Capitalizando a natureza

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    Texto para Discusso. IE/UNICAMP, Campinas, n. 74, jun. 1999.

    Naturalizando o capital, capitalizando a natureza:

    o conceito de capital natural no desenvolvimento sustentvel1

    Gilberto Tadeu Lima2

    Resumo

    O presente artigo aborda criticamente a problemtica do desenvolvimento sustentvel da perspectivado conceito de capital natural. Nela, os ativos ambientais so tratados como guardando umaconsidervel similaridade com as formas manufaturadas ou artificiais de capital, viabilizando assim aobteno de resultados definidos sob a forma de indicadores variados de sustentabilidade.

    Palavras-chave: Desenvolvimento sustentvel; Capital natural; Valorao monetria; Indicadores desustentabilidade.

    Abstract

    This paper analyses critically the issue of sustainable development from the perspective of the

    concept of natural ca pital. From this perspective, environmental assets can be treated as being similarto artificial or manufactured capital, thus allowing the generation of definite results in terms of severalindicators of sustainability.

    Key words: Sustainable development; Natural capital; Monetary valuation; Indicators ofsustainability.

    Introduo

    O presente artigo aborda a problemtica do desenvolvimentoecologicamente sustentvel da perspectiva do conceito de capital natural, por meio

    do qual os ativos ambientais e, muitas vezes, a prpria natureza em si sotratados como guardando uma considervel similaridade com as formasmanufaturadas ou artificiais de capital. Do ponto de vista analtico, esta presumidasemelhana adquire convenincia ao facilitar sobremaneira a incorporao dosrecursos naturais aos modelos econmicos tradicionais de produo, permitindoassim a obteno de resultados definidos sob a forma, por exemplo, de variados

    (1) A elaborao deste artigo contou com pertinentes comentrios e sugestes de Marcos Nobre eMaurcio de Carvalho Amazonas, ambos, entretanto, estando isentos de qualquer responsabilidade pelo seucontedo final qualquer que seja o significado de contedo final neste mundo de conhecimentoincompleto, imperfeito e, portanto, relativo.

    (2) Professor do Instituto de Economia da UNICAMP. E-mail:

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    indicadores de sustentabilidade quanto aos efetivos limites ambientaisnaturalmente impostos ao processo de crescimento econmico e, de maneira maisampla, ao prprio desenvolvimento.

    Nesse contexto, analisa-se a seguir determinados aspectos problemticos e, muitas vezes, mesmo contraditrios da concepo dos recursos na turais comocompondo um agregado definvel e manipulvel economicamente como estoquede capital natural. Mais precisamente, procura-se problematizar uma pressuposiobasilar subjacente ao conceito de capital natural empregado pela economia ecolgicade inspirao neoclssica, qual seja, a de que a questo da sustentabilidade dodesenvolvimento num mundo marcado por restries ambientais melhor enfocadatratando-se os recursos naturais como ativos compondo a capacidade produtiva daeconomia e, no caso especfico dos recursos naturais renovveis, como ativosresultantes da prpria atividade produtiva da economia.

    Apoiando-se em vrias peas isoladas da vasta literatura sobre o tema, oartigo pretende com isso elaborar um inventrio parcial e provisrio de elementos

    tericos e metodolgicos que informem anlises coerentes e consistentes dospressupostos, implicaes e limitaes do conceito de capital natural.

    1 Valorando o capital natural

    Tendo privilegiado o conceito de capital natural como ponto de entrada naproblemtica da sustentabilidade do desenvolvimento, a maioria das elaboraes deinspirao neoclssica opta ento por formas monetrias de valorao doscomponentes do estoque de capital natural da economia.3 Orientada por uma crenana superioridade do mercado como mecanismo de alocao de recursos em geral,

    essa valorao monetria do capital natural normalmente realizada atravs depreos de mercado, os quais so vistos como os melhores estimadores do grau deescassez relativa dos bens e servios circulando na economia. Embora autoresalinhados com essa concepo El Serafy (1991), por exemplo no deixem dereconhecer que no possvel tabular a totalidade dos ativos e lhes atribuir um valormonetrio correspondente, os mecanismos de mercado so encarados como os mais

    (3) Muito embora o capital natural ou, com menor frequncia, o capital ambiental sejaatualmente a varivel-chave dessas elaboraes, o conceito em si bem como a analogia subjacente no to recente assim. Irving Fisher (1904), um dos precursores da abordagem neoclssica, utilizou recursosambientais como lagos e rios para ilustrar os conceitos de estoque e fluxo de capital fsico.

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    adequados ainda que nem sempre suficientes para garantir a sustentabilidade dodesenvolvimento face s restries ambientais.

    Na sua definio neoclssica, convm lembrar, o objeto da cinciaeconmica diz respeito ao gerenciamento racional da finitude dos recursosprodutivos num mundo supostamente marcado por uma infinitude das necessidadeshumanas. Apresentada como um fenmeno essencialmente natural, essacorrespondente escassez relativa seria melhor administrada pelo sistema demercado, uma vez que nele os preos refletiriam corretamente a referida escassezrelativa dos bens e servios em circulao. Em outras palavras, a economianeoclssica centra-se na alocao eficiente de recursos escassos a fins presentes efuturos alternativos atravs do sistema de preos de mercado. No surpreende,portanto, que o arcabouo neoclssico seja visto por seus adeptos como onaturalmente mais adequado para o tratamento terico-conceitual da problemticada sustentabilidade do desenvolvimento: em ltima anlise, trata-se apenas deadministrar eficientemente essa outra dimenso da escassez mais geral.4

