indo de encontro a
perspectivas de obras contemporneas suas que colocavam o homem angolano como
sujeito histrico, repleto de paixes e ideais. No entanto, consideramos que possvel
nuanar estes aspectos conservadores.
No quinto e ltimo captulo, deixamos as relaes entre os romances de lado para
efetuarmos uma leitura crtica de Made in Africa de Cmara Cascudo. Este ttulo irnico de
Cascudo que nos sugere um universo ps Segunda Guerra Mundial, em que os
estadunidenses se insurgiram num novo imperialismo e boa parte dos bens simblicos e
materiais passaram a ser made in USA, nos prope que muitas importaes nossas vm do
continente africano. Assim, Made in Africa buscar as relaes culturais entre Brasil e
frica, principalmente entre Brasil e Angola.
Neste livro, encontraremos um Cmara Cascudo leitor de Oscar Ribas e um caso de
intertextualidade a ser explorado e refletido na histria das nossas relaes histricas e
literrias com Angola. Apenas apontamos para a importncia deste livro, merecedor de
trabalhos que o investiguem mais a fundo.
Julgamos pertinente acrescentar a esta introduo algumas notas que esclarecem o
percurso de chegada aos autores e proposta do trabalho.
Desde o segundo ano do curso de Letras interessamo-nos pelas Literaturas
Africanas passando a ler alguns autores e a freqentar os cursos oferecidos nesta rea.
Pensamos ser fundamental voltarmo-nos, j no mbito da graduao, para os estudos
africanos. Considerando as relaes histricas entre frica e Brasil e a necessidade de
levarmos conhecimentos sobre frica para o ensino de formao bsica, urgente que
assumamos a responsabilidade de levar adiante tais estudos, sobretudo se considerarmos o
quanto ainda so escassos ou pouco divulgados.
No curso de Introduo aos Estudos Comparados de Literaturas de Lngua
Portuguesa, oferecido pelo professor Benjamim Abdala, foi que nasceu o desejo de
trabalhar com o tipo de comparatismo proposto neste curso. Um comparatismo
fundamentado nas relaes histrico-culturais entre os pases de lngua portuguesa e que se
propunha tambm como articulao poltica num mundo dominado por fortes blocos
econmicos que continuam estendendo suas influncias no plano cultural.
14
O interesse pela obra de Oscar Ribas nasceu com a leitura de Formao do romance
angolano, de Rita Chaves, em que as contradies deste autor nos so apresentadas pela
pesquisadora. Foi a contradio entre propor um jogo prprio e fazer o jogo do outro (o do
colonizador) que chamou a nossa ateno para este escritor. A aproximao com Cmara
Cascudo foi uma sugesto do professor Carlos Serrano, numa conversa informal no Centro
de Estudos Africanos USP. Nesta conversa fez-nos saber das relaes entre Cmara
Cascudo e Oscar Ribas e do contato entre ambos numa viagem que Cascudo fizera frica
em 1963 e que resultara no livro Made in Africa; livro que traz texto de Ribas sobre o
cafun. De fato, o folclorista angolano uma presena constante nos ensaios deste livro, o
que nos permite ir ao encontro de um Cascudo leitor de Ribas.
15
Captulo 1
Canto de Muro e Uanga (feitio): o entrecruzar de estilos discursivos.
No difcil e instigante ensaio de Anatol Rosenfeld, Literatura e Personagem, o
intelectual inicia suas consideraes tericas lembrando-nos que a literatura, numa acepo
lata, tudo o que aparece fixado por meio de letras. (ROSENFELD, 2007, p. 11) Porm,
dentro deste vastssimo campo que se abre, encontramos o que podemos chamar de belas
letras. Segundo o autor, bem menos caracterizada pela beleza das letras do que pelo seu
carter ficcional e imaginrio. Carter este no suficiente para determinar o campo literrio,
j que podemos nos ver diante de textos no ficcionais, cuja beleza tecida pelo costurar dos
elementos estilsticos nos faz al-los categoria de obras de arte. Caso emblemtico na
literatura brasileira so Os Sertes, de Euclydes da Cunha. Do cenrio angolano mais
recente, podemos indicar uma obra como Vou l visitar pastores de Ruy Duarte de
Carvalho.
A despeito da distncia no tempo - Os Sertes fora publicado em 1902 e Vou l
visitar pastores um livro de 1999 - e da diferena de contextos histricos, possvel
apontar certa convergncia entre estas obras: em ambas figuram autores que, mergulhando
nas cincias do social, no dispensam o apuro esttico ao entrelaarem uma certa
diversidade de saberes cientficos. Esses dois ensaios, a um tempo s, sociolgico,
histrico, geogrfico, jornalstico, etc, constituem narrativas excepcionais, cuja
classificao impe dificuldades, pois nem sempre sabemos onde encaix-las com
perfeio, se entre as obras de referncia, se entre as literrias.
A breve referncia a Euclydes da Cunha e a Ruy Duarte de Carvalho nos serve de
motivo (no sentido musical) e de inspirao para executarmos a nossa composio.
Seguindo as consideraes do ensaio de Anatol Rosenfeld (2007, p.17), nos
deparamos com a seguinte idia de base:
Uma das diferenas entre texto ficcional e outros textos reside no fato de, no primeiro, as oraes projetarem contextos objectuais e, atravs destes, seres e mundos puramente intencionais, que no se referem, a no ser de modo indireto, a seres tambm intencionais (onticamente
16
autnomos), ou seja, a objetos determinados que independem do texto. Na obra de fico, o raio da inteno detm-se nestes seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo indireto e isso nem em todos os casos a qualquer tipo de realidade extraliterria. J nas oraes de outros escritos, por exemplo, de um historiador, qumico, reprter, etc., as objectualidades puramente intencionais no costumam ter por si s nenhum (ou pouco) peso ou densidade, uma vez que, na sua abstrao ou esquematizao maior ou menor, no tendem a conter em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o preenchimento concretizador.
Por contextos objectuais devemos entender a caracterizao dos seres e dos objetos
presentes num texto. Tal caracterizao nos leva composio de um dado universo, seja
ele imaginrio ou concreto. Numa obra cientfica os signos remetero a uma realidade
emprica ou passvel de comprovao atravs de mtodos criados no mbito da prpria
cincia; numa obra literria, cujo princpio fundador reside na criao, na imaginao livre,
os seres e objetos a representados pelo signo prescindem da averiguao, pois existem de
um modo puramente intencional referindo-se apenas de modo indireto a uma realidade
extraliterria, como diz o autor.
Os textos selecionados para este estudo, Canto de Muro de Cmara Cascudo e
Uanga (feitio) de Oscar Ribas, nos colocam diante de um problema de forma, pois so
textos que se valem de estratgias ficcionais objetivando o conhecimento de realidades
extraliterrias. Cmara Cascudo e Oscar Ribas so autores com uma interessante produo
no campo das cincias do social que ao produzirem textos ficcionais tecem um cruzamento
de procedimentos de campos distintos da escrita, promovendo articulao entre os dados
provenientes da observao cientfica (portanto os dados da experincia concreta) e o
projeto literrio.
1.1 Entre personagens e objetos de pesquisa: nos aproximando de Canto de muro
No canto do muro tijolos quebrados, cobertos pelos cacos de telhas ruiva, aprumam-se numa breve pirmide de que restos de papel, pano e palha disfaram as entradas negras da habitao coletiva desde o trreo, domnio dual de Titius, o escorpio, e de
17
Licosa, aranha orgulhosa, at o ltimo andar onde mora um grilo solitrio e tenor. (...)
No meio do quintal a mangueira estende a galharia robusta, derramando sombra e agasalho. uma rvore bem velha, alta e copada mas de frutos azedos e reduzidos. Aquela imponncia ornamental basta para justificar a presena poderosa. Os frutos carecem de importncia para ela. No deseja reproduzir a dinastia de porte lindo ou demasiado confia na solidariedade famlica dos pssaros e dos morcegos. Bem no centro h um oco, janelo ogival que a porta nobre de Sfia, a coruja noturna, misteriosa e venerada.
H do lado um sapotizeiro denso e baixo onde ainda resiste ao redor do tronco um crculo carcomido de folha-de-flandres, posto ali h muitos anos, impedindo as subidas vorazes de Musi, proprietria de uma famlia de ratos insaciveis.
Depois do sapotizeiro h uma goiabeira esqueltica e que teima, como fmea obstinada na fecundao, em cobrir-se de goiabas amarelas de polpa rubra e doce.
No fim, hirto, senhorial, importante, o mamoeiro sacode o estirado caule bem alto, com uma coroa de folhas imveis, guardando o bando de mames compridos e desejados pela lonjura.
