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CAMPEÕES DO MUNDO CAMPEÕES DO MUNDO DIAS GOMES

CAMPEÕES DO MUNDO

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peça sobre o golpe militar de 1964

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CAMPEES DO MUNDO

CAMPEES DO MUNDO

DIAS GOMES

PREFCIO

No ser por acaso que Dias Gomes o dramaturgo brasileiro mais estudado no exterior, em artigos, ensaios, teses universitrias e at mesmo cursos monogrficos. A distncia geogrfica e o estranhamento cultural permitiram aos teatrlogos estrangeiros perceber algo que o calor da proximidade, dos modismos e a vivncia das disputas paroquiais nem sempre nos permitiram ver com clareza: que, se impossvel apontar-se um dramaturgo contemporneo tpico no Brasil (e o tpico sempre algo que a esttica repele ou a histria desmente), Dias Gomes indiscutivelmente o mais representativo autor do que se convencionou definir como o moderno teatro brasileiro.

essa representatividade abrangente que confere dramaturgia de Dias Gomes uma condio quase paradigmtica no teatro brasileiro moderno e contemporneo, constituindo-se num parmetro slido (e talvez nico) que permite discernir as principais linhas de fora de um conjunto aparentemente desconexo, assim como dar a medida dos desvios individuais, frutos da originalidade das personalidades artsticas que o compem.

Dois so os motivos principais que conferem dramaturgia de Dias Gomes esse carter paradigmtico: a continuidade na ordem temporal e a natureza integrativa de que se reveste, tanto no plano temtico e conteudstico como ao nvel da expresso dramtica.

Quanto ao primeiro desses aspectos, convm lembrar que Dias Gomes inaugura, juntamente com Nelson Rodrigues, o perodo considerado como moderno do teatro nacional, nos incios da dcada de 40. De P de cabra a Campees do mundo sua produo dramtica tem sido constante e praticamente ininterrupta (mesmo quando o veculo foi diverso do palco), atravessando os vrios momentos vividos por nossa dramaturgia at o presente. E seja por suas qualidades intrnsecas, por seus dotes de comunicao com o pblico e pela habilidade com que o dramaturgo soube contornar entraves das mais variadas ordens, essa produo foi contnua no apenas enquanto literatura dramtica (como a de outros dramaturgos que permaneceram escrevendo, embora tivessem suas obras compulsoriamente engavetadas pelos censores), mas fez-se presena constante nos palcos, nas telas e nos vdeos, sem que para isso o dramaturgo se visse forado a abrir mo do iderio que o norteava. Dias Gomes nem sempre pde dizer o que quis; mas jamais se furtou a dizer o que pde. E mais do que o perodo de tempo considerado ou o volume do acervo produzido, a constncia desse dilogo entre autor e pblico que contribui para fazer de sua dramaturgia a mais representativa do teatro brasileiro moderno.

No mbito da temtica, do contedo e dos modos de expresso dramtica esse carter de representatividade ainda mais evidente. Durante quase quarenta anos, Dias Gomes atravessou momentos, movimentos e modismos os mais diversos; se, por um lado, soube manter a coerncia ideolgica de sua produo e a integridade de sua personalidade artstica, por outro lado teve a sabedoria de fazer-se sensvel s mudanas da conjuntura econmica, social e poltica, assim como s inovaes surgidas na literatura, no teatro e no cenrio artstico-cultural, de modo mais amplo.

Sua dramaturgia consubstancia o que de mais caracterstico possui o moderno teatro brasileiro: a tentativa de pr em cena o personagem autenticamente nacional, com suas particularidades, seu modo peculiar de expresso, suas contradies e incongruncias; a preocupao de enfocar esse personagem no como indivduo isolado, ao nvel puramente psicolgico, mas de mostr-lo como integrante de um contexto histrico-social determinado, que o supera e delimita o mbito de sua atuao; a utilizao do personagem e do myths para, atravs deles, promover a anlise e a discusso daqueles aspectos estruturais ou conjunturais mais abrangentes; a conscincia de que preciso significar com clareza e estabelecer uma comunicao efetiva com o pblico, dosando adequadamente a discusso das idias e a necessidade da diverso, e excluindo por princpio todo hermetismo ou elitismo ao nvel da expresso literria; de modo mais genrico, a convico de que o teatro no pode ser simples divertimento alienante nem, em contrapartida, uma arena real onde se travam batalhas decisivas para as mudanas sociais , isto sim, um importante instrumento de ampliao de conscincias, que nada muda por si mas pode (ou no) levar o espectador a tornar-se um agente ou protagonista das mudanas l onde elas efetivamente sero feitas: fora do palco, no grande teatro do mundo.

Estas postulaes simples e gerais, reconhecveis ao longo de toda a dramaturgia de Dias Gomes, poderiam ser tomadas como o programa bsico, o denominador comum daquilo que o moderno teatro brasileiro procurou realizar desde a reviravolta dos anos 40. No porque o autor de O pagador de promessas formulasse tais itens como um iderio prvio a ser seguido por seus companheiros de gerao, mas sim porque soube captar e integrar ao seu teatro e s suas opes de cidado e de artista os temas e idias mais marcantes do seu tempo, traduzindo-os atravs de recursos expressivos sempre atualizados, graas ao dilogo ininterrupto que conseguiu manter com a platia ao longo de todos esses anos.

Se para o historiador do teatro importante reconhecer na obra de Dias Gomes a smula do que constitui o projeto da moderna dramaturgia brasileira, para o crtico representa um desafio fascinante a tentativa de reconhecer , a cada nova pea desse autor, as indicaes dos rumos para os quais pode tender o conjunto de nossa dramaturgia, num futuro prximo. com esse esprito que tentaremos examinar alguns aspectos da ltima pea de Dias Gomes, Campees do mundo, recentemente estreada no Rio de Janeiro. Num momento em que a literatura dramtica no Brasil parece inusitadamente amorfa, ablica e aptica, ser til tentar desvendar as conquistas alcanadas por esta nova pea, e os rumos possveis que prenuncia.

O enredo de Campees do mundo pode ser resumido em poucas palavras: voltando ao pas aps nove anos de exlio, o escritor e ex-publicitrio Ribamar, um dos muitos banidos pelos governos militares que se sucederam no poder aps 1964, encontra-se no aeroporto com Tnia, antiga companheira de organizao, com quem participara do seqestro de um embaixador americano no Rio de Janeiro, em 1970, na poca em que o Brasil inteiro se voltava para o Campeonato Mundial de Futebol, no Mxico. Todos os demais participantes diretos daquela ao foram mortos pelos rgos de represso ao terrorismo; resta hoje a Tnia e a Riba fazer uma reflexo ampla sobre o perodo que viveram, sobre a validade ou o desacerto de suas opes, as conseqncias das aes que praticaram e as perspectivas do presente. Essa reflexo leva-os no apenas a rememorar os episdios mais marcantes do seqestro, como tambm a rever seus prprios, itinerrios e os daqueles que a seu lado participaram da luta armada nesse perodo. Assim, prope-se Dias Gomes a trazer ao palco uma amostragem, se no completa, ao menos bastante representativa de personagens da nossa histria recente, aos quais at h pouco foi negado o direito de existncia cnica; e, atravs do desenrolar da ao, pretende o dramaturgo ir alm da discusso do evento centralizador do entrecho (o seqestro em particular ou o fenmeno da luta armada em geral), para esboar um panorama amplo e geral do perodo sobre o qual se voltam as reflexes de Tnia e Ribamar (1964/1979).

Oprojeto ambicioso, como se v; e poderia redundar numa das peas mais maudas e maantes de toda a dramaturgia nacional se, em mos menos hbeis, menos experientes ou menos inspiradas, contasse apenas com os esquemas tradicionais de desenvolvimento e progresso da ao dramtica; ou se, atendendo aos devaneios de alguns intelectuais que em seus gabinetes e talvez levados por um inconsciente mecanismo de compensao idealizam romanticamente o nvel de reflexo e discusso mantidos pelos que no Brasil optaram pela luta armada no final da dcada de 60, o autor consentisse que seus personagens se entregassem a fastidiosas e interminveis ponderaes de natureza tica e filosfica, no momento mesmo em que participavam da ao revolucionria. Isto, alm de contrariar os mais comezinhos princpios de verossimilhana, conferiria aos personagens uma substncia e um tipo de comportamento inteiramente diverso do revelado pela mdia dos muitos combatentes reais que serviram de referncia criao dramtica. Felizmente porm, Dias Gomes como autntico homem de teatro preferiu sempre deixar que a ao dramtica falasse por si e suscitasse os problemas a serem posteriormente tomados como objeto de reflexo pelo leitor ou espectador. Opo corretssima, de vez que o elemento fundante do fenmeno teatral a ao dramtica jamais poder ser substitudo peio elemento constituinte da literatura (a palavra), que arte de natureza inteiramente diversa. Com isso, ganhou a dramaturgia contempornea uma pea dotada de linguagem cnica provocativa e grande impacto teatral, e concomitantemente livrou-se o pblico de assistir, aprs la lettre, uma reedio nacional dOs justos de Camus, ou uma espcie de Mortos sem sepultura s avessas ou seja, um tipo de literatura dramtica datada e, a despeito de suas virtudes intrnsecas, inaceitvel como escritura cnica neste final do sculo XX.

A apresentao dos Jatos para uma reflexo posterior da platia aparece assim como o fator capital das inovaes trazidas por Campees do mundo, e o elemento determinante das estratgias dramticas adotadas pelo autor nesta obra. Esta opo dramatrgica parece indicar que o teatro brasileiro tender a privilegiar a ao dramtica como base da significao no fenmeno cnico, relegando a segundo plano a expresso puramente verbal ou literria (e este, alis, o lugar que verdadeiramente lhe cabe em todo teatro autntico, nos tempos modernos). Aos passadistas certamente repugnar esta escolha, que fora o pblico a uma leitura muito mais atenta e ativa das aes mostradas em cena, ao invs de deix-lo fruir tranqilamente das verdades literariamente enunciadas pelo autor atravs das falas de seus personagens. E desagradar igualmente queles que esto acostumados a identificar o teatro voltado para temas sociais e polticos com uma certa dramaturgia festiva e simplista que, herdeira de movimentos norte-americanos e europeus anteriores Segunda Guerra Mundial, floresceu entre ns at recentemente. A prevalncia da ao dramtica como elemento bsico da significao torna a obra necessariamente mais aberta, passvel de leituras diversas, permevel dvida, incerteza, discusso. Excluem-se, assim, aquelas certezas bombsticas proclamadas pelo autor travestido em personagem to reconfortantes para um certo tipo de platia engajada que, traindo neste ponto sua mentalidade burguesa, procurava no palco apenas a pblica confirmao de seus valores e de sua viso do mundo. Campees do mundo, ao contrrio, abre-se para o questionamento, para a dvida e at mesmo para a perplexidade, em todos os nveis: nos itinerrios de seus personagens, nas situaes com que se defrontam, em seus modos diversos de encarar os fatos vividos e as decises a tomar, e, acima de tudo, na prpria organizao estrutural do mythos (onde o mais frisante exemplo , sem dvida, a justaposio e a convivncia de elementos to diversos como anistia e Flamengo, seqestro e Campeonato Mundial de Futebol, etc.). Assim, desagradando a gregos e troianos, Dias Gomes consegue atingir precisamente aqueles que constituem a mais importante parcela do pblico: os que procuram compreender e identificar-se com a realidade de um pas que a todo momento os fora ao questionamento de posies, coloca-os em dvida e freqentemente deixa-os perplexos. E a estes, que no se mumificaram em imutveis certezas nem em verdades de ocasio, que a pea se dirige, como proposta de reflexo pois so eles (os que esto vivos e sensveis mudana) os nicos espectadores vlidos junto aos quais o teatro poder efetivamente desempenhar a funo social que lhe cabe: promover o debate, questionar as verdades estabelecidas, instigar a um aprofundamento da compreenso e ampliar as conscincias.