    Victor (1991), entretanto, detectou uma possvel contradio subjacente tentativa neoclssica de buscar indicadores de escassez e sustentabilidade baseadosem preos de mercado: se os mercados de recursos naturais funcionassem mais oumenos de acordo com os preceitos da teoria neoclssica, ento esses recursosestariam sendo alocados de maneira eficiente ao longo do tempo. Nessascircunstncias, os indicadores de preos, custos e lucros dos recursos seriamcorretos mas de reduzida importncia prtica, uma vez que, por hiptese, nenhumainterveno de poltica pblica seria necessria quando o mercado estivessefuncionando adequadamente. Caso os mercados de recursos no estivessemfuncionando de acordo com o modelo neoclssico, entretanto, por causa seja deimperfeies de mercado ou de os efeitos ambientais no estarem refletidos nospreos, ento a necessidade de indicadores se tornaria importante. Nessascircunstncias, infelizmente, os indicadores oferecidos pela teoria neoclssica noserviriam, dado que as hipteses necessrias sua significncia normativa noestariam prevalecendo.

    Por outro lado, no devemos ignorar como a distribuio de renda (comomelhor elaborado em seo a seguir), as instituies e o conhecimento humano

    (4) Uma detalhada anlise crtica do tratamento dispensado pela economia neoclssica s questesambientais pode ser encontrada em Amazonas (1994, 1997), onde so discutidas tanto as isoladasformulaes neoclssicas originais sobre a temtica ambiental como suas reformulaes mais recentes.

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    afetam o processo de formao dos preos e, consequentemente, sua interpretao(Norgaard, 1997). Sendo assim, os preos de mercado no podem ser entendidoscomo expressando a real disponibilidade de recursos e servios ambientais. Nessamesma linha, Norgaard (1990) demonstra que os argumentos tericos utilizados naliteratura sobre indicadores econmicos da escassez de longo prazo dos recursos

    naturais so logicamente falhos. Se os alocadores fossem informados da natureza daescassez do recurso, seu comportamento e os indicadores econmicos da derivadosrefletiriam essa escassez. Mas se eles tivessem essa informao, ns poderamossimplesmente lhes perguntar se os recursos so escassos. Se eles no soinformados, seu comportamento e os indicadores da derivados tendero a refletiressa ignorncia. Infelizmente, no existe forma de saber se eles so informados ouno a menos que j saibamos se os recursos so escassos. Ademais, como colocadopor Victor (1991), o fato de o estoque de capital natural no estar plenamenteinventoriado faz com que medidas de sua depreciao contenham uma inevitveldose de arbitrariedade.

    Noutros termos, esses indicadores econmicos de escassez de longo prazo,baseados que so nos modelos de Ricardo e Hotelling, assumem no apenas que osrecursos so escassos, mas, inclusive, que os alocadores desses recursos estoinformados dessa escassez e da deduzem trajetrias de preos e custos. Caso osalocadores de recursos no detenham esse grau de informao, entretanto, essastrajetrias de custos e preos geradas por suas decises tender a refletir essa suaignorncia. Mas para saber se os alocadores so ou no informados, precisamossaber se os recursos so escassos. Uma vez que esta a questo original, oexerccio logicamente impossvel.5

    Ainda segundo Victor (1991), outro srio problema da valorao monetria via preos de mercado do capital natural que esses preos no refletemadequadamente as diversas externalidades ambientais. E isso com o agravante quedevido ao carter profundamente interligado da estrutura de preos de mercado,todo o sistema de preos acaba tendo sua funcionalidade alocativa comprometida;de fato, possvel demonstrar formalmente que essa valorao inadequada docapital natural afeta todos os preos de mercado, e no apenas os preos das

    (5) No modelo Ricardiano, os alocadores de recursos devem saber que recursos so de qualidade maisalta, de maneira que eles possam ser utilizados primeiro. O modelo de Hotelling, por sua vez, assume que osalocadores tm conhecimento de muito mais: o estoque total de recursos, o curso do desenvolvimentotecnolgico e mesmo a evoluo futura da demanda. Vide Pearce & Turner (1990) e Amazonas (1994) paraum maior detalhamento desses modelos.

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    mercadorias cuja produo e consumo dependem diretamente do capital natural. Poroutro lado, quanto mais srias forem a degradao e a depleo do capital naturalatravs de processos extra-mercado, mais inadequados sero ento os preos demercado para a valorao do capital natural e manufaturado. Sendo assim, o prprioproblema que a valorao do capital natural suposta resolver ou seja, mostrar se

    determinada economia est se desenvolvendo sustentavelmente ou no acaba porminar a validade de se usar preos de mercado para alcanar uma soluo; por nonecessariamente captarem adequadamente os interesses das geraes futuras, porexemplo, esses preos acabam sendo de reduzida relevncia normativa para avalorao do estoque de capital natural.

    No obstante todas essas limitaes da valorao monetria, Pearce et al.(1990) identificam trs abordagens possveis da questo da aferio da constnciado estoque de capital natural e da correspondente determinao de um indicadoradequado de sustentabilidade, quais sejam, a do estoque fsico constante, a daconstncia do valor presente dos estoques e a dos fluxos de renda constantes. Eles

    acabam ento optando por medidas monetrias por acreditarem que a constncia doestoque fsico de capital, embora bastante conveniente em se tratando dos recursosrenovveis, seria pouco relevante para os no-renovveis, para os quais qualquertaxa positiva de uso reduz o estoque existente.