Mamoeiro, sapotizeiro e goiabeira esto registrados nos livros graves como Carica papaya, L., mas o fruto lembrando uma grande mama conservou o aumentativo. Achras sapota, L., e Psidium guayava, Raddi, fecham a relao sisuda e definitiva.
Ao p do sapotizeiro h um montezinho de pedras e a instalou seu escritrio o Cavalo-do-co que ainda no tomou conhecimento de pertencer aos Himenpteros pompildeos, raa guerreira e milenar. (CASCUDO, 1959, p.3-4)
Canto de Muro possui vinte e cinco captulos, dos quais vinte e quatro so voltados
para a apresentao e descrio dos hbitos dos personagens eleitos para este romance de
costumes composto por Cascudo. No vigsimo quinto captulo o autor nos esclarece
quanto ao que podemos apontar como uma inteno principal da obra, que criticar o que
v de desrazo no progresso tcnico cientfico. Acompanhamos ao longo do texto as vidas
de morcegos, ratos, corujas, galinhas, urubus, guaxinins, titius, canrios, corujas, aranhas,
grilos, cobras, xexus, tapiucabas, entre outras espcies. A linguagem de Cascudo traada
entre o potico e as asseres factuais do pesquisador. Ora nos convida a lidar com as
referncias bibliogrficas e os termos cientficos resultantes de sua pesquisa - e expressivos
da sua vastssima erudio -, ora nos delicia com imagens lricas baseadas em universos
18
desconhecidos para a maioria de ns, sempre nos fazendo repensar sobre os destinos da
espcie humana, o que confere obra um indelvel carter filosfico.
No trecho citado anteriormente, retirado do primeiro captulo, Canto de muro e
seus moradores, a descrio das rvores e dos objetos que configuram o espao ainda que
ornamentada com adjetivos que buscam o pictrico e por que no dizer pitoresco, no deixa
de ser tambm a representao de um habitat natural cuidadosamente projetado pelo
naturalista para que possa descrever os hbitos das espcies que pretende observar. Alis,
este mesmo o ponto de vista do narrador. A linguagem potica que pinta o ambiente com
cores quentes disfara o desejo de remeter o leitor a espcies concretas onde a natureza dos
pssaros famlicos e das mangueiras que agasalham so fatos a serem retidos fora das
configuraes simblicas que a linguagem literria normalmente possui. A introduo dos
nomes cientficos das rvores no final do trecho nos confirma a anlise.
Contudo, de modo algum queremos sugerir que no haja nenhum nvel de
interveno criativa. O espao projetado pelo autor no a reproduo direta de um meio
particular e existente de fato. O que queremos sugerir que o autor opera numa dialtica
entre o imaginado e o observado, dotando a matria narrada de um carter sensvel sem
retirar-lhe de todo a referncia extraliterria. De um lado temos um espao fictcio que,
segundo o autor, o remontar de memrias da infncia e adjetivaes dotadas de tom
irnico que conduzem a narrativa para o plano de uma prosa potica. De outro lado temos
nas palavras de Tel Ancona Porto Lopes (2003, p.24) um romance que fixa elementos da
fauna e da flora, uma geografia regional e explora ditos, sabenas e prticas do nordeste
brasileiro. Tal movimento dialtico torna-se o principal matiz do texto podendo ser
observado num dos nveis concretos da composio que so os usos vocabulares.
Retomemos o ltimo pargrafo do trecho citado: Ao p do sapotizeiro h um
montezinho de pedras e a instalou seu escritrio o Cavalo-do-co que ainda no tomou
conhecimento de pertencer aos Himenpteros pompildeos, raa guerreira e milenar. Se
por um lado temos a composio de metforas que emprestam ao Cavalo-do-co
caractersticas humanas, por outro lado sua pertena mesmo ao ramo dos Himenpteros
pompildeos. O processo de antropomorfizao no completamente realizado, de modo
que o animal um misto de personagem e objeto de uma escrita que no dispensa o
compromisso com a informao e o conhecimento didatizado. quase como se
19
estivssemos diante de um professor a nos dourar um conhecimento factvel para que este
se nos torne mais vivo na memria.
Anatol Rosenfeld (2007, p.20) nos dir que:
Ainda que a obra no se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer valor especfico, notar-se- o esforo de particularizar, concretizar e individualizar os contextos objectuais, mediante a preparao de aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores circunstanciais, que visam a dar aparncia real situao imaginria. paradoxalmente esta intensa aparncia de realidade que revela a inteno ficcional ou mimtica. Graas ao vigor dos detalhes, veracidade de dados insignificantes, coerncia interna, lgica das motivaes, causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhana do mundo imaginrio. Mesmo sem alguns destes elementos o texto pode alcanar tamanha fora de convico que at estrias fantsticas se impem como quase reais.
No texto de Cmara Cascudo reparamos que as operaes estilsticas se do em dois
sentidos: o autor particulariza e universaliza os seres num mesmo plano. Ao mesmo tempo
em que os nomeia, atribuindo-lhes aes e caractersticas humanas, transforma-os em
exemplar de um conjunto cujos atributos j esto dados e fazem parte de outras instncias
do conhecimento.
Antonio Candido ao refletir sobre a gnese da personagem do romance nos
informar que so trs os elementos primordiais do gnero: o enredo, a personagem e as
idias. Por idias devemos entender os valores e os significados construdos no texto.
Para o professor, dentre estes elementos avulta a personagem, que representa a
possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificaes,
projeo, transferncia, etc. (CANDIDO, 2007, p.54) a personagem quem torna vivos o
enredo e as idias.
Considerando o processo de construo das personagens de Canto de Muro,
podemos sugerir que a adeso do leitor no se d em relao ao personagem em particular,
mas a uma certa perspectiva adotada pelo narrador naturalista, que nos leva a observar
junto a ele cenas e seres normalmente ignorados pela mdia das pessoas. Utilizamos a
expresso narrador naturalista, no sentido de observador de espcies da natureza. Como os
seres descritos constituem amostras, exemplares que representam a espcie; o envolvimento
20
do leitor com o texto poder ser efetivado mais facilmente tendo em vista o conhecimento
produzido pelo narrador.
Acompanhemos o trecho seguinte retirado do segundo captulo do livro, Caada
noturna.
Toda a gente sabe que a plumagem das corujas macia e mole e por isso o seu vo silencioso. Inexplicavelmente as penas reais de Sfia so rijas e o seu vo perfeitamente audvel, percebendo-se o rangido, o atrito das asas fortes, denunciando aproximao da caadora.
Sfia uma coruja no esplendor da fora, quatro anos de experincia de golpes e recursos individuais. Sabe calcular os terrenos onde a caa passar porque sendo de boa raa preadora no come carne morta. Precisa de bicho vivo, palpitante de sangue, estrebuchante sob suas garras que o imobilizam para fcil alvo s bicadas, golpeantes e certeiras.
Sobrevoou o quintal vizinho, reconhecido pelo perfil do moinho de vento quebrado. Depois h o pomar que o esquadro de Quir elegeu para o assalto. Voou manso at o ltimo cajueiro e pousou, leve, no galho sombrio. Abriu a frincha das pupilas telescpicas, absorvendo a luz difusa, identificando o local em todas as minudncias. (...)
Os morcegos foram descobertos pelo rudo de guiso ao longe. E tambm pela virada curva para descer, pertinho dos frutos escuros e ali ficar, parados, sugando a polpa depois de abrir, com impecvel roedura, o sulco reumador do sumo adocicado. (...)
Quir roou o galho onde Sfia o espreitava, imvel. Rpida a coruja lanou-se no vo da caa, cortando o crculo descrito pelo morcego. Contava encontr-lo no ar num esbarro funesto. (CASCUDO, 1959, p.10)
Ainda que no presente trecho, Sfia se distinga das outras corujas, pois possui
penas rijas e vo audvel, enquanto o normal da espcie so penas macias e vo silencioso,
a narrativa nos encaminha para hbitos comuns espcie, como a caada noturna que ser
descrita ao longo do captulo. Somos postos diante de uma linguagem que utiliza recursos
estilsticos do texto ficcional para encenar a realidade. A caada noturna de Sfia, a coruja,
se por um lado recebe transfigurao pica, por outro no deixa de representar o prosaico
do evento natural.
21
Para Tel Ancona Porto Lopes (2003, p.25) Canto de Muro trabalha com xito a
intertextualidade em sua estrutura; alia a fico a dados absolutamente corretos da zoologia,
da botnica, da histria, da mitologia, da geografia, permeados pelo folclore, e recolhe
citaes de poetas amenizadoras do escopo didtico que disfaradamente se instala.
