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8/9/2019 canguilh e foucault
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Instituio escolar e normalizao em Foucault e Canguilhem
Vera Portocarrero
RESUMO Instituio escolar e normalizao em Foucault e Canguilhem. Este artigo apresenta um estudo sobre a
noo de normalizao e sua funo de objetivao do sujeito na modernidade atravs de elementos da genealogia de
Michel Foucault e de seu enraizamento na epistemologia de Georges Canguilhem. A hiptese que guia este estudo a de
que normalizao um conceito operatrio que permite circunscrever acontecimentos singulares referentes instituio
escolar bem como relaes de poder especficas , tornando visveis certas circunstncias atuais e ajudando a pensar o
que estamos fazendo hoje em nossa sociedade. O objetivo deste artigo fornecer subsdios para uma reflexo sobre a
questo do sujeito e sua relao com o par normal/anormal na instituio escolar.
Palavras-chave: objetivao do sujeito; normal/anormal; genealogia; epistemologia.
ABSTRACT School institution and normalization in Foucault and Canguilhem. This article presents a study
about the concept of normalization and its function of objectfying the subject in modernity through Michel Foucaults
genealogy and its roots in Georges Canguilhems epistemological thought. The hipothesis which guides this study is that
normalization is an operative concept which allows to circunscribe particular events related to school institution and
specific power relationships as well, making certain up to date circumstances visible and helping to think in terms of
what we are doing today. The aim of this article is to provide subsidies to a reflexion about the question of subject and
its relationship to the pair normal/abnormal in school institution.
Keywords: objectification of subjetct; normal/abnormal; genenalogy; epistemology.
Introduo
A delimitao dos objetos tratados por Michel Foucault como a loucura, a doena, a criminalidade, as
instituies mdicas, judiciais e pedaggicas, o poder disciplinar e normalizador pode ser compreendida, em
seu conjunto, como uma insurreio contra os poderes da normalizao. O pensamento de Foucault permite
tomar as noes de norma e de normalizao como conceitos operatrios para pensar e ver de outras maneiras,
para pensar historicamente e circunscrever acontecimentos singulares referentes instituio escolar e
relaes de poder especficas ao mesmo tempo que ajuda a tornar visveis certas circunstncias atuais e a
pensar, tambm, o que estamos fazendo hoje em nossa sociedade1.
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Ao pesquisar, em sua genealogia desenvolvida nos anos 70, as condies externas de possibilidade da
existncia e da formao do saber das cincias do homem na modernidade como a educao, a psicologia, a
psiquiatria, a psicanlise, a sociologia , Foucault indaga as formas de poder que tm por alvo o sujeito,
considerando esse saber como um dispositivo de natureza essencialmente estratgica. Essa pesquisa histrica
objetiva mostrar de que maneira as prticas sociais podem constituir domnios de saber, que fazem aparecer
formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento; a proposta especificar como pode se
formar, no sculo XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivduo normal ou anormal, dentro
ou fora da regra, a partir de prticas sociais do controle, da vigilncia e do exame, que se relacionam com a
formao e estabilizao da sociedade capitalista2.
Em Vigiar e punir(Foucault, 2003)e emHistria da sexualidade: a vontade de saber(Foucault, 2001), so
apontadas relaes entre estas cincias e as relaes de poder, para explicar o surgimento de uma nova forma
de dominao constituda com o capitalismo, cujo exerccio no se reduz violncia nem represso, mas
produtivo, transformador, educativo e se exerce em toda sociedade atravs de uma rede de micropoderes.
esta forma de dominao que Foucault torna visvel, apontando seus perigos.Foucault estuda a constituio, a partir do sculo XVIII, de saberes e prticas que ordenam as multiplicidades
humanas e objetivam o sujeito, individualizando-o e homogeneizando as diferenas atravs da disciplina e da
normalizao prticas de diviso do sujeito em seu interior e em relao aos outros. Trata-se de saberes e
prticas que atingem a realidade mais concreta do indivduo, seu corpo, e que, devido sua estratgia de
expanso por toda a populao, funcionam como procedimentos abrangentes de incluso e excluso social,
que constituem um processo de dominao com base no binmio normal e anormal. Esse processo o objetiva.
Exemplos: o louco e o so, o doente e o sadio, os criminosos e os bons meninos (Foucault, 1995, p. 231).A questo dos saberes e dos poderes que objetivam o sujeito foi levantada e criticada por Foucault do ponto de
vista da teoria do sujeito3, bem como da teoria do poder. O que importa a Foucault, na poca em que
desenvolve essa crtica, tentar ver como se constitui um sujeito no dado definitivamente, a partir do qual a
verdade se daria na histria, mas que se constitui no interior mesmo da histria, como efeito de um conjunto de
estratgias que fazem parte das prticas sociais.
Ele explica: nas sociedades capitalistas, o poder negativo e repressivo, porm possui uma eficcia produtiva;
possui a positividade4 da gesto da vida dos indivduos e das populaes, para a qual produz uma srie de
estratgias, tcnicas e saberes especficos. Sua positividade consiste, do ponto de vista do conhecimento, na
produo de saberes que geram poderes, e de estratgias de poder que geram saberes para assegurar seu
exerccio; do ponto de vista da ao, consiste na produo de indivduos e populaes politicamente dceis,
economicamente teis, saudveis e normais, atravs de uma srie de mecanismos como os da disciplina e da
normalizao.