    Com bem ressalvaram Wackernagel & Rees (1997), contudo, a utilizaode valores monetrios como uma medida da constncia do estoque de capital natural altamente inadequada do ponto de vista da sustentabilidade ecolgica, issoocorrendo por duas razes. A primeira que a constncia do valor monetrio de umestoque de recursos ambientais pode muito bem resultar da depleo fsica desseestoque. A segunda que fluxos estveis de renda podem muito bem resultar depreos marginais crescentes para os ativos ambientais cujos estoquescorrespondentes esto declinando. Numa critica direta noo proposta por Pearce& Turner (1990) de constncia do capital natural como constncia de seu valormonetrio real, Victor (1991) observou que os preos de mercado dos recursosnaturais refletem condies na margem, de maneira que sua utilizao na valoraode estoques inteiros tende a gerar resultados perversos. Por exemplo, plenamentepossvel que o preo de um ativo ambiental cresa ao longo do tempo mesma taxa ou mesmo a uma taxa mais elevada que a taxa de reduo no estoque fsico dorecurso, o que vai resultar na constncia ou mesmo na elevao do valormonetrio do estoque desse ativo ambiental.

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    Portanto, valores monetrios podem criar a iluso de estoques constantesquando os estoques fsicos esto efetivamente diminuindo. Mais fundamentalmente,colocam Wackernagel & Rees (1997), os preos de mercado nada dizem sobreestoques e processos que esto margem do mercado (a camada de oznio, porexemplo) mas que so ecologicamente essenciais, nem sobre certas funes

    ecossistmicas cujo valor para a humanidade no revelado at que estejam sobameaa ou mesmo desapaream.

    Alm disso, a valorao monetria dos ativos ambientais encontra enormesobstculos na questo da incomensurabilidade desses ativos. (Martinez-Alier, 1995).Por exemplo, 1 kw de energia obtida atravs de fontes hidreltricas no comensurvel em termos monetrios, uma vez internalizadas as externalidades, com1 kw de energia nuclear, dado no sabermos que valores monetrios atribuir a essasexternalidades. Em verdade, essa valorao depender crucialmente do horizontetemporal em questo e da correspondente taxa de desconto, das incertezas quantoprogresso tecnolgico futuro e, como detalhado numa seo a seguir, da distribuio

    de renda. Pessoas mais pobres, por exemplo, tendero a cobrar menos, em termosmonetrios, que pessoas mais ricas para incorrerem em certos riscos ambientais. Ouento, um determinado componente do capital natural pode ter um preo demercado reduzido exatamente por pertencer a pessoas pobres e desprovidas depoder econmico, fazendo com que a destruio da natureza seja subvalorizada.6Por outro lado, essa incomensurabilidade econmica tambm resulta do fato degrande parte do estoque de recursos e servios ambientais no estar e, em vrioscasos, no poder estar circulando no mercado como outra mercadoria qualquer(Victor, 1991).

    2 Sustentando o capital natural

    (6) Como esclarecido em Martinez-Alier (1995), devemos entender por incomensurabilidade ainexistncia de uma unidade comum de medida, o que no significa, contudo, que decises alternativas nopossam ser comparadas racionalmente com base em diferentes escalas de valor. Mas dado no ser possvel,em termos ecolgicos, atribuir corretamente valor presente a contingncias futuras incertas e irreversveis,alm dessa valorao presente depender da distribuio de renda e dos direitos de propriedade, a economiaambiental carece de um padro de medida comum. Como notado por Victor et al. (1995), da, entre outrascoisas, a arbitrariedade da agregao da mirade de itens do capital natural num estoque total definidosubjacente aos modelos macroeconmicos de sustentabilidade de inspirao neoclssica como Pearce &Atkinson (1993), por exemplo.

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    Como adiantado anteriormente, a concepo dos recursos ambientais comoequivalentes aos ativos de capital artificial facilitou sobremaneira a incorporaodesses recursos aos modelos econmicos de produo de inspirao neoclssica, oque permitiu a gerao de variados indicadores de sustentabilidade dodesenvolvimento em face das limitaes ambientais da economia.7 De fato, trata-se

    quase que meramente de incluir essa varivel adicional o capital natural nastradicionais funes de produo agregada, supor que essas funes so dotadas decertas propriedades convenientes e ento derivar regras que assegurem aconstncia ao longo do tempo de alguma varivel dependente dessas funes deproduo em geral, o consumo per capita do produto correspondente. Noobstante sua simplicidade formal, essa incorporao acaba por revelar uma srie deoutras limitaes tericas e prticas do conceito de capital natural.

    Como elaborado em Daly (1994), Guts (1996) e Stern (1997a), o conceitode sustentabilidade fraca (Solow, 1974) requer que o estoque total de capitalpermanea constante ao longo do tempo. Por pressupor que a elasticidade de

    substituio entre o capital natural e o capital manufaturado igual ou maior que aunidade, o conceito de sustentabilidade fraca plenamente compatvel com umaeventual reduo do estoque do primeiro, bastando, para tanto, que o estoque dosegundo cresa na devida proporo compensatria. O conceito de sustentabilidadeforte, por sua vez, coloca como condio necessria que o estoque de capital naturaldeve ser mantido constante, dada a impossibilidade de substituio do capital naturalpor qualquer outra forma de capital manufaturado. Uma posio intermediria estbaseada no conceito de capital natural crtico, para o qual a substitutibilidade entrecapital natural e capital manufaturado apenas parcial. Dada a existncia dedeterminados estoques de capital natural crtico para os quais no existemsubstitutos, a condio necessria para a sustentabilidade, portanto, que esses

    estoques crticos permaneam constantes ao longo do tempo.