O romance de Cmara Cascudo, no limite entre a fico e a no fico, constitui um
tipo de narrativa que encontra seu sentido no conjunto da obra do escritor. Cada captulo
em que descreve os animais que elege como personagens atravessado por dados de
histria, geografia, biologia, etc, alm de aluses sabedoria popular. O autor circula o
objeto em busca do maior nmero de faces. Em cada captulo registra-se o movimento
ensastico dotado de perspectiva enciclopdica, bem ao gosto da escrita de Cascudo.
Em relao sua escrita multiforme Vnia Gico (1998, p. 106) nos afirma que o
conjunto da obra cascudiana, constitui um mosaico temtico que se aproxima do itinerrio
de um bricoleur da cultura. A idia de um bricoleur contm uma grave fora
interpretativa, na medida em que pode ser transferida do conjunto da obra para cada texto
em si. Sobre o processo criativo de Cmara, Vnia Gico (1998, p.16) afirma:
Seu processo de criao, exigia, sempre, o silncio da noite. Passava o dia pesquisando, recebendo visitas, fazendo pesquisa de campo. Escrevia de uma nica vez. No fazia borres, nem remontava textos. (...) No guardava consigo rascunhos nem originais. s vezes, quando os destinatrios ou mensageiros perdiam seus escritos, fazia outro texto, se estivesse inspirado. Caso contrrio, desistia e denunciava a perda nas correspondncias aos amigos.
Cmara Cascudo utilizava tanto fontes orais quanto documentos escritos, alm de
valer-se muito de informaes recolhidas atravs de correspondncias que enviava para
amigos e outros pesquisadores. Em Canto de muro nos surpreendemos com a articulao
das fontes diversas que faz unir numa mesma prosa, ditos populares com descries
biolgicas, notas e citaes eruditas do campo da histria, da literatura, da filologia, etc,
misturadas a locues populares. Mrio de Andrade (1991), em correspondncia ao autor,
datada de 26 de novembro de 1925, refere-se fala de Cascudo nas cartas como
serelepe. Muito embora o juzo ntimo de Mrio de Andrade diga respeito s cartas de
22
Cascudo, a penetrante sensibilidade do autor de Macunama destaca a escrita do intelectual
potiguar que, irriquieta, percorre os mais diferentes saberes, conjuga as mais distintas
fontes, numa espcie de ensasmo enciclopdico.
1.2 Dilogo com um narrador-autor naturalista
As consideraes que fizemos acerca da linguagem e da construo de personagens
nos encaminham para apreciao do foco narrativo. O compromisso que o narrador possui
com o conhecimento de uma realidade extraliterria ultrapassa o fazer ficcional dotando o
texto de um certo carter didtico, instalado de modo disfarado, para retomar a formulao
de Tel Ancona. A perspectiva professoral do narrador nos permite entrever marcas do
prprio autor.
No sempre iluminador manual de Wolfgang Kayser (1970), Anlise e Interpretao
da obra literria, aprendemos a considerar a distncia entre narrador e autor. Para Kayser
(1970, p.310) o autor oculta-se atrs de um outro narrador na boca do qual pe a
narrao. O narrador , portanto, uma mscara do autor, mais um elemento dentro da
narrativa a exigir anlise e interpretao.
Segundo Maria Lcia Dal Farra (1978), Wayne Booth vai um pouco alm
estabelecendo a categoria de autor-implcito. Este conceito nos parece bastante adequado
para compreendermos o foco narrativo de Canto de muro, na medida em que as intruses
do narrador e o prprio estilo da narrativa nos remetem a uma faceta do professor Cmara
Cascudo, dramatizada na narrativa. Como observa Dal Farra (1978, p.20):
Manejador de disfarces, o autor, camuflado e encoberto pela fico, no consegue fazer submergir somente uma sua caracterstica sem dvida a mais expressiva a apreciao. Para alm da obra, na prpria escolha do ttulo, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleio dos signos, a preferncia por determinado narrador, a opo favorvel por esta personagem, a distribuio da matria e dos captulos, a prpria pontuao, denunciam a sua marca e a sua avaliao.
Para a ensasta, entre o autor e o narrador de Kayser, Booth faz figurar o autor-
implcito, conferindo-lhe a responsabilidade pelo universo erigido. (DAL FARRA, 1978,
23
p.21) No se trata de identificar o autor em carne e osso mas de se encontrar uma possvel
face sua atravs dos elementos que ele pe em movimento na obra.
No final de Canto de muro lemos um posfcio intitulado Depoimento no qual nos
deparamos com alguns esclarecimentos:
Para muito leitor parecer estranha esta atividade inesperada num velho professor provinciano, convertido seduo da Histria Natural e aos encantos divulgativos de leituras recentes. Canto de muro, entretanto, um livro de poucos meses vivido em muito mais de quarenta anos.
Muito antes de 1918, segundanista de Medicina no Rio de Janeiro, andava eu colecionando insetos, criando escorpies (chamados no Nordeste lacraus), aranhas caranguejeiras e formigas savas, na grande chcara que meu Pai possua no bairro do Tirol, na cidade do Natal. (...)
Minha curiosidade fez muitas vtimas para a lupa e o microscpio, com corantes e fixadores inauditos. Os cadernos se foram enchendo de notas mas nunca delas me aproveitei. Quase todos os episdios ocorreram na saudosa Vila Cascudo, paraso perdido em 1932. (CASCUDO, 1959, p. 263-264)
O depoimento de Cascudo nos auxilia na compreenso de alguns aspectos da obra.
Uma obra que, segundo seu autor, tivera como ponto de partida as anotaes de um
estudante curioso para obter como resultado uma narrativa onde se entrelaam diferentes
saberes filtrados por um professor j bastante experimentado.
Em Canto de muro e seus moradores, primeiro captulo de Canto de muro, nosso
bricoleur nos fornecer uma narrao em terceira pessoa, na qual o narrador naturalista vai
aos poucos nos dando a conhecer o espao de Canto de muro e os seres que o habitam. No
segundo captulo, Caada noturna, saberemos dos animais que tm por hbito caar e se
alimentar no correr da noite. Neste captulo, ser traado uma espcie de painel dos animais
de vida noturna. Tambm escrito em terceira pessoa, revela bem o escopo didtico da obra.
No terceiro captulo, O mundo de Quir, vemos pela primeira vez a introduo do
discurso em primeira pessoa.
Quir est com as unhas dos ps fincadas numa salincia da parede, voltado para ela, e com a cabea para baixo, dormindo.
24
No sei de outro vivente que durma desta maneira. Dorme todo o dia e detesta a luz e mesmo as cores garridas e atraentes. Usa perptuo fardo escuro tirante a negro ou cinzento-sujo, avermelhado com mistura de cinza. Ao contrrio chamaria ateno e poderia causar embarao a quem ama sossego diurno e tarefa noturna. (CASCUDO, 1959, p. 21)
Neste captulo em que nos apresenta e descreve Quir, um morcego, o narrador
alternar entre primeira e terceira pessoas. Esta fluidez no ponto de vista acompanhar a
narrativa deste ponto em diante. Na anlise dos livros Locues tradicionais no Brasil e
Coisas que o povo diz (os dois livros foram reunidos em edio de 1986), Diana Luz Pessoa
de Barros (2003, p. 162) nos expe um mtodo argumentativo de Cascudo presente nestes
livros:
A narrao de fatos vividos, com datas, lugares e pessoas que o leitor reconhece, um dos procedimentos muito usados para fazer o outro acreditar na verdade das concluses gerais extradas dos casos particulares, ou seja, na realidade ou veracidade da locuo usada.
Outro recurso utilizado pelo autor na mesma direo o das pessoas gramaticais. Os textos empregam as duas projees de pessoa possveis: em terceira e primeira pessoa. Os discursos em terceira pessoa produzem os efeitos de sentido de objetividade, de distanciamento e de neutralidade e os em primeira pessoa, de subjetividade. O autor alterna os dois empregos, mas no ao acaso: a primeira empregada quando se trata de discordar de outros autores ou de com ele polemizar (...)
Em Canto de muro tambm apreciamos este mtodo argumentativo. A narrao
iniciada em terceira pessoa vai aos poucos se colorindo com a primeira. No romance h a
projeo de um eu que ora emite comentrios despretensiosos e, em geral, de humor
irnico; ora completa informaes e faz declaraes que tenham como referncia suas
observaes e leituras; ora narra algum episdio.
Consideramos que este eu que marca a narrativa instaura a autoridade do
observador-pesquisador. A presena da subjetividade no oblitera a confiana nos dados
fornecidos, ao contrrio, a subjetividade refora a confiana no narrado, pois estamos
diante de um narrador que demonstra ter uma experincia facilmente associvel ao autor.
25
H uma fenda na mscara do narrador que nos permite encurtar a distncia entre narrador e
autor.
