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CAPÍTULO I - O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Autor: ANDRÉ EDGAR CASSEL CAPÍTULO I - O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO............................ 1.1 Desenvolvimento histórico da responsabilidade civil................................................... 1.2 Função da responsabilidade civil................... 1.3 A responsabilidade civil como um dever jurídico sucessivo............................................... 1.4 Classificação da responsabilidade civil em extracontratual e contratual............................ 1.5 A responsabilidade extracontratual................. 1.5.1 A conduta..................................... 1.5.2 O dano........................................ 1.5.3 O nexo causal................................. 1.5.4 A culpa como elemento diferenciador da responsabilidade civil subjetiva e objetiva.......... 1.5.5 A teoria do risco como fundamento da responsabilidade civil objetiva...................... 1.5.6 A responsabilidade objetiva e a socialização dos riscos........................................... 1.5.7 A culpa como elemento essencial da responsabilidade civil subjetiva..................... 1

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CAPÍTULO I - O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Autor: ANDRÉ EDGAR CASSEL

CAPÍTULO I - O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO...................................................................

1.1 Desenvolvimento histórico da responsabilidade civil...........................................

1.2 Função da responsabilidade civil...........................................................................

1.3 A responsabilidade civil como um dever jurídico sucessivo.................................

1.4 Classificação da responsabilidade civil em extracontratual e contratual...............

1.5 A responsabilidade extracontratual.......................................................................

1.5.1 A conduta.....................................................................................................

1.5.2 O dano.........................................................................................................

1.5.3 O nexo causal..............................................................................................

1.5.4 A culpa como elemento diferenciador da responsabilidade civil

subjetiva e objetiva................................................................................................

1.5.5 A teoria do risco como fundamento da responsabilidade civil objetiva......

1.5.6 A responsabilidade objetiva e a socialização dos riscos.............................

1.5.7 A culpa como elemento essencial da responsabilidade civil subjetiva.......

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1.1 Desenvolvimento histórico da responsabilidade civil

A vida em sociedade, atualmente, é requisito inerente à própria existência do ser

humano. Para que seja viabilizado o convivo harmônico e pacífico, é indispensável que

exista um complexo de valores e normas com a finalidade de reger estas condutas, evitando

a supremacia da força bruta sobre a razão e o intelecto das pessoas. Com este objetivo

regulamentador, surge o ordenamento jurídico, em especial a sua ramificação civilista que

busca organizar a vida das pessoas em sociedade, estipulando normas e regras para limitar e

orientar a atividade e a conduta dos seres humanos.

Neste contexto, surge o instituto da responsabilidade civil, procurando preservar,

justamente, a harmonia da convivência social ou, em outras palavras, estabelecer um

regramento que proteja o cidadão regrado, cuja conduta condiz com o ditames do Direito e

com os valores sociais vigentes, advertindo, conseqüentemente aquele que contraria as

regras e abala a paz social. Assim, via de regra, todo aquele que for responsabilizado por

um dano causado a outrem deverá ressarci-lo1 conforme as regras ditadas pelo instituto em

questão, o que destaca a sua essencialidade dentro do ordenamento jurídico.

Tendo em vista esta importância, merece destaque, inicialmente, uma análise do

desenvolvimento histórico2 da responsabilidade civil, destacando-se os acontecimentos

1 Neste contexto, fica evidenciado que a responsabilidade civil baseia-se, em linhas gerais, no princípio neminem leadere, cuja interpretação dispõe que ninguém poderá causar, injustificadamente, dano a outrem (dever genérico de não lesar), sob pena de ter de repará-lo.2 Ver: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. vol. 1. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 13-41; FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003,

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mais relevantes, para, ao final, analisar a sua atual função dentro do ordenamento jurídico.

A responsabilidade civil surgiu e evoluiu, como já dito, com base na harmonia e no

equilíbrio social que acarreta, ao agente causador do dano, o dever de repará-lo, colocando

a vítima, em tese, o mais próximo possível do estado, patrimonial e psicológico, anterior ao

dano, restabelecendo o equilíbrio desfeito. Entretanto, nem sempre existiu uma ordem

jurídica tal como hoje, isto é, antes do advento do Direito, que impôs regras e normas de

conduta limitando a autodefesa e a liberdade dos cidadãos, primava o sentimento de

vingança, ou seja, cada ser humano procurava ressarcir-se dos danos que lhe eram

provocados através de suas próprias forças, reagindo instintivamente ao mal provocado,

sem qualquer perquirição de culpa ou qualquer forma de intervenção estatal direta,

acarretando, assim, o primado da força bruta e da selvageria.

Mais tarde, já no período do Direito Romano, com o início da instauração de um

ordenamento jurídico mais avançado, onde, inicialmente, primava o instinto da retaliação

ao agente causador do dano em detrimento da reparação do dano, que vingou somente após

um longo período de desenvolvimento social e cultural que culminou na instituição da

chamada compensação que, por sua vez, pregava justamente a reparação do dano ao invés

da retaliação do ofensor, afastando a vingança privada do, então, “plano legal e moral”, ou

seja, proibiu-se a autojustiça, impondo a composição. Justamente aqui, o Estado assume a

direção da composição das controvérsias, estabelecendo regras específicas para a resolução

dos conflitos. Surge, então, a divisão entre a responsabilidade penal, ou seja, o monopólio

do Estado para punir as infrações mais graves e a responsabilidade civil, ensejando o

surgimento da ação de indenização entre os particulares nas questões que envolvem

p. 154-161; GONÇALVES, Carlos Roberto. Comentários ao Código Civil. vol. 11. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 7-13.

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infrações adjetivadas como menos relevantes ou agressivas, cujos primeiros fundamentos

surgiram a partir da Lei Aquília. Com o desenvolvimento social, as hipóteses de incidência

da ação de indenização, bem como as partes legitimadas a invocá-la, foram se expandindo,

absorvendo, cada vez mais, novas situações onde o dano é passível de reparação.

Entretanto, o casuísmo dominante no direito Romano impediu o surgimento de um

princípio geral da responsabilidade civil.

Assim, quanto à evolução dos demais sistemas jurídicos estrangeiros, cabe destacar

o direito civil francês que estabeleceu justamente um princípio geral para responsabilidade

civil, mediante cláusula geral instituidora de uma responsabilidade subjetiva, isto é, baseada

na culpa, abandonado o critério taxativo e enumerativo dos casos de compensação

obrigatória. Nesse contexto, ao contrário da Lei Aquília, permite-se o ressarcimento dos

danos materiais não visíveis, isto é, os ganhos futuros e legítimos, hoje denominados lucros

cessantes. O Código Napoleônico, além de prever a responsabilidade subjetiva, distinguiu a

culpa delitual da culpa contratual, influenciando, a partir de então, os ordenamentos

jurídicos de todo o mundo.

No que toca ao direito pátrio, mas precisamente após o advento do Código Civil de

1916, percebe-se a supremacia da responsabilidade civil subjetiva, como regra geral,

admitindo o ressarcimento tanto do dano patrimonial como do dano extrapatrimonial,

principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. O referido Diploma

Civil abordava a responsabilidade extracontratual subjetiva no seu artigo 159, deixando a

normatização da responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco (afastando idéia de

culpa), para a legislação extravagante, para os pareceres doutrinários e as decisões

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jurisprudenciais. A responsabilidade objetiva desenvolveu-se principalmente após o

processo de industrialização, isto é, quando a responsabilidade baseada na culpa tornou-se

insuficiente frente aos anseios sociais frente e ao desenvolvimento tecnológico desenfreado.

Já a responsabilidade contratual, isto é, aquela que advém do ilícito contratual, quando,

entres as partes, pré-exista uma relação contratual, está, genericamente, disposta no seu

artigo 1.056. A reparação do dano material seguia, embora sem previsão expressa, o

princípio da restituição integral do dano, independentemente da gravidade da culpa do

agente. Quanto ao dano extrapatrimonial ou moral, além de admissível a sua reparação

apenas com base apenas no citado artigo 159 que utiliza a expressão “violar direito, ou

causar prejuízo a outrem” e o artigo 76, também do Código Civil de 1916, que dispunha ser

suficiente, para contestar uma ação, o legítimo interesse moral, a Constituição Federal de

1988, no seu artigo 5º, V a X, previu, expressamente a compensação pelo dano moral,

afastando qualquer discussão a este respeito3.

Neste contexto surgiu o novo Código Civil, cujas características e inovações

condizentes à responsabilidade civil passarão a ser abordadas a partir de agora, iniciando-se

pela função da responsabilidade civil dentro do ordenamento jurídico, ressaltando e

analisando, sempre que possível, as alterações relevantes em relação ao Código Civil

anterior para a melhor compreensão do desenvolvimento histórico do instituto em questão,

auxiliando, assim, para a correta interpretação das novas regras e dos novos paradigmas

implementados.

3 No que diz respeito ao desenvolvimento histórico da possibilidade de reparação do dano extrapatrimonial, bem como a distinção entre a teoria monista e a teoria dualista da responsabilidade civil, por motivos didáticos, abordar-se-ão estes assuntos juntamente com caracterização e classificação do dano em material e moral e da responsabilidade civil em extracontratual e contratual, respectivamente.

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1.2 Função da responsabilidade civil

A responsabilidade civil possui, essencialmente, uma função reparatória nos casos

de dano material, buscando retomar o equilíbrio patrimonial e jurídico anteriormente

existente, acarretando, portanto, a regra geral que prega a restituição integral do dano. Já

nas hipóteses de dano extrapatrimonial ou moral, percebe-se uma função compensatória, ou

seja, procura-se, através de uma indenização pecuniária, recompensar o sofrimento, a

humilhação e a dor sofrida pela vítima.

Nesse contexto, pode-se destacar, ainda, outras duas funções importantes: a punitiva

e a dissuasória ou preventiva. A primeira havia sido quase que totalmente transmitida à

responsabilidade penal, mas retornou juntamente com a admissibilidade da indenização dos

danos extrapatrimoniais, recuperando-se as idéias de penas privadas, já que, nesse caso,

além de punir a conduta ilícita praticada pelo agente, através da compensação financeira,

procura-se previnir a reincidência ou repetência de uma conduta semelhante.

Apesar de Eugênio Facchini Neto afirmar que “o foco atual da responsabilidade

civil, pelo que se percebe da sua evolução histórica e tendências doutrinárias, tem sido no

sentido de estar cada vez mais centrada no imperativo de reparar um dano do que na

censura do seu responsável”4, é inegável que as funções punitiva e preventiva (a censura)

jamais desaparecerão, visto que a indenização por dano extrapatrimonial, em razão da

4 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 155.

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subjetividade valorativa dos bens envolvidos, sempre apresentará, no mínimo

indiretamente, um resquício de punição ou censura ao responsável, devendo apresentar um

equilíbrio para evitar o enriquecimento ilícito da vítima5 e a impunidade do ofensor, sempre

levando em consideração a gravidade da conduta infratora e a extensão de suas

conseqüências6.

1.3 A responsabilidade civil como um dever jurídico sucessivo

Com a análise funcional da responsabilidade civil, facilita-se a conceituação deste

instituto jurídico, bem como a sua compreensão na qualidade de dever jurídico sucessivo,

derivando desta linha de raciocínio a maioria dos elementos e dos requisitos para a sua

correta caracterização e interpretação. Por isso, destaca-se, primeiramente o sentido

etimológico e o sentido jurídico da responsabilidade7 civil. O primeiro exprime a noção de

obrigação, encargo, contraprestação, enquanto o segundo designa o dever que alguém tem

de reparar o prejuízo decorrente da violação de um dever jurídico8.

5 Antonio Montenegro verifica “o enriquecimento sem causa quando o patrimônio de alguém se enriquece à custa do conseqüente empobrecimento do de outrem. O dano consiste no deslocamento de uma parcela patrimonial sem que uma causa justifique esse fenômeno”. (MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Ressarcimento de danos. 5.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998, p. 175).6 Os elementos e requisitos apreciáveis na quantificação da indenização a título de dano extrapatrimonial serão abordados novamente, e melhor explanados, quando se tratar da classificação entre o dano patrimonial e extrapatrimonial.7 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, ao compor o seu dicionário de língua portuguesa, conceitua a responsabilidade como sendo, na acepção jurídica, “a obrigação de reparar o mal que se causou a outros” ou, ainda, conforme um conceito filosófico, “situação de um agente com relação aos atos que ele pratica voluntariamente”. (FERREIRA, Aurélio de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1754).8 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 22.

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Ao conceituar o dever jurídico, Sérgio Cavalieri Filho o adjetiva como

[...] a conduta de uma pessoa imposta pelo Direito positivo por exigência da convivência social. Não se trata de simples conselho, advertência ou recomendação, mas de uma ordem ou comando dirigido à inteligência e à vontade dos indivíduos, de sorte que impor deveres jurídicos importa criar obrigações9.

Nesses termos, imposto o dever jurídico, aqui denominado originário, ou seja,

criado o vínculo obrigacional, por exemplo, a responsabilidade civil nada mais será do que

o surgimento de um outro dever jurídico, então denominado de sucessivo, advindo da

violação do dever originário. Assim, existindo tal violação e o conseqüente dano a outrem,

bem como a relação de causalidade entre a conduta e o resultado, tem-se a função

primordial da responsabilidade civil, qual seja reparar ou compensar o prejuízo causado

pela violação do dever jurídico preexistente.

Está violação do dever jurídico acarreta a existência de um ato ilícito que indica a

contrariedade da conduta humana em relação ao Direito, ou seja, uma conduta humana

antijurídica. Aqui, o novo Código Civil, no seu artigo 18710, inovou caracterizando,

expressamente, o abuso de direito como ato ilícito11. O novo Diploma Civil adotou a teoria

objetiva do abuso de direito não exigindo, segundo Eugênio Facchini Neto, a “intenção de

9 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 21.10 Artigo 187 do novo Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Já o ato ilícito lato sensu, ainda vinculado à idéia de culpa, mas prevendo expressamente o dano moral, encontra-se regrado no artigo 186 do mesmo Diploma Legal: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.11 Para um melhor aprofundamento quanto ao desenvolvimento da teoria do abuso de direito, ver: RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: responsabilidade civil. vol. 4. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 43-56.

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prejudicar, contentando-se com o excesso objetivamente constatável”12. Assim, os direitos

subjetivos não seriam conferidos aos indivíduos de uma maneira aleatória e absoluta, sob o

prisma do individualismo, mas regrados e limitados conforme a sua função social e

econômica, em prol da convivência social, cujo abuso no seu exercício acarreta o dever de

reparar o dano causado. Por outro lado, não será considerado ilícito o ato praticado em

legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido, bem como o ato que,

visando remover um perigo iminente, deteriora ou destrói coisa alheia ou, ainda, causa

lesão a outrem, observadas a necessidade do ato e os limites necessários para a remoção do

perigo13.

1.4 Classificação da responsabilidade civil em extracontratual e contratual

Tendo-se como base a qualificação do ato ilícito, pode-se classificar ou dividir a

responsabilidade civil em extracontratual ou contratual, fundamentando, assim, a adoção da

teoria dualista ou clássica, em detrimento da teoria unitária ou monista. Os adeptos da

teoria unitária criticam a classificação da responsabilidade civil em contratual ou

extracontratual, alegando a desnecessidade de tal divisão, em razão da uniformidade das

conseqüências e dos efeitos de ambas as espécies. Carlos Roberto Gonçalves afirma que,

basicamente:

12 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 171.13 Artigo 188 do novo Código Civil: “Não constituem atos ilícitos: (I) - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; (II) - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo”.

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[...] as soluções são idênticas para os dois aspectos. Tanto em um como em outro caso, o que, em essência, se requer para a configuração da responsabilidade são estas três condições: o dano, o ato ilícito e a causalidade, isto é, o nexo de causa e efeito entre os primeiros elementos. Esta convicção é, hoje, dominante na doutrina. Nos códigos de diversos países, inclusive no Brasil, tem sido, contudo, acolhida a tese dualista ou clássica, embora largamente combatida14.

Antes de fundamentar a escolha pela teoria dualista, faz-se necessária a

diferenciação da responsabilidade extracontratual e contratual, evidenciando as

características de cada uma, cujo marco diferenciado aponta para a origem do dever

jurídico originário violado. Em outras palavras, havendo um vínculo obrigacional (um

contrato, isto é, um acordo de vontades) prévio, ou preexistente, entre as partes, estaremos

diante de uma responsabilidade contratual, advindo a indenização como conseqüência do

inadimplemento deste contrato. Por outro lado, não havendo entre as partes qualquer

relação jurídica preexistente, ou seja, quando a causa geradora da responsabilidade for uma

obrigação imposta por preceito geral de Direito ou pela própria lei, vislumbraremos a

responsabilidade extracontratual15.

Outro fator diferenciador envolve a distribuição do ônus da prova. Na

responsabilidade extracontratual subjetiva a regra é a culpa provada, nos termos do artigo

333 do Código de Processo Civil16. Já na responsabilidade contratual, deve-se diferenciar a

natureza da obrigação assumida, ou seja, caso exista uma obrigação de resultado, onde o

14 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 25.15 Antonio Montenegro dispõe que a justificativa da responsabilidade contratual se põe na quebra do contrato e o da extracontratual na violação do dever legal de não prejudicar a ninguém, expresso pelo Direito romano através da máxima neminem laedere”. (MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 3).16 Artigo 333 do Código de Processo Civil: “O ônus da prova incumbe: (I) - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; (II) - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Parágrafo único.   É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando: (I) - recair sobre direito indisponível da parte; (II) - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito”.

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contratante assumiu a obrigação de alcançar determinados resultados, a culpa será

presumida, cabendo ao credor provar o simples inadimplemento do devedor que, para não

ser responsabilizado, deverá demonstrar a ausência de culpa ou a incidência de uma

excludente do nexo causal. Já na obrigação de meio, onde não há comprometimento com

um determinado resultado, mas apenas com uma conduta correta e adequada direcionada

para o fim almejado, a responsabilidade estará fundada na culpa provada17.

Outro elemento a ser destacado é a diferença quanto à capacidade das partes

envolvidas. Segundo Sílvio Rodrigues:

[...] o menor púbere18 só se vincula contratualmente assistido por seu representante legal e, excepcionalmente sem ele, se maliciosamente declarou-se maior (CC, art. 180); portanto, só pode ser responsabilizado por seu inadimplemento nesses casos; na responsabilidade aquiliana, entretanto, cumpre-lhe reparar o prejuízo sempre, pois se equipara ao maior quanto às obrigações resultantes de atos ilícitos que for culpado (CC de 1916, art. 156)19.

Neste contexto, conforme os argumentos acima apresentados, é inegável a

praticidade ensejada pela aplicação da teoria dualista que classifica a responsabilidade civil

em extracontratual e contratual, visto que a origem e os desdobramentos de ambas as

espécies apontam para caminhos diferentes. Além disso, o novo Código Civil acolheu

expressamente esta teoria, fixando a responsabilidade extracontratual nos seus artigos 186 e 17 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e a sua interpretação jurisprudencial. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 82-84.18 O menor púbere é aquela pessoa entre os 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos de idade, nos termos do artigo 180 do novo Código Civil.19 RODRIGUES, Sílvio. Op. cit., p. 10. Ver também artigo 928 do novo Código Civil: “O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”.

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92720, enquanto a responsabilidade contratual está regrada no seu artigo 38921. Feita esta

opção pela teoria dualista ou clássica, passe-se, agora, a análise da responsabilidade

extracontratual, demonstrando as suas principais características, peculiaridades e

desdobramentos para, num momento posterior, fazer o mesmo com a responsabilidade

contratual, sempre procurando destacar um paralelo comparativo entre ambas as espécies.

1.5 A responsabilidade extracontratual

A responsabilidade extracontratual apresenta dois desdobramentos distintos que a

classifica em subjetiva e a objetiva. Ambas apresentam como requisitos fundamentais a

existência de um dano e a relação de causalidade entre este e a conduta do agente a ser

responsabilizado. A diferença entre elas reside, primordialmente, na necessidade ou na

independência quanto à existência do elemento psicológico, isto é, da culpa. Entretanto,

antes da análise da culpa, precede, por motivos didáticos, a abordagem da conduta, do dano

e do nexo causal, para, então, abordar a culpa e os seus desdobramentos, esclarecendo a

diferença entre a responsabilidade subjetiva e a objetiva.

20 Artigo 927 do novo Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.21 Artigo 389 do novo Código Civil: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”. Favoravelmente à adoção da teoria dualista também argumentam Sérgio Cavalieri (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 226); e Carlos Gonçalves (GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 24).

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1.5.1 A conduta

A conduta pode ser exteriorizada tanto através de uma ação como por uma omissão,

desde que estas produzam conseqüências jurídicas. A ação consiste num movimento

corpóreo comissivo, isto é, um comportamento positivo. Já a omissão, ao contrário,

caracteriza-se pela inatividade, ou seja, pela abstenção de uma conduta devida. A

relevância jurídica da omissão e a conseqüente responsabilidade do omitente, segundo

Sérgio Cavalieri Filho, ocorre “quando este tem dever jurídico de agir, de praticar um ato

para impedir o resultado, dever, esse, que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma

conduta anterior do próprio omitente, criando o risco da ocorrência do resultado, devendo,

por isso, impedi-lo”22. No mesmo sentido, Carlos Roberto Gonçalves salienta que, “para

que se configure a responsabilidade por omissão, é necessário que exista o dever jurídico de

praticar determinado ato (de não se omitir) e que se demonstre que, com a sua prática, o

dano poderia ter sido evitado”23.

1.5.2 O dano

O dano é um requisito essencial da responsabilidade civil, visto que, sem prejuízo,

não existe qualquer dever reparatório ou compensatório, sob pena de enriquecimento sem

causa da parte beneficiada pela indenização24. O dano pode ser conceituado de várias

22 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 37-38.23 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 927.24 Ressalta-se que, na incidência da cláusula penal, instituto próprio da responsabilidade civil contratual, não é necessário que o credor alegue prejuízo, nos termos do artigo 416 do novo Código Civil (a conceituação e os desdobramentos da cláusula penal serão abordados, posteriormente, juntamente com os requisitos da responsabilidade contratual no item 1.6.2). Nesse

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formas, entretanto inúmeros conceitos perderam substancialidade com a recepção do dano

moral ou não-patrimonial, seguindo um novo posicionamento da doutrina e da

jurisprudência25. De acordo com estas novas tendências, Sérgio Cavalieri Filho conceitua:

[...] o dano como sendo a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade, etc. Em suma, dano é a lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral26.

O dano patrimonial ou material é aquele que atinge o patrimônio da vítima, podendo

ser avaliado economicamente em pecúnia, isto é dinheiro. Esta espécie de dano compreende

o dano emergente ou positivo, isto é, a efetiva e imediata diminuição patrimonial do lesado,

representada pela diferença no valor patrimonial atual em relação aquele constatado no

momento anterior ao dano, sendo por este reduzido; e o lucro cessante, ou seja, o reflexo

futuro sobre o patrimônio da vítima, compreendendo aquilo que ela razoavelmente deixou

de ganhar, de acordo com a probabilidade objetiva que José Aguiar Dias conceitua como o

“desenvolvimento normal dos acontecimentos conjugado às circunstâncias peculiares ao

caso concreto”27. A mesma linha de raciocínio esta inserida no artigo 402 do novo Código

sentido, José de Aguiar Dias observa que “em matéria extracontratual, não se levanta nenhuma dúvida sobre a necessidade do prejuízo. Isso já suscita dificuldade, contudo, no campo da responsabilidade contratual, o que é determinado pela suposição comum de que o simples inadimplemento do contrato já constitui o dano. Ora, isso não é verdadeiro, e, então, o credor para responsabilizar deve provar o dano sofrido. Só não ocorre o mesmo no caso da cláusula penal, da reparação à forfait ou da indenização mínima, que são devidas independentemente de qualquer prova por parte do credor”. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. vol. 2. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 717).25 Por motivos didáticos, explicar-se-á este novo posicionamento doutrinário e jurisprudencial juntamente com a abordagem do dano moral, posteriormente realizada.26 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 80.27 DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 721.

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Civil28 que limita o lucro cessante ao “ganho esperável”, adotando, assim, implicitamente,

as regras ditadas pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade29.

Aqui, percebe-se claramente a função reparatória do dano patrimonial, acarretando a

regra do restitutio in integrum, ou seja, a indenização deverá ser suficiente para reparar

todo o desfalque patrimonial criado, englobando o dano emergente e o lucro cessante,

visando recolocar a vítima na situação econômico-financeira anterior a lesão. Nesse

sentido, dispõe a regra geral, prevista no artigo 944, caput, do novo Código Civil. Segundo

Eugênio Facchini Neto:

[...] daí a lição, que era corrente, segundo a qual o montante da indenização seria obtido levando-se em conta a extensão do prejuízo e desconsiderando-se a intensidade da culpa. Reafirma-se, destarte, a tradição do direito brasileiro de adotar a teoria objetiva para a quantificação dos danos indenizáveis30.

Por outro lado, a indenização a título de dano moral ou extrapatrimonial nem

sempre foi aceita pelo ordenamento jurídico. Negava-se tal ressarcibilidade sob o

argumento de que os bens abrangidos pelo dano moral são extremamente subjetivos, sendo,

por isso, inestimáveis pecuniariamente31. Com o desenvolvimento social e cultural, passou-

28 Artigo 402 do novo Código Civil: “Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”.29 Ver: MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 11-20.30 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 184. Ver também: MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 217-220. A exceção ao princípio da restituição integral do dano, prevista no artigo 944, parágrafo único, do novo Código Civil, será abordada no capítulo IV em razão da grande importância e complexidade do tema que merece uma apreciação mais aprofundada.31 Segundo Sílvio Rodrigues, os argumentos dos adversários do ressarcimento do dano moral podem ser metodicamente reduzidos a este esquema: “a) a falta de efeito penoso durável do dano meramente moral; b) a dificuldade em descobrir-se a existência do dano; c) a indeterminação do número de pessoas lesadas; d) impossibilidade de rigorosa avaliação em dinheiro da extensão do dano moral; e) o ilimitado poder que se tem de conceder ao juiz para avaliar o montante

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se a aceitar uma indenização de caráter compensatório pela dor, sofrimento ou humilhação

suportada pela vítima. Surge também a necessidade de aplicação de uma pena ao infrator,

visando evitar a repetência de conduta semelhante. Assim, o dano moral poderia ser

ressarcido desde que autonomamente, isto é, não cumulado com o dano material, sob o

argumento de que o segundo absorveria o primeiro32. Entretanto, atualmente, a indenização

por dano moral é perfeitamente admissível, visto que o próprio artigo 186 do novo Código

Civil refere-se expressamente ao dano moral, ratificando o posicionamento da Constituição

Federal de 1988 que, no seu artigo 5º, V a X, já admitia a indenização por dano moral. A

cumulatividade deste com o dano patrimonial também está pacificada, visto que ambas as

espécies atingem bens jurídicos completamente diferentes, ou seja, enquanto o dano

material atinge o patrimônio da vítima, o dano moral atinge a sua dignidade, causando dor,

vexame e humilhação. Nesse sentido, dispõe a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça:

“são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.

Nessa linha de raciocínio, no que se refere à distinção entre o dano material e o

moral, Aguiar Dias complementa argumentado que:

[...] a distinção, ao contrário do que parece, não decorre da natureza do direito, bem ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter da sua repercussão sobre o lesado. De forma que tanto é possível ocorrer dano patrimonial em conseqüência de lesão a um bem não patrimonial como dano moral em resultado de ofensa a um bem material33.

compensador do dano meramente moral”. (RODRIGUES, Sílvio. Op. cit., p. 190).32 Quanto à evolução história do dano moral, ver: DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 729-764; e PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 53-62.33 DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 729.

16

Assim, um conceito negativo de dano moral, ou seja, qualificá-lo, por exclusão,

como todo dano que não atinge o patrimônio da vítima (dano não material), torna-se

insuficiente e pouco proveitoso para a sua compreensão e aplicabilidade. O melhor

caminho a ser trilhado é aquele que indica para um conceito positivo, embasado na

Constituição Federal de 1988 que coloca o homem no topo do ordenamento jurídico,

conceituando-se, então, o dano moral como sendo, qualquer violação do direito à dignidade

humana34. Dada a hierarquia máxima da Carta Magna dentro do ordenamento jurídico, é

inegável que a configuração do dano moral parte de uma violação do princípio da dignidade

da pessoa humana que está consagrado na Constituição Federal de 198835 como um dos

fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito.

Da mesma forma, Sérgio Cavalieri Filho dispõe que:

[...] os bens que integram a personalidade constituem valores distintos dos bens patrimoniais, cuja agressão resulta no que se convencionou chamar de dano moral. Essa constatação, por si só, evidencia que o dano moral não se confunde com o dano material; tem existência própria e autônoma, de modo a exigir tutela jurídica independente. Enquanto o dano material atinge o patrimônio, o moral atinge a pessoa. Este último é a reação psicológica que a pessoa experimenta em razão de uma agres-são a um bem integrante de sua personalidade, causando-lhe vexame, sofrimento, humilhação e outras dores do espírito36.

34 Antonio Montenegro entende que “a tutela ressarcitória da pessoa humana compreende a vida, a integridade corporal (bens físicos), a honra e a liberdade (bens morais). Nesse contexto, considera-se como dano à pessoa toda ofensa dirigida contra a sua integridade física ou incolumidade moral, a acarretar-lhe conseqüências desfavoráveis como entidade somática e psíquica”. (MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 55).35 Artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988. O princípio da dignidade da pessoa humana será retomado, posteriormente no capítulo III, onde serão analisadas todas as suas características e os seus desdobramentos, tendo em vista a profunda modificação axiológica e interpretativa acarretada pela aplicação deste princípio fundamental e constitucionalmente consagrado. 36 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 85.

17

Assim sendo, é inegável a distinção entre o dano material e o dano moral, sendo este

último passível de indenização independentemente da existência de dano material,

admitindo-se inclusive a cumulação de ambos, visto que ambas as espécies acarretam

conseqüências distintas ao lesado37.

Relacionando-se o dano moral à violação do direito à dignidade da pessoa humana,

percebe-se claramente que ele é insuscetível de avaliação ou apreciação pecuniária devido à

sua natureza imaterial, isto é, a subjetividade dos bens jurídicos envolvidos. Assim, a

indenização imposta ao causador do dano extrapatrimonial não pode seguir a regra da

reparação integral do dano (restitutio in integrum), devendo, contudo, obedecer aos ditames

dos princípios da razoabilidade ou da proporcionalidade. Então, somente acarretará dano

moral a infração à dignidade da pessoa que for suficientemente agressiva, causando-lhe dor,

sofrimento ou humilhação considerável do ponto de vista da razoabilidade, ou seja, que

realmente interfiram no seu comportamento psicológico, descartando-se, assim, os

aborrecimentos triviais condizentes com a normalidade, sob pena de banalização do dano

moral38. Assim, não há como negar a função compensatória do dano moral que também

pode apresentar, ao menos indiretamente, uma função pedagógica-preventiva ao infrator,

visando evitar a repetência da conduta danosa.

37 A evolução doutrinaria e a crescente receptividade do dano moral, criaram o que Caio Mário da Silva Pereira convencionou chamar de “dano moral em ricochete”. