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Gilson de Oliveira Mendes Haroldo de Campos e João Adolfo Hansen: Duas leituras e uma polêmica sobre a obra de Gregório de Matos Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2013

Campos e Hansen - Gregório de Matos

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  • Gilson de Oliveira Mendes

    Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen:

    Duas leituras e uma polmica sobre a obra de Gregrio de Matos

    Belo Horizonte

    Faculdade de Letras da UFMG

    2013

  • Gilson de Oliveira Mendes

    Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen:

    Duas leituras e uma polmica sobre a obra de Gregrio de Matos

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Letras: Estudos Literrios da Faculdade de Letras da

    Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito

    parcial obteno do ttulo de Mestre em Estudos

    Literrios.

    rea de concentrao: Literatura Brasileira

    Orientador: Prof. Srgio Alcides Pereira do Amaral

    Belo Horizonte

    Faculdade de Letras da UFMG

    2013

  • Agradecimentos

    Agradeo a todos os meus familiares, amigos e a CNPq. Agradeo principalmente aos

    professores: Cludia Campos Soares, que me introduziu nos estudos sobre Gregrio de

    Matos; e Duda Machado, orientador amigvel da graduao, fundamental para a continuao

    dos meus estudos. Agradeo especialmente ao professor Srgio Alcides pela generosa

    orientao e impagvel apoio.

  • Resumo

    Esta dissertao de mestrado tem o objetivo de estudar a recepo crtica da obra de Gregrio

    de Matos, concentrando-se na anlise das formulaes de Haroldo de Campos e Joo Adolfo

    Hansen. Estudaremos a trajetria crtica de Haroldo de Campos, que, aliando as atividades de

    poeta e crtico, cunha o termo neobarroco, aproximando, sincronicamente, sua produo

    potica de vanguarda da potica do sculo XVII. Veremos como Haroldo defende o barroco

    como estilo caracterstico da Amrica e Gregrio, como iniciador da literatura brasileira,

    criticando a posio de Antonio Candido. Analisaremos, em contrapartida, a obra de Hansen,

    que nega o termo barroco, critica o anacronismo das crticas e reconstitui o contexto de

    produo potica do sculo XVII, marcado pela prescrio retrica rigidamente orientada.

    Alm disso, ao estudarmos Hansen, entenderemos tambm as restries polticas, religiosas e,

    obviamente, artsticas, que fazem da stira um instrumento da razo de Estado. Para Hansen,

    Gregrio era uma etiqueta e no a origem original dos poemas, como supunha a crtica

    posterior, que operava com critrios exteriores sociedade seiscentista. Por fim,

    confrontaremos as duas vises crticas, ressaltando suas divergncias e conseqentemente

    chegando ao efeito das duas leituras.

    Palavras-chave: recepo crtica, barroco, neobarroco, sincronia, literatura brasileira,

    anacronismo, retrica, stira, Gregrio de Matos.

  • Rsum

    Cette dissertation vise tudier la rception critique de loeuvre de Gregrio de Matos, en se

    concentrant sur lanalyse des formulations de Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen.

    Nous allons tudier la trajectoire critique de Haroldo de Campos, qui, combinant les activits

    de pote et de critique, a invent le terme no-baroque approchant, synchronique, sa

    production potique davant-garde du XVIIe sicle. Nous allons voir comment Haroldo

    dfend le baroque comme style caractristique de lAmrique et Gregrio, en tant

    quinitiateur de la littrature brsilienne, critiquant la position de Antonio Candido. Nous

    analyserons, cependant, le travail de Hansen, qui nie le terme baroque, dnonce

    lanachronisme de la critique et reconstitue le contexte de la production potique du XVIIe

    sicle, marque par la prescrition rhtorique oriente de faon rigide. Dailleurs, en tudiant

    Hansen, galement comprendre les contraintes de la vie politique, religieuse et artistique, qui

    voit videmment la satire comme un instrument de la raison dEtat. Pour Hansen, Gregrio

    tait comme une tiquette et non la source originale des pomes, comme suppos par la

    critique posterieur, qui oprais avec critres en dehors de la socit du XVIIe sicle. Enfin,

    nous confronterons les deux visions critique, mettant en vidence leurs diffrences et les

    effets des deux lectures.

    Mots-cls: rception critique, baroque, no-baroque, synchronie, littrature brasilienne,

    anachronisme, rhtorique, satire, Gregrio de Matos.

  • Sumrio

    Introduo..............................................................................................7

    1. Do neobarroco defesa do barroco...........................................................11

    2. A rejeio do barroco e do neobarroco.....................................................56

    Concluso............................................................................................................89

    Referncias........................................................................................................98

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    Introduo

    Este trabalho estuda a crtica da poesia de Gregrio de Matos (Salvador, 1636

    Recife, 1696). Para isso, julgamos mais proveitoso e interessante nos concentrarmos em dois

    momentos importantes da crtica contempornea, caracterizada pelas intervenes de Haroldo

    de Campos e Joo Adolfo Hansen. O estudo desses dois crticos um campo rico de debate

    que nos permitir avaliar, no apenas suas formulaes, como tambm as divergncias dos

    dois pontos de vista. Ao nos determos nessas duas crticas, entendemos que aprofundaremos o

    conhecimento sobre questes que permanecem em aberto no mbito da literatura brasileira. O

    recorte do trabalho se justifica na medida em que uma avaliao do resultado das duas leituras

    sobre a poesia de Gregrio de Matos e a conseqente polmica entre elas ainda era uma tarefa

    instigante. Alm disso, o fato de tanto a crtica de Joo Adolfo Hansen quanto de Haroldo de

    Campos dialogarem com a crtica precedente, permitir-nos- verificar o efeito das duas

    leituras, tendo como pano de fundo a cadeia recepcional que as antecede.

    O trabalho se divide em dois captulos. O primeiro, Do neobarroco defesa do

    barroco, dedicado a Haroldo de Campos. O segundo, A rejeio do barroco e do

    neobarroco, dedicado a Joo Adolfo Hansen. Depois, na Concluso, confrontaremos as

    duas perspectivas.

    Em Do neobarroco defesa do barroco, acompanhamos a trajetria crtica de

    Haroldo de Campos desde o perodo de formao do concretismo. Perseguiremos os

    fundamentos do que ele chamava de neobarroco at a defesa que far do barroco como estilo

    fundamental para o cnone da literatura brasileira. Veremos como no texto A obra de arte

    aberta, dialogando com o msico Pierre Boulez, Haroldo cunha o termo neobarroco para

    designar uma obra de arte aberta, no clssica, que exigia a participao do leitor. Haroldo

    passar a se referir ao que fazia como neobarroco, tendo em vista que as atividades de crtico

    e poeta sempre esto imbricadas. Neobarroco aproximaria sua poesia da de Gregrio de

    Matos e outros seiscentistas como Gngora. Este aproximado de Mallarm, assim como, num

    contexto de lngua inglesa, Eliot havia valorizado Donne. Haroldo usa o paideuma poundiano

    para elencar autores que fizessem parte de uma contracorrente inventiva, da qual Gregrio

    seria o fundador no contexto brasileiro. Haroldo combate as histrias lineares da literatura e

    prope uma viso sincrnica, autorizado pelo terico Roman Jakobson. Sua sincronia

    privilegia as obras destruidoras de uma recepo acomodada e acadmica.

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    Haroldo, ao longo de seus artigos e livros, aproxima-se de outros escritores latino-

    americanos que tambm defendiam o barroco como uma arte prpria da Amrica. Assim, ir

    evocar os cubanos Lezama Lima (o barroco da contra-conquista) e a Severo Sarduy (o

    neobarroquismo). Alm desses, Haroldo se apoiar na autoridade de Affonso vila, que

    tambm via o barroco e Gregrio como congnitos ao Brasil, e na do prprio Candido, citando-

    o para contradiz-lo, quando Candido reformula suas opinies e v congenialidade no barroco.

    O que h de comum nesses autores diferentes intelectualmente, geograficamente e

    temporalmente o essencialismo, que Haroldo defende conscientemente. Para ele, a histria da

    literatura deve ser escrita por criadores: fico heurstica interessada no presente de criao.

    Veremos como o Tropicalismo, mais especificamente Caetano, importante para

    exemplificar sua tese de como a poesia do sculo XVII pode ser revivida e no relegada aos

    arquivos antolgicos. Veremos como o prprio Haroldo pretende ser um poeta que pratica o

    neobarroco, o chamado delrio lcido. Em seguida, vamos acompanhar sua obra mais

    extensa sobre Gregrio, O sequestro do barroco na Formao da literatura brasileira: o caso

    Gregrio de Matos, de 1989. Obra que de certa forma sintetiza as suas formulaes sobre o

    barroco, literatura brasileira, histria sincrnica e Gregrio de Matos. Haroldo de Campos se

    posiciona contra o sequestro do barroco realizado por Antonio Candido. Este em sua

    importante obra Formao da literatura brasileira: momentos decisivos, de 1959, classifica a

    poesia de Gregrio como uma das manifestaes literrias isoladas que no influram na

    formao literria brasileira, tendo em vista o sistema tridico autor-obra-pblico. Candido

    parte da perspectiva dos crticos romnticos e ressalta as contribuies do romantismo e do

    arcadismo, afirmando que h uma continuidade temtica entre esses dois movimentos

    literrios. Alm disso, sua anlise busca destacar das obras o comprometimento, mais ou

    menos consciente, dos autores com a construo da nao. Candido tambm observou, nas

    obras, a unio entre o aspecto pitoresco e particularista - contribuies do romantismo -, e o

    aspecto universalista com tendncias ao realismo - contribuies do arcadismo. Portanto, o

    que no cabe nesse sistema, deve conseqentemente ser excludo. Logo, a obra de Gregrio

    de Matos e o barroco o foram. Candido reformular suas posies em dois textos posteriores

    Literatura de dois gumes e Dialtica da malandragem, o que ser utilizado por Haroldo de

    Campos como reforo para sua tese. Como a questo em torno da obra de Candido e a crtica

    feita por Haroldo possui desdobramentos, vamos analisar as opinies de Costa Lima, Roberto

    Schwarz e Abel Barros Baptista. A elaborao deste quadro crtico nos possibilitou entender

    como Haroldo via Gregrio e como ele o encaixava nos estudos de literatura no Brasil, o que,

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    obviamente, serviu para a comparao, como veremos a seguir, entre sua perspectiva e a de

    Joo Adolfo Hansen.

    Em A rejeio do barroco e do neobarroco, estudamos a obra de Joo Adolfo Hansen.

    No seu livro, A stira e o engenho, de 1989, verificamos que mesmo a stira discurso

    condicionado pelas regras retrico-poticas do sculo XVII. Hansen rejeita a noo de barroco e

    critica as abordagens calcadas no biografismo, que buscam ver no homem Gregrio a causa da

    poesia. J era retrica a biografia do Licenciado Rabelo (Vida do excelente poeta lrico, o

    doutor Gregrio de Matos e Guerra) escrita no sculo XVIII e que serviu de base para o

    psicologismo e as opinies preconceituosas desde o romantismo. Hansen vai de encontro a toda

    crtica precedente ao asseverar que Gregrio uma etiqueta, unidade imaginria e cambiante

    e que os especialistas at ento revelavam posies crticas 'expressivas' e 'representativas', que

    obliteram a historicidade da prtica satrica quando a efetuam como exterior sua prpria

    histria (HANSEN, 1989, p.15). Sendo assim, critrios romnticos, naturalistas, psicolgicos,

    tropicalistas e outros so anacrnicos quando empregados obra de Gregrio de Matos. Houve

    leituras excessivas e, espantosamente, em nome da construo de uma arte que atendesse ao

    nascimento do Estado nacional, esqueceram-se os procedimentos clssicos que predominavam

    antes do romantismo. Para entendermos isso, a obra de Hansen fundamental. Alm disso,

    Hansen demonstra como a stira ficcionalizava os discursos vinculados ao poder poltico e

    religioso, rebatendo a idia de que houve um Gregrio contestatrio e reforando a idia de que

    mesmo a stira era voz, no do povo, mas do poder colonial. Como constatamos a leitura de

    Hansen, ainda que feita no fim do sculo XX, polmica, pois muito do essencialismo e demais

    excessos anacrnicos estavam ativos. Hansen insiste na descrio da persona construda

    retoricamente para afastar a idia de uma psicologia dotada de liberdade artstica por trs das

    stiras. Hansen rejeita o barroco por consider-lo como fruto de Wlfflin e os usos que fizeram

    deste. Segundo Hansen, o crtico alemo era um neokantiano e trabalhava com conceitos que

    no poderiam existir no sculo XVII, pois no havia livre concorrncia artstica nem esttica.

    Depois, vemos como Hansen critica o neobarroco por tambm ser um anacronismo, que ainda

    possui laivos de romantismo e do etapismo teleolgico das histrias do sculo XIX; isto , o

    neobarroco pressupe precursores como na perspectiva figural. Curiosamente, Hansen aponta

    em Haroldo tanto o essencialismo quanto o nacionalismo, que o autor de Galxias criticou em

    Antonio Candido.

    Devemos observar que por simplificao, a fim de no termos que nos justificar o

    tempo todo, optamos por usar, em todo o trabalho, expresses como a poesia de Gregrio de

    Matos ou na obra de Gregrio de Matos, como o prprio ttulo da dissertao j indica, e

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    deixamos para aplicar expresses como a poesia atribuda a Gregrio de Matos apenas na

    parte referente a Hansen, que insiste que o nome apenas como etiqueta de um corpus.

    A anlise dos pressupostos, critrios e juzos emitidos por cada um desses crticos teve

    como base o repertrio crtico-terico existente a respeito do barroco e das conceituaes

    engendradas pela teoria literria, especificamente utilizamos a Esttica da Recepo.

    Como se ver, as crticas de Haroldo de Campos e Joo Adolfo Hansen so recentes e,

    devido carga de questionamentos e idias que propem, tornou-se necessrio um

    mapeamento e uma sistematizao dessas discusses. Ao nos debruarmos sobre as duas

    vertentes, analisamos a fundamentao terica de ambas e evidenciamos o lugar crtico do

    qual elas foram formuladas, o que atende a uma lacuna nos estudos literrios e aponta para um

    melhor entendimento da obra de Gregrio de Matos. Na Concluso, confrontamos as duas

    visadas crticas, utilizando como fio condutor os artigos que Haroldo e Hansen escreveram

    para o Caderno Mais!, da Folha de So Paulo, em 1996. Dessa polmica, destacamos

    pontos importantes e tentamos inferir o que fica dessas duas leituras.

    Vrios pressupostos de Haroldo e de outros que pensavam como ele parecem

    realmente ter rudo. O estudo da poesia do sculo XVII sem levar em considerao suas

    especificidades ou a viso de um barroco como estilo caracterstico do Brasil, numa linha

    essencialista parece ter ficado para trs, assim como ver um Gregrio revoltado avant la

    lettre, precursor do que s se faria bem depois. O que interessante em Haroldo talvez seja,

    descontando os excessos, a crtica ao modelo de historiografia coesa, monoltica ainda

    provinda do sculo XIX e sua valorizao de criadores pouco estudados, que tinham uma

    verve inventiva e priorizavam a tcnica, a palavra-coisa contra o expressionismo de linhagem

    romntica e alambicada que sempre pareceu imperar no Brasil. Alm disso, um certo

    anacronismo na avaliao dessas caractersticas e na tentativa de aproximao (via paideuma)

    da poesia seiscentista contemporaneidade talvez seja inevitvel para que a poesia do passado

    no fique interdita para nosso tempo, ainda que essa apropriao diga mais sobre ns mesmos

    do que sobre o sculo XVII.

    O trabalho de Hansen torna-se incontornvel enquanto descrio do perodo colonial

    seiscentista. Suas crticas s leituras excessivas, que levavam ao sculo XVII conceitos

    exteriores, tornaram-se fundamentais. Hansen representa uma vertente que vem cada vez mais

    se fortalecendo, depois da queda do nacionalismo. Seu estudo concentrado no contexto inicial

    de produo potica seiscentista e que descreve as prescries retricas, juntamente com o

    controle poltico e religioso exercido na Amrica portuguesa demoliu vrios mitos e parece

    caminhar para uma hegemonia.

  • 11

    1. Do neobarroco defesa do barroco

    Neste primeiro captulo, abordaremos as obras crticas de Haroldo de Campos,

    descrevendo e analisando a trajetria de seu pensamento, destacando as formulaes sobre

    poesia, em particular sua teoria do neobarroco. Tais formulaes acarretaram obviamente a

    defesa posterior do barroco e de Gregrio de Matos, que tambm analisaremos. Nosso

    objetivo no escrever a histria do movimento concreto nem uma biografia intelectual de

    Haroldo de Campos, mas apenas seguir pontos de sua obra crtica no que diz respeito a

    Gregrio de Matos1.

    Como se sabe, os pressupostos crticos de Haroldo de Campos comearam a aparecer

    em artigos e conferncias na dcada de 50, perodo no qual surgiu a poesia concreta. Em

    diversos artigos publicados em jornais, principalmente no Rio de Janeiro e So Paulo, o grupo

    de poesia concreta lanou as bases desse movimento, que buscava um novo tipo de arte. O

    grupo foi formado por Augusto de Campos, Dcio Pignatari, Haroldo de Campos e Ronaldo

    Azeredo, aos quais outros integrantes posteriormente se juntaram. Claramente, existem

    diferenas entre os principais iniciadores desse movimento, que tambm ecoou em outros

    pases como Alemanha e Japo. Concentrar-nos-emos nos textos de Haroldo de Campos e

    apenas referiremos, caso necessrio, aos outros escritores, quando a obra desses nos esclarecer

    sobre nosso foco de interesse.

    J no texto Plano-piloto para a poesia concreta, de 1958, as diretrizes desse

    movimento eram definidas, valorizando a materialidade dos signos lingsticos, alm de

    elencar modelos literrios de inveno, que deveriam ser seguidos e ampliados, o que

    obviamente acarretaria uma reviso do passado literrio nos termos dessa nova visada potica.

    Basicamente, os concretos apoiavam-se no uso dos espaos brancos e nos avanos grficos

    preconizados por Mallarm em seu Un coup de ds, no mtodo ideogrmico colhido em

    Pound, sem falar nas suas idias quanto ao paideuma que tambm sero de suma importncia

    para a compreenso das formulaes de Haroldo. Alm disso, outros autores traziam

    contribuies relevantes como os caligramas de Apollinaire, as criaes do tipo palavra-valise

    de James Joyce, a poesia sinttica e critico-humorstica de Oswald de Andrade, a

    racionalidade e a conteno de Joo Cabral de Melo Neto e as inovaes fragmentrias de e.e.

    cummings. Esse rol de autores foi sendo ampliado ao longo dos textos crticos e das tradues

    1 Para uma histria do movimento concretista, ver Gonzalo Aguilar, Poesia Concreta Brasileira: As Vanguardas

    na Encruzilhada Modernista, So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2005.

  • 12

    dos concretistas. Dentro dessa constante mudana, dessa obra em progresso, entraria uma

    retomada do passado em busca de precursores e afins como Gregrio de Matos, caso que nos

    interessa mais de perto. A reviso da histria literria feita sempre em dilogo com o

    presente, com a atividade de produo. Esclarece-nos Joo Alexandre Barbosa em relao

    posio de Haroldo: a sua experincia de poeta exigir a reflexo metalingstica que v

    apontando o modo de passagem entre a criao e aquilo que chamei de leitura da tradio

    (BARBOSA, 1979, p. 18). No seu texto crtico (texto tambm assinalado por Alexandre

    Barbosa), Poesia e paraso perdido, de 1955, Haroldo defende esta imbricao de traduo,

    crtica, viso sincrnica, reviso da histria literria e a eleio de autores para seu paideuma.

    Haroldo:

    A arte da poesia, embora no tenha uma vivncia funo-da-Histria, mas se

    apie sobre um continuum meta-histrico que contemporaniza Homero e

    Pound, Dante e Eliot, Gngora e Mallarm, implica a idia de progresso, no

    no sentido de hierarquia de valor, mas no de metamorfose vetoriana, de

    transformao qualitativa, de culturmorfologia: make it new. (CAMPOS,

    2006, p. 43)

    Essas preocupaes esto contidas nos textos de seu mestre Ezra Pound e no conceito

    de paideuma, que consiste na: ordenao do conhecimento de modo que o prximo homem

    (ou gerao) possa achar, o mais rapidamente possvel, a parte viva dele e gastar um mnimo

    de tempo com itens obsoletos (POUND, 2006, p. 161). essa postura de Pound que

    fundamentar em grande parte a trajetria de Haroldo. Pound e Haroldo, poetas-tradutores de

    diversas lnguas, que buscaram no apenas revelar o que a histria acadmica havia

    negligenciado como rever o sobejamente conhecido por outro ngulo; ou seja: dialogar com

    uma tradio viva e incorpor-la na prpria obra potica e no somente na ensastica.