No quarto captulo, Proezas de Go, sobre as aventuras de um rato, o narrador nos
revelar um de seus espaos de observao: Assisti na granja de meu Pai a um combate
singular entre Go e uma galinha de pintos. (CASCUDO, 1959, p. 38) Esta frase do
narrador nos remete diretamente ao Depoimento em que o autor revela que colecionava
insetos, criava escorpies e aranhas na grande chcara de seu Pai no bairro do Tirol, em
Natal. Observe-se que tanto no Depoimento quanto no trecho do quarto captulo, a
palavra pai grafada com letra maiscula.
Segundo Vnia Gico (1998), Francisco Justino de Oliveira, o Pai de Cascudo, foi
um homem importante em Natal. Rico comerciante, tornou-se o primeiro representante da
Ford Motor.
A memria do que Cmara viveu na propriedade da famlia parece ter sido
fundamental para a sua vida. No Tirol completou os seus primeiros anos de formao e teve
os seus primeiros contatos com artistas, polticos, professores, etc. No por acaso o
itinerrio deste pensador, na viso de Vnia Gico, remonta aos anos passados nesta chcara,
em que era conhecido como o Prncipe do Tirol.
Um outro trecho do Depoimento publicado em Canto de muro nos d a medida
desta memria:
Em fins de dezembro de 1956 meu filho adoeceu gravemente no Recife. Dahlia e Ana Maria, mulher e filha, foram para junto dele. Fiquei sozinho e desesperado de angstia. Inexplicavelmente pensei nos meus bichos de outrora e no convvio inesquecido da longnqua chcara do Tirol. Escrevi o primeiro captulo. (...) Na ansiedade em que vivia, o esforo foi uma derivao sublimadora e o livro nasceu com violncia. Revi o material, atualizando documentao e verificaes. Num clima de inquietao e susto Canto de muro se ergueu, pgina a pgina. (CASCUDO, 1959, p. 265)
Num momento de angstia, a memria do Tirol se impe, levando-o infncia e
primeira juventude de modo que pudesse superar a tristeza. Mais uma vez, neste trecho,
encontramos dois vocbulos, documentao e verificaes, que do a medida da obra.
A volta de uma memria inexplicvel traz tona tambm as notas e observaes de cunho
26
cientfico ou exploratrio. A perspectiva do narrador ao unir memria e dados observados e
recolhidos em fontes orais e escritas, numa prosa que no dispensa o potico, nos revela o
autor, nos coloca em dilogo com as estratgias utilizadas pelo professor Cmara Cascudo
em obras no ficcionais.
1.3 Os tons da voz do professor
Tendo feito algumas observaes sobre o narrador, passaremos para as
consideraes sobre o modo como esse professor nos fala.
Se a tristeza abrira as portas da memria para a composio desta narrativa,
percebemos uma modulao nos tons da voz deste narrador-autor que vai de um humor
irnico a um tom de gravidade e melancolia. Numa variao entre estes tons, Cascudo ir
nos descrever seus objetos, nos ensinar suas lies, e, porque no dizer, nos revelar um
pouco de si mesmo. A modulao da voz do narrador indica uma busca pela proximidade
com o leitor. Estamos diante de um professor que deseja nos falar de perto e de um modo
significativamente humanizado, sem a impessoalidade que um discurso didtico pode
atingir. A prevalncia do tom irnico, apenas no ltimo captulo, Majestati naturae par
ingenium, veremos o domnio da melancolia.
No sexto captulo, A estria de Vnia, aprenderemos um pouco sobre a rotina da
lagartixa.
Vnia desceu no muro por entre os ramos enlaados da trepadeira. (...)
uma soberba lagartixa de quarenta meses bem vividos, robusta, audaciosa, slida no curto pescoo e nas patas fortes e flexveis, corredora olmpica, saltadora esplndida, caadora admirvel. (CASCUDO, 1959, p. 52)
Todo o texto matizado por este tom irnico que vemos acima. O escopo didtico
deste narrador-professor incontidamente galhofeiro. Os vocbulos que utiliza para
descrever Vnia, uma lagartixa, soberba, robusta, audaciosa, corredora olmpica,
saltadora esplndida, nos revelam as intenes sarcsticas. Em toda obra o narrador
utiliza atributos humanos para a qualificao de animais, normalmente, considerados
27
vulgares e at repugnantes, como o caso da lagartixa. Deste modo, constri uma operao
ardilosa em que a espcie animal valorizada ao mesmo tempo em que a espcie humana
rebaixada.
Beth Brait (1996) argumenta que a ironia pode ser compreendida como um processo
interdiscursivo em que um enunciador, atravs das mais diferentes formas de exposio do
j-dito (repetio, citao, parfrase, pardia, aluso, trocadilho, etc.), promove o
cruzamento de discursos pertencentes a universos distintos. Observa a lingista que essas
formas de recuperao do j-dito com objetivo irnico so formas de contestao da
autoridade, de subverso de valores estabelecidos que pela interdiscursividade instauram e
qualificam o sujeito da enunciao, ao mesmo tempo em que desqualificam determinados
elementos. (BRAIT,1996, p.107)
Estabelece-se, portanto, uma relao de cumplicidade entre produtor e destinatrio
do texto irnico. E o efeito de humor criado quando o destinatrio compreende a
contradio que h entre os discursos acionados pelo enunciador.
o que vemos acontecer em Canto de muro. O narrador ao utilizar qualificativos
normalmente atribudos aos homens para descrever animais, promove uma contradio
entre o universo dos seres descritos e o universo ao qual pertence o discurso utilizado para
caracteriz-los, gerando humor e crtica ao mesmo tempo. Este humor irnico constitui uma
das marcas mais fortes deste romance de Cascudo.
Num plano imediato e mais superficial podemos pensar que estamos lendo apenas
descries de animais que, em geral, no convidamos para o convvio domstico, para
lembrar a oposio traada por Clarice Lispector no seu A mulher que matou os peixes.
Clarice diz que bichos naturais so aqueles que a gente no convidou nem comprou.
(LISPECTOR, 1983, p. 10) Eles simplesmente surgem no espao domstico, como
lagartixas e baratas. O paralelo parece-nos interessante, pois, em Clarice, tambm
encontramos descries de animais em seu estado de natureza. No entanto, esses animais
levaro o sujeito observador a refletir sobre a condio humana. Certamente h uma busca
pela desautomatizao do olhar, um desejo de ver o insignificante, o que a poucos dado
ver, mas onde se manifesta a vida.
Ainda no sexto captulo, A estria de Vnia, um outro trecho nos revelar o tom
melanclico:
28
Tudo quanto nasceu depois e transformou-se nos cultos litrgicos da vaidade, decorao, enfeite atraente, as mudanas de Jpiter, as batalhas pelo ouro, poder e glria, provm da necessidade poderosa da propagao, da conquista da fmea, faz-la portadora do ovo que a espcie no tempo sem fim. O ovo dos rpteis, o primeiro ovo nascido na noite distante de milhares e milhares de sculos, ia criar todo este cortejo, onmodo e deslumbrante que nos entontece e arrebata.
O ovinho da lagartixa simbolizava, legitimamente, a inicial. Era um ovo de rptil no canto do muro, guardando a eternidade. (CASCUDO, 1959, p. 61)
Lemos neste trecho uma meditao em que as ironias do texto so atenuadas para
dar vazo a uma postura mais reflexiva em que o olhar desautomatizado pode contemplar a
vida em formas ignoradas, como o ovinho de uma lagartixa.
H no trecho um sentimento de distncia de algo primordial. O cortejo do mundo,
feito de vaidades, batalhas, poder e glria, tudo isto que nos entontece e arrebata, deixou
para trs o estado primevo, de pura natureza. O narrador enaltece este estado perdido e
deseja resgat-lo no lampejo contemplativo do ovinho ignorado no canto do muro, mas
guardando a eternidade.
1.4 Ribas: entre a narrao de uma trama e a documentao de tradies
Passamos agora para a outra margem do Atlntico, ao encontro do angolano Oscar
Ribas que, a lguas de distncia, parece ter caminhado ao lado do nosso Cmara Cascudo.
Romance publicado pela primeira vez em 1951, Uanga (feitio), ainda que possua
uma intriga frgil, pode nos interessar pela enorme quantidade de dados etnogrficos que
traz acerca da cultura popular da Angola do tempo de Ribas. A forma do romance divide-se
entre a seqncia de uma trama amorosa e a descrio de uma srie de rituais populares.
O romance dividido em 12 partes que por sua vez so seqenciadas em captulos.