O projeto genealgico desembaraa-se de uma interpretao jurdica e negativa do poder caso em que poder
significa lei, interdio, soberania e negao de liberdade , para trabalhar com outra chave de interpretao
histrica do poder, em que este significa norma, produo e afirmao das resistncias como foras imanentese no exclusivamente represso e no saber ou ideologia5. A genealogia foucaultiana evidencia o carter
peculiar s formas de exerccio do poder em nossa sociedade: nas sociedades contemporneas ocidentais, o
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poder assume formas regionais e concretas extremamente eficientes, com o objetivo de fazer do indivduo e da
populao entidades normais e saudveis.
A estratgia dessa forma de poder que se exerce em nossa sociedade a partir do sculo XVIII a constituio
de uma sociedade sadia e de uma economia social , liga-se ao projeto de preveno e de transformao do
anormal em indivduo normal, atravs de saberes, como o da pedagogia, criados para este fim 6.
Foucault estuda esse projeto social como tendo se desenvolvido a partir do sculo XVII em duas formas
principais, dois plos interligados. O primeiro plo por ele denominado de antomo-poltica do corpo
formou-se tendo por alvo o corpo compreendido como mquina, como algo a ser adestrado, a ter suas aptides
ampliadas, suas foras extorquidas, sua utilidade e docilidade aumentadas, a ser integrado em sistemas de
controle eficazes e econmicos tudo isso assegurado por procedimentos do poder que caracterizam a
disciplina. O segundo plo, formado na segunda metade do sculo XVIII, centrou-se no corpo compreendido
como espcie biolgica, corpo vivo perpassado por processos biolgicos: a proliferao, os nascimentos e a
mortalidade, o nvel de sade, a durao da vida, a longevidade, processos a serem assumidos atravs de
intervenes e controles reguladores de uma biopoltica das populaes (Foucault, 2001, p. 131).O problema que essa concepo de poder levanta que, se o poder tem mesmo uma capacidade de controle e
uma eficcia produtiva to penetrantes e abrangentes quanto Foucault demonstra em suas anlises da
disciplina e da normalizao, torna-se muito difcil localizar regies de resistncia e de inovao que
possibilitem a constituio de sujeitos autnomos, comprometendo sobremaneira os projetos institucionais de
uma incluso social ampliada e eficaz do normal bem como do anormal atravs de novas prticas
escolares. As prticas de incluso institucional precisaro, atravs da resistncia, das lutas pontuais e da
criao, situar-se s margens das formas polticas instauradas para no terminarem por reproduzir e reforar,sob a iluso da mudana, os procedimentos de normalizao e objetivao do sujeito que barram a
subjetivao e os quais Foucault e Canguilhem tornam visveis.
1. Disciplina, normalizao, instituio pedaggica e fabricao de individualidade
Em Vigiar e punir(Foucault, 2003), Foucault faz ver que diversos procedimentos disciplinares j existiam h
muito tempo nos conventos, nas foras armadas, nas oficinas. Mas, a partir do sculo XVII, as disciplinas
foram se tornando frmulas gerais de dominao. Foucault especifica historicamente o exerccio do poder
capitalista atravs da anlise da disciplina em diversas instituies, como a priso e a escola.
A disciplina organiza o espao atravs de uma repartio dos indivduos; controla a atividade atravs do
controle do tempo; especifica o indivduo generalizando-o atravs de uma vigilncia hierrquica; organiza as
diferenas atravs de uma sano normalizadora e reproduz e produz saber atravs do exame.
A idia de espao educativo corresponde instaurao de internatos , quando se considerava que para educar
era preciso isolar a criana num espao ele mesmo transformador. Mesmo abandonando-se, mais tarde, oprincpio de que era necessrio o isolamento num espao educativo para transformar as crianas, mantm-se,
na escola, essa noo de espao transformador, devido a suas divises internas e ordem por ele criada,
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atravs de seu carter celular e serial.
As disciplinas, organizando as celas, os lugares e as fileiras criam espaos complexos: ao mesmo
tempo arquiteturais, funcionais e hierrquicos. So espaos que realizam a fixao e permitem a circulao;
recortam segmentos individuais e estabelecem ligaes operatrias; marcam lugares e indicam valores;
garantem a obedincia dos indivduos, mas tambm uma melhor economia do tempo e dos gestos. So espaos
mistos: reais pois que regem a disposio de edifcios, de salas, de mveis, mas ideais, pois projetam-se sobre
essa organizao caracterizaes, estimativas, hierarquias (Foucault, 2003, p. 126).
Os conventos forneceram o modelo da clula que esquadrinha o espao, tornando-o analtico, permitindo
correlacionar o indivduo e o lugar a ser ocupado por ele. A srie reparte os indivduos na ordem escolar,
criando uma hierarquia entre as classes nas salas de aula, no recreio, nas tarefas, nas disciplinas, nas idades.
A organizao de um espao celular e serial, afirma Foucault, funcionou como condio de possibilidade do
controle simultneo de um grande nmero de alunos, atravs da classificao de cada um, que individualiza oconjunto heterogneo de alunos. Na modernidade, o espao celular e serial resolveu, na prtica, o problema da
falta de controle do conjunto dos alunos que ficavam s soltas, enquanto uma lio individual estava sendo
ministrada. A srie permite a repartio dos indivduos na ordem escolar, hierarquizando-os em classes em que
o trabalho simultneo realizado por todos que a ela pertencem, ordenando e especificando as multiplicidades.