    (7) Uma detalhada anlise histrico-poltica das origens e significado atual do conceitocorrespondente de Desenvolvim ento sustentvel est contida em Nobre (1997), onde traado oprocesso de transformao dessa palavra em princpio discursivo e de ao de aceitao universal nasdiscusses ambientais a partir do final dos anos 70. Em Nobre (1998), por sua vez, analisadominuciosamente como a teoria econmica, particularmente a de extrao neoclssica, se tornouhegemnica no debate ambiental desde ento, um processo que est intimamente ligado aos rumos dosdebates e das prticas fundadas na noo de desenvolvimento sustentvel. Romeiro (1999), por outrongulo, discute o conceito de desenvolvimento sustentvel e suas implicaes em termos de mudana daracionalidade econmica dominante e do estilo de vida correspondente.

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    Portanto, essas duas ltimas abordagens conceituais da sustentabilidade dodesenvolvimento assumem que existem limites inferiores para o estoque de capitalnatural necessrio ao suporte da economia tanto em termos da oferta de materiaise energia quanto em termos da capacidade assimiladora do meio-ambiente e quecertas categorias de capital natural crtico no podem ser substitudas por outras

    formas de capital manufaturado. Alm da criticalidade (no-substitutibilidade) dealguns dos ou mesmo de todos os componentes do capital natural, outras razespara que seu estoque seja mantido total ou parcialmente constante incluem, porexemplo, a inescapvel incerteza quanto ao funcionamento e ao valor total doecosistema e a irreversibilidades de certas perdas ou degradaes ambientais.

    Como destacado em Guts (1996), o conceito de sustentabilidade fraca uma aplicao direta da regra de poupana-investimento oriunda da teorianeoclssica do crescimento com recursos exaurveis desenvolvida nas dcadas de1970 e 1980 (Solow, 1974; Stiglitz, 1974; Hartwick, 1977; Dasgupta & Heal, 1979 eSolow, 1986). De fato, uma concluso bsica dessa literatura (Solow, 1974, por

    exemplo) que a existncia de um estoque finito de recursos naturais exaurveisseria compatvel com uma trajetria no-decrescente de consumo per capita aolongo do tempo, bastando, para tanto, que a elasticidade de substituio entre capitalnatural e capital manufaturado no seja menor que a unidade. Por exemplo, o ndicede sustentabilidade fraca apresentado em Pearce & Atkinson (1993), segundo oqual o estoque de capital total permanecer constante caso a poupana agregadaseja igual ao somatrio da depreciao de todas as formas de capital, pode serinterpretada como uma variante da regra de poupana-investimento derivada emSolow (1974).

    Assim sendo, mesmo que os esforos para gerar ndices monetizados docapital natural e do capital manufaturado sejam bem sucedidos, ainda permaneceaberta a questo do grau de substituio entre eles. Valorar ambas as categorias decapital usando um numerrio comum equivale a simplesmente assumir ao invs dedemonstrar que eles so substitutos prximos, quando a lio das cincias naturais que as possibilidades de substituio so muitssimo limitadas. Na verdade, asustentabilidade fraca, ao assumir a substituio do capital manufaturado pelo capitalnatural, desvia a ateno da questo certamente mais crtica de sua no-substituio: ela pressupe extensivas possibilidades de substituio atravs damudana tecnolgica sendo que as verdadeiras ameaas ao desenvolvimentosustentvel derivam exatamente do fato de algumas funes do capital naturalserem indispensveis e, portanto, no-substituveis. Segundo Stern (1997a), por outro

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    lado, o requisito de manuteno de um estoque constante de capital natural , decerta maneira, ainda mais bizarro que o de manuteno de um estoque no-declinante de capital total. Na sua viso, parece mais razovel supor que o capitalmanufaturado pode eventualmente substituir algumas das funes do capital naturalque acreditar na possibilidade de os recursos naturais serem substitutos entre si.

    Noutros termos, uma dimenso relevante da problemtica dasustentabilidade que somente sob certas condies tcnicas possvel agregarconsistentemente um determinado estoque de capital natural. Mais precisamente,somente sob certas condies quanto s possibilidades de substituio na produo eno consumo a manuteno de um certo estoque de capital agregado suficientepara manter o bem estar intergeracional em face de estoques declinantes derecursos naturais. Como visto anteriormente, os diversos conceitos desustentabilidade tratam o capital natural como uma categoria homognea de capital,distinta do capital manufaturado. Diversas possibilidades de substituio so entoestudadas com base no estabelecimento de graus de substitutibilidade entre essasduas categorias. Contudo, como relembrado por Guts (1996) e Stern (1997a),

    agregar numa nica categoria os diferentes componentes do estoque de capitalnatural (por exemplo, o crtico e o no-crtico) e introduzi-los numa funo deproduo como se fossem uma nica categoria significa assumir implicitamente queessa funo de produo separvel nesses componentes.

    Em outras palavras, a construo de um ndice de capital natural agregadosomente possvel se a taxa marginal de substituio entre duas formas de capitalnatural for independente das quantidades de trabalho ou capital manufaturadoempregadas o que altamente improvvel dado que a explorao de inmerosrecursos naturais simplesmente impraticvel sem o concurso de grandes estoquesde capital artificial. Por outro lado, mesmo que fosse possvel determinar, para finsde agregao, os verdadeiros preos de sustentabilidade dos componentes do

    capital natural, somente para uma economia efetivamente se movendo ao longo deuma trajetria de crescimento sustentvel seriam idnticos, quando medidos apreos de mercado, o mximo consumo sustentvel e a renda nacional ajustadaambientalmente.