Antes de iniciar a trama o autor nos prope uma abertura com o ttulo de Antigamente em
que podemos ler algumas notas sobre a cidade de Luanda. Leiamos a reproduo de um
trecho:
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Ano de 1882. Luanda ainda no possua vivendas elegantes. A modesta
capital de ento, circunscrita a uma rea pequena, estava cheia de barrocas, onde a figueira-da-ndia e a caoneira, vegetando compactamente, emprestavam ar silvestre. Casas grosseiras, quase semeadas a esmo, constituam a maioria das habitaes. A cidade de Novais, em plena infncia, ainda no adquirira personalidade prpria: como as crianas, gozava a vida rstica e despretensiosa. A pressa no a inquietava. O tempo dar-lhe-ia vigor, os campos circunjacentes segredavam-lhe venturas. Confiante no futuro, deixava-se ficar na rusticidade. (...)
E a mata traioeira, imperialmente postada nos flancos e cabeas dos morros, obrigava a cidade a morrer onde aquela nascia. Salvo a poente, o casario europeu trepava graciosamente pelas elevaes, e, naquela banda, evidenciava-se a histrica Fortaleza de S. Miguel baluarte fundado pelo capito-general Francisco Vasconcelos da Cunha, em 1638, em substituio da igreja de S. Sebastio, edificada por Paulo Dias de Novais, em 1575.
Em oposio ao bairro da gente civilizada, as moradias dos indgenas disseminavam-se pelas faldas, subindo umas pelo Cazuno, e outras, onde criaram fundos alicerces, pela encosta das Ingombotas. (RIBAS, 1985, p. 23-24)
Na segunda parte, Festa de Npcias, somos apresentados aos protagonistas da
trama, Joaquim e Catarina, os amantes que sofrero os desencontros a que todo par
romntico ficcional est fadado. Os protagonistas se conhecero durante uma massemba e
se casaro depois de cumpridos todos os ritos necessrios antes e aps o enlace. Na terceira
parte, A Carta, Joaquim vai a Cabri para trabalhar, deixando Catarina em Luanda. Neste
ponto comea a srie de intrigas, Joaquim manda a Catarina uma carta com notcias atravs
de seu amigo, Antonio Sebastio. Este por no saber ler, diz a Catarina que ela deve chorar
e vai embora com a carta. Catarina entende que o marido morrera e comea a chorar,
realizando depois todos os rituais de luto. Manuel e Tio Joo, amigos da famlia,
interessados em saber o teor da carta, procuraro Antonio Sebastio conseguindo desfazer o
equvoco. Na quinta parte, Vingana, Antonio Sebastio, desmoralizado porque todos
descobriram que no sabia ler, resolve procurar Joaquim em Cabri, para dizer que Catarina
possui um amante e assim vingar-se por ter servido de chacota a todos. Na seqncia da
trama Catarina e Joaquim brigaro e se reconciliaro novamente. Na ltima parte, Uanga,
acompanharemos a doena e morte da protagonista.
30
Toda a trama atravessada por extensas descries de rituais: ritual para o
casamento, para o luto, para descobrir a causa morte, para se recepcionar o nascimento dos
gmeos de Catarina, para se descobrir a causa de uma doena, enfim, o autor mostra-se
muito mais interessado em relatar ao leitor elementos da cultura popular da Angola de seu
tempo do que em comprometer-se com a trama romanesca. Alm dos rituais citados
veremos descries de festas populares, com suas danas e cdigos especficos, cantigas,
ditos e narrativas populares.
O ponto crucial a ser focado, tendo em vista crticas j realizadas ao trabalho do
autor, como as de Russel Hamilton (1975) e Rita Chaves (1999), que apontam para a
conscincia dilacerada do autor, justamente a questo da forma. As descries
provenientes de uma observao de tipo cientfico projetam uma recepo que pode no
ultrapassar o documental. Vejamos um trecho do incio da segunda parte, intitulada Festa
de npcias:
Nesse remoto ano de 1882, numa cubata situada no Cazuno, morava Joaquim, pedreiro dos seus vinte e cinco anos. A casa compunha-se, como quase todas em que vivem os indgenas, de dois quartos e um corredor. O mobilirio era escasso. Num dos quartos havia uma cama, uma mesa servindo de banca de cabeceira, uma mala e, sobre um caixote, uma bacia de barro; no outro, alm de uma cama e uma sanga, pouco mais existia; e na ltima diviso a sala de jantar figurava uma mesa, uma cadeira com as pernas desconjuntadas e alguns mochos. Pelas paredes de barro encarnado, sobressaam estampas recortadas de ilustraes. (RIBAS, 1985, p. 31)
Na primeira frase somos apresentados ao personagem Joaquim, como se este fosse
um indivduo particular sobre o qual veremos ser contada uma histria particular. No
entanto na frase seguinte Joaquim transformado em categoria observvel, o indgena. E a
narrativa parece querer pertencer muito mais ao gnero cientfico chamado etnografia do
que ao romance, gnero ficcional pretendido pelo autor. Um elemento chave do que
estamos sugerindo a utilizao do vocbulo indgena no trecho acima e que ser
evocado em outras partes ao longo do romance. As personagens so afiguradas no texto
como exemplares dos filhos da terra, dos nativos que se quer observar. Portanto, ser
preciso descrev-los e ao seu contexto scio cultural.
31
O romance de Oscar Ribas opera na sua estrutura uma espcie de suspenso dos
elementos narrativos para nos informar acerca dos aspectos culturais que constituem a
sociedade por ele observada, instaurando a perspectiva do etngrafo. Leiamos o trecho
seguinte que destaca o momento em que os amantes se conheceram:
Conheceram-se numa massemba. Este bailado, rico de fogosidade e elegncia, proveio do
caduque, dana de Ambaca. Como afinidade, persistiu a caracterstica fundamental a semba ou umbigada. O caduque executava-se ao ar livre, sob a toada de goma, dicanza e uma lata, vibrada com duas baquetas grosseiras. Com o aparecimento da harmnica, nasceu ento a massemba: substitui-se o tambor e a lata por aquele instrumento, pela sala se trocou o ambiente campestre.
Ultimamente, o instrumental associou o pandeiro, os ferrinhos e a garrafa, funcionando esta como aparelho de sopro. O fogope voz de comando para a semba passou a determinar-se pelo ritmo da msica, circunstncia que releva a melodia. A indumentria tambm se requintou: as damas chegam a trajar de igual, pompeando at, num sarau duas mudas; e os cavalheiros, embora menos rigorosos, j se apresentam com a mesma uniformidade, inclusivamente de smoking. (RIBAS, 1985, p. 44)
O trecho em questo acompanhado por algumas notas explicativas, assim temos a
explicao de goma - tambor comprido -, e de dicanza - chocalho de bordo. Podemos ver
atravs do trecho selecionado que os amantes so esquecidos para que se possa descrever
um dado da cultura de modo bem detalhado, ou seja, a massemba. como se houvesse uma
suspenso da ao e do prprio enredo para que uma notao explicativa venha tona. As
notas de rodap utilizadas pelo autor s reforam o carter informativo do texto que todo
matizado por esta dialtica entre o imaginado e o observado.
No se trata apenas de compor o universo por onde circulam as personagens. O
traado do texto nos revela um carter dual: temos de um lado a trama amorosa com as
intrigas que levam ao desenlace dos amantes e, de outro lado, a descrio de dados da
cultura que podem ser interpretados muito mais como interveno etnogrfica do que como
dado que corrobora para a coeso interna da fico.
Na quinta parte, Noite de luar, a presena de gneros orais total. Vemos
descarrilar uma srie de adivinhas, cantigas e narrativas contadas pela me de Catarina.
quase como se estivssemos diante de uma reunio de dados coletados numa pesquisa
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etnogrfica, que ao invs de serem catalogados e sistematizados por gneros ou funes,
como costumam ser, foram integrados num romance de trama frgil, cujo objetivo, como o
prprio autor revela no prefcio, muito mais dar a conhecer as gentes de Angola. A
consulta a obras ensasticas do autor como, por exemplo, Temas da vida angolana e suas
incidncias (2002) ou Usos e costumes angolanos (1964), ir nos revelar o mesmo tipo de
dados utilizados na composio do texto de Uanga (feitio), o que nos indica que o
compromisso primordial da obra mesmo com a descrio de elementos da cultura
popular.
Sobre o romance em questo escrevera Rita Chaves (1999, p. 145): A finalidade
em evidncia da obra revela que sua natureza ser de fato definida para alm das fronteiras
do terreno literrio. Para a autora podemos entender este romance como um texto imbudo
da necessidade de se recobrir reas como a histria, a sociologia, a antropologia, etc, reas
a que o pensamento letrado ainda no recobriu. De fato, a obra caminha numa linha
divisria entre a fico e a observao cientfica.