A disciplina opera um controle da prpria atividade o capitalismo foi o primeiro sistema poltico e
econmico a ter como alvo no somente o produto, mas a prpria atividade de produo , atravs do controle
do tempo, da preciso da decomposio dos gestos e dos movimentos, ajustando o corpo a imperativostemporais. Trata-se de construir um tempo integralmente til, para produzir uma atividade desejada,
garantindo a qualidade do tempo empregado: controle ininterrupto, presso dos fiscais, anulao de tudo o
que possa perturbar e distrair (Foucault, 2003, p. 128).
Gesto e corpo so postos em relao. O controle disciplinar no consiste simplesmente em ensinar ou impor
uma srie de gestos definidos, mas impe a melhor relao entre um gesto e a atitude global do corpo, que
sua condio de eficcia e de rapidez. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realizao do mnimo
gesto. Uma boa caligrafia, por exemplo, supe uma ginstica uma rotina cujo rigoroso cdigo abrange o
corpo por inteiro, da ponta do p extremidade do indicador (Foucault, 2003, p. 130). A disciplina decompe
o ato em elementos, correlaciona o corpo com o gesto, articula o corpo com o objeto que manipula, e exercita
os corpos com tarefas repetitivas, diferentes e graduais, atravs de uma utilizao sempre crescente do tempo.
A vigilncia hierrquica uma tcnica fundamental para o exerccio da disciplina, que opera atravs do olhar
indiscreto, do princpio da total visibilidade.
Ao lado da grande tecnologia dos culos, das lentes, dos feixes luminosos, unida fundao da fsica e da
cosmologia novas, houve as pequenas tcnicas das vigilncias mltiplas e entrecruzadas, dos olhares que
devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do invisvel preparou em surdina um saber novo sobre o
homem, atravs de tcnicas para sujeit-lo e processos para utiliz-lo (Foucault, 2003, p.144).
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Trata-se de uma tecnologia para ocupar todos os espaos numa vigilncia contnua das salas de aula, dos
dormitrios, dos banheiros, exercida por fiscais perpetuamente fiscalizados mestres, monitores, inspetores.
E se verdade que sua organizao piramidal lhe d um chefe, o aparelho inteiro que produz poder e
distribui os indivduos nesse campo permanente e contnuo. O que permite ao poder disciplinar ser
absolutamente indiscreto, pois est em toda parte e sempre alerta (...) (Foucault, 2003, p. 148).
O poder disciplinar age atravs da sano normalizadora, que o carter da disciplina analisado por Foucault
para mostrar como as instituies constituem seus prprios mecanismos de julgamento, pequenos julgamentos.
A escola, por exemplo, funciona como um pequeno tribunal, com leis e infraes prprias para organizar as
diferenas entre os indivduos, atribuindo pequenas penalidades, bem como prmios por merecimento. A
sano normalizadora porque impe a regra a todos os que dela se afastam, impe toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos, ausncias, interrupes das tarefas), da atividade (desateno, negligncia,
falta de zelo), dos discursos (tagarelice, insolncia), do corpo (atitudes incorretas, gestos no conformes,
sujeira), da sexualidade (imodstia, indecncia) (Foucault, 2003, p. 149).A sano normalizadora porque faz funcionar a disciplina atravs do estabelecimento da norma, da medida
que permite avaliar e julgar, normalizando por meio da comparao, da diferenciao, da hierarquizao, da
homogeneizao e da excluso. A partir do sculo XVIII, o normal se estabelece como princpio de coero no
ensino com a instaurao de uma educao padronizada e a criao das escolas normais.
A sano normalizadora combinada com as tcnicas da vigilncia hierarquizada atravs do exame. O exame
um controle normalizador, uma vigilncia que permite qualificar, classificar e punir. Como elemento dos
dispositivos de disciplina, o exame altamente ritualizado. Ele supe um mecanismo que relaciona a formaode saber a uma certa forma de exerccio de poder.
A escola uma espcie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a
operao do ensino. O exame permite que o mestre, ao mesmo tempo em que transmite seu saber, forme um
campo de conhecimentos sobre seus alunos: o exame na escola uma verdadeira e constante troca de saberes:
garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um saber destinado e
reservado ao mestre. A escola torna-se o local de elaborao da pedagogia (Foucault, 2003, p. 155).
O exame uma tcnica tanto de poder como de saber; por esta razo, orienta a hiptese de Foucault segundo a
qual o saber diferente da ideologia e o poder diferente da represso, pois ambos seriam puramente
negativos e o que Foucault mostra a positividade do poder. Foucault aponta trs caractersticas do exame que
convm notar. Primeiramente, o exame inverte a economia da visibilidade no exerccio do poder:
(...) tradicionalmente, o poder o que se v, se mostra, se manifesta e, de maneira paradoxal, encontra o
princpio de sua fora no movimento com o qual a exibe. (...) O poder disciplinar, ao contrrio, se exerce
tornando-se invisvel: em compensao impe aos que submete um princpio de visibilidade obrigatria
(Foucault, 2003, p. 156).
Em segundo lugar, o exame faz a individualidade entrar num campo documentrio: (...) seu resultado um
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arquivo inteiro com detalhes e mincias que se constitui ao nvel dos corpos e dos dias. O exame que coloca os
indivduos num campo de vigilncia situa-os igualmente uma rede de anotaes escritas (Foucault, 2003, p.
157). Em terceiro lugar, o exame faz de cada indivduo um caso que constitui um objeto para o conhecimento
e uma tomada para o poder:
O caso no mais, como na casustica ou na jurisprudncia, um conjunto de circunstncias que qualificam
um ato e podem modificar a aplicao de uma regra, o indivduo tal como pode ser descrito, mensurado,
medido, comparado a touros e isso em sua prpria individualidade; e tambm o indivduo que tem que ser
treinado ou retreinado (...) (Foucault, 2003, p. 158).