claro que a persona do autor no se anula nem desaparece; apenas se torna uma presena mais discreta, menos messinica no que tange veiculao das idias, abrindo campo para a participao ativa do espectador no processo de reflexo e formulao de conceitos. Em contrapartida, seu posicionamento ideolgico torna-se muito mais importante e vigoroso, porque exercido atravs de um instrumental mais sutil e sofisticado: a seleo dos fatos a serem apresentados e sua estruturao como ao dramtica. A exemplo do que faz a cmara no cinema, ele quem nos indica os fatos para os quais devemos atentar e os ngulos at ento insuspeitados pelos quais poderemos doravante encar-los. Ao agir assim, revela o que a aparncia ocultava e abre perspectivas para uma compreenso renovada o que corresponde sua funo de artista , mas exime-se de passar julgamentos ou formular concluses (embora os tenha para si, como homem e cidado). A obra fruto de sua viso do mundo, mas esta viso no imposta ao leitor! espectador como a nica possvel, atravs de formulaes verbais fechadas. A prevalncia da ao dramtica como fonte de significao traz consigo uma necessria abertura que exclui, ad limine, as redues simplistas e a possibilidade do maniquesmo no desenvolvimento dos personagens e situaes. E isto tanto mais verdadeiro no caso de Dias Gomes, cuja viso dialtica da realidade pe sempre em evidncia as contradies internas e externas dos personagens e das situaes. Sair certamente frustrado quem espere de Campees do mundo um julgamento passado sobre os jovens dos anos 60 ou sobre os participantes da luta armada: a todo momento suas aes parecem contrariar as idias e as intenes originais; por vezes, constata-se o saldo positivo de aes aparentemente equivocadas; outras vezes, so essas aes que parecem escapar aos objetivos visados pelos personagens, conduzindo-os a um rumo no desejado. No h, aqui, impolutos heris gorkianos nem idealizaes materializadas em personagens, to a gosto de uma certa corrente do chamado realismo socialista. Alis, exatamente o confronto entre a teoria e a prxis revolucionrias que constitui um dos mais fortes elementos de tenso na ao dramtica de Campees do mundo, e os exemplos disso so inmeros: a discusso mantida pelo velho militante do Partido com o dirigente, quando o primeiro parte para uma luta suicida ao constatar que chega ao fim da vida sem que aparentemente tenha avanado um palmo na consecuo dos seus objetivos sociais e polticos, aps dcadas de militncia intensa; a contraditria figura do embaixador americano, to fcil de caricaturar em outras circunstncias, mas que Dias Gomes esmera-se em apresentar como cindido entre a realidade que vive como pessoa e a defesa convicta dos interesses do pas que representa; a atribuio da colocao mais elitista ao personagem mais radical e intransigente da pea (Carlo, o mais violento e sectrio dos seqestradores, filho de operrios, fica indignado ao constatar que o povo no d qualquer importncia ao seqestro, preferindo acompanhar a deciso da Copa do Mundo: ... Ser que esse povo merece o que tamos fazendo por ele? Tou arriscando a minha vida por um povo alienado, que s pensa em futebol! Puta que pariu!); a prpria organizao dos quadros na estrutura do enredo, onde por vezes uma dada ao ou afirmao contestada ou questionada pelo que se revela na ao seguinte; os conflitos entre as vidas pessoais e as atitudes decorrentes das opes polticas do Velho militante e de sua mulher, do industrial pai de Tnia, Mller (que financiou os rgos de represso onde sua filha torturada), do policial inquiridor, etc. Essa opo antimaniquesta por excelncia no fruto do acaso, mas constitui uma postura claramente intencional, coerente com a viso dialtica do mundo perfilhada pelo autor, como se pode verificar no dilogo que hoje travam os dois protagonistas:

TNIAVoc no mudou nada. Sempre se questionando.

RIBAVoc no se questionou durante todos esses anos? Suas intenes, os fins a que se propunha, as aes que praticou?

TNIAClaro. Mas acredito ainda nas mesmas coisas.

RIBATambm eu. Ainda acho que a dignidade do homem inseparvel das intenes e dos fins a que ele se prope. S que entre as intenes e os fins h sempre uma srie de mal-entendidos.

TNIAMas ser que isso no inevitvel em todos os processos revolucionrios? Iluses, mal-entendidos.

(...)

acho que as coisas no podem ser julgadas assim, certo-errado, errado-certo. Qual? Nossa gerao no teve outras opes. No justo que nos chamem agora pra um ajuste de contas, de dever e haver, sem levar isso em considerao.

RIBAO que me pergunto se ns adiantamos ou atrasamos o processo. Isso me fundiu a cuca durante todos esses anos. Tou me referindo nossa ao como um todo, luta armada.

TNIAEra a nica sada.

RIBAPela pressa que tnhamos? Ou por no enxergarmos outro caminho?

(...)

TNIAH erros que no podem ser evitados.

RIBA o que voc acha?

TNIAE.

RIBANo estou certo disso.

, como se v, um questionamento incessante que se conta e se prope como tal, sem subterfgios, excluindo deliberadamente a possibilidade de certezas e verdades pr-fabricadas. E essa postura aberta que permite ao pblico, no painel final da pea, medir e confrontar posies diametralmente opostas sobre a luta armada, por exemplo, ao receber em sucesso imediata os julgamentos do embaixador americano e do dirigente do PCB sobre os combatentes daquele perodo.

Estamos diante de uma linguagem cnica que, sem excluir a tenso dramtica e a diverso, se prope deliberadamente a fazer pensar sobre os contedos a que se refere, sem proclamar verdades ou certezas. Nisto, Campees do mundo revela um extraordinrio salto qualitativo em relao nossa dramaturgia de cunho poltico-social dos anos 60 e 70, onde o dramaturgo parecia freqentemente possuir a chave de uma verdade j de antemo compartilhada por uma platia cmplice, que extravasava catarticamente sua aprovao no teatro para submergir depois numa realidade feita de silncios e omisses inglrias. Nesta pea, Dias Gomes procura obter o efeito contrrio, demonstrando ter assimilado magistralmente e adaptado com perfeio nossa esttica a lio do melhor Brecht: provocar a polmica e a discusso entre o pblico, estendendo e prolongando as fronteiras do fenmeno teatral para alm dos limites do palco, da sala e das duas horas de durao do espetculo. Pois foi o prprio Brecht quem afirmou, no final da Alma boa de Setsuan:

Ficamos tristes tambm ao notar, por nosso lado, tanto problema em aberto e o pano de boca fechado.

Qualquer sugesto, portanto, acatamos com respeito: recolham-se s suas casas e disto tirem proveito!

(...)

se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo, ou se os Deuses fossem outros ou nenhum como seria?

(...)

Prezado pblico, vamos: busquem sem esmorecer! Deve haver uma sada: precisa haver, tem que haver! No ao Brecht didtico e proverbial dos Lehrstcke que Campees do mundo nos remete; nem tampouco quele Brecht de linguagem dramtica mais tradicional e realista Terror e misria, As vises de Simone Machard, Os fuzis da Sra. Carrar, etc. como j foi o caso de outras obras do autor (O Santo Inqurito, O pagador de promessas). Obra de maturidade, ao Brecht mais maduro que Campees do mundo mais se avizinha ao de Galileu, A alma boa e Me Coragem, que se propunham mais a interrogar do que a responder, e nos quais h um sensvel equilbrio entre as exigncias da tenso dramtica e a estrutura pica.

A referncia ao pico no pode ser esquecida na anlise de Campees do mundo. Em que pese a estrutura dramtica de seus dilogos, a pea est eivada de elementos de natureza pica, sem os quais no poderia ser devidamente compreendida nem atingiria os fins a que se prope. O primeiro deles reside na prpria escolha do tema, que nada mais seno um epos contemporneo: a saga dos guerrilheiros urbanos no Brasil dos anos 70. H tambm a considerar o fato de que a histria, ao menos superficialmente, j conhecida do grande pblico, o que faz com que, sem quebra da tenso dramtica, o interesse da platia se desloque do desfecho (o que vai acontecer) para outros aspectos mais relevantes do discurso cnico (como e por que aconteceu). Por isso, sem deixar-se submergir pelo desenrolar do entrecho, pode o pblico assim distanciado exercitar sua inteligncia crtica objetivo primordial do dramaturgo, neste caso.

O elemento pico de maior realce , porm, a estruturao da fbula em cenas independentes de curta durao (algumas no atingindo sequer meia pgina de texto), e que Dias Gomes maneja com maestria inigualvel. Isso d ao discurso dramtico uma fluncia, uma agilidade e um Ritmo absolutamente novos, que jamais poderiam ser obtidos numa pea de estrutura tradicional, com sua progresso em atos ou mesmo em cenas e quadros dispostos em sucesso cronolgica. No existe propriamente um fulcro irradiador de imagens do passado (como era o apartamento de Manguari Pistolo no Rasga corao de Vianinha); as cenas so aqui dispostas com tal flexibilidade e independncia, sucedendo-se unicamente na medida em que servem ao desenvolvimento do discurso ou seja, no funcionam como meros flashbacks (recurso j amplamente explorado em nossa dramaturgia), mas como unidades independentes de significao que se esclarecem mutuamente. So estas unidades que vo afinal constituir a prpria substncia do discurso dramatrgico atravs de sua justaposio, ora no sentido de complementar o que anteriormente foi mostrado, ora no sentido de question-lo, neg-lo ou ento evidenciar aspectos que passariam despercebidos, como uma espcie de contraponto ao desenvolvida em outra cena. Este modo muito mais aberto e flexvel de estruturao do texto dramtico uma das mais expressivas conquistas de Dias Gomes em Campees do mundo: um caminho que, se bem aproveitado, poder resultar numa adequao muito maior da linguagem de nossos palcos ao tipo de informao esttica e factual que o homem contemporneo vem recebendo de outros veculos de comunicao.

Alm de excepcional domnio tcnico, essa estrutura entretecida de cenas curtas e autnomas entre si implica um grande poder de sntese e conciso, para que em poucas palavras e sem perda do ritmo geral da pea se possa criar uma dada atmosfera ou transmitir com preciso uma idia. Essa conciso e esse tipo de abordagem enxuta e sinttica conferem aos personagens e situaes de Campees do mundo uma outra caracterstica que novamente os aproxima do teatro pico moderno: a exemplaridade (que, diga-se de passagem, nada tem a ver com o carter prototpico ou didtico que encontramos nos personagens e situaes de uma dramaturgia menor e inclinada ao facilismo). O carter exemplar de personagens e situaes de Campees do mundo em nada reduz a riqueza de suas dimenses humanas ou a complexidade de que se revestem, em todos os nveis; pelo contrrio, enriquece essas dimenses e essa complexidade, porque no as torna privativas de uma situao nica e irrepetvel, ou de uma psicologia individual, mas alarga o campo de reflexo de modo a abranger os variados protagonistas e as aes diversas que compuseram um dado momento histrico. Sem contentar-se com os temperamentos e psicologias individuais, a anlise dirige-se tambm aos pensamentos, s aes e s idias; sem ignorar a particularidade das situaes, a reflexo encaminha-se para aquelas que so mais representativas, a fim de poder abranger um panorama mais vasto. So estas, alis, as exigncias bsicas do teatro pico, tanto do ponto de vista da coerncia esttica como da eficcia no plano ideolgico.

certo que, ao escrever Campees do mundo, Dias Gomes valeu-se de relatos individuais dos que tomaram parte naquelas aes, e de notcias que reuniu nas mais variadas fontes. Isto, porm, foi apenas a base, o ponto de partida para a construo de uma obra que nada tem de documental, de histrico ou jornalstico. Trata-se de obra de fico na mais pura acepo do termo, e que assim deve ser lida, sob pena de lamentveis equvocos em sua interpretao. Campees do mundo nada tem a ver com o teatro-documento ps-brechtiano (O interrogatrio de Peter Weiss, O caso Oppenheimer, Are you now or have you ever been de Eric Bentley, ou mesmo, entre ns, O caso Aracelli, baseado no livro-reportagem de Jos Louzeiro), cujas tcnicas e finalidades so outras. Num momento em que uma parcela pondervel do teatro e da produo literria no Brasil pro-cura validamente os traos de um passado recente que havia sido condenado ao silncio, o objetivo de Dias Gomes diverso: ele no quer reconstituir o passado, nem mesmo criticamente (como o caso, por exemplo, de Gabeira em O que isso, companheiro?, obra importante tanto sob o ponto de vista documental como literrio, mas cujo sentido e cujos propsitos nada tm a ver com os de Campees do mundo); sua preocupao no ater-se aos fatos realmente acontecidos, a fim de elucid-los ou mesmo posicionar-se em relao a eles (e por isso mesmo no relata um seqestro ocorrido nem retrata indivduos realmente existentes, mas rene dados expressivos de vrias aes armadas e enfeixa em alguns personagens as facetas mais representativas daqueles que tomaram o caminho da luta armada no Brasil). Para Dias, como esclarece sua nota introdutria pea, o que importa a essncia do gesto, e no o gesto em si

Diramos que a diferena bsica entre aquelas outras obras e Campees do mundo pode ser assim resumida: no h nesta pea a tentativa de explicar o passado, nem de formular juzos sobre ele; o que interessa, aqui, compreender o presente e suas perspectivas (ou falta de. . .), mesmo que para isso seja necessrio, de quando em vez, volver os olhos para o passado, que funciona neste caso como pano de fundo a enquadrar e situar nossas opes atuais. Ou seja: nas outras obras mencionadas, o passado assume o primeiro plano, informando e enformando o presente; em Campees do mundo o primeiro plano hoje, so as muitas dvidas e poucas certezas de Ribamar e de Tnia, vistas contra o fundo de um imenso mural dramtico que abrange cerca de quinze anos de nossa histria recente.