1.5 Uanga (feitio): dilogo com um narrador-autor etngrafo
Wolfgang Kayser (1970) nos ensina no captulo VII, Pressupostos filolgicos, a
acompanhar as palavras do autor como possibilidade interpretativa para a obra. Num
prefcio o autor comunica diretamente com o leitor e descobre-lhe o segredo da gnese do
livro. (KAYSER, 1970, p. 7) Os textos do autor que dizem respeito obra, sobretudo
quando integrados a ela nas formas de prefcio ou posfcio, podem ser considerados em
conjunto com a mesma na medida em que revelam opes estticas e ideolgicas do autor.
Tendo este ponto em vista, seguimos o Depoimento de Cmara Cascudo nas
consideraes sobre o foco narrativo. O mesmo procedimento ser adotado para a
considerao do foco narrativo em Uanga (feitio). Leiamos algumas indicaes que Oscar
Ribas escrevera para seu texto:
Para que no vos decepcioneis, Leitores, desde j declaramos que o presente volume no constitui um romance de sala, mas um documentrio da sociedade negra inculta. Em resultado, respirareis outra atmosfera psicolgica, vivereis num mundo de costumes estranhos, volta dos quais predomina o
33
feiticismo. (...) Com o intuito de revelar a muitos o grau imaginoso da raa, desenrolamos uma enfiada de adivinhas, algumas histrias e diversos provrbios, pois, segundo Cndido Figueiredo, os anexins, ditados, aforismos e brocardos constituem o tesoiro da sabedoria das naes, e as suas origens escapam, na sua maioria, investigao dos curiosos (...)
Se esta modesta obra no satisfizer ao recreio espiritual, sirva, ao menos, de repositrio etnogrfico aos curiosos: j nos contentamos com semelhante recompensa. (RIBAS, 1985, p. 19-20)
O dilogo com o leitor no prefcio intitulado Porqu nos indica as intenes da
obra. Menos para satisfazer o recreio espiritual do leitor e bem mais para ser
recepcionada como documentrio da sociedade negra inculta ou repositrio
etnogrfico. Nestas formulaes do prprio autor, ilustra-se bem a sua conscincia
problemtica, dividido que est entre a paixo pela sua terra e a dificuldade de adeso
completa, pois v na mesma as figuraes do inculto, do ignaro. Nas palavras de Rita
Chaves (1999, p. 133), Oscar Ribas encontra-se imprensado entre a vontade de erguer os
chamados valores de raiz e o amargo complexo de inferioridade a que se vem condenados
aqueles que se formam na esfera de padres estrangeiros ao seu meio (...)
O movimento do narrador, entre aproximaes e afastamentos da matria narrada,
nos indicar, ora os dados de sua observao, ora os seus prprios limites ideolgicos.
De todo modo, no deixamos de confiar e de aprender com este narrador que no
Porqu do romance nos enuncia o seu trabalho investigativo que, inclusive, contara com
informantes privilegiados. Como diz: se no fora a preciosa coadjuvao de familiares,
tambm esbarraramos no indecifrvel, por nos faltar a verdadeira intimidade com o seu
meio, no obstante termos nascido em frica. (RIBAS, 1985, p. 20)
Ainda que o autor tenha se distanciado daqueles cuja cultura descrever, fornece ao
leitor elementos para compor sua autoridade: o autor nascera em frica (dado relevante
ainda que se situe como estrangeiro social), efetuara investigaes e contara com
informaes fornecidas pelos seus familiares, africanos nativos da cultura local a ser
examinada.
Na primeira parte, Antigamente, anterior ao incio da trama narrativa, mas
servindo de prembulo para localizar a cidade de Luanda, onde se passa a trama e onde se
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encontram os dados registrados pelo autor, encontramos um tipo de argumentao que pode
ser interpretada como signo da autoridade do narrador.
A incurso por notas histricas sobre a cidade de Luanda, as avaliaes sobre o
espao fsico e sobre a sociedade constituem uma prosa argumentativa e ensastica que,
mais do que apresentar o espao da narrativa, nos revela que estamos diante de um narrador
culto, um narrador que conhece a histria de sua cidade e possui capacidade crtica para
avaliar os acertos e os equvocos do processo de modernizao.
Por uma herana remota, quase toda a populao indgena feminina usava o caracterstico traje: panos que envolvem o corpo, das axilas ao tornozelo. Rara era a mulher que se vestia europia. Mesmo a blusa, ultimamente exibida com os mais variados modelos, no participava da indumentria. Cabe a Maria Bento Faria, me do autor, a primazia de usar esta pea de roupa, o que, como sucede a todas as novidades, originou comentrios. Mas a moda, superior a preconceitos, venceu a relutncia, e, num rpido triunfo, o seu uso generalizou-se. No governo do general Norton de Matos, por medidas daquele alto-comissrio, que se vulgarizou o vesturio europeu. (RIBAS, 1985, p. 26)
Hoje, Luanda, liberta de insdias, ufana de seu aparato,
diligencia colocar-se a par doutras cidades modernas, e, movida pela vaidade, trabalha no sentido de suplant-las. Para se expandir, com que fria atacou a mata perigosa! Para se alindar, com que repulso elimina as casas inestticas!
O que foste, o que s, o que sers, Luanda de Novais! Somente para tua magnificncia, urge remediar uma insensatez: a desarborizao. (RIBAS, 1985, p. 27)
No primeiro trecho vemos um enaltecimento modernizao, simbolizada pelo
ingresso na moda europia. A referncia a Maria Bento Faria, me do autor, nos leva a
pensar, como na obra de Cmara Cascudo, na tessitura de uma narrao que no mascara a
autoria. No segundo trecho, mantendo o tom de triunfo presente no primeiro, o autor
assinala o crescimento da cidade e acusa a sua desarborizao.
Antigamente inicia-se com uma frase que localiza o tempo da narrativa : Ano de
1882. (RIBAS, 1985, p. 23) Em Festa de npcias, no captulo um, lemos: Nesse remoto
ano de 1882, numa cubata situada no Cazuno, morava Joaquim, pedreiro dos seus vinte e
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cinco anos. (RIBAS, 1985, p. 31) O demonstrativo anafrico, nesse, nos faz localizar a
narrativa num tempo e, sobretudo, num espao extraliterrios, j apresentados pelo autor.
Vemos, desde o incio, o autor operando uma oposio entre dois registros. Em
Antigamente, monta-nos um quadro de argumentao ensastica em que o espao nos
aparece na sua dimenso histrica e social. Em seguida, em Festa de npcias, captulo
um, localiza a narrativa neste quadro de argumentaes ensasticas e fora do eixo ficcional.
O narrador culto que vemos aparecer em Antigamente no oculta o autor e
dominar a narrativa com notas sobre cultura popular e comparaes entre culturas.
No captulo 9, ainda da primeira parte, Festa de npcias, aps a comprovao
pelas velhas vav Tita e vav Tataxa de que Catarina conservara-se virgem, o narrador far
o seguinte juzo:
Como os costumes tm pontos de tangncia! No obstante a barreira ocenica, a ausncia de paralelismo social, os povos confundem-se em seu primitivismo: o que atualmente se observa nas gentes ignaras, j foi usado pelos povos considerados estrelas de primeira grandeza. De extraordinrio, afinal, nada existe. Os homens semelham-se estruturalmente, portanto procederam da mesma infncia. A diferena cifra-se apenas nisto: uns, pelo mais rpido desenvolvimento, libertaram-se mais cedo da hediondez inicial; outros, pela morosidade do crescimento, ainda se servem de ridculas heranas. (RIBAS, 1985, p. 94)
O narrador mostra-se um douto, descreve os rituais da terra em que nascera e
capaz de compar-los com rituais de outras terras e de outras gentes. A referncia a idias
como paralelismo social, primitivismo e estrutura revelam a perspectiva ensastica da
obra. O narrador-autor desloca o olhar de suas personagens e da trama que as envolve para
a reproduo de juzos de ordem antropolgica.
Se em Cmara Cascudo percebramos modulao no tom e variao no foco
narrativo, em Ribas notamos a manuteno de um tom elevado e impoluto. E uma narrao
em terceira pessoa que prima pela objetividade do discurso.
Em alguns trechos podemos notar a presena de um plural impessoal do tipo:
Voguemos atravs da antiguidade. Que faziam os gregos pela ocasio em que a mulher,
rasgado o horizonte sexual, penetrava nos domnios fecundantes do amor? Invocavam
Himeneu e em sua honra entoavam cnticos. (RIBAS, 1985, p. 94) O plural impessoal
ajusta-se terceira pessoa, mantendo a projeo de um discurso objetivo, como forma de
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garantia de que estamos diante de um narrador com autoridade para a produo do
documentrio da sociedade negra inculta.