Essa transcrio das existncias reais de cada um funciona como um processo de objetivao e de sujeio,
portanto de fabricao da individualidade celular, orgnica, gentica e combinatria, que tm a norma e os
desvios como referncia. Foucault observa que, num sistema de disciplina, a criana mais individualizada do
que o adulto, o doente mais do que o homem so, o louco e o delinqente mais do que o normal.Atravs da disciplina surge o poder da norma.O normal se estabelece, em vrios campos, como princpio de
coero: no ensino, com a instaurao de uma educao padronizada e a criao de escolas normais; no
esforo para organizar um corpo mdico e um quadro hospitalar da nao capazes de fazer funcionar normas
gerais de sade e na regularizao dos processos e dos produtos industriais, por exemplo.
Do mesmo modo que a vigilncia disciplinar, a normalizao torna-se um dos grandes instrumentos de poder,
a partir do final da poca clssica. Ela substitui ou acrescenta graus de normalidade, que so signos de
pertena a um corpo social homogneo, mas que se divide por meio de uma distribuio em classes. Anormalizao, para Foucault como para Georges Canguilhem, constrange para homogeneizar as
multiplicidades, ao mesmo tempo que individualiza, porque permite as distncias entre os indivduos,
determina nveis, fixa especialidades e torna teis as diferenas.
As normas visam integrar todos os aspectos de nossas prticas num todo coerente, para que diversas
experincias sejam isoladas e anexadas como domnios apropriados de estudo terico e de interveno. No
interior desses domnios, as normas no so estticas, mas se ramificam a fim de colonizar, nos seus mnimos
detalhes, as microprticas, de modo que nenhuma ao considerada importante delas escape: Compreende-se
que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma
homogeneidade que a regra, ela introduz, como um imperativo til e resultado de uma medida, toda a
gradao das diferenas individuais (Foucault, 2003, p. 154).
O que caracteriza a biopoltica das populaes, o biopoder, a crescente importncia da norma, que distribui
os vivos num campo de valor e utilidade. A prpria lei funciona como norma devido a suas funes
reguladoras. Uma sociedade normalizadora o efeito histrico de tcnicas de poder centradas na vida. A
principal caracterstica das tcnicas de normalizao consiste no fato de integrarem no corpo social a criao, a
classificao e o controle sistemtico das anormalidades7.Em Vigiar e punire emA vontade de saber, Foucault aponta no s o modo peculiar de funcionamento das
normas modernas, impondo uma rede uniforme de normalidade, como tambm o mal-estar que esta causa.
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Dentre as tcnicas, as prticas, os saberes e discursos por ele analisados, a normalizao constitui um alvo
bastante importante, pois todas as sociedades tm normas de acordo com as quais socializam os indivduos. O
problema apontado por Foucault que, em nossa sociedade, as normas so especificamente perigosas, j que
funcionam, de modo muito sutil, como estratgias sem estrategista.
A questo desenvolvida por Foucault a respeito das formas de ao do poder investidas na sociedade
moderna ocidental deve ser analisada em seu enraizamento nas reflexes de Georges Canguilhem acerca da
norma e de seu carter relacional8. Tal enraizamento deve ser levado a suas ltimas conseqncias.
considerando que Foucault est relacionando suas reflexes com as de Canguilhem, desenvolvidas no livro O
normal e o patolgico, no captulo Do social ao vital (Canguilhem, 2002).
2. Normalizao e princpio de inverso e polaridade da norma segundo Canguilhem
Ao estudar o carter de sano normalizadora da disciplina, Foucault toma como ponto de partida a afirmao
de Canguilhem, de que o termo normal designa, a partir do sculo XIX, o prottipo escolar e o estado de sade
orgnica. Sua utilizao correlata da reforma pedaggica e da teoria mdica, estreitamente ligadas reforma
das prticas pedaggica, mdica e hospitalar. Essas reformas exprimem uma exigncia de racionalizao que
tambm aparece na poltica e na economia, alcanando o que chamado mais tarde de normalizao.
Em Novas reflexes referentes ao normal e ao patolgico texto privilegiado por Foucault em Vigiar e
punir, Canguilhem (2002, p. 209-229) especifica o normal social, distinguindo-o do normal vital. Enquanto aexigncia das normas do organismo interna e imanente prpria possibilidade de vida, a normalizao que
se estabelece na sociedade deve-se a uma escolha e a uma deciso exteriores ao objeto normalizado, mesmo
que no haja conscincia por parte dos indivduos , de que se trata da expresso de exigncias coletivas,
estabelecidas a partir do modo de relao de uma dada estrutura social e histrica, com aquilo que se considera
como sendo seu bem particular.
Em O normal e o patolgico (Canguilhem, 2002), pode-se depreender uma relao estabelecida por
Canguilhem entre a vida, a norma, o corpo, a sade e o sujeito. Para ele, o que caracteriza a especificidade da
norma imanente ao fenmeno vital a plasticidade da vida; a necessidade prpria da vida de criao e
instaurao de novas normas vitais e seu carter de luta, seu carter dinmico e inventivo, que serve como
princpio de avaliao do estado de sade do indivduo. Nesse sentido, pode-se dizer que, para Canguilhem, o
vivente instituidor de normas e torna-se sujeito por sua capacidade como ser vivo de confront-las e
ultrapass-las sempre que o meio exigir. Ao colocar a questo do organismo como ser vivo que no mantm
uma relao de harmonia pr-estabelecida com o meio, e o sofrimento, no a mensurao normativa ou o
desvio padro, que estabelece o estado de doena, Canguilhem faz um ataque frontal ao edifcio da
normalizao, essencial para o desenvolvimento de uma cincia e de uma medicina positivistas, invertendo opensamento sobre a sade. -----Ao considerar o organismo como um ser vivo cuja relao com o meio
(externo ou interno) no a de uma harmonia pr-estabelecida e ao afirmar que o sofrimento que determina
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o estado de doena, e no a mensurao normativa ou o desvio padro, Canguilhem inverte o pensamento
sobre a sade, rejeitando a idia positivista de que a normalizao o eixo essencial para o desenvolvimento
de uma medicina cientfica.
Canguilhem critica, assim, no s o ensino mdico que privilegia o normal e a normalidade e considera a
doena um desvio de normas fixas, que seriam as constantes , mas tambm a prtica mdica que busca
estabelecer cientificamente tais normas; critica-os em seu objetivo de trazer o organismo de volta ao estado de
sade, atravs do restabelecimento da norma anterior, da qual o organismo havia se afastado, pois tal norma
no pode ser restabelecida, visto que pois uma nova norma se instaura, j que, para Canguilhem, o organismo
normativo. --- Canguilhem critica, assim, no s o ensino mdico que privilegia o normal e a normalidade
e considera a doena um desvio de normas fixas, que seriam as constantes , mas tambm a prtica mdica que
busca estabelecer cientificamente tais normas; critica-os em seu objetivo de trazer o organismo de volta ao
estado de sade, atravs do restabelecimento da norma anterior, da qual o organismo teria se afastado, pois tal
norma no pode ser restabelecida, visto que uma nova norma se instaura, uma vez que, para Canguilhem, o
organismo normativo, ou seja, no fixo e instaura sempre novas normas.
Sendo a normatividade prpria do ser vivo, a normalidade consiste na capacidade de adaptao, de variao do
organismo s mudanas circunstanciais do meio externo ou interno, que, por sua vez, varivel. A doena, ao
contrrio da sade, que constitui se trata de uma reduo a constantes. Essa inverso realizada por
Canguilhem faz com que aquilo que caracterizava a normalidade normas estveis, valores imutveis,
constantes caracterize a doena. O que caracteriza a sade , portanto, a possibilidade de transcender a
norma que define a normalidade momentnea; a possibilidade de tolerar as infraes da norma habitual einstituir novas normas em situaes novas.
A necessidade vital da regulao normativa imanente ao objeto normatizado por exemplo, para o
fisiologista, o peso normal do homem, levando em conta o sexo, a idade e a estatura, o peso que corresponde
maior longevidade previsvel desaparece diante do arbitrrio social da deciso normativa. Assim, uma
escola normal, que uma escola onde se ensina a ensinar, onde se instituem experimentalmente mtodos
pedaggicos normalizados e normalizadores. A normalizao dos meios tcnicos da educao como dos da
sade, do transporte de pessoas e de mercadorias a expresso de exigncias coletivas. S h normalizao
social porque a sociedade se define como um conjunto de exigncias coletivas articuladas em torno de uma
estrutura diretriz que define seu bem singular.
O importante no pensamento de Canguilhem que, no social, a norma deixa de valer como regulao interna e
passa a valer como prescrio e valorao. A transformao de um objeto em norma supe uma deciso
normalizadora, mas essa deciso s se efetiva relativamente a uma inteno normativa, que confere ao objeto
dignidade e valor. A atividade assim regulada uma tarefa dinmica, incerta, arbitrria e conflituosa. O
conflito das normas no campo social liga-se no a seu carter de contradio, mas ao carter de luta e
transformao que o constitui. Nesse sentido, a guerra social pensada primeiramente como uma guerra dasnormas, devendo ser compreendida como uma guerra de valores que subentende as normas, inscrevendo-se no
campo da existncia e entrando ou no em conflito com as normas j existentes.
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Em Do social ao vital, Canguilhem (2002, p. 209-229) explica: a valorao que caracteriza um objeto ou um
fato considerado normal sua funo de referncia. O normal ao mesmo tempo a extenso e a exibio da
norma. O normal multiplica a regra ao mesmo tempo que a indica. Requer, portanto, fora dele, a seu lado e
contra ele, tudo aquilo que ainda lhe escapa.
O autor considera, com Gaston Bachelard, que o normal no um conceito esttico ou pacfico, mas dinmico
e polmico; ele ressalta o interesse de Bachelard pelos valores cosmolgicos e populares e pela valorao
que se estabelece a partir da imaginao , bem como sua percepo de que todo valor tem que ser obtido em
oposio a um anti-valor: Uma norma, uma regra, aquilo que serve para retificar, pr de p, endireitar.
Normar, normalizar impor uma exigncia a uma existncia, a um dado, cuja variedade e disparidade se
apresentam, em relao exigncia, como um indeterminado hostil, mais ainda do que estranho
(Canguilhem, 2002, p. 211). Para Canguilhem, a origem latina da palavra norma esclarecedora:
Quando se sabe que norma a palavra latina que quer dizer esquadro e que normalis significa perpendicular,
sabe-se praticamente tudo o que preciso saber sobre o terreno de origem do sentido dos termos norma e
normal trazidos para uma grande variedade de outros campos (Canguilhem, 2002, p. 211).
O conceito de norma necessariamente relacional: normal/anormal. Trata-se de uma relao de polaridade e
de inverso dos plos, no uma relao de contradio nem de exterioridade, j que a norma um conceito que
qualifica negativamente o setor do dado que no se inclui em sua extenso, ao mesmo tempo que depende dele
para sua prpria compreenso.
Tal polaridade da experincia de normalizao (experincia especificamente antropolgica e cultural) funda,na relao da norma com seu domnio de aplicao, a prioridade da infrao pois, a regra s comea a ser
regra ao constituir-se como regra e como tendo uma funo de correo que surge da prpria infrao. Sem
infrao no h regra.
O sonho de uma regularidade sem regra, como a idade de ouro, o paraso, so figuraes mticas de uma
existncia inicialmente adequada sua exigncia, de um modo de vida cuja regularidade nada deve
determinao de uma regra, de um estado de no-culpabilidade com a inexistncia de proibio que ningum
devesse ignorar, explica Canguilhem. Estes dois mitos procedem de uma iluso de retroatividade segundo a
qual o bem original o mal ulterior contido. (...) O homem da idade do ouro e o homem paradisaco gozam
espontaneamente dos frutos de uma natureza inculta, no solicitada, no corrigida (Canguilhem, 2002, p.
213). Trata-se de um sonho ingnuo, em que a formulao, em termos negativos, de uma experincia conforme
norma, sem que a norma tivesse que se manifestar na sua funo normalizadora, significa que o prprio
conceito de norma normativo.
A definio do anormal a negao lgica do normal. Contudo, a anterioridade histrica do futuro anormal
que suscita uma inteno normativa. No h, portanto, de acordo com Canguilhem, nenhum paradoxo em
afirmar que o anormal logicamente o segundo, mas o primeiro, do ponto de vista da existncia.Ao depreciar tudo aquilo que a referncia norma probe de ser considerado normal, a norma cria a
possibilidade de uma inverso dos termos. Uma norma corresponde a uma proposta de unificao do diverso,
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que no tem nenhum sentido isoladamente. Sua possibilidade mesma de ser referncia e regulao contm
sempre, por se tratar apenas de uma possibilidade, uma outra possibilidade que s pode ser inversa.
Com efeito, uma norma s pode ser referncia se ela foi instituda ou escolhida como expresso de uma
preferncia e como instrumento da vontade de substituio de um estado de coisas, pelo qual se tem averso,
por um outro considerado prefervel.
Ressalte-se que a conformidade norma requer a experincia prvia de um certo vazio normativo, em que as
multiplicidades das distncias pr-existem unidade da srie normativa, sendo a alteridade norma tida como
a variedade social que escapa normalizao. A proposta de uma norma um modo possvel de unificao de
um diverso, de reabsoro e de regulao de uma diferena.
Numa organizao social, (...) as regras devem ser representadas, aprendidas, rememoradas, aplicadas. Ao
passo que, num organismo vivo, as regras de ajustamento das partes entre si so imanentes, presentes sem ser
representadas, atuantes sem deliberao nem clculo. No h, neste caso, desvio, distncia, nem intervalo de
tempo entre a regra e a regulao. A ordem social um conjunto de regras com quais seus servidores ou seus
beneficirios tm que se preocupar. A ordem vital constituda por um conjunto de regras vividas sem
problemas (Canguilhem, 2002, p. 222).
Para Canguilhem, a norma menos unificadora do que reguladora. Ela organiza as distncias, tentando reduzi-
las a uma medida comum, restando, contudo, a possibilidade de inverso da norma: ao impor uma exigncia e
a unificao do diverso, a norma pode-se inverter em seu contrrio ou em outra norma, em nova norma.
3. Objetivao do sujeito e subjetivao
importante ressaltar que se pode compreender a norma social, para Canguilhem, como a expresso de uma
vontade coletiva que pode ser interrompida por uma normatividade individual para a qual a valorizao de um
outro estado de coisas engendra uma nova possibilidade de transformao do terreno j existente da vida
social. Desse modo, as normas sociais determinam a ao do indivduo parcialmente, pois, a mecanizao do
sistema social deixa margens, cria zonas vazias, que somente um sujeito, cujo projeto inventar suas prprias
normas, pode delas se apropriar.
S h sujeito para Canguilhem porque h, simultaneamente, sujeio s normas que objetivam o sujeito, e
subjetivao dessas mesmas normas. O sujeito um efeito das normas, porm, um efeito original, pois efetua-
se a si mesmo, delas distanciando-se. A distncia torna-se a condio normativa do sujeito. O ato de
subjetivao por excelncia o afastamento das normas; sua condio de possibilidade a capacidade
normativa da distncia.
Foucault parte do enraizamento em Canguilhem para mostrar, a seu modo, claro, como prticas sociaispodem engendrar saberes que no somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas tcnicas,
mas tambm objetivam o sujeito, fazendo nascer formas totalmente novas de sujeitos; para mostrar como se
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pde formar, no sculo XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do indivduo normal ou anormal,
dentro ou fora da regra , saber esse que, na verdade, nasceu de prticas sociais divisoras do indivduo. Tal
questo tem suscitado, nos ltimos anos, inmeras anlises e polmicas, no campo do direito, da tica, da
poltica e das cincias do homem na modernidade.
Ao discutir a questo do sujeito em Canguilhem e Foucault, Guilhaume Le Blanc (1998, p. 95-96), por
exemplo, aponta uma afinidade e uma diferena entre estas duas perspectivas. Uma afinidade: na sociedade
disciplinar moderna, analisada por Foucault, as normas passam pelo esprito e pelo corpo; no havendo
nenhuma possibilidade de sair do jogo normativo, o indivduo no pode jamais liberar-se das normas. No
interior das normas, mantm-se as distncias individuais, que so tericas e prticas, restando possibilidade
terica de compreender-se como pertencente s normas e elaborar os conceitos adequados produo
normativa interna do saber. Para o ltimo Foucault, possvel, na prtica singular da amizade, inventar uma
relao no normalizada com o outro, visto que os amigos inventam formas de relaes singulares. Os modos
de vida dos amigos podem fazer surgir sistemas no normativos entre os seres.
Uma diferena: quer dizer que o indivduo compreendido em Foucault como ser normativo? O homemnormativo definido por Canguilhem segundo seu poder inventivo, criador de novas normas. Esta
possibilidade est ausente da anlise de Foucault. De acordo com a leitura de Le Blanc, eu posso, nas normas
existentes, colocar entre parnteses a disciplina normativa na prtica da amizade; em troca, no posso inventar
novas normas, o que seria sair das normas existentes. A transgresso das normas existentes uma
impossibilidade para Foucault, ele afirma, sendo a experincia literria a nica experincia da transgresso
objetivada pelo filsofo. Uma subverso das normas torna-se, em troca, possvel com Canguilhem, a partir do
momento em que o homem normativo tem a possibilidade de fazer quebrar as normas e de instituir novas.Encontramos com freqncia, nos ltimos anos, o desenvolvimento dessa questo, atravs da hiptese de uma
soluo tica foucaultiana para o problema da inelutabilidade do controle social sobre o sujeito face eficcia
do exerccio do poder disciplinar e normalizador das sociedades contemporneas. Esse problema levantado
principalmente pela esquerda marxista, que critica duramente sua noo de poder, nela apontando uma viso
niilista, segundo a qual no haveria lugar nem para a resistncia nem para a liberdade.
Uma soluo residiria nas idias de tcnicas de si, de cuidado de si, de governo de si, de arte de no ser
governado e no conceito de governo, estudados no ltimo Foucault9. certo que a noo de governo,
delineada a partir do final dos anos de 1970, como um determinado tipo de relaes entre indivduos, uma
forma social de relao junto a outras, como uma ao que se exerce sobre a ao dos outros e sobre si mesmo
constitui uma contribuio para a discusso aqui proposta. Porm, possvel, do ponto de vista de sua
genealogia do poder desenvolvida na dcada de 1970 , vislumbrar solues, se a referncia de Foucault s
reflexes de Canguilhem sobre a normalizao for levada a srio e s ltimas conseqncias e se a estas
reflexes se combinarem alguns elementos da concepo de poder como resistncia, conforme explicitada em
Histria da sexualidade I(Foucault, 2001, p. 91).
Em primeiro lugar, a idia de que l onde h poder h resistncia; neg-lo seria desconhecer o carterestritamente relacional das correlaes de poder, que no podem existir seno em funo de uma
multiplicidade de pontos de resistncia que representam, nas relaes de poder, o papel de adversrio, de alvo,
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de apoio, de salincia.
Em segundo lugar, de acordo com Foucault, esses pontos de resistncia esto presentes em toda a rede de
poder. As resistncias so singulares e podem ser necessrias, improvveis, possveis, espontneas, selvagens,
solitrias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconcialiveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas
ao sacrifcio. Por definio, as resistncias s no podem existir no campo estratgico das relaes de poder,
mas isso no quer dizer que sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em negativo, formando, por
oposio dominao essencial, um reverso inteiramente passivo, fadado infinita derrota. Ao contrrio, por
serem o outro termo nas relaes de poder, elas se inscrevem nessas relaes como interlocutor irredutvel:
elas introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos,
percorrem os prprios indivduos, recortando-os e remodelando, traando neles, em seus corpos e almas,
regies irredutveis (Foucault, 2001, p. 92).
Em terceiro lugar, a afirmao de Foucault de que assim como a rede das relaes de poder acaba formando
um tecido espesso, atravessando os aparelhos e as instituies sem se localizar exatamente neles, tambm a
pulverizao dos pontos de resistncia atravessa as estratificaes sociais e as unidades individuais.De acordo com esta forma de problematizao da normalizao aqui estudada cabe, sem dvida, buscar pontos
de abertura para um novo campo de invenes possveis, onde as formas de relaes de poder permitam fazer
ver, hoje, eixos ou pontos de resistncia, vetores, em cujos fluxos o Outro seja inteiramente reconhecido como
sujeito de ao. Trata-se de retomar o modelo institudo no sculo XX, sua forma de objetivao do sujeito
para tornar visvel aquilo que estamos nos tornando e de que maneira devemos agir, para tentar pensar s
margens das formas polticas e sociais prvias, buscando outras possibilidades.
Notas
1. De acordo com Deleuze, a filosofia inteira de Foucault uma pragmtica da multiplicidade, compreendida
como algo a ser feito e apreendido no ato mesmo de sua fabricao (Deleuze e Guattari, 1980). nesse
sentido que Rajchman comenta: (...) O que ver, tornar visvel esta multiplicidade ainda por ser feita (...)
e uma vez vista, ou visvel, como ento agimos sobre ela, pensamos sobre ela como no caso de perceber
e tornar visvel aquilo que Foucault chamava de o intolervel, para o qual ainda no fixamos um modo de
tratar? (Rajchman, 2000, p. 75).2. EmA verdade e as formas jurdicas, Foucault explicita a diferena desse seu projeto em relao ao
marxista: existe uma tendncia que poderamos chamar, um tanto ironicamente, de marxismo acadmico,
que consiste em procurar de que maneira as condies econmicas de existncia podem encontrar na
conscincia dos homens o seu reflexo e expresso. Parece-me que essa forma de anlise, tradicional no
marxismo universitrio da Frana e da Europa, apresenta um defeito muito grave: o de supor, no fundo,
que o sujeito humano, o sujeito de conhecimento, as prprias formas do conhecimento so de certo modo
dados prvia e definitivamente, e que as condies econmicas, sociais e polticas da existncia no fazem
mais do que se depositar ou se imprimir neste sujeito definitivamente dado (Foucault, 1999, p. 8).
3. De acordo com Foucault, a teoria do sujeito foi modificada no sculo XX por certas teorias e por certas
prticas dentre as quais incluem-se o marxismo europeu e a psicanlise. Ele considera a psicanlise como a
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prtica e a teoria que reavaliaram mais profundamente a prioridade sagrada conferida ao sujeito pelo
pensamento ocidental desde Descartes. A psicanlise questionou essa posio absoluta do sujeito como
fundamento de todo conhecimento, como aquilo a partir de que a liberdade e a verdade se revelam.
Contudo, para Foucault, a teoria ainda continua muito cartesiana e Kantiana porque ainda est presa a
um sujeito da representao, um ponto de origem a partir do qual o conhecimento possvel a verdade
aparece (Foucault, 1999).
4. A noo de positividade do poder ope-se de poder negativo conforme Foucault explicita emHistria
da sexualidade I, ao rejeitar a hiptese repressiva, particularmente a marxista tradicional, para a qual o
poder funciona atravs da represso exercida pelas classes dominantes sobre as classes dominadas, para
produzir e reproduzir a explorao do capital. Neste caso, a verdade est fora do poder e o poder coincide
com o Estado.
5. O que Foucault pretende mostrar em suas anlises do poder que a dominao capitalista no conseguiria
se manter se fosse exclusivamente baseada na represso, se fosse exercida de forma exclusivamente
violenta. A violncia a forma mais insegura e menos econmica de poder. Um professor no propriamente um agente da represso; um representante do saber. Mas no ser que ele exerce pelo
saber que produz ou reproduz um tipo de poder diferente, um tipo especfico de dominao? (Machado,
2004, p. 30).
6. Foucault explica tal projeto atribuindo grande relevncia questo da governamentalidade (questo da
relao entre segurana, populao e governo), historicamente incrementada a partir do sculo XVIII,
momento em que a populao passa a ser compreendida como problema econmico e poltico, quando os
governos percebem que no tm de lidar apenas com sujeitos ou povos, mas com uma populao queprecisa ser regulada, que tem variveis especficas (natalidade, fecundidade, alimentao, habitao) aos
quais se situam no ponto de interseo dos movimentos prprios vida e os efeitos particulares das
instituies (Foucault, 1982).
7. O carter de integrao da anormalidade pela instituio pedaggica pode tornar-se mais claro com o
exemplo especfico da psiquiatria brasileira, a partir do final do sculo XIX. Como se pode observar, a
concepo de anormalidade especificada nos vrios tipos de comportamentos anti-sociais ou no-
disciplinados, juntamente com as disposies fisiolgicas que lesionam o sistema nervoso ou alguma parte
do crebro determina, por um lado, a delimitao das novas modalidades de assistncia que compem
um sistema completo de assistncia; por outro lado, o conceito de anormalidade como uma forma de
psicopatologia, tornando-se, ento, justificativa para as tentativas de submet-los ao poder disciplinar e
normalizador. Este conceito corresponde, mais do que causalidade, necessidade de combater,
preventiva e profilaticamente, os problemas sociais decorrentes do comportamento indisciplinvel dos
indivduos que no podiam ser considerados loucos, nem normais. A categoria dos anormais se sobrepe
ao par normal/doente, tornando a ao da psiquiatria mais especfica, dirigindo-se a cada tipo particular de
anormalidade. A ao da psiquiatria torna-se ao mesmo tempo, mais abrangente, assistindo a um nmeromuito maior de indivduos considerados, devido sua inutilidade, nocivos sociedade. Essa ao baseia-se
na crena na possibilidade de sua recuperao por meio de uma interveno fundada num saber
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cientfico (Cf. Portocarrero, 2002 e 2004).
8. Foucault o afirma ao analisar os procedimentos constitutivos do poder disciplinar, no captulo Sano
normalizadorade Vigiar e punir(Foucault, 2003). A, ele explicita que sua concepo de norma
tributria do conceito cunhado por Canguilhem em Do social ao vital (Canguilhem, 2002).
9. Segundo Ortega, por exemplo, desde 1976, constata-se um deslocamento terico de Foucault no eixo do
poder que conduz substituio do conceito de poder pelo de governo, para finalmente, desembocar na
temtica do governo de si. Ortega ressalta que Foucault admite ter estado preso, at o comeo dos anos de
1970, a uma noo negativa de poder, a qual ele mesmo critica como hiptese repressiva. Essa noo foi
substituda pela concepo de um poder produtivo de verdade e de objetos. EmHistria da sexualidade I
(Foucault, 2001), segundo Ortega, Foucault defende uma concepo monista de poder, inspirada em
Nietzsche, como multiplicidade de relaes de foras. Com a passagem para a anlise das tecnologias de
governo, afirma Ortega, Foucault amplia, graas a Habermas, sua concepo de poder para um tipo
determinado de relaes entre indivduos, ou seja, uma forma de relao social junto a outras. Assim, o
conceito de poder substitudo pelo conceito de governo, considerado por Foucault mais operacional(Ortega, 1999, p. 35).
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Endereo para correspondncia:
E-mail: [email protected]