    Alm disso, a existncia de possibilidades limitadas de substituio noconsumo podem igualmente inviabilizar a determinao de agregados de capitalnatural adequados (Stern, 1997a, 1997b). Duas fontes significativas desse fenmenoso as necessidades bsicas de subsistncia e o papel diretamente desempenhadopelos ativos ambientais no bem estar. No primeiro caso, como j havia sidodevidamente colocado por Daly (1977), a produo de bens e servios voltados para

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    a satisfao de necessidades bsicas de subsistncia por exemplo, de alimentaoe moradia requer um mnimo de insumos de recursos naturais. No segundo caso,certos ativos ambientais como a beleza natural, por exemplo possuem um valorde existncia que contribui diretamente para o bem estar, sendo esta forma devalor independente de qualquer valor de uso que possam assumir no processo

    produtivo.Da perspectiva do conceito de capital natural, portanto, esses indicadores de

    sustentabilidade do desenvolvimento so frgeis em pelo menos dois aspectosgerais. Primeiro, na natureza bastante restritiva das suposies subjacentes aoconceito, tais como a agregao do capital em categorias sem qualquer testeemprico formal para suportar essa agregao e a valorao do capital naturalatravs de preos de mercado reais ou fictcios. Segundo, no problema de comoestimar apropriadamente a taxa de depreciao do capital natural, o que exige adifcil tarefa de decidir como valorar num numerrio nico a degradao ambiental. 8

    3 Distribuindo o capital natural

    Como salientado por Martinez-Alier (1995) e Martinez-Alier & OConnor(1996), a valorao monetria dos bens e servios ambientais, atravs de preos demercado, no independente da distribuio de renda prevalecente na economia.Alm disso, uma vez que vrios recursos naturais e servios ambientais, por noterem dono, esto fora do mercado, a atribuio de direitos de propriedade sobreeles e sua consequente incluso no mercado alteraria a distribuio de renda e,portanto, a estrutura de preos. Portanto, essa no-separabilidade entre eficinciaalocativa e distribuio se aplica no apenas distribuio de renda, mas, inclusive, prpria distribuio ecolgica. Como definido em Martinez-Alier & OConnor

    (1996), por distribuio ecolgica devemos entender as assimetrias sociais, espaciaise temporais tanto no acesso aos recursos e servios ambientais como na repartiodos nus da poluio e de outros rejeitos.

    Como corolrio, mesmo que fossem satisfeitas todas as condiesnecessrias obteno dos preos de sustentabilidade corretos, permitindo, assim,a correspondente agregao correta dos componentes do capital natural, esses

    (8) De maneira mais ampla, Romeiro (1999) resgata vrias das principais crticas a essesindicadores encontrados na literatura para ento concluir pela necessidade de interpretar a sustentabilidadecomo uma situao cujo alcance e manuteno requer mudanas radicais na racionalidade econmica e nosestilos de vida prevalecentes.

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    preos de sustentabilidade forosamente refletiriam custos de oportunidade epreferncias reveladas que resultam da distribuio de renda entre indivduos eorganizaes (Stern, 1997a). Por outro lado, o nvel e a distribuio de renda afetamdiretamente a demanda por diferentes bens e servios ambientais. Num determinadopas, por exemplo, uma distribuio de renda mais igualitria poderia aumentar o

    consumo de bens como gua potvel, reduzindo, por outro lado, a demanda por bensde luxo, o que tenderia a afetar as condies de sustentabilidade dodesenvolvimento.

    Portanto, os preos de mercado dependem da distribuio de renda e daatribuio de direitos de propriedade aos vrios elementos do capital natural, demaneira que a discusso em torno da sustentabilidade de um determinado padro dedesenvolvimento passa necessariamente por consideraes de natureza distributiva. diferentes padres distributivos, por exemplo, correspondero diferentespossibilidades de sustentabilidade do desenvolvimento, implicando que certospadres distributivos so mais adequados que outros no atendimento do requisito de

    sustentabilidade.Convm destacar que essa dependncia dos preos em relao

    distribuio uma caracterstica distintiva da abordagem neo-ricardiana em suaverso sraffiana. Dado que nessa abordagem os preos dependem da distribuiode renda entre salrios e lucros, a valorao monetria do estoque de capitalmanufaturado depende, por assim dizer, do conflito de classes. Enquanto naabordagem neoclssica a remunerao dos proprietrios do capital sob a forma delucros vista como dependente da produtividade marginal desse capital, naabordagem sraffiana o estoque de capital concebido como uma coleoheterognea de meios de produo muitos deles produzidos pela prpriaatividade econmica cujo valor econmico depende do conflito distributivo entreassalariados e detentores desse capital.9 No caso do estoque de capital natural, suavalorao monetria depende no somente da distribuio de renda, mas, inclusive,das decises prvias quanto ao que incluir nesse estoque, por um lado, e daatribuio de direitos de propriedade sobre seus componentes, por outro lado. Naviso de alguns autores Victor (1991) e Victor et al. (1996), por exemplo , o fato

    (9) De fato, esse conceito social, digamos assim, de capital assim como as enormes dificuldadesinerentes sua quantificao e valorao esteve no centro dos intensos debates nas dcadas de 1950 e1960 entre autores neoclssicos e sraffianos sobre a teoria do capital e a distribuio de renda.