O tom impoluto de um douto ajusta-se perfeitamente perspectiva do narrador. A
objetividade do discurso e a linguagem formal marcam o afastamento do narrador de seus
personagens. O narrador-autor coloca-se na posio de intermedirio entre o leitor e as
gentes ignaras de sua terra. Como revela Ribas no prefcio, muito embora tenha nascido
na terra, j no possui intimidade com a mesma.
Em Ilundo, divindades e ritos angolanos, Oscar Ribas numa parte destinada aos
Ministros do culto, nos dir que so quatro as classes que constituem os ministros do
culto: quimbanda, quilamba, molji e macua-bamba. (RIBAS, 1958, p. 45) Ao descrever o
quimbanda dir:
O quimbanda trata as enfermidades, diagnosticando por adivinhao; debela os azares; restabelece a harmonia conjugal ou provoca a inimizade; d poderes para o domnio no amor ou para a anulao de demandas. Embora no seja o seu verdadeiro mister, tambm pode causar a morte. Conforme j explicamos em Uanga, este ministrio exercido por espontaneidade ou por transmisso de alma. (RIBAS, 1958, p. 45)
O trecho nos d uma boa indicao do plano em que a obra pode ser recepcionada.
Para o prprio autor, Uanga (feitio) tratado como fonte a se recorrer para se obter
esclarecimentos.
Ilundo, divindades e ritos angolanos fizera repercutir os juzos de intelectuais
portugueses e brasileiros acerca das obras Uanga (feitio) e Ecos da minha terra. Em todas
as apreciaes, os livros so recepcionados como excelentes compndios da vida cultural
angolana. Reproduziremos, a seguir, a nota enviada por Cmara Cascudo:
Apesar de acamado e proibido de esforo, no resisti ao prazer de ler Uanga e Ecos da minha terra que teve a bondade de enviar para mim. A resposta oficial o envio, incluso, de diploma provisrio nomeando-o Titular da nossa Sociedade Brasileira de Folk Lore, a mais antiga do Brasil, homenagem natural ao seu esforo, inteligncia e dedicao na pesquisa e comunicao fiel da informao etnogrfica angolense nos seus livros, claros e sugestivos.
Bem sabe da simpatia e curiosidade brasileira, especialmente aqui pelo Nordeste do Brasil, pelo nome mgico de
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Luanda. Aqui se fixaram os escravos dessa regio e a nossa Literatura Oral est cheia de recordaes vivas, constituindo uma presena espiritual, Pai Angola, Negro de Angola, Velho Angola. No Recife, nas festas do Maracatu (desfiles de negros pelo carnaval) ainda cantam, como estribilho: - Luanda! Luanda!
E ignoramos muito e muito de Angola. Tenho as publicaes excelentes da Guin, Moambique, Timor, Cabo Verde, etc. Mas Angola nos falta, justamente a querida Angola, reino fantstico que os nossos negros falam como do Paraso perdido. Dos contos tenho apenas o velho Heli Chaterlain, de 1894, os Folk-Tales of Angola, contos populares de Angola, em quimbundo e ingls. Sim, e a gramtica do Quinto que deram em Lisboa.
Seus livros so encantadores de verismo, movimentao, colorido, intensidade dramtica, sugestiva fora psicolgica. Acima de tudo e antes de tudo, naturalidade, fidelismo, honestidade de fixao, compreenso, ternura pelos motivos humanos que o cercam. A luz de seus olhos est na sualma, irradiando a doce claridade comunicativa e enternecedora de afeto, interesse e bondade.
Do Prof. Dr. Lus da Cmara Cascudo Natal, 13-5-954. (RIBAS, 1958, p. 23)
Neste captulo, esforamo-nos em demonstrar a aliana que, nos romances, os
autores realizam entre fico e pesquisa. As duas obras devem ser lidas considerando-se o
compromisso que possuem com a veiculao de informaes que ultrapassam o traado
ficcional.
A comparao entre Cmara Cascudo e Oscar Ribas nos revela uma gama
extraordinria de similitudes capazes de reiluminar as obras de ambos. Muito embora este
estudo privilegie os romances Canto de muro e Uanga (feitio), deveremos ultrapassar um
pouco os limites que nos impusemos para alcanar os autores em outras dimenses. A
anlise de Made in Africa, por exemplo, nos revelar um Cmara Cascudo leitor de Oscar
Ribas. O mesmo conjunto de ensaios tambm nos coloca em contato com uma interessante
perspectiva de Cmara Cascudo, em que no s a frica vista do lado de c, como
tambm o Brasil visto do lado de l do Atlntico. Se tal perspectiva no fora precursora,
certamente deve ser entendida como marcante na histria das nossas relaes com frica e,
particularmente com Angola, pas extremamente presente nas observaes de Cascudo.
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Captulo 2 Colecionadores, arquivistas 2.1 Cultura popular: algumas notas Os objetos sobre os quais se debruaram Cmara Cascudo e Oscar Ribas, ao longo
de suas carreiras, nos levam a consider-los como pertencentes ao campo dos estudos sobre
folclore. Muito embora, em artigos e ensaios sobre os autores bem como em seus prprios
trabalhos, possamos encontrar a indicao de etngrafos para os autores e de etnografia
para alguns textos, o folclore fora o campo privilegiado da atuao destes intelectuais.
Em ambos encontramos trabalhos voltados para a compilao de textos orais, como
canes, poesias e contos, objetos considerados clssicos da pesquisa folclrica. De Oscar
Ribas, dentre as obras que versam sobre a literatura oral, podemos citar, Missosso, obra
publicada em trs volumes (1961, 1962 e 1964), considerada uma das mais importantes do
autor; tambm temos Sunguilando, contos tradicionais angolanos (1967) e Ecos da minha
terra - dramas angolanos (1952), obra que mereceu republicao na coleo Biblioteca de
Literatura Angolana das Edies Maianga em 2004, fazendo com que o nome de Oscar
Ribas figurasse entre grandes nomes da literatura angolana como Agostinho Neto, Castro
Soromenho e Luandino Vieira, entre outros. De Cmara Cascudo, cuja obra extensa,
podemos citar Contos tradicionais do Brasil (1946), Cinco livros do povo (1953),
Literatura Oral (1952) e o Dicionrio do Folclore Brasileiro (1956), talvez, a sua obra
mais conhecida.
Oscar Ribas identificava-se como folclorista em seus trabalhos, inclusive, fazendo
sempre questo de mencionar entre as suas insgnias ou honorificncias - designativos
utilizados pelo autor - a de Membro Titular da Sociedade Brasileira de Folk Lore, a
Medalha literria Gonalves Dias, concedida pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e
o ttulo de Membro Correspondente da Sociedade Matogrossense de Folclore.
Como vimos na carta enviada ao pesquisador angolano em 1954, fora a leitura
mesma de Uanga (feitio) em conjunto com Ecos da minha terra dramas angolanos, que
fizera Cascudo destinar a Ribas o diploma provisrio nomeando-o Titular da Sociedade
Brasileira de Folk Lore. Segundo Cmara Cascudo tratava-se de uma homenagem natural
ao esforo, dedicao e inteligncia de Oscar Ribas na pesquisa e comunicao fiel da
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informao etnogrfica angolense. (RIBAS, 1958, p.23) Vale ressaltar, uma outra vez, que
a indicao de informao etnogrfica no dever ser associada tradio criada no
interior das cincias sociais, mas matizada pelas tenses entre este campo e o dos estudos
de folclore. Renato Ortiz (1992), aponta como caracterstica dos estudos de cultura popular,
o fato de florescerem fora das universidades e dos centros urbanos, o que no raro, gera
conflitos entre os folcloristas e campos do saber legitimados pela Academia1.
Cmara Cascudo tido como um dos mais importantes estudiosos da cultura
popular do sculo XX. (Silva, M. 2003, p.XIII) Como destaca Vnia Gico (1998), dentre
todos os rtulos que foram atribudos ao pesquisador, certamente o que lhe garantiu
reconhecimento nacional e internacional foi o de estudioso do folclore. De acordo com o
registro no Dicionrio do Folclore Brasileiro, folclore a cultura do popular, tornada
normativa pela tradio. (CASCUDO, 1972, p.400) Cascudo nos revela no prefcio que,
aps a publicao de Vaqueiros e Cantadores, em 1939, comeara lentamente a pr em
ordem um temrio do Folclore Brasileiro para simplificar as consultas pessoais.
(CASCUDO, 1972, p.9) Assim nascera a idia de produzir um dicionrio. Um excelente
panorama dos estudos de folclore efetuados pelo autor poder ser lido na tese de Vnia
Gico (1998).
Para compreendermos melhor nossos autores, recorreremos a algumas notas
histricas que do conta do surgimento dos folcloristas e do seu campo de interesse. O
objetivo apenas traar uma tela de fundo, em que as obras dos nossos folcloristas podero
ser recepcionadas, refletidas ou questionadas. Obviamente no esgotaremos o assunto, to
somente chamaremos a ateno para os pontos que considerarmos fundamentais.
Procuraremos articular dois importantes textos sobre o assunto: Cultura popular:
romnticos e folcloristas, de Renato Ortiz; obra que reconstri a trajetria histrica da
noo de cultura popular discutindo uma extensa bibliografia europia sobre o tema, e
Cultura popular na idade moderna, de Peter Burke, apontado pelo prprio Ortiz como um
importante livro, por ser um dos poucos a traar uma perspectiva histrica sobre o tema.
Renato Ortiz, na apresentao de seu livro, inicia dizendo que a discusso sobre a
cultura popular um tema permanente entre ns. (ORTIZ, 1992, p.5) Um longo debate
1 Para uma melhor compreenso destas tenses na constituio do pensamento social brasileiro ver Vilhena (1997) e Silva, V. (2002).
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que vem, pelo menos desde o sculo XIX, sendo matizado pelas diferentes conjunturas
scio-polticas e por diferentes interesses. Ortiz considera que o debate oscila entre dois
pontos fundamentais: de um lado o popular diz respeito cultura dos grupos subalternos
em oposio a uma cultura de elite (ou cultura letrada ou mesmo cultura erudita); de um
outro temos o popular como sinnimo de povo (ORTIZ, 1992, p.5), sendo que povo ser
compreendido como uma totalidade indistinta.
Para compreender os termos do debate, Ortiz volta-se para uma espcie de
arqueologia do conceito, conforme ele prprio indica.
O interesse pelos costumes populares inicia-se no sculo XVI, porm, neste
momento contm ainda uma perspectiva normativa e reformista. Segundo Ortiz, boa parte
desta literatura fora produzida por sacerdotes2. A finalidade era apontar os equvocos vistos
nas crendices populares. Aos poucos a curiosidade pela coleta das prticas e narrativas se
intensifica, dando origem a um novo tipo de intelectual: o antiqurio. (ORTIZ, 1992, p.12)
Estes intelectuais, num primeiro momento, executaram trabalhos solitrios que, num
segundo, faro florescer a organizao de sociedades.
Na Inglaterra, no incio do sculo XIX, florescem vrios clubes de antiqurios, onde se renem membros da classe mdia para discutir e publicar, livros e revistas sobre as antiquidades populares. William John Thoms, criador da palavra folclore, fellow da Sociedade dos Antiqurios (1838), e na revista Athenaeum, funda uma seo dedicada cultura popular, na qual comenta a correspondncia enviada pelos leitores editoria. Ele edita ainda sua prpria revista, Notes and Queries, para depois se engajar na formao da Folklore Society, a qual vai presidir at 1885, ano de sua morte. (ORTIZ, 1992, p.12)
H dois traos fundamentais na perspectiva do antiqurio: o primeiro o
colecionismo. Dentro da denominao antiguidades populares encontrvamos uma
diversidade grande de assuntos como costumes, festas, monumentos celtas, histria local,
etc. O segundo trao diz respeito ao amor s antiguidades, o que de forma alguma quer
dizer amor ao povo.
2 Renato Ortiz cita obras como: Tratado das supersties, de Jean-Baptiste Thiers (1679), Antiquitates vulgares, escrito pelo clrigo Henry Bourne (1725), Histria crtica das prticas supersticiosas que seduziram o povo e intrigaram os sbios, do padre Le Brun (1702).
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O perodo romntico que emerge no final do sculo XVIII o segundo momento
apontado por Ortiz como definidor da idia de cultura popular. No perodo romntico dilui-
se a predisposio negativa que havia ainda em relao ao popular. A espontaneidade vista
nas criaes populares estar no foco dos romnticos. Alguns aspectos relevantes do
romantismo, como a oposio ao Iluminismo, o historicismo, o gosto pelo bizarro e pelo
exotismo (ORTIZ, 1992, p.18), tambm apontados por Peter Burke (1995), vo integrar o
lxico do perodo. Segundo Ortiz, estes elementos j estavam presentes nas prticas do
antiqurio. justamente nesta virada de sculo, no bojo do movimento romntico, que as
pesquisas dos intelectuais sobre cultura popular se tornaro uma prtica ampla e constante.
De acordo com Peter Burke, foi nesse perodo, entre o final do sculo XVIII e incio
do XIX, que ocorreu a descoberta do povo, para retomar um ttulo do autor. O povo (o
folk) se converteu num tema de interesse para os intelectuais europeus. (BURKE, 1995,
p.31)
Num primeiro momento h uma busca pelas canes populares. J. G. Herder deu o
nome de Volkslieder aos conjuntos de canes que compilou entre 1774 e 1778, partindo do
termo Volkslied, que significa cano popular. Diz-nos Burke que para Herder, apenas a
cano popular conserva a eficcia moral da antiga poesia, visto que circula oralmente,
acompanhada de msica e desempenha funes prticas, ao passo que a poesia das pessoas
cultas uma poesia para a viso, separada da msica, mais frvola do que funcional.
(BURKE, 1995, p.32) H uma idia de que a poesia popular portaria a essncia de uma
poesia mais rente vida, uma poesia com funes prticas, como, por exemplo, direcionar
moralmente a vida dos homens.
Tais idias tambm estiveram presentes nos trabalhos dos irmos Grimm. Segundo
Burke, as idias de Herder e dos Grimm tiveram uma grande influncia; aps os seus
trabalhos surgiram coletneas de canes populares nacionais em vrias partes da Europa.
No se tratou apenas da descoberta da literatura tradicional, descobriram-se tambm a
religio popular, a festa popular, a msica popular, enfim, tratou-se de um movimento onde
se descobria a existncia do prprio povo.
Assim como Burke, Ortiz tambm atribui um valor decisivo aos trabalhos do
filsofo alemo Herder e dos irmos Grimm.
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Para Herder, as canes e as poesias populares representariam a essncia de um
povo, expresso espontnea da alma nacional. O filsofo introduz ainda uma diferena
entre poesia de natureza e poesia de cultura. A primeira reflete um conhecimento
intuitivo, a segunda possui a marca do racional. Naturalmente, a primeira sobrepe-se
segunda, na medida em que ela contm as potencialidades do povo, compreendido por
Herder como um organismo que conteria em si o seu prprio destino.
Na avaliao de Ortiz, a importncia dos irmos Grimm diz respeito, sobretudo, ao
emprego de novas metodologias.
A edio do livro de contos (primeiro volume em 1812, o segundo em 1814), e de lendas (1816), inclui, pela primeira vez, elementos retirados de uma verso popular. Diferenciando-se das publicaes anteriores, que continham verses arranjadas pelos autores, os Grimm tm a iniciativa de procurar colet-las diretamente da boca dos camponeses. Seus primeiros livros so impessoais, e indicam detalhadamente o local onde cada histria foi ouvida; esta metodologia de trabalho abre a possibilidade de se realizar um estudo mais sistemtico das tradies populares. (ORTIZ, 1992, p. 24)
Peter Burke aponta trs ordens de razes para o intrigante interesse pelo povo
naquele momento da histria: as razes estticas, as razes intelectuais e as razes polticas.
A principal razo esttica o que pode ser chamado de revolta contra a arte. (BURKE,
1995, p.37) O momento histrico caracterizado por uma busca do antigo, do popular e do
distante. O polido passa a ser contestado ou deixado de lado, em nome do considerado
selvagem ou primitivo. Entre as razes intelectuais, Burke refere-se a uma reao
contra o Iluminismo.
O Iluminismo no era apreciado em certas regies, como, por exemplo, na Alemanha e na Espanha, por ser estrangeiro e constituir mais uma mostra de predomnio francs. Na Espanha o gosto pela cultura popular em fins do sculo XVIII era um modo de expressar oposio Frana. A descoberta da cultura popular estava intimamente associada ascenso do nacionalismo. (BURKE, 1995, p.39)
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Vemos no trecho acima que a principal razo intelectual apontada no se separa da
questo poltica. O momento tambm marcado por movimentos nativistas, em que a
descoberta da cultura popular significava o reforo de um certo sentimento de
nacionalidade em sociedades sob domnio estrangeiro. (BURKE, 1995, p.40)
Ainda nos dir Peter Burke que uma constante que aparece nos textos de vrios
intelectuais justamente a idia de que preciso coletar as canes e narrativas populares
antes que elas desapaream. Desde os primeiros momentos, a cultura popular algo em
permanente risco, a depender da benevolncia de um intelectual para efetuar-lhe o