Isso evidente no apenas ao nvel da estrutura dramatrgica montada pelo autor, mas fica patente at mesmo ao nvel da retrica utilizada no discurso cnico. Nossa literatura dramtica, nos ltimos anos (e muito particularmente aquele acervo de obras conhecido como dramaturgia de resistncia), convertera-se no imprio da metfora, da analogia e dos paralelismos e o prprio Dias Gomes no fugiu regra, como eloqentemente atesta o exemplo exacerbado e pouco feliz das Primcias. Isto, que de incio fora uma estratgia dos dramaturgos que buscavam um modo possvel de dizer o que era ento impossvel de ser dito, converteu-se paulatinamente numa regra da expresso dramtica entre ns, mesmo quando as circunstncias no mais compeliam ao emprego de um discurso metafrico. Habituamo-nos, porm, metfora; e hoje parecer estranho a muitos que se possa fazer poesia cnica sem primeiro codificar as idias em metforas que devero ser posteriormente decodificadas pelo leitor ou espectador.

Em boa hora, Dias Gomes deu-se conta desse contra-senso que erigir-se uma estratgia em norma de escritura dramtica; e escreveu uma pea onde a metfora est completamente ausente, onde a analogia dispensvel e o paralelismo seria emasculante, porque o dramaturgo e seu publico, juntos, conquistaram a duras penas o direito de se exprimirem de modo mais direto, aberto e sem subterfgios. Campees do mundo a celebrao dessa conquista, desse despojamento do que se tornou suprfluo nos modos de expresso dramtica.

possvel que o abandono desses recursos poticos faa com que a linguagem do dramaturgo soe spera aos nossos ouvidos desacostumados exposio direta e franca dos problemas e das situaes; mas possvel tambm que esta pea inaugure na dramaturgia nacional novas perspectivas para uma potica da escritura cnica mais fundada na ao dramtica do que na expresso verbal e literria mais preocupada com as novas possibilidades da estrutura dramatrgica do que com a perfeio a ser atingida dentro dos esquemas tradicionais mais voltada para a contundncia de uma linguagem simples e direta do que para o jogo retrico da metfora. Em suma: uma linguagem mais apta a retratar o momento de hoje para o homem contemporneo, como deve ser toda linguagem teatral autntica.

E se verdadeira nossa postulao inicial de que Dias Gomes, mais do que qualquer outro autor, prenuncia os rumos da mudana no teatro brasileiro, ento h razo para sermos otimistas, porque com Campees do mundo o teatro brasileiro retoma o seu melhor caminho.

ANTNIO MERCADO

NOTA DO AUTOR

Esta pea foi escrita, evidentemente, em cima de fatos acontecidos e hoje amplamente divulgados. Convm ressalvar, entretanto, que suas personagens so absolutamente fictcias e que a realidade foi manipulada e recriada segundo os interesses da fico dramtica. O fato de ter havido realmente o seqestro de um embaixador americano no Rio de Janeiro em 1969 pode levar o espectador a conferir datas e informaes e a tentar identificar personagens. Isso o conduzir a vrios equvocos, alm de redundar numa leitura errada da pea. Os dados, em muitos casos, foram propositadamente alterados. As personagens pouco tm a ver com os verdadeiros protagonistas daquela ao poltica. No pretendi realizar uma obra jornalstica nem histrica (na acepo rigorosa do termo), por isso no me considerei obrigado a reproduzir fotograficamente os fatos, o que limitaria muito o alcance da pea. Assim, o espectador mais informado verificar que incorporei dados de outros seqestros, como os do embaixador alemo e do embaixador suo. E a pesquisa que realizei para poder escrever a pea se estendeu at a aes semelhantes executadas em outros pases, j que o que importa a essncia do gesto e no o gesto em si. Tambm ser um erro pensar que esta uma pea sobre o seqestro (qualquer que ele seja). E, sim, uma reflexo sobre um comportamento poltico do qual o seqestro de personalidades, a ao espetacular, foi apenas um aspecto bastante ilustrativo, sem dvida e por isso tomado aqui como sntese de uma viso histrica. esse comportamento poltico como um todo, principalmente suas causas e seus efeitos, mais do que o grande gesto em si, que procuramos iluminar.

Utilizei depoimentos publicados ou que pude colher, pessoalmente, de pessoas que viveram, protagonizaram ou simplesmente testemunharam a grande crise poltico-social dos anos 60 e 70. Tambm me vali, basicamente, de minha experincia pessoal de militante poltico e no h dvida de que aqui me coloquei por inteiro e sem ressalvas. Entretanto, procurei, neste pequeno mural histrico, muito menos impor a minha viso particular da realidade do que fornecer elementos para que o espectador conclua e formalize a sua prpria viso, fazendo seu prprio julgamento, tentei apenas levantar questes, debat-las, sem ser conclusivo, mas fornecendo dados suficientes para uma concluso que vai depender da conscincia, do condicionamento e da formao de cada um. No meu entender, no cabe ao teatro revelar ou ditar a verdade. Mesmo porque o palco o reino da mentira. A verdade est fora dele. Mas o teatro pode conduzir a ela, armando o espectador para que ele possa, por si mesmo e fora do teatro, encontr-la. Como diz Bernard Dort, "o objetivo da atividade teatral cada vez menos o de trazer o mundo para o palco, dar deste mundo uma imagem perfeita e acabada, dizer sua verdade aos espectadores. Tende muito mais a colocar os espectadores no estado de poderem eles mesmos descobrirem essa verdade fora do teatro. E a lev-los, pelo teatro, a ter um domnio sobre o mundo.

E para no esconder nenhuma carta na manga, devo dizer, claramente, que isso s me parece possvel se colocarmos em primeiro lugar, na ordem prioritria dos objetivos, a construo do edifcio dramatrgico, pois de sua solidez depende a eficcia de qualquer objetivo que ambicione ultrapassar as fronteiras do teatro.

D.G.

PERSONAGENS

TNIA MLLERRIBAVELHOCARLOEMBAIXADORFREDERICO MLLERGLRIA MLLERELZADIRIGENTEINQUIRIDORMDICOTV-REPRTERGERENTEHOMEMTORTURADORAO: Rio de Janeiro

POCA: Vrios momentos distintos entre 1963 e 1979.

CENRIO:O espao cnico deve ser dividido em vrios planos, de modo a permitir vrias aes em locais diferentes. Apenas um cenrio fixo e deve ocupar dois planos centrais, o primeiro deles ao nvel do palco. Este cenrio fixo sugere uma sala e um quarto no andar superior. Na sala, poucos mveis, um sof-cama, uma cadeira, um aparelho de televiso, um rdio de pilha e uma pequena impressora off-set. Na parede da esquerda, uma janela e uma porta. Pilhas de jornais sobre a mesa e pelo cho, bem como livros, panfletos e garrafas de refrigerantes vazias. No quarto, uma cama de armar. Quarto e sala se comunicam por uma escada. um aparelho revolucionrio. Os outros planos so adaptveis s situaes, sendo que as cenas desenroladas no presente, isto , em 1979 (no aeroporto e no apartamento de Tnia), devem ser marcadas sempre o mais prximo possvel do espectador.

PRIMEIRO PAINEL

CENA I

(AINDA COM A CENA S ESCURAS, OUVE-SE UMA VOZ CANTANDO A CANO CAMPEES DO MUNDO.)

CANTOR

Onde andam os campees

guerreiros e ladres

do mundo

imundo?

Onde esto essas crianas

milagre, esperanas, iradas

quebradas?

(AS LUZES DE CENA VO-SE ACENDENDO EM RESISTNCIA.)

CANTOR

Sem bandeiras, sem canes,

aprenderam as lies

de vida, de morte,

de vida e morte.

(O PRIMEIRO PLANO DA CENA INVADIDO POR MANIFESTANTES QUE CONDUZEM FAIXAS COM OS DIZERES: SEJA BEM-VINDO PTRIA COMIT BRASILEIRO PELA ANISTIA A UNE SADA O COMPANHEIRO RIBAMAR ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA. TNIA MLLER EST ENTRE OS MANIFESTANTES. FOTGRAFOS, JORNALISTAS E UM OPERADOR DE TV COM UMA CMARA PORTTIL. ESTAMOS NO AEROPORTO INTERNACIONAL DO RIO DE JANEIRO, EM 1979.)

CORO

De volta s estaes,

perdidos campees,

por onde andaro seus companheiros?

Tantas histrias contadas,

tanto sangue nas caladas,

mas vejam, ainda cantam os brasileiros.

LOCUTORA DO AEROPORTO

(Voz pelo alto-falante.) Vo 221, da Varig, procedente de Paris. Anunciamos a sua chegada. Varigs flight 221 from Paris now arriving.

(QUANDO TERMINA A CANO, RIBAMAR ENTRA, COM ALGUMAS MALAS NUM CARRINHO E IMEDIATAMENTE CERCADO PELOS JORNALISTAS E FOTGRAFOS. ESPOCAM FLASHS, O OPERADOR DE TV GRAVA TUDO.)

VOZ

Viva Ribamar!

TODOS

Viva!

VOZ

Viva a anistia!

TODOS

Viva!

CORO

Ri-ba-mar!

Ri-ba-mar!

Ri-ba-mar!

Ri-ba-mar!

(RIBA CARREGADO POR UM GRUPO DE MANIFESTANTES.)

VOZ

Viva a democracia!

TODOS

Viva!

(RIBA ABORDADO POR UMA MOA, REPRTER DA TELEVISO.)

TV-REPRTERRibamar, o que que voc sente ao pisar novamente o solo de sua terra, depois de nove anos de exlio?

RIBA(Emocionado.) Nem acredito. Nem acredito.

TV-REPRTERE quais os seus projetos?

RIBA(Atordoado.) Projetos?

TV-REPRTER, dentro do novo contexto poltico, que que voc prope?

RIBAMAR

Primeiro comer uma boa feijoada.

CORO

R-ba! Ri-ba!

Ri-ba! Ri-ba!

TV-REPRTER(Para a cmara.) Sandra Helena para o Jornal Nacional.

(ENTRA UM GRUPO PORTANDO ENORMES BANDEIRAS RUBRO-NEGRAS E VESTINDO CAMISAS DA MESMA COR. CANTAM.)

TV-REPRTER(Para o operador.) a delegao do Flamengo, que t chegando! Vamos l cobrir!

TORCEDORES

Uma vez Flamengo,

sempre Flamengo,

Flamengo sempre hei de ser;

meu maior prazer v-lo brilhar,

seja na terra, seja no mar,

vencer, vencer, vencer,

uma vez Flamengo,

Flamengo at morrer.

(OS TORCEDORES SAEM CANTANDO, COM A ADESO DOS MANIFESTANTES POLTICOS, JORNALISTAS, FOTGRAFOS, ETC. SOMENTE TNIA PERMANECE, EMPUNHANDO UM CARTAZ SEJA BEM-VINDO, COMPANHEIRO.)

RIBA(S agora v Tnia.) Tnia!

TNIAOi, Riba. (Larga o cartaz e os dois se abraam calorosamente.)

RIBAPuxa vida, voc tava a. .. No tinha visto.

(ELES SE OLHAM NOS OLHOS, EMOCIONADOS.)

RIBAQue bom te encontrar.

TNIANo esperava que eu viesse?

RIBASei l. . . claro. . . quer dizer, tanto tempo fora, a gente volta sem saber direito o que vai encontrar, ou no vai encontrar, o que restou.

TNIA(Sorri.) Eu restei.

RIBARestou... e no mudou nada. A mesma Tnia...

TNIABobagem. Quem que no mudou? Tudo mudou.

RIBAVendo voc no posso deixar de lembrar... Carlo, o Velho Baiano...

TNIAEsto mortos, voc sabe. O Velho foi assassinado.

RIBASoube na Europa.

TNIAMontaram uma daquelas farsas pra dizerem que resistiu priso. Com Carlo nem se preocuparam, sumiram com o corpo, mas se sabe que morreu empalado.

RIBA(Como se sentisse na prpria carne.) Filhos da puta.

(RIBA TEM TRINTA E CINCO ANOS E UM OLHAR DE NUFRAGO QUE MAL ACREDITA TER CHEGADO PRAIA. TNIA TEM TRINTA E UM, BONITA, SEGURA DE SI, PASSA DETERMINAO E EXPERINCIA.)

RIBADaquela turma do seqestro, s ns dois restamos inteiros, eu acho.

TNIA(Irnica.) Inteiros... Ser que estamos inteiros?

RIBAE... tanta gua passou debaixo da ponte...

TNIANo vamos falar disso agora. Voc mal chegou.

RIBATemos tanto que conversar.. . muito que discutir.

TNIAClaro... e h muito tempo pra isso. Voc tem pra onde ir?

RIBANo... isto , no sei... tenho que consultar os companheiros...

(OS TORCEDORES VOLTAM, CARREGANDO UM JOGADOR DO FLAMENGO E CANTANDO O HINO. JUNTO COM ELES, VM TAMBM OS MANIFESTANTES DO INCIO, QUE CARREGAM RIBA E LEVAM TNIA DE ROLDO.)

CENA II

(QUARTO DO APARELHO. 1970. O VELHO EST EM CENA. CINQENTA E CINCO ANOS, TEM A CABEA GRISALHA. UM AR SEMPRE TRANQILO E DETERMINADO. SEU CARISMA EVIDENTE, INSPIRA CONFIANA ILIMITADA PELA CAPACIDADE QUE TEM DE JAMAIS DEIXAR TRANSPARECER SUAS PRPRIAS DVIDAS. A PAR DE SUA FIRMEZA, QUE BEIRA A INTRANSIGNCIA, IRRADIA EQUILBRIO E PONDERAO. TEM O OLHAR TRANSLCIDO DOS SANTOS E DOS OBSTINADOS. DEMONSTRA TAMBM ALGUMA TENSO, MAS EST ESCUTANDO O RDIO, QUE TRANSMITE ALGUNS ACORDES DO HINO PRA FRENTE, BRASIL.)

LOCUTOR

Amanh, dia 21 de junho de 1970, pode transformar-se numa data histrica. Na Cidade do Mxico, o Brasil joga sua ltima partida no Campeonato do Mundo, contra a Itlia. Se vencermos, seremos tricampees, trazendo definitivamente para nossa ptria a Taa Jules Rimet.

(O VELHO BAIXA O VOLUME DO RDIO. RIBA ENTRA.)

RIBANada at agora. (Olha por um basculante.)

VELHOT enxergando bem da?

RIBAToda a ladeira, at a curva. (Tira os culos e limpa-os na barra da camisa.) Quando eles dobrarem a curva, no h como. . . No existe outro caminho, existe?

VELHONo. E alm do mais, eles tm de seguir o plano. (Consulta o relgio de pulso.)

RIBAQue horas so?

VELHOFaltam dez para o meio-dia.

RIBASeu relgio t certo? (Consulta o prprio relgio.) No meu faltam quinze, d no mesmo. De qualquer maneira, eles j deviam estar aqui h uma p de tempo.

VELHOCalma.

RIBAO gringo sai de casa entre nove e nove e quinze, todos os dias, Tnia informou. E esses caras so metdicos. De Botafogo at aqui no pode levar mais de meia hora. Uma hora que seja, se o transito estiver difcil.

VELHO(Sorri.) Calma, companheiro. (Vai at janela, olha, volta, pega um jornal para controlar a tenso.)

RIBAVelho, voc no acha que eles devem ter cado?

VELHONo, ainda no. Vamos esperar mais um pouco. Pode ter havido um imprevisto. Fique a, no tire o olho da ladeira.

RIBA(Procura controlar-se.) , deve ter acontecido alguma coisa.

VELHOE a primeira ao em que voc toma parte?

RIBANo, j participei de dois assaltos a bancos. (Como que corrigindo.) Duas expropriaes. Antes, fui do comit cultural do Partido. Rachei em 68, quando houve a invaso da Tchecoslovquia. (Sorri.) Claro, isso no nada, diante de sua experincia, seu passado. (Reage.) Mas voc me olha como se eu estivesse me cagando de medo. No tou no. a ansiedade... e a euforia.

VELHOQue euforia?

RIBANo sei se voc me entende... Potra, bicho, vai ser um gesto histrico. J pensou quando a notcia explodir? Nas manchetes, no rdio, na televiso. Puta que pariu, vai sacudir o mundo. E eu sei, voc sabe... antes da coisa acontecer. Isso que me deixa nessa euforia, nesse barato. como se eu soubesse por antecipao o curso da histria. Imagina voc antes da Batalha de Waterloo j sabendo que Bonaparte vai se foder e que todo o imprio napolenico vai pra pica. Isso te deixa engasgado nesse ourio, como eu tou. (Autocriticando-se.) Bom, talvez tudo isso seja uma deformao profissional. . . Como publicitrio. . . Viso de intelectual.

VELHOOu de poltico.

RIBA isso a.

VELHOPreste ateno. O carro no pode chegar e ficar parado na porta.

RIBA(Volta a olhar pela janela, agora com um binculo.) Com este binculo posso ver quando a Kombi virar naquela rua, l embaixo.

VELHO(Comea a se inquietar.) Nada ainda?

RIBANada.

VELHO... (Consulta novamente o relgio.)

RIBAEscute, Velho, voc no acha perigoso esperar tanto? Se eles caram, vo ser torturados. . . at falar.

VELHOPelo menos um dia qualquer um agenta. Se no for um frouxo. Estamos dentro do teto de segurana. (Olhando pela janela.) Se a ao tivesse falhado, os homens da cobertura teriam vindo avisar.

RIBAE se caram todos?

VELHO muito difcil. A menos que no tenham seguido o plano risca, como tracei.

(RIBA GIRA O DIAL, PASSANDO POR VRIAS ESTAES, DETENDO-SE NUMA ONDE SE OUVE UMA MSICA DA POCA.)

VELHOEi, l vm eles!

RIBA(Desliga o rdio e corre para a janela.) , a Kombi.

VELHO(Pega o binculo.) Parece que t tudo bem.

RIBANo tou vendo o gringo.

VELHODeve estar no cho, deitado. Ande, v abrir a porta da garagem, depressa, o carro tem de entrar direto.

(RIBA SAI CORRENDO. O VELHO CONTINUA OLHANDO PELA JANELA, AGORA SEM O BINCULO. OUVE-SE O RUDO DO CARRO QUE SE APROXIMA E PRA. O VELHO TEM UMA EXPRESSO DE SATISFAO. AGORA, A SS, CONTROLA MENOS A ANSIEDADE. ACENDE UM CIGARRO, AINDA ATENTO JANELA, OBSERVANDO SE O CARRO NO FOI SEGUIDO. VOLTA E FIXA A PLATIA. A ILUMINAO FECHA SOBRE ELE. FICA APENAS UM FOCO EM SEU ROSTO.)

DIRIGENTE(Fora de cena.) O companheiro t numa posio ultraesquerdista.

CENA III

(APARELHO DO PARTIDO. O DIRIGENTE EST SENTADO. SEU TOM, EMBORA FIRME, PERSUASIVO, NADA IMPOSITIVO.)

DIRIGENTECom todo o respeito e com a estima pessoal que tenho ao companheiro, me sinto obrigado a lhe dizer que est incorrendo num grave equvoco, e est dividindo o Partido. A teoria do foco revolucionrio romntica, suicida e antileninista.

VELHO(Volta-se para o dirigente, sem sair de seu prprio cenrio.) Parece-me que foi Lnin quem disse que a violncia a parteira da histria. Por outro lado, a Revoluo Cubana...

DIRIGENTE(Interrompe.) O companheiro t querendo aplicar mecanicamente um exemplo histrico. Mas a nossa realidade outra. Esse seu mecanismo.

VELHODoze homens iniciaram a revoluo em Sierra Maestra.

DIRIGENTEMas veja o que aconteceu com Che Guevara na Bolvia. Quando o povo no participa, quando no h condies para a luta armada.

VELHO(Interrompe.) Se no h condies para a luta armada, porque s a luta armada criar essas condies.

DIRIGENTEO companheiro tem uma viso desesperada da situao e procura enfrent-la assumindo uma posio voluntarista. Acha o companheiro que atravs da criao de um foco de guerrilha urbana ou rural, sem que haja condies para isso, vai poder derrubar a ditadura. No fundo, o companheiro no acredita num movimento de resistncia de massas, no trabalho lento e paciente do Partido para formar uma frente democrtica e antifascista.

VELHOIsso vai demorar cem anos. Estou ficando velho e quero fazer a revoluo eu mesmo, e agora, no quero deixar para meus netos.

DIRIGENTEPor que o companheiro no vem discutir suas teses no Comit Central, como membro da direo?

VELHOPorque tou farto de discutir, reunir, tou farto de falatrios e manifestos. Entrei pro Partido com dezessete anos. Estou h quase quarenta discutindo, reunindo, organizando, preparando uma revoluo que nunca vem e no vir nunca porque no samos da teoria. A hora de ao e mais ao.

CENA IV

(ILUMINA-SE A SALA DO APARELHO TOTALMENTE. OUVEM-SE VOZES FORA. ENTRAM RIBA, TNIA E CARLO CONDUZINDO O EMBAIXADOR, QUE TEM UMA VENDA NOS OLHOS. O EMBAIXADOR HOMEM DE MEIA-IDADE, TRAJA-SE IMPECAVELMENTE E TRAZ UMA PEQUENA MALA PRETA. EST UM POUCO ASSUSTADO, EMBORA FAA TODO O POSSVEL PARA MANTER A TRANQILIDADE. TEM UM PEQUENO FERIMENTO NA TESTA, DE ONDE ESCORRE UM FILETE DE SANGUE. TNIA E CARLO ESTO ARMADOS COM METRALHADORAS PORTTEIS.)

RIBAPor aqui...

CARLOPra onde vamos levar ele?

VELHOPraquele quarto dos fundos, l em cima.

TNIAMas espere, preciso fazer um curativo nele. (Tira a venda do Embaixador.)

VELHO(Notando o ferimento.) Que foi isso?

TNIAFoi o Carlo... (Sai.)

VELHOPrecisava?

CARLOFoi na hora do transbordo. Quando amos mudar de carro, pensei que ele ia reagir... foi s uma coronhada.

VELHOSr. Embaixador, o senhor desculpe... No queremos lhe fazer mal algum. O companheiro deve ter ficado nervoso. Mas o senhor pode estar certo de que aqui vai ser bem tratado. O melhor que pudermos, dentro das circunstncias.

EMBAIXADOROK, eu posso... fazer uma pergunta?

VELHOClaro.

EMBAIXADORO que os senhores pretendem?

VELHOO senhor est sendo seqestrado por um grupo de patriotas. No somos bandidos. A ao que estamos praticando uma ao poltica. Nada temos contra o senhor, pessoalmente, embora tenhamos muito contra o governo de seu pas. Nossa luta no momento contra a ditadura.

EMBAIXADORPerdo, no entendo. Que tenho eu, embaixador de um pas democrtico, a ver com ditadura de seu pas?

VELHOVrios companheiros nossos foram presos. Sabemos que esto sendo torturados e que muitos no tm chance de sobreviver. Em primeiro lugar, queremos libert-los.

EMBAIXADOREntendi. Vo exigir libertao deles em troca da minha.

VELHO uma das condies. A outra a divulgao de um manifesto. Pelos jornais, rdios e televiso.

EMBAIXADORSuponhamos que autoridades no concordem.

VELHOVamos mant-lo aqui at que aceitem nossas condies.

EMBAIXADORQuantos so os presos?

VELHOQuarenta.

EMBAIXADORNo acha um pouco demais?

VELHOO Sr. Embaixador vale esse preo. Para a ditadura, naturalmente.

RIBA a diferena entre o Produto Nacional Bruto americano e o nosso, quarenta vezes maior. . (Ri.)

EMBAIXADORWell... vamos supor que governo brasileiro no aceite essas condies de modo algum.

VELHOBem, Embaixador, ns no estamos brincando, nem blefando. Estamos numa guerra. Nesse caso, vamos ter que fazer o que no queremos fazer.

CARLOVamos ter que mat-lo.

(POR UM MOMENTO, O EMBAIXADOR PERDE A SUA ALTIVA TRANQILIDADE.)

VELHOO senhor seria justiado.

(H UMA PAUSA ALTAMENTE SIGNIFICATIVA, EM QUE O EMBAIXADOR SENTE QUE EST DIANTE DE PESSOAS DISPOSTAS A TUDO E QUE SUA VIDA EST REALMENTE AMEAADA. A PAUSA QUEBRADA PELA ENTRADA DE TNIA COM UMA CAIXA DE MEDICAMENTOS.)

TNIATambm Carlo no precisava ter tascado o gringo.

CARLO(Irrita-se.) Porra, Tnia, j expliquei!

TNIAT bem... (Comea a fazer o curativo no Embaixador.)

VELHOCalma, gente.

(CARLO VAI AT A JANELA E FICA OLHANDO PARA FORA. O VELHO VAI AT ELE.)

VELHOVoc tem certeza de que no foram seguidos?

CARLONo, fizemos tudo certinho, trocamos de carro, tudo de acordo com o plano.

VELHOPor que demoraram tanto?

CARLOEle saiu de casa com quase duas horas de atraso.

TNIAE isso nunca aconteceu, eu acho.

EMBAIXADOREu amanheci indisposto. Fui a um jantar ontem e comi um marisco, acho que no me fez bem.

RIBAAmanheceu com dor de barriga.

EMBAIXADORE...

CARLOE tinha que ser hoje.

EMBAIXADORPeo desculpas.

Tnia termina o curativo.

TNIAPronto. o que eu posso fazer.

EMBAIXADORObrigado.

TNIAT doendo?

EMBAIXADORUm pouco.

TNIAQuer tomar uma aspirina?

EMBAIXADORNo, no posso tomar aspirinas, tenho alergia. Rosto incha.

CARLO(Nota a pequena mala preta na mo do Embaixador.)

Ei, gente, e essa maleta?... (Num gesto brusco, arranca a mala das mos do Embaixador, abre-a, despeja o

contedo sobre a mesa: documentos, charutos, uma caneta, um frasco de remdio.)

RIBAQue que foi, cara?

CARLO(Examina a mala detidamente, mostra-se frustrado.) Pensei que podia ter algum aparelho de rdio ou radar, desses que localizam o sujeito.

RIBATs vendo muito filme policial...

Carlo recoloca os objetos dentro da mala e devolve-a ao Embaixador, que pega o frasco e toma uma plula.

EMBAIXADORRemdio para corao. Sou cardaco. . . (Verifica.) Acabou...

RIBAMe d o frasco, a gente compra outro, quando sair.

VELHOAgora levem ele l pra cima. Um de ns tem que ficar sempre com ele, revezando de duas em duas horas. V voc primeiro, Tnia. Uma coisa, Embaixador. A quem o senhor quer que avise que est bem?

EMBAIXADORMelhor comunicar ministro conselheiro da embaixada. Pea para avisar minha mulher.

VELHOEla ser avisada.

Tnia sai com o Embaixador. Os dois sobem a escada e passam ao quarto, no plano superior.

VELHO preciso tambm que haja sempre um homem na janela atento a qualquer movimento suspeito na rua. Voc, Riba.

(RIBA VAI PARA A JANELA.)

VELHOVamos passar agora segunda parte do plano. (Apanha algumas folhas de papel sobre a mesa.) O manifesto e o comunicado com as condies.

RIBAA lista com os nomes dos presos?

VELHOFica pra depois, quando eles divulgarem o manifesto.

CARLOQuem vai levar?

VELHOVoc ou Tnia. S vocs dois devem sair e entrar na casa, porque esto morando aqui h um ms e a vizinhana j os conhece. Nem eu nem Riba devemos aparecer, pra no despertar suspeitas.

CARLOTnia disse pra vizinhana do lado que a gente tava esperando parentes de So Paulo. Alis, a vizinhana muito legal, fizemos um bom relacionamento.

VELHOMesmo assim, bom no nos mostrarmos muito.

CARLOCerto. Eu levo o comunicado.

VELHO(Coloca os painis em trs envelopes e entrega a Carlo.) Escolha dois lugares bem longe daqui. A caixa de esmolas de uma igreja e uma caixa do Correio, por exemplo. Depois telefone pros jornais, pras rdios e pras tevs dizendo onde esto.

RIBAE aproveite, Carlo, ligue pra embaixada, diga que o Embaixador t bem. E compre este remdio pra ele. (Entrega o frasco.)

CARLO(Pega o frasco com evidente m vontade.) Merda, virei boy de gringo...

RIBASem essa, bicho. Se ele sofre do corao, bom ter esse remdio aqui. No vai querer que o gringo morra na nossa mo.

CARLOPor mim, quero que ele se foda. (Inicia a sada, pra.) Alm do mais... no, no vou comprar porra nenhuma.

RIBAPor qu, cara?

CARLOIsso pode ser uma pista pra polcia.

RIBAO remdio?

CARLO, algum pode alertar que o gringo sofre do corao e toma esse remdio. A a polcia vai de farmcia em farmcia e acaba pintando aqui.

RIBAAcho que voc superestima a eficincia da nossa policia.

CARLOSegurana, companheiro, temos de seguir as normas de segurana.

VELHOEm parte, ele tem razo. Mas no podemos deixar de comprar o remdio. Procure numa farmcia bem distante daqui.

CARLOT legal. (Sai.)

(O VELHO E RIBA VOLTAM A OLHAR PELA JANELA.)

CENA V

(NO QUARTO. O EMBAIXADOR AINDA DE P, TNIA MONTA GUARDA PORTA.)

EMBAIXADORSer que eu podia. . . se no fosse indelicado.

TNIAO qu? Quer ir no banheiro? S que eu tenho que ir junto.

EMBAIXADORJunto?

TNIAE tem que deixar a porta aberta.

EMBAIXADORNo, eu s queria sentar um pouco!

TNIASenta, p. Tambm pode se deitar, se quiser. Tira o palet, fica vontade. Relax. Vamos ter que ficar uma p de tempo aqui, eu acho.

EMBAIXADOR(Senta-se. Sente doer a cabea.) Voc acha?

TNIAIsso no vai depender de ns, vai depender deles. Se de cara os milicos aceitarem as nossas condies, tudo bem. Se no, Sua Excelncia vai ter que passar uns dias aqui neste cafofo. uma pena, mas a nossa organizao ainda subdesenvolvida. No temos ainda aparelhos apropriados para hospedar embaixadores.

EMBAIXADOREu no estou me queixando.

TNIASe quiser, podemos continuar o papo, pra matar o tempo. Seno, vai ser muito chato pra voc.

EMBAIXADORObrigado.

TNIAFui eu que tomei todas as informaes a seu respeito. Seus hbitos, a hora que saa de casa, o tipo de segurana...

EMBAIXADORPerdo. Mas voc, uma moa, metida nisso... No entendo. Estudante?

TNIAFiz dois anos de sociologia, um ano de histria.

EMBAIXADORPor que no continuou?

TNIAPorque entrei na luta armada.

EMBAIXADORQual o objetivo dessa luta?

TNIADerrubar a ditadura, evidentemente.

EMBAIXADORE vocs acham que assaltando bancos, seqestrando embaixadores, vo mudar o regime?

TNIAClaro que no. Essas so aes logsticas. Para financiar a luta armada precisamos de dinheiro. E o dinheiro t nos bancos.

EMBAIXADORDa os assaltos.

TNIANo assaltamos, expropriamos. O dinheiro foi roubado ao povo e o que fazemos uma expropriao.

EMBAIXADORLadro que rouba ladro. . . (Sente que foi grosseiro.) Desculpe.

TNIAUsamos o dinheiro em favor do povo, no em proveito pessoal.

EMBAIXADORVo exigir dinheiro tambm para me libertar?

TNIANo, apenas a liberdade dos companheiros que esto sendo torturados e assassinados nas prises. E o Sr. Embaixador deve estar por dentro disso.

EMBAIXADORPor que devo estar?

TNIAPorque a CIA tem muito a ver com isso. a CIA que est mandando peritos em tortura pra instruir os nossos.

EMBAIXADORMas eu nada tenho a ver com CIA.

TNIA(Ri.) Ora, Embaixador, corta essa. .

EMBAIXADOR verdade que CIA trabalha no Brasil, mas um engano de vocs imaginar que embaixador americano tem controle da CIA. Eles trabalham diretamente junto a generais, altas personalidades, donos de grandes empresas. Quanto a essa histria de torturas e assassinatos, desculpe, mas no acredito que seja verdade.

TNIAAh, voc no acredita.

EMBAIXADORPelo menos os generais com quem converso dizem que isso no existe.

TNIANo existe... (Abre a blusa e mostra os seios.) No existe.

EMBAIXADOR(Impressionado.) Que foi isso?

TNIAChoque eltrico. No s aqui, tambm na vagina.

CENA VI

(SALA DE TORTURAS. EM CENA, INQUIRIDOR, AO LADO DA CADEIRA DO DRAGO, UMA POLTRONA TOSCA, DE MADEIRA, COM O ASSENTO, O ENCOSTO E OS APOIOS DOS BRAOS REVESTIDOS DE PLACAS DE METAL, NAS QUAIS SO LIGADOS OS FIOS TERMINAIS DE UMA MQUINA DE CHOQUE QUE EST SOBRE UMA MESINHA. TNIA ENTRA, DE CAPUZ, CONDUZIDA PELO TORTURADOR.)

INQUIRIDORTire a roupa.

(TNIA SE DESPE. FICA DE CALCINHA.)

INQUIRIDORToda. T com vergonha de mostrar a xoxota? Comunista no tem vergonha.

(TNIA TIRA A CALCINHA. TORTURADOR OBRIGA-A A SENTAR-SE NA CADEIRA DO DRAGO, AMARRA SEUS BRAOS, SUAS PERNAS E SEU TRONCO COM CORREIAS DE COURO.)

INQUIRIDOR(Brincando com a maquininha de choque.) Olha, garota, eu no queria fazer isso com voc. No tenho nenhum prazer. H uns caras que tm. Eu, no. Tou apenas cumprindo um dever. Voc t nisso por idealismo? Eu tambm. E tou arriscando minha vida tanto quanto voc.

TNIASe assim, por que no me deixa ver seu rosto?

INQUIRIDORPorque sei que amanh, se um de vocs me pega me liquida. uma guerra suja, sim, essa nossa. Mas no pense que tou nisso por dinheiro, ou porque fui treinado cientificamente pra isso. Tambm tenho minha ideologia. E o que fao por convico. Acredito que a razo e o direito esto do meu lado, tanto quanto voc acredita que esto do seu. Vocs querem salvar o Brasil. Ns tambm. S discordamos no mtodo.

TNIAVocs acham que para isso preciso primeiro liquidar todos os que no pensam como vocs.

INQUIRIDORSabe, eu tenho uma filha de cinco anos. Lembrei dela agora porque neste momento ela deve estar tendo sua primeira aula de piano. E porque olhando pra voc eu fico pensando. . . Temos que fazer alguma coisa pra que amanh, quando ela tiver a sua idade, um cara qualquer no seja obrigado a fazer com ela o que eu estou fazendo com voc. Entendeu? por isso, por ela, que eu estou nessa.

TNIAMuito comovente. Se me tirar o capuz, vai ver que estou chorando.

INQUIRIDOR(Irritando-se, grita.) Sua putinha comunista! Vou-lhe dar uma chance. Uma nica chance, meta na sua cabea!

TNIAQue que voc quer?

INQUIRIDOROs nomes. Os nomes de todos os componentes do grupo.

TNIA(A esmo.) Pedro, Joo, Drio, Piraj.

INQUIRIDORQuero os nomes verdadeiros, no codinomes.

TNIANo sei os nomes verdadeiros, no usamos nomes verdadeiros.

INQUIRIDORE os pontos?

TNIAQue pontos?

INQUIRIDORNo se faa de idiota. Quero os pontos! (Faz um sinal ao Torturador que se acerca da maquininha de choque.) Vai dizer ou no vai?

TNIAMas eu no sei! No sei!

(O Inquiridor faz um sinal e o Torturador aciona a manivela. Tnia solta um grito de dor e desmaia. Ouve-se um exerccio de piano primrio executado por uma criana.)

INQUIRIDORDesmaiou. Chame o mdico.

(O TORTURADOR SAI. A LUZ SE APAGA EM RESISTNCIA, FICA APENAS UM FOCO NO INQUIRIDOR, CUJO ROSTO SE ILUMINA, COMO SE ESCUTASSE, EMBEVECIDO, A FILHA TOCAR.)

CENA VII

(NO APARELHO. RIBA EST NA JANELA, VIGILANTE. O VELHO EST DIANTE DO TELEVISOR.)

LOCUTOR

(Voz.) O Presidente Mdici enviou ao chefe da delegao brasileira no Mxico o seguinte telegrama: s vsperas da batalha final, saibam todos que o Brasil tem seus olhos voltados para os valorosos atletas da nossa seleo. Confiantes, esperamos que cada uma saiba cumprir o seu dever. Assinado, Emlio Garrastazu Mdici.

(OUVE-SE O HINO PRA FRENTE, BRASIL. RIBA BAIXA O VOLUME DO TELEVISOR.)

RIBAJ pensou se o Brasil vence? Os gorilas vo capitalizar, vo fazer um carnaval. E o povo vai esquecer tudo, a fome, a opresso. S que no d pra torcer contra o Brasil, no d. Voc no acha?

VELHOPor que no? O selecionado no a ptria de chuteiras.

RIBAtem razo. Acho que uma debilidade minha. No consigo escapar ao envolvimento emocional e raciocinar politicamente. No, no me venha com aquele chavo debilidade pequeno-burguesa, a classe operria t toda envolvida, torcendo adoidado.

VELHONo falei nada.

RIBASei no. . . s vezes at que a gente devia estudar mais a fundo essas coisas. A paixo do povo pelo futebol, pelas escolas de samba, pela novela de televiso. Isso de dizer que alienao, pio das multides, e descartar, pura e simplesmente, sem parar pra pensar, pra tentar entender. . . Acho isso furado, voc no acha?

VELHOAonde voc quer chegar?

RIBAQuero chegar na alma do povo. E comear da. Descobrir o mecanismo da paixo popular e usar esse mecanismo pra envolver a massa e traz-la para o nosso lado. Porque a revoluo tambm uma paixo, certo? Uma paixo ao nvel do racional, mas uma paixo.

VELHOE o que que o companheiro prope? Parar tudo pra estudar o futebol, o carnaval, a telenovela?

RIBA(Aborrecido com a ironia.) J vi que voc no me entendeu.

VELHOEntendi, sim. Pode ser at que voc tenha razo. Acontece que passei quase quarenta anos no Partido teorizando a revoluo. Praticamente, toda a minha vida. Estou velho e no quero morrer com a sensao de ter sido tudo intil. Temos teorias de sobra na cabea. Estamos intoxicados de teoria. Precisamos botar todo esse intelectualismo de lado e passar ao. Ou voc vai chegar minha idade discutindo teses, informes e vendo tudo em volta continuar na mesma.

RIBA(Olha para o Velho com profundo respeito.) Eu entendo... entendo o seu drama.

VELHONo o meu drama. o drama do povo brasileiro.

RIBAMas voc. . . puxa vida. . . uma vida inteira. . . a juventude, a mocidade...

(O VELHO AUMENTA O VOLUME DO TELEVISOR.)

LOCUTOR

(Voz.) E ateno, ateno! Acaba de ser seqestrado o embaixador dos Estados Unidos. O Cadillac preto CD-3 da embaixada foi interceptado por um Volks de onde saltaram cinco homens armados, que obrigaram o motorista a seguir at Rua Euclides de Figueiredo. Ali, o embaixador foi colocado numa Kombi, que desapareceu como uma flecha. Ignoram-se maiores detalhes. (Noutro tom.) A Companhia do Metr informa que as maiores dificuldades para a construo do trecho inicial.

(O VELHO DESLIGA O TELEVISOR.)

RIBA(Muito excitado.) Puta merda, Velho! J imaginou que bomba! Daqui a pouco essa notcia t no mundo todo. Vai ser manchete do New York Times! BBC de Londres, NBC! Potra, o representante do Grande Imprio! J pensou, Velho, os patres l de Nova York em cima dos milicos daqui, com, que merda essa? Queremos o nosso homem, custe o que custar, seno desembarcamos os marines. E os milicos, com a batata quente na mo, vo ter que arriar as calas. Vo dar tudo que a gente quiser.

VELHO(Tambm eufrico, mas procurando controlar-se.) Calma, companheiro, contenha um pouco o seu entusiasmo. Cabea fria. Agora que comea a fase decisiva.

(OUVE-SE O RUDO DE UM CARRO.)

RIBA(Olha pela janela.) Carlo t chegando.

VELHOVeja se no t sendo seguido.

RIBANo... Espera, vem um fusca atrs... No, uma velha. Tudo bem.

CARLO(Entrando.) Oi, gente. (Traz uma pizza embrulhada, que coloca sobre a mesa.)

VELHOTudo certo?

CARLOTudo. Botei uma cpia na caixa de esmolas de uma igreja.

VELHOQue igreja?

CARLOAquela do Largo do Machado. Deixei a segunda cpia num supermercado, no Leblon. Telefonei pro JB e pro Globo.

RIBAE a embaixada?

CARLOBati um fio tambm, falei com o tal ministro conselheiro. Quando disse que o Embaixador tava bem, o babaca do gringo comeou a gritar Where? Where?

RIBANa embaixada deve estar o maior rebu.

CARLOAcho que s fiz uma besteira. O supermercado onde eu deixei uma das cpias perto do apartamento onde morei.

VELHOPor que deixou l?

CARLOSei l. S depois que me dei conta.

RIBAQual, cara, voc que vive to preocupado com as normas de segurana.

VELHOEncontrou algum conhecido?

CARLONo.

VELHOConvm evitar bairros, lugares onde voc possa ser reconhecido.

CARLOClaro, no precisa me dizer. Foi uma bandeira.

RIBA(Sente o cheiro.) Pizza?

CARLOMe lembrei que no providenciamos comida. Esquecemos.

RIBATou mesmo com uma fome de lascar. (Desembrulha.) Ser que o Embaixador gosta de pizza?

CARLOEu j comi. (Mostra um pequeno embrulho.) Comprei tambm o remdio.

VELHOLeve pra ele e renda Tnia. Escute, me informaram que o pai dela testa-de-ferro de uma multinacional.

RIBAE, sim, testa-de-ferro e reaa. Frederico Mller. Udenista, anti-comunista de espumar no canto da boca.

VELHOSer que a gente pode confiar nela?

CARLOFique tranqilo, companheiro, eu respondo por Tnia. uma companheira cem por cento. Foi presa, torturada e no abriu o bico.

RIBAE isso de ser filha de reaa no quer dizer nada. Conheo at filhos de gorila militando na esquerda.

VELHOTambm por j ter sido presa ela no devia estar aqui.

CARLOEra preciso uma garota bonita pra namorar o chefe da segurana da embaixada e colher todas as informaes sobre o Embaixador e ela recebeu da Organizao essa tarefa. Da em diante, no se podia mais deix-la de fora.

CENA VIII

PRISO. 1969. EM CENA, TNIA E MLLER.

MLLERNo vamos discutir agora suas idias. Eu acho que esto todas erradas e nem sei como voc, sendo minha filha, pode pensar desse modo.

TNIAEu tambm no sei como voc pode ser meu pai.

MLLERBom, depois ns discutimos esse assunto. Agora, o que preciso que voc proceda como eu ordenar.

TNIAOrdenar... Voc parece que tem alma de milico, t sempre ordenando.

MLLERSe quiser sair daqui, diga que est arrependida de ter-se metido nesse movimento. Que foi iludida, envolvida pelo seu namorado.

TNIAEu no vou dizer nada disso.

MLLERMas a nica maneira de eu poder tirar voc daqui. Voc tem que ajudar, droga, seno eu no vou poder fazer nada.

TNIAMas eu no quero que voc me tire daqui. Eu no lhe pedi nada.

MLLER(Pattico.) Minha filha, eu tenho que fazer alguma coisa por voc! Sua me t l sofrendo, chorando, desesperada. Eu tambm. Estou, inclusive, me arriscando. Saiba que meu nome est sendo cogitado para uma pasta no Ministrio e talvez, por sua causa, eu venha a ser preterido. Mas voc minha filha, eu tenho que fazer alguma coisa pra libertar voc.

TNIAS se todos os meus companheiros sarem comigo.

MLLERVoc sabe que isso impossvel. Eles assaltaram bancos, atacaram depsitos de munio. So terroristas, filha.

TNIAEnto eu tambm sou.

MLLERMas voc minha filha.

TNIAEsquea esse detalhe. E no arrisque a sua pasta no Ministrio.

MLLERTnia, voc t louca! Ser que no percebe o que pode lhe acontecer se no mudar de atitude?

TNIASei, sim. J fui torturada e j vi um companheiro morrer assassinado aqui na priso. Enfiaram a cabea dele num barril de merda.

MLLER(Choca-se.) Coisa horrvel.

TNIAVoc acha horrvel?

MLLERClaro, so excessos que ningum aprova.

TNIAEnto faa alguma coisa pra acabar com isso.

MLLEREstou tentando livrar voc.

TNIANo s livrar sua filha. Tome uma posio. Quer, eu lhe digo os nomes dos carrascos, dos torturadores.

MLLERVoc no percebe nada. . Vocs. . . se dizem to politizados e no entendem nem mesmo o momento que esto vivendo. Tudo isso resultado de uma deciso tomada em escales superiores. No posso fazer nada para mudar, nem acho que deva. Estamos lutando contra um inimigo externo, o comunismo internacional, cujo exrcito est disseminado dentro da nossa populao. uma situao semelhante de um territrio ocupado, onde, teoricamente, toda pessoa um soldado inimigo em potencial. Nessas circunstncias, as autoridades encarregadas da segurana nacional tm o direito de usar de violncia, quando necessrio.

TNIAE matar?

MLLERSe for preciso.

TNIA essa ento a filosofia.

MLLERE uma filosofia baseada nos direitos de legtima defesa, de represlia e de necessidade. Desenvolvida pelos maiores juristas do pas, sabia?

TNIAA servio da Escola Superior de Guerra.

MLLERA servio da Revoluo.

TNIAEntendo: vocs acharam uma justificativa moral para a imoralidade.

CENA IX

(NO APARELHO. RIBA SINTONIZA UM CANAL DE TELEVISO, ENQUANTO CARLO LIMPA O REVLVER JUNTO JANELA.)

RIBACarlo, quanto tempo faz que voc deixou o comunicado?

CARLOUmas seis horas.

RIBANo acha que j era tempo deles divulgarem o nosso manifesto?

CARLOQue ele j t na mo dos milicos, disso eu tenho certeza.

RIBATambm pode ser que eles resolvam endurecer.

CARLO, pode ser. A a gente endurece tambm.

RIBASe no divulgarem o manifesto, nem ao menos isso, sinal de que no vo querer dialogar conosco.

CARLOMas eles no tm nada que dialogar. Tm que cumprir as exigncias. Divulgar o manifesto e soltar os quarenta presos. Nem um a menos.

RIBATambm no assim. Pode-se negociar.

CARLOFicou decidido, companheiro. Por que amolecer, se a gente t mandando no jogo? Com a faca e o queijo na mo , como diz meu velho.

RIBAVerdade que teu velho foi fundador do Partido?

CARLOFundador, no, mas militou logo no incio, ainda nos anos 20. Por qu?

RIBAPor nada.

CARLOEra anarquista. Um dia escreveu na porta de uma igreja: Morra Deus. (Ri.) Foi expulso.

TNIA(Entra, olha a televiso.) No deram nada ainda...

RIBADemorando, no?

TNIATalvez no tenha havido tempo.

RIBAAcho que j houve tempo de sobra.

TNIAQuero dizer, tempo pra decidir. Porque com certeza eles vo ter que discutir entre eles. A linha dura, a linha moderada, deve estar rachando um pau.

CARLO(Faz um sinal.) Espera! (Aumenta o volume da TV.)

LOCUTOR

Ateno, ateno! Edio extraordinria. J se encontra em poder do governo a mensagem dos seqestradores do embaixador americano contendo as exigncias para libert-lo. Essas exigncias so duas: primeira, a divulgao de um manifesto redigido pelos terroristas; segunda, a libertao de quarenta presos polticos cujos nomes sero fornecidos posteriormente. O Presidente Mdici convocou o Conselho de Segurana Nacional em carter de emergncia para decidir sobre o assunto.

Carlo, Riba e Tnia se entreolham, tensos.

TNIA isso a, bicho! T rachando o pau.