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    de o estoque de capital natural ser mais heterogneo que o estoque de capitalmanufaturado torna sua valorao monetria ainda mais problemtica.

    Do ponto de vista da abordagem neo-ricardiana la Sraffa, portanto, osvrios indicadores convencionais de sustentabilidade descritos anteriormente,baseados que so em formas monetrias de valorao do capital natural, so

    inescapavelmente arbitrrios, no captando adequadamente, por conseguinte, asrestries ambientais enfrentadas pela sociedade no exerccio de sua atividadeseconmicas. Como alternativa, alguns autores crticos da abordagem neoclssicatm procurado desenvolver modelos formais neo-ricardianos la Sraffa paraanalisar certos aspectos relativos aos limites ambientais impostos atividadeeconmica. Martinez-Alier & OConnor (1996), por exemplo, elaboram uminteressante modelo sraffiano que no apenas mostra formalmente a dependncia dovalor econmico dos bens e servios ambientais em relao ao perfil da distribuioecolgica e de renda, mas, inclusive, permite analisar determinados condicionantesda reprodutibilidade em oposio ao enfoque da sustentabilidade, tido comodemasiado restrito do sistema econmico.10

    Outro importante canal atravs do qual elementos distributivos afetam ascondies de sustentabilidade do desenvolvimento a taxa de descontointertemporal. Mais precisamente, essa sensibilidade da alocao de recursos emrelao distribuio tem implicaes relevantes para a questo da taxa dedesconto temporal apropriada para uma economia ecolgica, ou seja, a taxacorrespondente produtividade do capital sustentvel (Martinez-Alier &OConnor 1996). De maneira mais ampla, esses autores demonstram que existeuma interdependncia entre a distribuio intergeracional dos direitos de propriedadee o preo relativo dos bens e servios tanto dentro de cada perodo de produocomo entre diferentes perodos de produo. De fato, Howarth & Norgaard (1990,

    1992, 1993) demonstram como a valorao relativa de uma externalidade, bemcomo o preo relativo de um bem de um perodo ao seguinte ou seja, a taxa dejuros de um perodo ao seguinte depende da distribuio intergeracional dosdireitos de propriedade.

    (10) Vide Perrings (1985, 1986, 1987), OConnor (1993a, 1993b, 1994, 1996) e Erreygers (1996)para outros modelos sraffianos de algumas dimenses das complexas relaes entre a economia e oecossistema. Especificidades parte, todos esses modelos formais adotam a nfase da economia polticaclssica nas condies de reprodutibilidade geral do sistema econmico, o que lhes permite conceber osrecursos naturais como cumprindo funes outras que no apenas a de um insumo produtivo a serincorporado a uma funo agregada de produo com a qual seria ento possvel calcular corretamente suaprodutividade fsica e, consequentemente, sua efetiva contribuio para o processo produtivo.

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    Na perspectiva de Norgaard (1997), mercados para servios ambientaisfrequentemente no existem ou no funcionam de maneira eficiente devido sinterconexes inerentes aos sistemas ambientais. Nesse sentido, as indagaes daeconomia ambiental tm nos ajudado a entender os limites dos sistemas de mercado,ainda que, por outro lado, inmeros economistas ambientais de inspirao

    neoclssica apoiem a crescente utilizao de mecanismos de mercado e construamtcnicas cada vez mais elaboradas para a valorao de bens e servios ambientaisno-transacionados em mercado. Segundo esse autor, no existe nada de errado emadotar critrios de eficincia, pelo contrrio, mas deve-se manter em mente que aseconomias podem ter vrias alternativas distributivas para a alocao eficiente deseus recursos. Mais precisamente, distribuies alternativas dos direitos sobre osrecursos afetam a alocao eficiente desses recursos e, portanto, a combinao debens e servios disponveis para as geraes correntes e futuras, de maneira que omodelo econmico ser incompleto caso a distribuio intergeracional seja ignorada.Os modelos adotados pelos economistas ambientais neoclssicos, por sua vez,tomam implicitamente como dada a distribuio de renda e de direitos de

    propriedade prevalecente entre os membros da sociedade e entre diferentesgeraes. Ao no me ncionarem, por exemplo, a distribuio dos direitos depropriedade e aplicarem somente o critrio do valor presente lquido, esses modelosassumem implicitamente que as geraes correntes detm todos os direitos sobre osrecursos.

    Na mesma linha, Norgaard & Howarth (1991) argumentam que acontrovrsia sobre a taxa de desconto intertemporal apropriada deriva, ao menos emparte, do fato de os economistas terem ignorado como esto interrelacionadas aequidade distributiva e a eficincia alocativa. Howarth & Norgaard (1990)desenvolvem um modelo simples de alocao de recursos numa economia de troca

    pura que mostra claramente como a trajetria intertemporal eficiente de uso dosrecursos depende crucialmente da distribuio intergeracional de direitos sobre osrecursos naturais. Norgaard & Howarth (1991) extendem esse modelo para mostrarformalmente como a taxa de juros que numa economia ideal sem falhas demercado igual a taxa de desconto intertemporal deriva da prpria distribuiointergeracional de ativos econmicos. Segundo eles, embora a profissoocasionalmente reconhea que uma determinada alocao de recursos pode serintertemporalmente eficiente mas bastante desigual (Dasgupta & Heal, 1979, porexemplo), os economistas de inspirao neoclssica normalmente no mencionamque distribuies intergeracionais de recursos menos desiguais podem ser

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    eficientemente alocadas. Noutras palavras, muita embora seja sabido que aalocao eficiente de recursos em modelos estticos de equilbrio geral depende daatribuio inicial de direitos de propriedade e da distribuio de renda entoprevalecente, esse princpio tende a ser deixado de lado em anlises maissofisticadas da problemtica da eficincia.

    Na mesma linha de anlise intergeracional, Martinez-Alier (1995)argumenta que a taxa de desconto intertemporal necessria ponderao doscustos e benefcios futuros realmente bastante duvidosa. De fato, as abordagensalternativas neoclssica tendem a argumentar que a seleo de uma taxa dedesconto intertemporal representa um verdadeiro julgamento tico quanto aequidade intergeracional, no sendo, portanto, um problema a ser deixado a cargodos mecanismos de mercado (Gowdy, 1991). Costanza & Daly (1992), por exemplo,sustentam que existe evidncia de que o comportamento de desconto podeeventualmente ser sintomtico de um comportamento perverso conhecido comoarmadilha social, situao em que os mecanismos indutores do comportamento de

    curto prazo so inconsistentes com os interesses globais de longo prazo do indivduoou da sociedade.

    Colocando a problemtica das condies de sustentabilidade dodesenvolvimento numa perspectiva ainda mais ampla, alguns autores insistem queno se deve desvincular essas condies das relaes sociais de poder dentro dasquais as decises econmicas fundamentais so tomadas. Nessa viso, no bastalevar em conta apenas os limites ecolgicos impostos ao crescimento pela escassezde recursos e as possibilidades abertas pelo progresso tecnolgico e pela eficinciana gesto dos recursos em geral, sendo altamente necessrio, inclusive, reconhecero papel desempenhado pelas estruturas de poder na determinao do acesso socialaos recursos naturais e aos direitos legais de apropriao desses recursos. Noutraspalavras, a distribuio ecolgica influencia enormemente a sustentabilidade de umcerto padro de desenvolvimento, sendo que essa distribuio no determinadaapenas por condies naturais, mas, inclusive, por elementos tecnolgicos e sociais.

    Na verdade, ressalta Leff (1996), a prpria escassez ecolgica no determinada exclusivamente por condies naturais, sendo, inclusive, condicionadapelas formas vigentes de apropriao social e explorao econmica da natureza. Ecomo a cincia no tem critrios intrnsecos para mediar os conflitos em jogo, noparece razovel naturalizarmos por completo os limites ecolgicos impostos aocrescimento Esses critrios no podem derivar de uma suposta racionalidade

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    ecolgica pois o clculo de custos e benefcios requer a atribuio de valores,sendo que a ecologia no tem como oferecer esse sistema de valoraoindependentemente da poltica. Com sua caracterstica naturalizao dos limitesambientais ao crescimento, acrescenta Leff (1996), a economia ecolgica deinspirao neoclssica logra purgar sua abordagem economicista de qualquer

    elemento distributivo: as condies ecolgicas so reduzidas a problemas ambientaise demogrficos e a questo da distribuio dos custos ecolgicos e sociaisdesaparece do foco terico e poltico.

    Na teoria neoclssica, por exemplo, conforme descrio de Martinez-Alier& OConnor (1996), um preo zero para um bem ou servio ambiental significa asua no-escassez relativa durante o horizonte temporal considerado.Alternativamente, contudo, podemos olhar diretamente as relaes de podersubjacentes ao processo de formao de preos. Um preo zero pode entosignificar no a inexistncia de escassez per se, mas, sim, uma relao de podernuma situao de conflito. Por exemplo, poluentes ou rejeitos txicos podem ser

    descartados sob formas que degradem o hbitat de sobrevivncia de outras pessoasque, entretanto, so incapazes de evitar aquilo. Embora essa situao possa serinterpretada como uma tradicional inequalidade de direitos e responsabilidades, mais razovel interpret-la diretamente em termos de poder, ou seja, da capacidadecom que so dotados os grupos sociais dominantes de ignorar ou descontar asdemandas de outros grupos direta ou indiretamente interessados ou afetados pelaquesto.

    Noutros termos, o valor dessas externalidades negativas criadas , terica eempiricamente, produto de instituies e conflitos sociais. Em geral, como jmencionado anteriormente, se as pessoas prejudicadas so mais pobres e sempoder, ento essas externalidades tendero a ser subvaloradas. Como j havia sidoenunciado em Martinez-Alier (1993), na questo da internalizao dasexternalidades inevitavelmente prevalece o princpio do pobre vende barato, demaneira que quando se fala no valor presente de uma externalidade, inescapvelperguntar valor presente para quem?. Da, entre outras coisas, os movimentossociais em defesa do meio-ambiente serem concebidos nessa abordagem comoexpresses sociais de externalidades no-internalizadas.

    4 Buscando indicadores biofsicos

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    Muito embora os diversos conceitos de sustentabilidade acima mencionadostenham o mrito de chamar a ateno para o problema da depreciao dos ativosambientais, vimos que estimativas empricas baseadas na valorao monetria docapital natural so enganosas. Como veremos brevemente a seguir, vrios autoresconsideram mais adequado definir claramente restries biofsicas para garantir a

    sustentabilidade do desenvolvimento, insistindo na necessidade de assegurar poroutros mecanismos que no apenas os de mercado a proteo e a renovao dosativos ambientais.11

    A assim chamada abordagem termodinmica certamente aquela que temdedicado maior ateno sistemtica ao problema da insuficincia de indicadoresbaseados na valorao monetria de um determinado estoque de capital natural,sendo louvvel sua busca de indicadores biofsicos mais adequados. De fato, osesforos de autores como Boulding (1966), Ayres & Kneese (1969), Georgescu-Roegen (1971), Victor (1972), Daly (1977) e Perrings (1987) representam umaimportante tentativa de incorporar as leis da fsica economia, o que imediatamente

    conduz necessidade de adotarmos indicadores biofsicos de desenvolvimentosustentvel e de impormos restries biofsicas para que essa sustentabilidade sejaeventualmente alcanada.