    Como podemos reconhecer em outros momentos da modernidade, as artes se

    influenciaram, houve uma mistura de mtodos e perspectivas por parte das diversas

    modalidades artsticas. No concretismo, no poderia ser diferente. Esse movimento tambm

    manteve dilogo com as artes plsticas e a msica moderna. justamente no texto A obra de

    arte aberta que Haroldo, citando Pierre Boulez, fala em neobarroco. Esse texto aparece

    tambm em 1955, antes mesmo do lanamento oficial da poesia concreta. Prope Haroldo:

    Pierre Boulez, em conversa com Dcio Pignatari, manifestou o seu

    desinteresse pela obra de arte perfeita, clssica, do tipo diamante, e enunciou a sua concepo da obra de arte aberta, como um barroco moderno. Talvez esse neobarroco, que poder corresponder intrinsecamente s necessidades culturmorfolgicas da expresso artstica contempornea,

  • 13

    atemorize, por sua simples evocao, os espritos remansos, que amam a

    fixidez das solues convencionadas. (CAMPOS, 2006, p. 53)

    O neobarroco consistiria numa obra de arte que exige uma adeso maior por parte do

    apreciador. Seria o oposto de uma arte classicizante, fechada, mas uma arte aberta sempre a

    novas possibilidades tanto na elaborao, sempre questionada, como na sua fruio. Embora

    Haroldo nunca tenha definido exatamente o que entendia especificamente por neobarroco,

    podemos deduzir que esta concepo da poesia estava ligada mais intimamente ao, para usar

    uma expresso de Jauss, lirismo hermtico de Mallarm, que desafiava o leitor a arriscar

    uma leitura num jogo interpretativo. Mallarm ser importante igualmente, pois seus poemas

    e a constante valorizao de sua obra promovero uma reviso da obra de Gngora e

    conseqentemente do perodo tido como barroco. Assim, Haroldo e o grupo Noigandres

    praticavam, predominantemente na fase orgnica, um tipo de poesia que se poderia chamar

    neobarroca, que prepararia o interesse estrito pela materialidade do signo, que abalaria o

    panorama da poesia brasileira. Segundo o prprio Haroldo, uma das caractersticas dessa

    poesia seria, por exemplo, um vocabulrio raro, escolhido [que] reverbera em timbres de

    Gngora e de Mallarm (CAMPOS, 2002, p. 23). Dessa lavra haroldiana surgiram, citemos a

    ttulo de exemplo, poemas como: Thlassa Thlassa: O Mar-linguagem, Lamento sobre o

    Lago de Nemi e Teoria e Prtica do Poema. Na mesma dcada, Augusto de Campos

    observaria no texto Poesia concreta:

    Haroldo de Campos , por assim dizer, um concreto barroco, o que o faz trabalhar de preferncia com imagens e metforas, que dispe em

    verdadeiros blocos sonoros. Nos fragmentos de Ciropdia ou a Educao do Prncipe (1952) [...] merece meno o especial uso das palavras-compostas, buscando converter a idia em ideogramas verbais de som. (CAMPOS, A.,

    2006, p. 57)

    Como vemos nessa citao, o que Augusto entende por concreto barroco parece ser

    a organizao parattica do poema; isto , blocos sintticos, que subvertem a ordenao

    costumeira da frase, dispensando-a de conectivos, por exemplo, formando uma espcie de

    mosaico que exige a atuao do leitor para impor-lhes sentido. Esses leitores, obviamente, no

    podero ser espritos remansos, que amam a fixidez das convenes convencionadas, como

    afirmava Haroldo. Da a idia de uma arte aberta, no conclusa. O prprio Augusto diz no

    mesmo texto: as palavras nessa poesia atuam como objetos autnomos (CAMPOS, A.,

    2006, p. 55). Haroldo de Campos retornaria a esse tema num texto posterior A arte no

    horizonte do provvel, de 1963, publicado inicialmente em Inveno:

  • 14

    Parece que uma das caractersticas fundamentais da arte contempornea, e

    que pode ser analisada tanto de um ponto de vista ontolgico como de uma

    perspectiva existencial, a da provisoriedade do esttico. Enquanto que,

    numa esttica clssica, a tendncia seria considerar o objeto artstico sub

    specie aeternitatis, a arte contempornea, produzida no quadro de uma

    civilizao eminentemente tcnica em constante e vertiginosa transformao,

    parece ter incorporado o relativo e o transitrio como dimenso mesma de

    seu ser. (CAMPOS, H., 1977, P. 15)

    Depois de fazer esse diagnstico da arte moderna, Haroldo citar seu texto A obra de

    arte aberta para mostrar a coerncia das suas intuies. O neobarroco, que ele prope, uma

    arte profundamente adequada dentro dessa argumentao de que as vanguardas, incluindo o

    concretismo, tm em comum com o barroco o fato de praticarem uma arte no classicista, no

    acadmica, cujo significado relativo, no essencial, variando sempre, quando a obra

    fruda.

    Haroldo sempre se manter ligado aproximao, que no coube s a ele realizar, de

    parte da poesia moderna ao barroco, o que lhe facultava chamar de neobarroco sua produo

    potica. Apesar de Haroldo dizer que essa primeira fase de sua poesia se diferencie do

    neoparnasianismo da Gerao de 45, h quem veja, como Paulo Franchetti, em Alguns

    aspectos da teoria da poesia concreta, afinidades entre essa fase larvar e a Gerao de 45.

    Prova disso o prprio nome Noigandres ser to precioso quanto Orfeu e to impalpvel

    quanto um Cavalo Azul, com a vantagem de ser, sem dvida nenhuma, mais erudito

    (FRANCHETTI, 2012, p. 164). Alm disso, a poesia de Haroldo e a de Dcio Pignatari

    (excetuando, na argumentao de Franchetti, a poesia de Augusto de Campos, que teria mais a

    ver com o Joo Cabral, poeta preciso e econmico, pertencente apenas cronologicamente a

    Gerao de 45) naquele momento ainda ostentam uma roupagem brilhante, hiperblica e

    prolixa, mas dentro da moda de seu tempo (Idem, ibidem). Havia um certo tom preciosista

    inicial que talvez facilitasse a juno de poetas novatos e a pedraria rebuscada de Gngora,

    como tradicionalmente era vista a poesia do poeta espanhol. Essas caractersticas estavam

    afastadas da conciso preconizada logo aps, mas Haroldo sempre se manteve fiel a essa

    intuio de uma poesia neobarroca, at porque essa palavra e esse insight seriam importantes

    para outros escritores como o cubano Severo Sarduy, que retomaria o termo e tambm

    endossaria a aproximao da arte praticada pelas vanguardas s da potica do sculo XVII.

    Sarduy, igualmente, daria, ao barroco, status de precursor da resistncia e subverso contra o

    elemento europeu. Depois da chamada fase orgnica, como j assinalamos, o grupo em

    torno de Noigandres lanou, na revista homnima, em 1958, o Plano-piloto para poesia

  • 15

    concreta. Nessa revista, suas posies se radicalizam e essa nova poesia, que passar a ser

    denominada por poesia concreta ou movimento concretista, consegue sua ruptura com a

    gerao imediatamente precedente, a Gerao de 45. A denominao arte concreta j havia

    sido usada por msicos eruditos e por artistas plsticos, manifestaes artsticas que sempre

    tero importncia para os brasileiros. No caso das artes plsticas, os poetas do concretismo

    sero influenciados por Mondrian e Max Bill; na msica, por Webern, Stockhausen e Boulez

    (o qual, como vimos acima, autoriza Haroldo a usar a classificao neobarroco). Os concretos

    decretaram o encerramento do ciclo histrico do verso, e fizeram isso respaldados pela

    viso sincrnica que englobava ao mesmo tempo seus precursores num mesmo presente,

    precursores que formavam o primeiro paideuma, ao qual durante as atividades de Haroldo,

    Dcio e Augusto foram-se somando mais escritores nacionais e internacionais:

    Precursores: mallarm (un coup de ds, 1897): o primeiro salto qualitativo:

    subdivisions prismatiques de lide; espao (blancs) e recursos tipogrficos como elementos substantivos da composio. pound (the

    cantos): mtodos ideogrmicos. joyce (ulysses e finnegans wake): palavra-

    ideograma; interpretao orgnica de tempo e espao. cummings:

    atomizao de palavras, tipografia fisiognmica; valorizao expressionista

    do espao. apollinaire (calligramme): como viso, mais do que como

    realizao. futurismo, dadasmo: contribuio para a vida do problema. No

    Brasil: oswald de andrade (1890-1954): em comprimidos, minutos de poesia. Joo Cabral de melo neto (n. 1920 o engenheiro e a psicologia da composio mais antiode): linguagem direta, economia e arquitetura

    funcional do verso. (CAMPOS, A., CAMPOS, H., PIGNATARI, p. 215-

    216)

    Como o grupo Noigandres e Haroldo de Campos, em nosso caso particular, entendiam

    a poesia que faziam como sendo conseqncia de uma contracorrente inventiva, cabia uma

    reviso do passado, aproximando-o do presente de produo, o que tambm levaria a uma

    nova abordagem do nacionalismo. A essa maneira dialgica de entender a literatura,

    Haroldo unir o conceito de antropofagia, de Oswald de Andrade. Uma vez que esse conceito

    significa devorar o elemento adventcio para que se produza algo novo, para que se fabrique

    a diferena, serve por sua vez como verso modernista do que poetas barrocos como Gregrio

    de Matos executaram, quando engoliram o cdigo barroco e devolveram uma poesia cheia de

    tupinismos e africanismos. A antropofagia revisitada pelos concretistas era uma maneira de

    entender a poesia e a arte de modo geral como um processo de universalizao da literatura

    feita no Brasil. O concretismo, sua teoria e tradues atuariam em duas frentes: a) capacidade

    de absorver em p de igualdade a arte dos pases centrais, respondendo com algo novo; e b)

    fazer uma reviso do passado sob novos critrios, buscando, no territrio nacional ou

  • 16

    transnacional, precursores que autorizassem a postura concreta (usamos termos como poesia

    concreta e concretos por simplificao, pois no desconhecemos que Haroldo, por

    exemplo, rejeitar a classificao de concreto desde meados de 1963, quando comea a

    redao do seu grande poema Galxias). Assim, voltando questo de Oswald e a

    antropofagia: esta funcionaria como uma soluo para a descentralizao da histria literria,

    que sempre teve como centro de gravidade a Europa. O nacionalismo visto por outro ngulo,

    o que prenunciaria o longo texto de Haroldo, O sequestro do barroco na Formao da

    literatura brasileira: o caso Gregrio de Matos, de 1989. A mudana na maneira de ver a

    histria est no fato de Haroldo propor uma relao de autores de diversos tempos, no

    respeitando o modo linear de traar o percurso das obras. Haroldo privilegia as obras

    destruidoras de uma recepo acomodada e acadmica. Munido do conceito de paideuma de

    Ezra Pound, Haroldo de Campos entende a poesia concreta como um movimento sincrnico;

    isto , tomar Mallarm, principalmente o do Un coup de ds, como um dos pilares de sua

    potica notar semelhanas e aproxim-lo de obras como as de Gregrio de Matos ou

    Sousndrade. As inovaes grficas, o lirismo complexo, a sintaxe que impe dificuldade, a

    materialidade do signo so caractersticas que Haroldo observa no poeta francs e tambm no

    barroco e, obviamente, em Gregrio de Matos. Nisso, o poeta e crtico brasileiro no se

    diferencia de precedentes revalorizaes. Ou seja: Lorca, revendo Gngora; Eliot e os poetas

    metafsicos ingleses; Pound e os provenais.

    Aparentemente, h uma contradio na proposta por clareza, conciso e comunicao

    da poesia concreta com esse retorno a um barroco mallarmeniano, e mesmo a prtica desse

    como ficou dito acima. E aqui cabe lembrar que Haroldo tambm foi autor de um poema de

    longo flego, de partes permutveis e independentes, Galxias, que exatamente pela

    dificuldade de execuo levou muito tempo para ser finalizado. Alis, mesmo outras obras de

    Haroldo e dos modernistas, que adotaram o suporte dos mass media, continuam tendo uma

    penetrao restrita ainda que entre leitores relativamente cultos. Enfim, Haroldo em um de

    seus textos Do epos ao epifnico (gnese e elaborao das Galxias), tenta resolver essa

    questo, afirmando sobre o referido poema:

    Afinal, o oximoro (a coexistncia dos contrrios) a figura-rainha do

    Barroco e barroquismo no se ope a construtivismo (Bach, o matemtico da

    fuga, um barroco; a geometria curvilnea de Niemeyer em Pampulha ou em

    Braslia , ao mesmo tempo, construtiva e barroquizante). (CAMPOS, H.,

    2010, p. 272)

  • 17

    Essa citao e o que foi dito acima nos ajudam a pensar no que Haroldo de Campos

    entende por neobarroco: um misto de tratamento radical da palavra-coisa, mas que no fosse

    irracional, e sim um delrio lcido, como ele mesmo diz. Assim, parece que a viso de

    Haroldo ainda se filia quela que entende o barroco como um perodo de contradies: claro -

    escuro; liberdade - represso; racionalismo - irracionalismo; materialidade espiritualismo;

    conteno abundncia etc. Nesse sentido, tanto o poema barroco quanto o neobarroco

    seriam uma tentativa de conciliao de foras contraditrias, um caos organizado.

    As produes e a crtica dos concretos ganharam projeo internacional, uma vez que

    esse movimento tambm acontece junto ao chamado boom latino-americano dos anos 50,

    momento da literatura em que escritores como Borges, Guimares Rosa, Octavio Paz

    influenciaram outras literaturas em diferentes continentes. Sendo assim, o poeta Eugen

    Gomringer, na Alemanha, aceita a designao de poesia concreta para o que ele vinha

    fazendo; no Japo, h reverberaes concretas no grupo VOU; na Amrica Latina h ainda

    mais aliados: Octavio Paz, que mantm dilogo com Haroldo e empreende a revalorizao de

    Sror Juana Ins de La Cruz, antes deles, Lezama Lima, em Cuba, tambm eleger o barroco

    latino-americano como a arte da contra-conquista, conceito que Haroldo une antropofagia

    oswaldiana. Ainda em Cuba, temos a presena de Severo Sarduy que adotar o termo

    neobarroco e tambm manter os laos com a perspectiva iniciada por seu compatriota.

    Portanto, devemos analisar alguns desses autores, pois eles sero citados por Haroldo na

    tentativa de autorizar sua opinio sobre o barroco e conseqentemente sobre Gregrio de

    Matos.

    Jos Lezama Lima, com sua obra A expresso americana, publicada primeiramente

    em 1957, ser sempre evocado por Haroldo de Campos. Este ligar Lezama Lima

    antropofagia de Oswald de Andrade, notadamente porque o escritor cubano, em sua

    teorizao, assemelha-se s propostas de 22 ao ver no barroco o princpio de uma arte feita na

    Amrica, mas no de forma submissa, o que alterava as formas impostas pelo colonizador,

    esboando o nativismo que se generalizaria no processo de independncia. Alm disso, o que

    explicava em parte a capacidade de perturbar as formas estrangeiras era a miscigenao que

    ocorreu de forma ampla na Amrica Latina.

    Lezama Lima pretende mudar a maneira de ver a histria da cultura na Amrica, no

    aceitando uma relao de causa-efeito, segundo ele, promovida pelo historicismo de Hegel.

    Lezama engendra uma viso potica, fabulosa, que compara perodos recentes da histria a

    perodos muito afastados. Para isso, ele afirma que preciso desviar a nfase posta pela

    historiografia contempornea nas culturas para p-la nas eras imaginrias (LIMA, 1988, p.

  • 18

    57). Entende Irlemar Chiampi, no prefcio escrito para a traduo brasileira do livro de

    Lezama, que este cria uma histria fabulosa e intertextual, centrada no Senhor barroco,

    smbolo da interveno americana na arte do colonizador (Idem, p. 30).

    O escritor cubano assegura que: Repetindo a frase de Weisbach, adaptando-a ao que

    americano, podemos dizer que entre ns o barroco foi uma arte da contra-conquista (Idem, p.

    80). O interessante nessa frase, explica Irlemar Chiampi numa nota, que Lezama Lima

    modifica a afirmao de Weisbach, pois este teria asseverado que: a Igreja catlica valeu-se

    das artes plsticas para fins de ensino, persuaso e at propaganda da doutrina, dentro dos

    seus propsitos contra-reformistas, chegando a dizer que o estilo barroco adaptou-se

    maravilhosamente a tais propsitos (Idem, ibidem). E conclui, ainda sobre a posio de

    Weisbach: Ora, neste caso, efeito didtico do barroco espanhol sobre o indgena americano

    teria alcanado plenamente os fins da catequese (Idem, ibidem). At aqui entendemos que

    Lezama tresleu Weisbach para adapt-lo a seus interesses. O curioso que a viso de

    Weisbach ter proximidades com o que Candido descreve, pois este via o perodo barroco

    apenas como sujeio da nova terra ao elemento estrangeiro, no cabendo em sua Formao

    que visa a uma descrio da especificidade buscada pelos escritores brasileiros, busca que

    seguia de perto o processo de emancipao nacional. Joo Adolfo Hansen alargar ainda mais

    a distncia entre a arte dita barroca e o presente, no qual o nacionalismo est h muito

    defasado, e o sculo XVII deve ser estudado dentro de seus limites, que no podem ser

    aproximados do sculo XX ou XXI, levando ainda em considerao o fato de que no se pode

    falar em conscincia anti-colonialista na Amrica portuguesa ou espanhola.

    Lezama Lima no enxerga a questo assim, e Irlemar endossa-o, escrevendo em sua

    nota:

    Com sua tese da contra-conquista (uma rebelio subjacente s formas barrocas, motivada pela condio do colonizado), Lezama no s perfila

    uma poltica para o modo americano de apropriar-se da esttica barroca do

    colonizador como restitui s formas artsticas a sua abertura para veicular

    ideologias dspares. (Idem, ibidem)

    Fica fcil ver porque Haroldo de Campos tinha afinidades com Lezama Lima. Este,

    como os modernistas brasileiros, propagava a importncia da miscigenao racial como fonte

    dessa contestao e inovao artstica, que ocorreu no continente americano. Falando do

    escultor ndio Kondori, diz Lezama:

    [...] o ndio Kondori consegue inserir os smbolos incaicos do Sol e da Lua,

    de abstratas elaboraes, de sereias incaicas, de grandes anjos cujos rostos de

  • 19

    ndios refletem a desolao da explorao mineira. Seus portais de pedra

    competem na proliferao e na qualidade com os melhores do barroco

    europeu. (Idem, p. 103-104)

    Temos a, segundo Lezama Lima, um dos precursores do que se faria largamente nas

    vanguardas latino-americanas. No s o elemento ndio seria fundamental para esse papel

    como tambm o elemento africano. o caso, argumenta Lezama, de Aleijadinho, no qual se

    pode ver a rebelio artstica dos negros, cujo triunfo incontestvel, visto que se ope aos

    modos estilsticos da sua poca, impondo-lhes os seus (Idem, p. 104). Lezama, inclusive,

    lega-nos uma bela imagem de Aleijadinho embuado nas noites de Ouro Preto, montado em

    sua mula, oculto todo o rosto sob um chapu que lhe caa como uma asa sobre os ombros, a

    picotar com a sua goiva as defesas da pedra (Idem, p. 105). Portanto, o senhor barroco

    seria uma sntese inovadora e da contraconquista hispano-incaica e hispano-negride

    (Idem, p. 106).

    Lezama Lima julga haver lugar, na sua histria no centrada na Europa e no

    causalista, para escritores da Amrica do Norte como Whitman e Melville. Nas letras, ele

    acrescenta em seu repertrio o poeta colombiano Hernando Domnguez Camargo, um

    excesso ainda mais excessivo que os de Don Luis (Idem, p. 87). importante termos as

    concepes de Lezama em mente, pois elas corroboram as de Haroldo, que ao longo de sua

    obra crtica as citar, nem sempre de forma extensa, como o faz na sua obra dedicada a

    Gregrio de Matos, que veremos a seguir. O que Haroldo v em Lezama um crtico que

    chegou a abordar a questo da origem e da identidade de modo muito semelhante ao modo

    como o prprio Haroldo o faz. Em Lezama: o barroco da contraconqusita, Haroldo dir:

    De fato, a busca da identidade tende a ganhar um matiz ontolgico, a revestir-se de aspectos

    substancialistas, metafsicos, na nsia de identificao de um esprito, carter, alma ou eidos

    nacional (CAMPOS, 2010, p. 57). Em relao a uma histria que seguisse esse trajeto,

    Haroldo cita, no explicitamente, a obra de Candido. O que interessa explicitar sua afinidade

    com a resposta de Lezama a essa suposta e hegemnica abordagem histrica que vem desde

    os romnticos. Haroldo: Sua historiografia obedece antes analogia da razo potica do

    que ao logos impositor de um centro de verdade e de uma certeza retilnea quanto parusia

    do esprito do Ocidente na histria americana (Idem, p. 59). E completa, preestabelecendo

    um raciocnio que se estenderia mais tarde em 1989, no seu texto focado inteiramente em

    Gregrio de Matos, na questo da origem da literatura brasileira e na incluso do barroco

    nessa mesma origem:

  • 20

    A histria mestio-constelar lezamesca, no subordinada tirania causalista,

    rege-se pela imaginao e pela memria espermtica. uma histria enquanto construo (W. Benjamin), uma fico heurstica urgida pelas necessidades criativas do presente. Seus protagonistas (numa retomada

    curiosa dos heris carlaleanos, porm s avessas, j que privilegia os marginais e os subversores), so transeuntes de uma tropologia fustica,

    instigada pelo Senhor Barroco. (Idem, ibidem)

    Para Haroldo, s seu mestre Oswald de Andrade teria antecipado esta viso lezamesca,

    defendendo o barroco como estilo utpico das descobertas (apud CAMPOS, p. 60). O poeta de

    Signncia: quase cu fica, ento, mais vontade para desenvolver suas idias e reivindicar

    o barroco como comeo de uma literatura americana, de resistncia ao invasor, que mantm

    relaes com o externo, entretanto sem passividade e impondo sua contribuio diferente no

    cenrio mundial. Em Da razo Antropofgica, Haroldo j havia estabelecido as bases do

    que repetiria nos textos seguintes em relao ao barroco, seu paideuma e sua abordagem da

    poesia no presente de criao.

    Outro cubano contribui para dar autoridade aos argumentos de Haroldo, Severo

    Sarduy. Este um seguidor de Lezama Lima e tambm um crtico e escritor que via no

    barroco um propulsor de sua vanguarda. Sarduy em seu livro Escrito sobre um corpo,

    redigido originalmente em 1969, discorre sobre o barroco e o neobarroco, palavra que ele

    toma de Haroldo. Especificamente em seu Por uma tica do Desperdcio, Sarduy se detm

    sobre o barroco, destacando a materialidade dos signos, o artificialismo consciente e ao

    mesmo tempo uma proliferao de palavras e sentidos, que se ligam idia de barroco como

    algo rebuscado, que se expande de modo desordenado, como o delrio lcido, de Haroldo,

    em seu poema Galxias. Assim, tambm para Sarduy alguns textos modernos latino-

    americanos trazem essa marca barroca. Metalinguagem, pardia, aliterao, abundncia so

    algumas das caractersticas que o escritor cubano destaca no barroco ancestral que o liga ao

    presente, pois a extrema artificializao praticada em alguns textos, e sobretudo em alguns

    textos recentes da literatura latino-americana, j bastaria para assinalar neles a instncia do

    barroco (SARDUY, 1979, p. 60). Apoiado em Saussure e Lacan, prope:

    O espao barroco o da superabundncia e do desperdcio. Contrariamente

    linguagem comunicativa, econmica, austera, reduzida a sua funcionalidade

    servir de veculo a uma informao -, a linguagem barroca se compraz no suplemento, na demasia na perda parcial do seu objeto. Ou melhor: na busca,

    por definio frustrada, do objeto parcial. (Idem, p. 77)

    Essa superabundncia leva Severo Sarduy a concluir que h algo de jogo, de ertico

    no barroco: Jogo, perda, desperdcio e prazer: isto , erotismo enquanto atividade que

  • 21

    sempre puramente ldica, que no mais que uma pardia da funo de reproduo, uma

    transgresso do til, do dilogo natural dos corpos (Idem, p. 78). As nicas caractersticas

    que diferenciariam o barroco do passado e o barroco de seu presente de criao, isto , o

    neobarroco, seriam Deus e seu correspondente terrestre, o rei, ambos sustentados pelo

    jesuitismo, que imperara no contexto ibrico do sculo XVII. No entanto, vejamos como seria

    o neobarroco para Sarduy:

    Ao contrrio, o barroco atual, o neobarroco, reflete estruturalmente a

    desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a

    carncia que constitui nosso fundamento epistemolgico. Neobarroco do

    desequilbrio, reflexo estrutural de um desejo que no pode alcanar seu

    objeto, desejo para o qual o logos no organizou nada mais que uma cortina

    que esconde a carncia. (Idem, p. 79)

    Esse neobarroco seria uma arte da dessacralizao e da discusso, seria um barroco

    da revoluo (Idem, ibidem). Com isso, o que vemos de comum entre Sarduy e Haroldo o

    mesmo intento de propagandear uma arte que seja americana, que se concentre na palavra-

    coisa e que, no sendo provinciana, ao mesmo tempo, tenha suas especificidades locais,

    transformadas em diferenas dentro de uma histria oriunda dos pases centrais, um barroco

    que veio com o conquistador, mas foi conquistado pelo elemento novo, transformando-se

    tambm em outro barroco. Assim, a idia criar uma arte que no se acomoda, reverente, mas

    capaz de se pr contra a dominao cultural. Animados pelo boom latino-americano, que ps

    em circulao escritores da estatura de Borges, Guimares Rosa, Cotzar, entre outros, Sarduy

    e Haroldo estavam afinados. Para concluirmos, vejamos a pretenso compartilhada desses

    escritores, em texto sobre Jlio Cortzar (Liminar: para chegar a Jlio Cotzar), Haroldo diz

    que as obras de arte devem pr em xeque o relacionamento supostamente de mo nica entre

    a literatura da Europa e da Amrica Latina (CAMPOS, 2010, p. 126). E completa, unindo

    Rayela, Paradiso e Grande Serto: Veredas:

    Obras como essas arrunam a concepo antidialtica de que os pases

    subdesenvolvidos estejam condenados a produzir literatura subdesenvolvida;

    so obras que pem em questo a prpria possibilidade de transplantar, para

    o campo da imaginao literria, esse conceito de 'subdesenvolvimento',

    extrado mecanicamente do idioleto estatstico dos economistas [...] (Idem,

    ibidem)

    O neobarroco, que Haroldo e Sarduy, por exemplo, veem em Guimares Rosa a

    prova de que uma obra de arte da contra-conquista possvel. O barroco, para os latinos

    americanos, funcionaria como o ancestral dessas obras que combinam um alto grau de

  • 22

    experimentao, conseqncias das vanguardas globais, e, ao mesmo tempo, um novo frisson,

    oriundo de uma perspectiva descentrada, ex-cntrica, no dizer de Haroldo de Campos, que a

    perspectiva de um pas perifrico proporciona.

    No Brasil, depois dos modernistas de 22, um dos grandes responsveis pela

    teorizao em relao ao barroco foi Affonso vila. Em seu livro O ldico e as projees do

    mundo barroco, Affonso analisa o barroco sincronicamente, como fizeram os autores que j

    estudamos, destacando semelhanas com a arte moderna, de seu tempo. Para ele:

    [...] a atrao exercida pelo barroco decorre, sem dvida, das similitudes e

    afinidades que aproximam duas pocas cronologicamente distanciadas entre

    si, dois instantes porm da civilizao ocidental que colocam em crise os

    mesmos valores [...] (VILA, 1980, p. 11).

    Tendo em vista que o homem do sculo XX um homem em crise permanente, a arte

    (haja vista os vrios ismos que se sucederam) deve representar essa crise, esse mundo, cujos

    valores artsticos ou no foram todos postos em questo. Para Affonso vila, o homem

    barroco foi como a origem de nossa arte nacional, assim como desse mesmo estado de

    permanente contestao. Por isso, pondera: O artista barroco foi, pois, histrica e

    existencialmente, um ser em crise, sua arte registrou, como um grande radar, as oscilaes das

    idias e as linhas cruzadas das formas de expresso em mudana (Idem, p. 33). Affonso,

    ento, retira de Schiller o conceito de impulso para o ldico, caracterizando a arte barroca e

    unindo-a a arte moderna. O artista barroco jogaria com as formas livremente como o artista

    moderno, produzindo uma obra de arte aberta; isto , no clssica, que prope dificuldades

    para o pblico, pois no possui um sentido claro, facilmente definvel e que pode ser

    constantemente modificvel. O artista barroco estava imbudo de uma vital vontade esttica

    de jogo; em tal arte, observar-se- uma ascendncia maior do arbtrio do artista na

    manipulao de seu material, [...] mas esse arbtrio no se confundir com a razo ordenadora

    das formas verificada antes na atitude clssica (Idem, p. 51). Por outras palavras, Affonso

    defende uma posio bem prxima do que Haroldo, Sarduy e Lezama tambm defenderam

    antes ou depois. Para eles, o barroco era uma forma que foi apropriada pelas culturas

    americanas, era uma arte que dava liberdade individual ao artista, que produzia obras que

    expressavam sua crise, sua miscigenao; por isso mesmo, essa arte impunha novas atitudes

    para quem a frua, diferentemente da arte clssica que jazia presa em modelos prefixados.

    Wlfflin afirmou, em Conceitos fundamentais da histria da arte, de 1915, que:

    Esquematizando os trs exemplos de estilo individual, estilo nacional e estilo

    de poca, podemos ilustrar os objetivos de uma histria da arte que concebe

  • 23

    o estilo sobretudo como expresso, expresso do esprito de uma poca, de

    uma nao, bem como expresso de um temperamento individual.

    (WLFFLIN, 2000, p. 13)

    Tal afirmativa deixa a porta aberta para que Affonso vila veja o barroco como um

    desejo enunciador de uma essencialidade brasileira (VILA, 1980, p. 92). Assim, por

    conseqncia, o escritor mineiro ver Gregrio de Matos como o fenmeno [...] que j dar

    em pleno Seiscentos uma dimenso americana ao barroco literrio portugus (Idem, p. 85).

    Em Affonso, a miscigenao evocada como constituinte desse barroco abrasileirado,

    lembrando Mrio de Andrade, que via na mulatice de Aleijadinho uma das caractersticas

    do seu gnio; alm disso, embora o escritor baiano fosse branco, ele vivera num contexto

    no qual se somam aos valores ancestrais transplantados tanto os contributos de uma presena

    macia da cultura negra, quanto s ainda poderosas contingncias autctones (Idem, p. 92-

    93). Sendo assim, Gregrio introduziu na poesia da lngua portuguesa uma nova feio de

    sensibilidade e linguagem que podemos denominar a dimenso brasileira (Idem, p. 94).

    Seguindo essa perspectiva, e unindo a ela o conceito saussuriano de sincronia, como Haroldo

    igualmente o far, possvel propor que o barroco foi um estilo que possuiu: muito da

    formatividade da arte moderna (Idem, p. 99). E o autor mineiro acrescenta, sobre o barroco e

    a modernidade:

    [...] sem dvida a acentuada ludicidade das formas verificadas em uma e

    outra etapa da evoluo esttica o que mais as aproxima, quando vistas sob o

    ngulo de uma crtica de sentido sincrnico (Idem, ibidem).

    Affonso vila faz coro comparao que James Amado fez, em 1968, entre Gregrio

    de Matos e Caetano Veloso. Affonso diz que os dois, poetas e baianos, utilizaram a mesma

    linguagem tropical e desmistificadora num mesmo tipo de arte ldica, no mesmo jogo do

    revs que o jogo de toda arte (Idem, p. 100). Aproveitamos esse gancho para abordar outra

    questo que sempre ser retomada por Haroldo: a relao da poesia com outras artes,

    especificamente com msica popular, sobretudo o Tropicalismo, e a capacidade de, por esta

    via, pr na ordem do dia uma nova poesia ou uma nova forma de ver a poesia antiga.

    Os poetas que lanaram o concretismo somavam a um repertrio de escritores

    inventivos como Mallarm, Joyce, cummings, Apollinaire, Pound, o ideograma chins, isto ;

    o aspecto visual da poesia, o no-verbal e a composio em Gestalt. Apesar, devemos

    reconhecer, desse primeiro paideuma ser mais voltado ao cosmopolitismo, os concretos sero

    fundamentais para uma reviso da literatura em mbito nacional, valorizando obras de autores

    at ento pouco estudadas, como Sousndrade, Pedro Kilkerre e Gregrio de Matos.

  • 24

    Passada a fase do Plano-piloto, nos 60, o debate poltico se acirra e a poesia concreta

    questionada quanto a sua participao poltica. Sendo assim, os tericos do concretismo

    inseriram um pos-scriptum, em 1961, ao manifesto, que dizia: Sem forma revolucionria no

    h arte revolucionria. Essa citao de Maiakvski, alm de incluir mais um poeta no

    paideuma, uma resposta exigncia de engajamento, porm sem que se abandonasse a

    pesquisa, as experimentaes, que, para seus crticos, afastavam o pblico e, produzindo uma

    arte alienada, rejeitavam o debate na sociedade. Por outro lado, a partir dessa virada

    participante, poder-se-ia dizer que os concretos assim desfaziam a proposta potica inicial,

    que era baseada na diviso sartreana de poesia e prosa. Para Sartre, como argumenta

    Franchetti, a poesia no pode ser engajada, pois ela se volta sobre si mesma; isto , na poesia

    a palavra uma coisa e deve ser manipulada como tal e no um veculo transmissor de um

    contedo que possa ser identificado na sociedade (FRANCHETTI, 2012, p. 99). No entanto,

    os concretos resolvem esse problema alegando que, nas vanguardas, os limites entre a poesia

    e a prosa tornaram-se ainda menos fixos, o que permite que a poesia vincule, sem deixar de

    ser experimental, uma mensagem para a sociedade; ou seja: a poesia concreta pode ser

    participante. A mensagem, assim, deixa de ser apenas a forma.

    Esta postura concreta tambm servir de resposta ao que se praticou nos CPCs.

    Ferreira Gullar, por exemplo, um dissidente concreto e um dos fundadores do

    neoconcretismo, numa tentativa de doutrinao ideolgica, tentou vincular em cordel

    reivindicaes de cunho social. Como afirma Joo Luiz Lafet:

    [...] a literatura pendeu para a esquerda, abandonando a potica

    industrializante do Concretismo e optando por um recuo formal que desse

    conta de outras faces da vida brasileira. [...] Os programas de vanguarda

    foram criticados como formas alienadas da realidade brasileira, como aliados

    do capitalismo internacional e como adversrios da revoluo; as

    sofisticaes pond-eliot-joycianas foram substitudas pela rusticidade do

    cordel, pelas arengas reivindicatrias e pelo verbalismo derramado da m

    conscincia que se acusa. (LAFET, 2004, p. 118-119)

    Sabemos que esse engajamento, utilizando formas populares deu em m poesia, apesar

    das boas (ou ms) intenes de seus praticantes. Os concretos, exetuando algumas produes

    como Servido de Passagem, de Haroldo, no cederam a essa presso momentnea e

    continuaram a propor uma poesia, que, apesar de ter ligaes com os novos modelos de mdia,

    radicalizava em seus resultados e solicitava um leitor mais ou menos culto interado com o

    movimento das vanguardas. Porm o vis participante passou a ser considerado pelo

    concretismo, o que acarretou, durante a dcada de 1960, algumas produes. Essa postura

  • 25

    mudou pouco ao longo da evoluo das obras individuais dos ex-concretos. Sempre citando a

    frase sem forma revolucionria no h arte revolucionria, de Maiakovski, e tendo-o

    traduzido, Haroldo incorporou a poesia lrico-participante do poeta russo ao seu paideuma.

    Por isso, devemos observar que Haroldo, nesse sentido, no demonstra desinteresse do temas

    polticos, pois, alm do poema que j citamos, o poeta paulista far, vez ou outra, poemas

    militantes ou produes no publicadas em livro, mas com o mesmo intuito de participao

    poltica. Numa entrevista publicada em Galxia Revista Transdisciplinar de Comunicao

    Semitica e Cultura, de 2001, Haroldo diz:

    Como poeta, minha poesia tem um endereo especificamente ditado pelas

    suas necessidades prprias de potica, mas no posso perder minha

    conscincia de cidado, da necessidade de participao em certos processos

    polticos. J escrevi poemas nessa linha como, por exemplo, O Anjo Esquerdo da Histria (protesto contra o massacre dos Sem-terra no Par) e Circum-lquio (non troppo alegro) sobre o neoliberalismo terceiromundista. [...] J fiz agit-prop (poema-propaganda de agitao), na linha maiakovskiana, em apoio a candidaturas, com as quais afinava

    ideologicamente, de polticos do PT. (CAMPOS, 2001, p. 86)

    Esse excurso, que inclusive antecipou a produo de Haroldo em alguns anos, foi

    realizado para que mostrssemos que as preocupaes sociais, comeadas no acirramento do

    debate poltico dos anos 60, no deixariam de interessar a Haroldo de Campos, o que

    desmente um pouco a impresso de que a poesia praticada pelos concretos (e depois ex-

    concretos) era alienada, como sugerido na citao do texto de Lafet. justamente nesse

    perodo de acirramento do debate poltico, entre as dcadas de 60 e 70, que eventos

    sciopolticos e culturais importantes acontecero no Brasil: Ditadura de 64, uma nova

    concepo das grandes cidades como cenrio de um pas moderno e cosmopolita, a

    consolidao do modelo da arquitetura de Lcio Costa e Niemeyer, a popularizao da

    televiso e o Tropicalismo. Como j tentamos demonstrar, o concretismo no ficaria

    insensvel a essas mudanas, sendo o prprio movimento dos concretos um dos produtos

    desse mesmo tempo2.

    Haver uma aproximao entre o concretismo e o tropicalismo, ainda que ambos

    fossem bastante diferentes. No entanto, os tropicalistas fizeram uma renovao na msica e

    em suas letras, associada a uma utilizao provocativa dos meios de comunicao, atingindo

    uma gama maior da populao, coisa que seria aprovada pelos concretistas. Estes no

    conseguiriam que a poesia penetrasse tanto as novas mdias como os tropicalistas. J os

    2 AGUILAR, 2005, p. 357-383.

  • 26

    tropicalistas fariam um uso da linguagem que se assemelharia muito s produes

    concretistas, sem que houvesse um mero epigonismo. Um bom exemplo seria Batmacumba,

    de Caetano e Gilberto Gil, gravada em Tropiclia ou Panis et Circenses (AGUILAR, 2005,

    p.152). Assim, a relao com os concretos se manter sempre ativa: em 1972, Augusto de

    Campos escreve o poema VIVA VAIA dedicado a Caetano Veloso; em 1978, no lbum Cinema

    Transcendental, o cantor baiano grava a traduo de um poema de John Donne, feita por

    Augusto e musicada por Pricles Cavalcanti. O mesmo Caetano, em 1984, no lbum Vel,

    musicaria e gravaria O pulsar, autoria de Augusto de Campos. Como vemos, esse encontro

    ser bastante profcuo. Ainda antes, em 1972, no lbum Transa, Caetano Veloso far uma

    verso de um poema atribudo a Gregrio de Matos. Na cano, que se chamar Triste Bahia,

    Caetano musica dois quartetos de um soneto. O contexto de ditadura daria a essa cano uma

    interpretao renovada e provocativa. Haroldo ir sempre se referir msica de Caetano, e

    especificamente a essa produo, como exemplo de uma criao sincrnica, que reaviva a arte

    feita num perodo posterior, estabelecendo-se assim uma tradio pela renovao, pela

    redefinio dos significados e no apenas pela aceitao pacfica diante de um cnone h

    muito estabelecido e esttico. O prprio Pound tambm via as experincias de msicos

    modernos como contribuio para a reabilitao de poetas afastados, como Arnaut Daniel

    (POUND, 2006, p. 54-55). Sendo assim, para Haroldo, lcito que Caetano musique o poema

    atribudo a Gregrio, abrindo novas possibilidades de dilogo com o poema do sculo XVII.

    parte o que possa haver de exagero nessas aproximaes e comparaes entre Caetano

    tocando seu violo e Gregrio sua viola de cabaa, o fato que pode ser muito eficaz tanto a

    crtica de Haroldo quanto o procedimento do msico tropicalista para aproximar um pblico

    mais amplo da poesia de um tempo j afastado do nosso. Tais experincias podem ainda

    explorar outras possibilidades at ento impensadas para a mesma poesia como no caso do

    soneto em eco Na orao, que desenterra... a terra, de Gregrio de Matos, que ficou

    conhecido com o ttulo de Mortal loucura, quando musicado e cantado pelo msico j

    referido e pelo professor e tambm msico Jos Miguel Wisnik. Esse poema musicado foi

    danado pelo Grupo Corpo, no espetculo Onqot, de 1995, o que talvez Pound aplaudisse,

    pois afirmava: A msica apodrece quando se afasta muito da dana. A poesia se atrofia

    quando se afasta muito da msica (Idem, p. 61). Esses exemplos demonstram, no s o

    sincronismo preconizado pelos concretos, como tambm uma continuidade da relao desses

    com outros artistas, mesmo depois que o concretismo e o tropicalismo deixaram de existir

    enquanto movimentos.

  • 27

    Esse sincronismo ser trabalhado por Haroldo de Campos em dois ensaios de 1967,

    ambos publicados primeiramente no Correio da Manh, Rio de Janeiro. Um ensaio levar o

    nome exatamente de Potica sincrnica e o outro de Apostila: diacronia e sincronia. Esses

    dois textos sero reunidos num livro publicado posteriormente: A arte no Horizonte do

    Provvel e outros ensaios, de 1969/1977. Os referidos ensaios so importantes porque

    prenunciam o que Haroldo retomaria mais detidamente no seu livro de crtica Formao da

    literatura brasileira, de Antonio Candido. Em Potica sincrnica, Haroldo diz:

    H duas maneiras de abordar o fenmeno literrio. O critrio histrico, que

    se poderia chamar diacrnico, e o critrio esttico-criativo, que se poderia

    denominar sincrnico, a partir de uma livre manipulao da famosa

    dicotomia saussuriana, retomada mais recentemente pela crtica

    estruturalista. (CAMPOS, 1977, p. 205)

    A partir dessa citao e, segundo o percurso da crtica de Haroldo de Campos que

    estamos acompanhando, podemos entender que o mtodo de revisar a histria

    sincronicamente significa dialogar com o presente, com a arte que se faz e buscar no passado

    semelhanas que tornem plausvel a reunio de autores de tempos diferentes. O que os uniria

    seriam supostamente os critrios de inventividade e de capacidade de ruptura com a recepo

    original. Essa atitude de Haroldo dessemelhante do historiador tradicional ou diacrnico.

    Segundo Haroldo:

    A sede do historiador literrio diacrnico , portanto, quanto possvel,

    esteticamente neutra: interessa-lhe a congrie dos fatos, seus

    desdobramentos, sua sucesso no eixo do tempo. No processo fatual que a

    evoluo literria assim vista, um evento sociolgico ou de significao

    meramente documentria pode assumir maior importncia que uma

    ocorrncia caracterizadamente esttica. (Idem, p. 205-206)

    Como se deduz desse trecho, o que Haroldo privilegia o aspecto tcnico, artstico das

    obras, no, por exemplo, o fato de elas poderem ser sintomas de algo exterior, como um

    crtico munido de um arcabouo sociolgico um tanto tosco pensaria. A literatura no se

    subordinaria lgica dos acontecimentos polticos, pois, ela tem sua prpria dinmica e pode

    (tipo preferido por Haroldo) reinventar seus procedimentos. O historiador diacrnico no seria

    capaz de observar o surgimento desses instantes de ruptura e no teria sensibilidade para

    aproximar as exigncias estticas contemporneas s obras do passado, o que as mostraria sob

    uma nova luz. Esses historiadores trabalham com um conceito de tradio esttico e se

    mostram desconfiados em relao s tentativas de everso da ordem constituda, frente das

  • 28

    quais se pem, geralmente, no crticos, mas criadores (Idem, ibidem). E conclui Haroldo,

    dando como exemplo um patriarca dos estudos sociolgicos na literatura brasileira:

    Da por que, com tanta assiduidade, as Histrias da Literatura e as

    Antologias sejam tributrias de esteretipos encanecidos, seus planetrios de

    papel impresso se rejam por estrelas fixas, e os veredictos literrios, uma vez

    emitidos pelo primeiro historiador de tomo (o caso de Slvio Romero entre

    ns), passem to mansamente em julgado. (Idem, p. 206-207)

    Assim, Haroldo vai buscar em Roman Jakobson, outro crtico importante para suas

    argumentaes, mais munio para seu ataque velha diacronia. Diz Jakobson, em

    Lingstica e potica: A descrio sincrnica considera no apenas a produo literria de

    um perodo dado, mas tambm aquela parte da tradio literria que, para o perodo em

    questo, permaneceu viva ou foi revivida (JAKOBSON, 2010, P. 154). Logo em seguida,

    Jakobson, para exemplificar, constata que aos poetas ingleses daquele momento (momento no

    qual Jakobson escrevia) Keats, Emily Dickinson, Donne e Marvell eram influncias presentes,

    j escritores como James Thomson e Longfellow no apresentavam tanto interesse.

    Haroldo, ento, encontrar em Pound e no livro deste, ABC of Reading, de 1934, o

    modelo precursor de uma histria sincrnica que privilegiava a contracorrente inventiva.

    Sendo assim, resume sua proposta Haroldo de Campos:

    O primeiro passo para a reviso em profundidade de nosso passado potico,

    a partir de uma perspectiva sincrnica, seria, a meu ver, uma Antologia da

    Poesia Brasileira de Inveno, onde os autores selecionados, da fase

    colonial ao Modernismo, o fossem por uma contribuio definida para a

    renovao de formas em nossa poesia, para a ampliao e a diversificao de

    nosso repertrio de informao esttica. No importa que alguns poetas

    viessem a ser representados por fragmentos ou mesmo simples pedras-de-

    toque, que outros, dos mais assduos freqentadores de crestomatias, fossem

    sem maiores cerimnias postos margem, e que, finalmente, a tbua

    habitual de poetas maiores e menores recebesse o tratamento que se d s inutilidades. Justamente isto que seria desobstrutivo e saneador. (Idem,

    p. 208-209)

    Nessa longa citao, temos a tese de Haroldo condensada e os critrios que utilizar

    para montar seu paideuma. Em seguida, o crtico faz sugestes de autores e obras que

    deveriam ser revisadas, exemplo: as Cartas Chilenas, Sousa Caldas, Odorico Mendes,

    Bernardo Guimares, Pedro Kilkerre (este, j naquela altura, estava sendo estudado por

    Augusto de Campos). Encabeando esse paideuma, estaria obviamente Gregrio de Matos, o

    qual soube levar a mistura de elementos do Barroco prpria textura de sua linguagem,

  • 29

    atravs da miscigenao idiomtica de caldeamento tropical [...] O mesmo hibridismo que se

    encontra em nosso barroco plstico (Idem, p. 209). Alm disso, Gregrio teria outros

    mritos, embora sua poesia no fosse autgrafa nem houvesse ainda uma edio cuidada das

    mesmas, o de ter sido um tradutor e um rearranjador do material literrio de seu tempo.

    Segundo Haroldo, ao invs de se falar de plgio na obra atribuda a Gregrio, dever-se-ia

    entender certas produes como tradues criativas. Para Haroldo, ainda, Gregrio teria

    traduzido e recombinado poemas de Gngora, manejando assim com habilidade a tcnica

    permutatria do barroco (Idem, ibidem). Essa maneira de ver Gregrio de Matos ou a obra a

    ele atribuda ser retomada no Seqestro, em 1989.

    Em Aposila: Diacronia e Sincronia, Haroldo retoma o tema que at ento temos

    estudado, mas o retifica num ponto. Depois de afirmar que utiliza livremente os conceitos de

    diacronia e sincronia, Haroldo diz que num estudo sincrnico da poesia, por exemplo,

    impossvel no haver tambm diacronia. Assevera Haroldo:

    Como o domnio da poesia, diferentemente do da linguagem comum, est

    praticamente imerso no diacrnico, na tradio (Stankiewicz), a postura

    histrico-evolutiva inclui sempre, necessariamente, um quadro sincrnico

    assumido como tbua de valor. (Idem, p. 222)

    E completa: Todavia, e aqui est a diferena que metodologicamente me interessa, o

    quadro sincrnico tambm historicizado, por assim dizer, embebido em diacronia, embutido

    na tradio (Idem, ibidem). Haroldo no abandona sua potica sincrnica, mas reconhece

    que nesta sempre se infiltra a diacronia, porm esta deve ser criticada. Como exemplo,

    Haroldo toma a perspectiva de Lukcs que, quando julgava autores contemporneos como

    Thomas Mann, Joyce e Kafka, o fazia sob critrios tradicionais; isto , uma vez que Mann se

    aproximava mais do romance de Balzac angariava uma boa posio em seu julgamento, j

    Kafka e Joyce que rompiam com o romance do tipo fechado no mereciam tanta

    considerao. No caso brasileiro, Haroldo cita o crtico Wilson Martins que menosprezava

    romances como Macunama, de Mrio de Andrade, e Serafim Ponte Grande, de Oswald, mas

    louvava os romances de rico Verssimo, que, segundo Haroldo, eram convencionais, feitos

    moda romanesca j amplamente fixada no sculo XIX. Arremata Haroldo:

    A potica sincrnica (esttico-criativa), no sentido em que a conceituo para

    propsitos bem definidos, est imperativamente vinculada s necessidades

    criativas do presente: ela no se guia por uma descrio sincrnica

    estabelecida no passado, mas quer substitu-la para efeitos, inclusive, de reviso do panorama diacrnico rotineiro por uma nova tbua sincrnica que retira sua funo da literatura viva do presente. (Idem, p. 222-223)

  • 30

    Assim, podemos iniciar uma concluso, dizendo: o que Haroldo de Campos busca em

    Oswald de Andrade, Lezama Lima, Severo Sarduy, Affonso vila, apesar das diferenas que

    separam esses autores, uma valorizao do barroco como estilo prprio da Amrica, como

    primeira arte adaptada e capaz de responder originalmente dominao poltica e cultural. O

    barroco para esses escritores seria o ancestral de suas experincias artsticas; isto , eles

    sempre veriam o barroco tendo em vista as caractersticas da arte que praticavam no presente.

    Essas produes, segundo Haroldo, poderiam mesmo ser chamadas de neobarrocas e,

    obviamente, so elas que carregariam uma essncia americana e ao mesmo tempo uma forma

    experimental, j autorizada pelas vanguardas europias, capaz de rivalizar com a arte do

    centro dominante. J em autores como Ezra Pound ou Roman Jakobson, Haroldo sacaria, do

    primeiro, alm do conceito de paideuma, o privilgio dado aos autores inventivos e a

    capacidade de vivificar o passado, buscando nesse os instantes de ruptura em relao arte

    dominante; de Jakobson, Haroldo aproveitaria o conceito de sincronia, esse por sua vez

    originrio de Saussure, e que modifica os estudos da histria literria, pois a v sempre como

    uma diacronia constantemente questionada pela sincronia; alm disso, Haroldo utiliza o

    conceito de funo potica, que ser muito importante para suas formulaes. Do

    Tropicalismo e de Caetano, Haroldo v concretizada a atualizao no presente de criao da

    poesia de Gregrio de Matos, dando novo significado a contestao do satrico seiscentista

    num contexto de Ditadura e, ao mesmo tempo, inserindo a poesia num cenrio pop.

    Curioso notar que autores to diferentes como Lezama Lima, Sarduy, Affonso vila,

    Haroldo de Campos, Candido (depois de reformular e rever sua opinio em relao ao barroco

    e apresentar sua tese da comicidade malandra), e at mesmo Afrnio Coutinho3, viam o

    barroco como um estilo congenial da Amrica Latina e, obviamente, do Brasil. Esse

    essencialismo, como o prprio Haroldo o admitiu, ser visto, de modo apologtico como um

    direito dos americanos de mais inventar que encontrar suas razes, de modo demolidor por

    Hansen, o que explica o amplo impacto de sua obra.

    A descrio da relao de Haroldo com todos esses autores e o entendimento do que

    deles utilizou so importantes para que possamos compreender como o autor de Galxias

    via o barroco, a obra de Gregrio de Matos e a relao deste com a produo potica

    contempornea.

    3 Da que a civilizao a civilizao desenvolvida no Brasil colnia uma civilizao barroca, e que o Barroco

    ficou sempre congenial ao esprito brasileiro. (COUTINHO, 1986, p. 33-34).

  • 31

    Agora, vejamos a crtica de Haroldo ao sequestro do barroco realizado pelo livro de

    Antonio Candido e os desdobramentos dessa crtica.

    Em 1959, Antonio Candido publica sua importante obra Formao da literatura

    brasileira: momentos decisivos (1750 1836) e classifica a poesia de Gregrio de Matos

    como uma das manifestaes literrias isoladas que no influram no devir literrio

    brasileiro, tendo em vista o sistema tridico autor-obra-pblico. Candido parte da perspectiva

    dos crticos romnticos e ressalta as contribuies do romantismo e do arcadismo, afirmando

    que h uma continuidade temtica, e no estilstica, entre esses dois movimentos literrios.

    Alm disso, sua anlise busca destacar das obras o comprometimento, mais ou menos

    consciente, dos autores com a construo da nao. Candido tambm observou, nas obras, a

    unio entre o aspecto pitoresco e particularista contribuies do romantismo --, e o aspecto

    universalista com tendncias ao realismo contribuies do arcadismo. Portanto, o que no

    cabe nesse sistema, deve conseqentemente ser excludo. Logo, a obra de Gregrio de Matos

    e o barroco o foram. Como a obra de Candido se tornou um paradigma nos estudos literrios

    brasileiros necessrio inclu-la aqui. Nosso trabalho abordar a crtica a esse modelo

    historiogrfico de Candido feita por Haroldo de Campos em seu livro O sequestro do barroco

    na Formao da literatura brasileira: o caso Gregrio de Matos, de 1989. importante

    entendermos os pontos principais dessa crtica, pois ela explicita a posio de Haroldo quanto

    ao barroco e os motivos da insero da obra de Gregrio de Matos no seu paideuma, alm,

    claro, de ser uma fundamental reviso da perspectiva defendida pelo autor de Brigada ligeira.

    Nosso trabalho no , no entanto, uma anlise das polmicas em torno de Gregrio de

    Matos, mas uma anlise concentrada nos trabalhos de Haroldo de Campos e de Joo Adolfo

    Hansen e, contiguamente, na polmica entre eles, o que veremos posteriormente. Nossa tarefa

    discutir as bases tericas dos dois autores e ressaltar aquilo que as fundamenta.

    Haroldo de Campos desde os anos 50 exerceu concomitantemente as atividades de

    poeta e crtico. Dessa atividade dupla, principalmente em textos produzidos para jornais e

    conferncias, que resultar O sequestro do barroco na Formao da literatura brasileira: o

    caso Gregrio de Matos, sua obra mais extensa sobre o poeta do Recncavo. Deter-nos-emos,

    por isso, nesta obra por entendermos que ela resume suas posies quanto ao barroco e

    Gregrio de Matos.

    A obra O sequestro do barroco na Formao da literatura brasileira: O caso

    Gregrio de Matos resultado de um curso que Haroldo de Campos ministrou na

    Universidade de Yale em 1978, depois o autor fez modificaes no texto ao longo dos anos

  • 32

    80. A redao e reviso finais foram feitas entre 86 e 88, tendo o autor acrescentado um Post

    Scriptum em 1987.

    Inicialmente, Haroldo afirma que a excluso de Gregrio de Matos do cnone literrio

    brasileiro feita por Antonio Candido coloca a questo da origem no centro do debate e

    prope desvend-la a partir das formulaes de Jacques Derrida (CAMPOS, 2011, p. 19).

    Para assinalar como a perspectiva de Candido poderia se tornar hegemnica, Haroldo de

    Campos cita um texto de Wilson Martins, publicado em 21 de maro de 1970, no Suplemento

    Literrio do Estado de So Paulo. Nesse texto, Martins, simplificando, leva s ltimas

    conseqncias a abordagem de Candido e sustenta que Gregrio de Matos no teria existido

    em termos de histria literria e que sua incluso na cronologia literria uma

    involuntria mistificao histrica (Idem, p. 20). Contra o risco dessa perspectiva se

    consolidar sem questionamento que Haroldo de Campos se insurge e prope,

    contrariamente, Gregrio de Matos como origem, como fonte da mesma literatura. A

    crescente valorizao do barroco e a reabilitao da poesia de autores como Gngora e John

    Donne, por exemplo, promovida respectivamente por Lorca e T. S. Eliot, somadas proposta

    dos estudos de potica sincrnica promovidos por estruturalista como Roman Jakobson, faz

    Haroldo enxergar a excluso de Gregrio de Matos como um paradoxo. Afinal, para o autor

    de Galxias, justamente a existncia de Gregrio de Matos que promove o sentimento de

    uma tradio viva, da qual seu presente herdeiro (Idem, p. 21). Sendo assim, o que

    Haroldo de Campos pretende principalmente criticar a noo de histria que subjaz

    Formao da Literatura Brasileira, reabilitar autores para seu paideuma e propor uma nova

    abordagem, na qual o valor de uma obra antiga constantemente afetado pelo valor da nova

    (POUND, 2006, p. 72). Paideuma um conceito tambm colhido em Ezra Pound e que ser

    muito importante para os concretos. Segundo Pound: Paideuma: a ordenao do

    conhecimento de modo que o prximo homem (ou gerao) possa achar, o mais rapidamente

    possvel, a parte viva dele e gastar um mnimo de tempo com itens obsoletos (Idem, p. 161).

    Esse conceito faz parte do esforo pedaggico de Pound, que tambm animar Haroldo, a fim

    de facilitar o contato mais rpido e direto com a produo potica que, segundo os padres

    modernistas, vale a pena conhecer. Os autores, para Pound, dividem-se entre inventores,

    mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lanadores de

    modas (Idem, p. 42-43). Os inventores tm precedncia no paideuma, embora a tipologia

    poundiana no seja uma rgida hierarquia; assim como importam as obras, ou at mesmo

    excertos de obras, escritas sob o signo da inveno, da contracorrente. Isto deve ser

    sublinhado, pois essa atitude poundiana nortear a crtica de Haroldo de Campos.

  • 33

    Para realizar sua crtica, Haroldo de Campos combater em duas frentes. Haroldo

    rejeitar o modelo histrico de Antonio Candido e o sistema tridico autor-obra-pblico. Esse

    condiciona a entrada da obra no cnone literrio, distinguindo-a, assim, das manifestaes

    literrias isoladas. Gregrio de Matos pertenceria, segundo Candido, ao perodo formativo

    inicial, figurando apenas na tradio local da Bahia (CANDIDO, 2009, p. 26). Colocando-

    se no ngulo dos primeiros romnticos, Candido busca estudar as obras que tenham

    contribudo para formar o nosso sistema literrio. Autores e obras que fizessem parte de

    uma continuidade ininterrupta e estivessem, mais ou menos, conscientes de integrarem um

    processo de formao literrio (Idem, Ibidem). Esses autores deveriam estar imbudos do

    desejo, vago ou no, de escrever para a sua terra, mesmo quando no a descreviam (Idem,

    p. 27).

    No captulo Perspectiva histrica e ideologia substancialista, Haroldo de Campos

    critica a viso substancialista da evoluo literria, que responde a um ideal metafsico de

    entificao do nacional contida no trabalho de Antonio Candido (CAMPOS, 2011, p. 23).

    Essa perspectiva diz respeito manifestao do Logos , do esprito ocidental transplantado

    para uma nova realidade, a americana. Segundo Haroldo, a formao desse esprito segue

    duas sries metafricas, a animista e a organicista, isto , a leitura atenta das obras animar o

    logos nacional depositado nas obras, o que possibilitar ao historiador literrio acompanhar

    esse esprito em seu desenvolvimento orgnico at que ele se mostre plenamente. Esta

    evoluo, por sua vez, corresponde construo do estado nacional brasileiro. Como para

    Candido, a literatura brasileira galho secundrio da portuguesa, por sua vez arbusto de

    segunda ordem no jardim das musas (CANDIDO, 2009, p. 11), acompanhar esse

    desenvolvimento exige uma leitura amorosa para que o Logos se manifeste, alm de ser

    necessrio a conscincia de que essa literatura no pode ser comparada a de outras naes

    europias. Isto significa que, ainda que do ngulo dos primeiros romnticos, a leitura de

    Candido no ufanista. Devido a esta perspectiva antiufanista e disfrica, descrever o

    crescimento desse esprito, desse galho, desde sua origem simples at seu tlos acabado, numa

    terra nova, no ser um espetculo paradisaco (CAMPOS, 2011, p. 25).

    Segundo Haroldo, no captulo A encarnao literria do esprito nacional, Candido

    adotar um modelo historiogrfico que estabelece uma origem simples desse esprito nacional

    para depois descrev-lo ao longo de sua formao at o fim em que ele se mostre completo.

    Esse modelo foi criticado por Derrida e Hans Robert Jauss. Afirma Haroldo: O conceito

    metafsico de histria, segundo Derrida, envolve a idia de linearidade e a de continuidade:

    um esquema linear de desenrolamento da presena, obediente ao modelo pico (Idem, p.

  • 34

    26). Cabe estabelecer quando comea a conscincia dos escritores de pertencerem ao mesmo

    processo de formao nacional. Candido adota como origem da sua histria as Academias dos

    Seletos e dos Renascidos e a obra de Cludio Manuel da Costa, datando essa mesma origem

    em 1750. Candido diz ter se colocado no ngulo dos primeiros romnticos, e esse aspecto da

    sua viso que Haroldo busca destacar para fazer sua crtica. Sendo assim, o que Candido

    analisa nas obras que estudou o quanto elas possuem de expresso da realidade local e, ao

    mesmo tempo, elemento positivo na construo nacional (CANDIDO, 2009, p. 27). A

    escolha de tratar desta literatura empenhada em descrever o elemento nacional, segundo

    Haroldo, levar Candido, muita vezes, a optar por analisar obras que pecam por certo

    descuido esttico (CAMPOS, 2011, p. 27). Isto acontece porque, para Haroldo, o sistema

    adotado por Candido privilegia a coerncia e a continuidade, excluindo obras que pudessem

    perturbar seu modelo histrico, o qual exige que as obras revelem as especificidades desse

    suposto esprito nacional, ainda que esteticamente sejam pobres e fracas.

    Nesse ponto, preciso dizer que Candido sempre se mostrou consciente dos perigos

    do nacionalismo crtico, como ele mesmo deixou claro numa entrevista concedida

    recentemente. Na referida entrevista, o autor da Formao lembra, inclusive, que a famosa

    Introduo j trazia um alerta nesse sentido:

    Mas o nacionalismo crtico, herdado dos romnticos, pressupunha tambm,

    como ficou dito, que o valor da obra dependia do seu carter representativo.

    Dum ponto de vista histrico, evidente que o contedo brasileiro foi algo

    positivo, mesmo como fator de eficcia esttica, dando pontos de apoio

    imaginao e msculos forma. Deve-se, pois, consider-lo subsdio de

    avaliao, nos momentos estudados, lembrando que, aps ter sido recurso

    ideolgico, numa fase de construo e autodefinio, atualmente invivel

    como critrio, constituindo neste sentido um calamitoso erro de viso.

    (CANDIDO, 2009, p. 30)

    Candido, na referida Introduo, continua argumentando que seu trabalho no

    tomar unicamente o ponto de vista empenhado. Sendo assim, devemos observar que a

    questo do nacionalismo em Candido mais complexa, alm de ser matizada pelo agudo

    senso esttico, que o prprio Haroldo reconhece, o que faz da Formao uma obra

    densamente crtica e no meramente uma obra nacionalista.

    Para Haroldo, no captulo Literatura como sistema, Candido exps um modelo

    estrutural da literatura, que limita as fases e explicita os momentos decisivos na formao

    do sistema, distinguindo o que literatura propriamente dita das manifestaes literrias.

    A literatura propriamente dita deve estar integrada no processo coerente e contnuo de

    caractersticas que so transmitidas constituindo uma tradio que forma o sistema, j as

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    manifestaes literrias so o que se produziu de forma isolada sem que existisse a interao

    autor-obra-pblico, qual j nos referimos. Assevera Candido, referindo-se aos elementos

    que permitem que a obra entre em seu sistema:

    Estes denominadores so, alm das caractersticas internas, (lngua, tema,

    imagens), certos elementos da natureza social e psquica, embora

    literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da

    literatura aspecto orgnico da civilizao. Entre eles se distinguem: a

    existncia de um conjunto de produtores literrios, mais ou menos

    conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes

    tipos de pblico, sem os quais a obra no vive; um mecanismo transmissor,

    (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros.

    (CANDIDO, 2009, p. 25)

    Haroldo de Campos ento julga correto contrapor esse modelo estrutural de Candido o

    modelo semiolgico que ele retira do texto Lingstica e potica, de Roman Jakobson. Esse

    terico ser muito importante nas formulaes de Haroldo, dando-lhe vrios elementos que

    sero incorporados em sua crtica, como a adoo, por exemplo, dos conceitos de sincronia e

    diacronia. Para Jakobson:

    Os estudos literrios, com a potica como sua parte focal, consistem, como a

    lingstica, de dois grupos de problemas: sincronia e diacronia. A descrio

    sincrnica considera no apenas a produo literria de um perodo dado,

    mas tambm aquela parte da tradio que, para o perodo em questo,

    permaneceu viva ou foi revivida. (JAKOBSON, 2010, p. 154)

    Na seqncia de seu texto, Jakobson citar, para exemplificar esse carter dinmico da

    histria da literatura, justamente a presena de um poeta proscrito da fase dita barroca

    Donne - unida j costumeira presena de Shakespeare. No resta dvida de que as opinies

    de Haroldo so tributrias das do terico russo, e tal relao estabelecida pelo esforo do

    brasileiro em reavivar a poesia de Gregrio de Matos. Alm disso, Jakobson aponta par