CENA X

QUARTO. O EMBAIXADOR EST TENSO.

EMBAIXADORPensei que aceitassem sem discutir.

VELHOEu tambm. Mas deve haver divergncias dentro do governo. O senhor deve saber, h uma linha dura e uma linha moderada. Mais ou menos como os falces e as pombas no seu governo. Nem nisso somos originais.

EMBAIXADOR(Mostrando certa intranqilidade.) Qual a linha que o senhor espera que prevalea?

VELHOA moderada, evidentemente, porque, alm do mais, conta com aliado poderoso e decisivo: o governo dos Estados Unidos, que neste momento deve estar pressionando violentamente. Fique tranqilo, eles vo acabar aceitando as nossas condies e o senhor ser libertado.

EMBAIXADOR(Sorri, sem muito entusiasmo.) Estou tranqilo. Minha mulher, meus familiares que no devem estar. Estou mais preocupado com eles.

VELHOEscreva um bilhete para sua mulher e ns vamos fazer chegar s mos dela.

EMBAIXADORPosso escrever?

VELHOPode, claro. At nos interessa que o senhor faa isso para provar que est vivo. Um refm morto no vale nada.

EMBAIXADOR(Abre a pasta, pega uma agenda e comea a escrever.) Que devo escrever?

VELHOQue est bem e que ela fique tranqila. bom acrescentar que espera que o governo brasileiro satisfaa todas as nossas condies. D a entender que sua vida depende disso. E que no tentem localiz-lo, pois poderia ser fatal.

EMBAIXADOR(Termina de escrever, arranca a pgina e entrega ao Velho, que l rpido.)

VELHOtimo. Vamos fazer o possvel para que receba ainda hoje. (Chama.) Ei! Venha algum aqui.

EMBAIXADORDesculpe dar esse trabalho, deviam ter seqestrado algum que no tivesse tantos problemas.

(CARLO ENTRA.)

VELHOO Embaixador escreveu um bilhete para a esposa. E do nosso interesse que ela receba.

CARLO(Pega o bilhete.) Entendido. (Sai.)

EMBAIXADORMary nunca enfrentou uma situao dessas, coitada. Alm do mais, somos muito unidos. Vinte anos de casados, nunca nos separamos. Talvez o senhor esteja achando ridculo...

VELHORidculo por qu? Tambm tenho mulher, tenho filhos.

EMBAIXADORMas deve ser diferente. Sua mulher deve estar acostumada. Quero dizer, sinceramente, no sei como o senhor pode conciliar. . . o tipo de vida que vive, suas atividades como terroris.

VELHO(Corta, corrigindo.) Como revolucionrio.

EMBAIXADORDesculpe... Mas acho que no pode dormir em casa todas as noites, nem pode beijar seus filhos todos os dias. Bom, talvez o senhor considere essas coisas simples hbitos burgueses decadentes.

VELHOE o senhor parece que no nos considera seres humanos.

EMBAIXADOROh, no, desculpe, no quis ofender. Acho at a vida que escolheu bem mais emocionante, bem mais romntica que a minha.

VELHO(Tira do bolso dois retratos.) Minha mulher. Meus dois filhos. Este o mais velho. Parece muito comigo. A menina saiu mais me.

EMBAIXADORNo acha perigoso para eles andar com esses retratos?

VELHO contra as normas de segurana. J fui muito criticado por isso. Mas se for preso, engulo os retratos. J fiz isso uma vez.

CENA XI

(ELZA ESPERA, IMPACIENTE, NUM PONTO. UMA PRAA POUCO MOVIMENTADA. ELA CONSULTA O RELGIO. EST PRESTES A IR EMBORA, QUANDO V O VELHO QUE SE APROXIMA. DISFARA. O VELHO ENTRA. OS DOIS FALAM SEM SE OLHAREM, DE COSTAS UM PARA O OUTRO.)

ELZAJ ia embora. Passa vinte minutos da hora combinada.

VELHODevia ter ido. Nunca espere mais que dez minutos.

Voc sabe. Eu podia ter cado. Por sorte foi o trnsito.

Como vo as crianas?

ELZAVo bem. Ms passado, Aninha pegou uma bronquite muito forte. Fiquei com medo de chamar um mdico.

VELHOPor que no entrou em contato com a Organizao? Te mandariam um companheiro.

ELZAAs ligaes esto difceis. Preferi tratar dela eu mesma. Achei mais seguro.

VELHOE ela ficou boa?

ELZAFicou. Fique tranqilo. Mas passei um mau pedao. Estava precisando tanto te ver. Tenho lido tanta coisa nos jornais. Esto te caando por toda parte. Os meninos esto assustados.

VELHOPor que voc fala disso com eles?

ELZATenho que falar. Eles j no so to crianas. Lus Carlos vai fazer quinze anos. E j est lendo Marx.

VELHO muito cedo ainda. No vai entender nada. Ou vai entender tudo errado.

ELZAMas inevitvel. Tambm justo que ele queira saber por que o pai t sendo caado como um bandido.

VELHOVoc procura explicar?

ELZAClaro. At onde eles possam entender. Muitas perguntas ficam sem resposta.

VELHOUm dia eles vo ter resposta pra tudo.

ELZAMas at l. . . tive que tirar os dois da escola.

VELHOPor qu? No tinha conseguido matricular sem o meu sobrenome?

ELZATinha. Mas eu vivia apavorada que acabassem descobrindo que eram nossos filhos. Soube que esto torturando crianas. Podiam fazer isso com eles pra obrigar voc a se entregar.

VELHO, acho que fez bem. Talvez tenha que ir com eles pra outro Estado. Por segurana.

ELZAMais longe de voc ainda. S nos vemos de ms em ms, assim, numa praa, numa esquina, sem poder ao menos nos olharmos nos olhos.

VELHOCompreenda, Elzinha, a nossa luta. Me admira voc, to politizada. . Voc t me decepcionando.

ELZAAh, no vem com isso, Mrio. Sou politizada, mas mulher. Sinto falta de voc, sinto falta de seu corpo. Agora mesmo, que vontade de te abraar. Encoste ao menos um pouco em mim.

(ELES COLAM OS CORPOS, COSTAS COM COSTAS. E O FAZEM SENSUALMENTE, COMO NUM ATO DE AMOR.)

VELHOCuidado...

ELZAH quanto tempo no fazemos amor. Ser que voc tambm no sente falta de mim?

VELHOClaro. Tanto quanto voc. Ou mais at, porque voc ainda tem as crianas, pode procurar um parente, um amigo. Eu, no. Da minha solido depende em parte a segurana da Organizao, voc sabe. E t certo.

ELZASer que t mesmo, Mrio?

VELHOVoc tem dvida?

ELZAs vezes eu me pergunto se tudo isso vale a pena. Sacrificar nossos filhos do jeito que estamos sacrificando, renunciando a tudo.

VELHOElza, tou estranhando voc. Que que t se passando? No a primeira, nem a segunda vez que camos na clandestinidade. Voc sempre agentou com firmeza. Em 47, em 61, em 64... quantos anos de cadeia..

ELZAMas nunca foi como agora. Desde que voc optou pela luta armada que eu sinto que sua vida t por um fio. Selamos um pacto com a morte, Mrio.

VELHOEu optei pela luta armada, esse o nico caminho que pode levar derrubada da ditadura. No h outro, Elza. E eu pensei que voc tambm estivesse convencida disso.

ELZA(Controlando-se.) Desculpe.. . eu me descontrolei.

VELHOTou sentindo voc insegura, cheia de dvidas.

ELZAVoc no tem dvidas, de vez em quando? Nunca teve? Me lembro em 56, quando Khruschov denunciou os crimes de Stlin, voc passou um ms sem dormir. E uma noite eu acordei e vi voc andando pela casa e falando sozinho. E voc me disse, quase chorando: Sabe, Elza, como a gente descobrir de repente que nosso pai, que aprendemos a amar e admirar desde criana, no passa de um assassino, um estripador. Como possvel que uma idia nobre e justa produza homens dessa espcie? Que h de errado nela?!

VELHOQue sentido tem relembrar isso agora?

ELZAQuero que voc entenda minhas fraquezas.

VELHOAgora, depois que fiz a minha opo, como voc diz, no posso me dar ao luxo de ter dvidas. No posso vacilar.

ELZA que voc no obrigado a criar seus filhos, ao mesmo tempo que executa suas tarefas. Voc pode ser guerrilheiro vinte e quatro horas por dia. Eu, no, tenho que ser me tambm. Ou voc acha que essa no uma tarefa importante?

VELHODas mais importantes, meu bem. (Tenta fazer humor.) Pra usar de um jargo do Partido, fundamental.

ELZA(No se contm, segura a mo dele.) Mrio!

VELHOQue isso? T chamando a ateno... Deixe de criancice, Elza. Podemos estar sendo seguidos.

ELZAUm minuto s!

VELHOControle. Assim voc no ajuda em nada. Estamos parecendo dois adolescentes.

ELZA(Controla-se, afasta-se dele e volta posio anterior.) Me perdoe, Mrio. Foi mesmo uma criancice. No vai acontecer mais. Nunca mais. Esquea, por favor. Vamos falar de poltica. Diga alguma coisa que me restitua o otimismo. Nem que seja um daqueles chaves do Partido, o capitalismo est em crise, agonizante e o socialismo avana em todo o mundo. Ou ento. . . Nossos focos guerrilheiros esto pipocando pelo pas todo e os gorilas esto com os dias contados, se cagando de medo.

VELHOIsto ainda no aconteceu, mas vai acontecer.

ELZAUm, dois, muitos Vietnans.

VELHOVoc no acredita?

ELZA(Fazendo o possvel para ser convincente.) Acredito. Acredito.

CENA XII

(NO APARELHO. CARLO COM OS OLHOS FIXOS NO TELEVISOR. OUVE-SE O DILOGO DE UM FILME. TNIA JUNTO JANELA FECHADA, VIGIANDO ATRAVS DAS VENEZIANAS.)

TNIAJ mais de meia-noite. A esta hora eles no vo dar mais nada.

CARLOPode ser que leiam o manifesto bem no cu da madrugada. S de sacanagem. (Abaixa o volume da televiso.)

TNIANs exigimos que fosse lido no horrio nobre. Por que no vai dormir um pouco? a sua vez de descansar.

CARLOV voc, eu fico no seu lugar.

TNIAPor qu? Esse o meu turno.

CARLOPosso ento ficar aqui com voc?

TNIAAcho que no deve, Carlo. Somos s quatro e temos que nos revezar.

CARLOEntendo, voc no quer ficar sozinha comigo. Fique tranqila, no vou voltar a encher seu saco.

TNIACarlo! Voc prometeu no insistir nesse assunto.

CARLONo tou insistindo em assunto nenhum, Tnia. Tou s pedindo pra ficar aqui com voc.

TNIAEu sei no que isso acaba. J te conheo de sobra.

CARLONo conhece. Porque estamos vivendo h um ms nesta casa fingindo de marido e mulher, voc pensa que conhece.

TNIAT legal. Conheo pouco. Mas no tou a fim de aprofundar esse conhecimento. T?

CARLOS que um ms vivendo juntos, dia e noite, era preciso ser de ferro pra no. . . no se envolver.

TNIAEu no sou de ferro e pra mim isso s uma tarefa, companheiro.

CARLOEra tarefa dormir com o segurana do Embaixador?

TNIAEu no dormi com ele. Mas se fosse tarefa, dormia. E por favor, corte esse papo que eu no quero magoar voc. No sou das que trepam s por solidariedade ou companheirismo.

CARLONo quero sua solidariedade.

TNIAEnto, tudo bem. Vai dormir, Carlo. (Volta-lhe as costas, olha pela veneziana. H uma pausa.)

CARLOVoc sabe o que fizeram comigo na PE?

TNIASei.

CARLOQuem contou?

TNIAUm companheiro que estava na mesma cela. Cassiano. Ele viu voc chegar arrebentado.

CARLOEnto isso.

TNIAIsso o qu?

CARLOAgora tou sacando. Por isso voc falou em solidariedade. Talvez quisesse dizer piedade. Pois saiba que eu no tou inutilizado, como voc pensa.

TNIA(Veemente.) Porra, cara, esse e um papo que no me interessa.

CARLO(Descontrolando-se.) Mas a mim interessa e eu quero que voc saiba. Voc j viu fazer vinho? Os caras pisam os cachos de uva, esmagam, esmagam. Assim eles fizeram comigo. Pularam em cima dos meus culhes, pisaram, esmagaram. Mas eu no tou impotente! No tou impotente!

TNIAE em que isso me interessa? Eu no preciso dos seus culhes pra nada, porra!

(CARLO TEM UMA CRISE DE CHORO. TNIA SE ARRE PENDE, SENTE QUE FOI CRUEL.)

TNIA(Compadecida.) Companheiro... Carlo... sem essa...

CARLOFilhos da puta! (Saindo, grita.) Filhos da puta!

VELHO(Entra, cruzando com Carlo.) Que houve com ele?

TNIAPirou. assim, de vez em quando funde a cuca. Foi muito torturado.

VELHOEnto vocs fizeram mal em indicar um companheiro com esse problema pra uma ao como esta. Aqui, o controle sobre os nervos condio bsica.

TNIAFoi a Organizao que indicou. um companheiro muito firme politicamente.

VELHOA tev no deu nada?

TNIANada. (Pausa.) Escute, Velho, como era no Estado Novo?

VELHOComo era o qu?

TNIANo sei se lenda, dizem que arrancaram teu bigode, fio a fio.

VELHO(Sorri.) Foi. Na Polcia Especial. Tambm me enfiaram farpas nas unhas e queimaram a sola dos meus ps com maarico. Mas isso at que no foi nada. Houve os que enlouqueceram, como Harry Berger.

TNIAEnto a tortura no Brasil no nasceu hoje.

VELHOHoje ela apenas mais sofisticada. Os torturadores usam a tecnologia, fazem cursos no exterior. Torturam cientificamente. Se voc quer comparar, os torturadores do Estado Novo eram simples amadores.

TNIAO que teria acontecido com o homem cordial brasileiro?

VELHOTalvez nunca tenha existido. A verdade que no Brasil o pobre sempre apanhou. Preso poltico ou preso comum. O direito de espancamento foi adquirido pelas classes dominantes nos tempos da escravido. Meu pai era italiano, mas minha me era mulata. Meus bisavs pelo lado materno foram escravos, E devem ter sido torturados, chicoteados nos pelourinhos e nos troncos do senhor de engenho. Tenho nas costas quatrocentos anos de tortura.

TNIAEnto o que t acontecendo no porque uma dzia de sdicos se apoderou do aparelho de represso.

VELHOSe fosse s isso, seria muito simples e desimportante. Apenas um acidente histrico. Mas no . Se voc quer a explicao, vai ter que mergulhar mais fundo, no tecido social em decomposio.

TNIAO buraco mais embaixo...

VELHOBem mais embaixo. (Sai.)

(A LUZ FECHA EM TNIA.)

CENA XIII

(MLLER EM ANGUSTIOSA ESPERA. GLRIA ENTRA, EM TRAJES DE DORMIR.)

GLRIAFrederico, voc no vem se deitar?

MLLERPra qu? Voc acha que eu vou poder dormir?

GLRIATambm no adianta voc ficar nessa tenso nervosa.

MLLERDurma voc. Vou ficar aqui at ela chegar.

GLRIAOlhe a sua presso, voc no pode se aborrecer.

(OUVE-SE O RUDO DE UM CARRO QUE CHEGA.)

GLRIAParou um carro a na porta. Deve ser ela. Sim, ela, graas a Deus!

MLLER(Mais deprimido que irado.) Seis horas da manh. Com o dia amanhecendo.

GLRIAEspere ela explicar primeiro, Frederico. Quem sabe.

ela faz parte da diretoria do grmio. . . Esses estudantes hoje varam a noite discutindo poltica.

MLLEREstive na escola, falei com a diretora. O grmio foi fechado. Felizmente. E voc acha que eu sou idiota? Era o carro daquele pilantra, eu vi.

GLRIAHoje em dia... pense bem, Frederico... uma moa dormir fora de casa no como no nosso tempo.

MLLERUma moa, no uma menina.

(TNIA ENTRA. TEM QUINZE ANOS. ASSUSTA-SE AO VER OS PAIS.)

TNIA..... Que houve?

MLLER(Controlando-se, fala com suavidade e ironia.) No houve nada. Por que haveria? T tudo normal. Estamos apenas esperando voc. J telefonei para o pronto-socorro, para o distrito policial, para o Instituto Mdico-Legal...

TNIAMas que exagero, pai.

MLLER(No mesmo tom.) Exagero. Uma menina de quinze anos chega em casa depois do sol nascer, uma coisa to natural. .

TNIAEu dormi em casa da Slvia.

MLLERMentira! Eu liguei pra casa dela. E vi quem te trouxe de carro.

TNIA(Percebe que no adianta sustentar a mentira.) Tavinho. Eu tava com ele.

MLLEREstava onde?

TNIAIh, pai, me deixa ir dormir...

(ELA TENTA SAIR, MAS ELE A AGARRA VIOLENTAMENTE PELO BRAO, FAZENDO-A CAIR.)

MLLER(Descontrolado.) No! Voc no vai dormir coisa nenhuma!

GLRIAFrederico! Tenha calma!

MLLER(Debrua-se sobre Tnia, possesso, e comea a espanc-la.) Sua sem-vergonha! Sua vagabunda! Eu te mato! Eu te mato!

GLRIA(Tentando arranc-lo de cima de Tnia.) Frederico! Por Deus! Pare! Pare com isso! Chega, voc t machucando a menina!

(MLLER LARGA TNIA, POR FIM. ELA SE LEVANTA, O OLHAR CHEIO DE DIO.)

TNIA(Fitando-o com raiva.) a ltima vez que voc vai me bater. (Sai.)

MLLER(Grita.) No no. E se prepare porque hoje mesmo vou te levar num mdico. Vou pedir um exame de virgindade. E conforme for o resultado, vou mover um processo contra esse pilantra com quem voc passou a noite.

TNIA(Entra.) Exame de qu?

MLLERDe virgindade. Quero saber se voc ainda virgem.

TNIA(Sorri.) Ora, pai. . . Ridculo. (Sai.)

MLLERQue que ela quis dizer?

GLRIAFrederico... no mais como no nosso tempo... te disse...

MLLER(Compreende e se sente arrasado.) Ela. . . Tnia... nossa filha. . . com quinze anos! Nunca imaginei. voc sabia, Glria?!

GLRIASabia. E no v se expor ao ridculo de processar esse rapaz. Talvez no tenha sido ele.

MLLERE voc acha que j houve outros?

GLRIA possvel...

MLLER(Vai se encolhendo, como se sentisse o mundo desabar sobre a prpria cabea. Seus olhos se enchem de lgrimas.) Isso horrvel. . . horrvel.

GLRIA(Preocupa-se, vendo o quanto ele est sofrendo.) Frederico. . . que isso, Frederico. . . Tenha calma. . . procure aceitar. . . isso no o fim do mundo.

MLLERPra mim, .

(EM PRIMEIRO PLANO, NUM FLASHBACK, TORCEDORES DO FLAMENGO PASSAM CANTANDO E CARREGANDO UM JOGADOR.)

CENA XIV

APARTAMENTO DE TNIA. 1979. ELA E RIBA ACABAM DE CHEGAR.

TNIAVou preparar um cafezinho pra ns.

RIBA aqui que voc mora?

TNIA

RIBASozinha?

TNIAHum-hum.

RIBAPosso ficar aqui at arrumar um apartamento?

TNIASem problema. Quanto tempo quiser. Numa boa. Este apartamento meu e j serviu de geladeira pra muita gente. Foi aqui que eu me escondi logo depois do seqestro, at conseguir sair do pas.

RIBAVoc no foi banida.

TNIANo, consegui atravessar a fronteira no sul. Estive no Chile, Peru... foi l que soube que voc tinha sido preso e depois trocado pelo embaixador suo.

RIBAQuando voc voltou?

TNIAH uns quatro anos.

RIBANo foi presa?

TNIAFui, me encheram um pouco o saco, mas o troglodita, meu pai, livrou a minha barra. (Ela serve o caf.) Pirei, fiz sonoterapia. . . e tou aqui.

RIBAVoc me parece muito bem.

TNIABem em que sentido?

RIBABem de cuca.

TNIAQuatro anos de anlise.

RIBAQue tal o casamento de Freud com Marx?

TNIASo felizes e tm muitos filhos. De vez em quando um corneia o outro, mas tudo bem.

(ELES RIEM.)

TNIA claro que as feridas cicatrizam, mas deixam marcas. Ou a gente faz uma plstica para efeito externo, ou deixa... s pra agredir. Voc...

RIBAUmas poucas certezas e muitas dvidas. Apesar de ter tido muito tempo pra pensar, acho que algumas dessas dvidas vo morrer comigo. Dentre as poucas certezas est a de que a revoluo socialista no Brasil no depende fundamentalmente de mim. (Ri.) Por incrvel que parea, eu j tive essa iluso.

TNIAEstou te achando um pouco assustado.

RIBAO choque da volta... Acho que no cheguei ainda, tou chegando aos poucos.

TNIATambm agora no h pressa.

RIBAH, sim. Trouxe algum dinheiro. Muito pouco. Tenho que arrumar emprego rapidinho.

TNIATem alguma coisa em mente?

RIBASei l. No creio que a agncia me queira de volta. Tambm no queria voltar a trabalhar em publicidade. Escrevi uma pea, vou tentar encenar. Mas acho que no vai ser fcil. Tou pensando em tentar a tev. Que que voc acha?

TNIA uma boa. De um modo geral, a barra t pesada. Na imprensa, esto despedindo gente. O campo de trabalho cada vez menor.

RIBAO sonho acabou. O milagre econmico foi pra cucuia.

TNIAUma merda. A nica vantagem que agora a merda pra todos. Democraticamente.

RIBA a merdocracia. Deu-se a abertura, abriram-se as comportas e a merda jorrou, inundando o pas. Fez-se distribuio justa da riqueza nacional.

(ELES RIEM E PARAM DE RIR DE SBITO, OLHANDO NOS OLHOS UM DO OUTRO.)

RIBAQuando eu te vi no aeroporto, levei um susto. Agora acho que o espantoso foi eu ter me surpreendido com isso.

TNIAA luta, o perigo e o sofrimento unem as pessoas para toda a vida.

(A INTIMIDADE QUASE EPIDRMICA.)

RIBATalvez eu tenha que ir Bahia, ficar um tempo com meu pessoal.

TNIAQual? T com medo de ficar aqui e se envolver? No te trouxe pra uma armadilha, no. Fica tranqilo.

RIBAMas nem precisava. A armadilha j funcionou quando eu te vi no aeroporto.

(ELE A BEIJA. UM BEIJO TMIDO, A PRINCIPIO, QUE SE INCENDEIA DEPOIS. OS DOIS ROLAM NO CHO E FAZEM AMOR. OUVE-SE A VOZ DE CARLO GRITANDO. EI, PESSOAL! ESTO LENDO!)

CENA XV

(NO APARELHO. CARLO OLHANDO, VIDRADO, PARA A TELEVISO. ENTRAM O VELHO E TNIA, CORRENDO. TODOS ESCUTAM, TENSOS.)

CARLOEsto lendo o manifesto!

LOCUTOR

Este ato no um episdio isolado. Ele se soma aos inmeros atos revolucionrios j levados a cabo: assaltos a bancos, onde se arrecadam fundos para a revoluo, tomando de volta o que os banqueiros roubam ao povo; tomadas, de quartis e delegacias, onde se conseguem armas e munies para a luta pela derrubada da ditadura; invases de presdios, quando se libertam revolucionrios, para devolv-los luta do povo. Na verdade, o seqestro do embaixador apenas mais um ato da guerra revolucionria que avana a cada dia e que este ano ainda iniciar a sua etapa de guerrilha rural.

(Acende-se o quarto. Riba escuta, tenso, apontando o revlver para o Embaixador, que tambm est preocupado.)

EMBAIXADORQue est acontecendo?

(Riba faz um sinal para ele se calar!)

LOCUTOR

O embaixador representa em nosso pas os interesses do imperialismo que, aliados aos grandes patres, aos grandes fazendeiros e aos grandes banqueiros nacionais mantm o regime de opresso e explorao. O seqestro do embaixador uma advertncia clara de que o povo brasileiro no lhe dar descanso e a todo momento far desabar sobre eles o peso de sua luta. uma luta longa e dura, que no termina com a troca de um general por outro, mas que s acaba com o fim do regime dos grandes exploradores e com a construo de um governo que liberte os trabalhadores de todo o pas da situao em que se encontram. A vida e a morte do senhor embaixador esto nas mos da ditadura. Se ela atender s nossas exigncias, ele ser libertado. Caso c