    Duas so as correntes em que se subdivide a abordagem termodinmica.Uma corrente se baseia na primeira lei da termodinmica a lei da conservao damatria e da energia para enfatizar a necessidade de balanceamento entre osinsumos materiais e energticos utilizados na atividade produtiva e os resduoscorrespondentes. A outra corrente se baseia na segunda lei da termodinmica,enfatizando o fato de a atividade econmica utilizar matria e energia de baixaentropia e convert-las em matria e energia de alta entropia. No longussimo prazo,essa inevitabilidade da crescente entropia do sistema econmico implica que odesenvolvimento sustentvel no alcanvel.

    (11) De maneira mais ampla, em oposio abordagem neoclssica, encontra-se um campo deelaborao terica formado por outras abordagens que se desenvolveram exatamente em oposio aoreducionismo individualista e ao hedonismo utilitarista neoclssicos. Essas abordagens, ao invs deutilizarem o indivduo como centro analtico, tomam o ambiente institucional para tal; ao invs detomarem as utilidades ou preferncias individuais como elemento determinante dos valores econmicos,tomam esses valores como resultado da institucionalizao de opes e conflitos sociais. Entre essasabordagens institucionais, destacam-se, alm da clssico-sraffiana resgatada no item anterior, ainstitucionalista, a regulacionista e a ps-keynesiana, estas trs ltimas discutidas detalhadamente, porexemplo, em Amazonas (1994, 1998).

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    Na avaliao de Gowdy (1994), assegurar a sustentabilidade ambientalrequer muito mais que a catalogao e a correspondente atribuio de valoreconmico aos componentes do capital natural. Ainda que as mltiplas contribuiesdo capital natural fossem devidamente isoladas e corretamente precificadas pelomercado, isso no asseguraria a sustentabilidade ambiental. Em termos econmicos,

    o capital no algo a ser mantido intacto, mas, sim, algo a ser utilizado na produode bens e servios transacionveis no mercado. Numa economia de mercado,portanto, o capital natural ser inevitavelmente destrudo caso o retorno obtenvelcom o seu uso produtivo seja superior, deduzidos os custos econmicos dessadestruio, ao obtenvel com outras formas de investimento. Em outras palavras, asustentabilidade ambiental no naturalmente engendrada pela livre operao dasforas de mercado, sendo, inclusive, eventualmente irracional em termoseconmicos. Da, portanto, a necessidade de definir claramente restries biofsicosa serem diretamente respeitadas pela sociedade no exerccio de suas atividadeseconmicas.

    Na mesma linha, Wackernagel & Rees (1997) argumentam que aracionalidade econmica, longe de estimular investimentos em capital natural, acabapor acelerar a depleo dos estoques de capital natural, sendo esse um problemaque as anlises monetrias convencionais no conseguem detectar. Nesse contexto,os autores propem uma medida biofsica dos estoques e fluxos naturais relevantesutilizando o conceito de pegada ecolgica.12 Seguindo Costanza & Daly (1992),utilizam um conceito amplo de capital natural, o qual inclui no somente os recursosbiofsicos e depsitos de resduos necessrios ao suporte da atividade econmicahumana, mas, inclusive, as relaes entre as entidades e processos que fornecemsuporte de vida ecosfera. Com isso, o capital natural se refere a um estoque deativos naturais que capaz de produzir um fluxo sustentvel, com a definio de

    sustentabilidade correspondente sendo que cada gerao deve herdar um estoque deativos biofsicos essenciais no-inferior ao estoque desses ativos herdados pelagerao anterior.

    Hinterberger et al. (1997), por sua vez, criticam a regra de poupana dePearce & Atkinson (1993) contra-argumentando que no a taxa de poupana da

    (12) A pegada ecolgica, entendida por eles como a capacidade de carregamento apropriada de umaeconomia, ento definida como sendo a capacidade ecolgica necessria para sustentar essa economia.Como uma primeira aproximao, uma pegada ecolgica pode ser definida como os recursos naturais de quenecessita um grupo de participantes de uma certa economia para produzirem os recursos que consomem epara se desfazerem dos rejeitos correspondentes.

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    economia, mas, sim, seu estoque de insumos biofsico-materiais, que determina suasustentabilidade. Para eles, a noo de capital natural trata a natureza como ummero ativo do tipo conta de poupana, o que certamente no seria o caso. Contudo,admitem que a metfora do capital natural til para se ilustrar os problemas quesurgem quando uma sociedade consome capital ao invs de renda, ainda que no

    nos habilite a dar os passos prticos em direo sustentabilidade. Dado que osagentes econmicos necessitam de indicadores prticos que norteiem o ajustamentode seu comportamento econmico, esses autores acreditam ser mais sensatoestimarmos a depreciao do capital natural pelos fluxos biofsico-materiais que soretirados do meio-ambiente e posteriormente devolvidos a ele. Portanto, eles nopropem abandonar por completo a idia de manter o capital natural intacto, apenassugerem que devemos evitar sua depreciao por meio da efetiva limitao dosinsumos biofsico-materiais, os quais configuram um indicador que faz mais sentidopara os agentes econmicos.

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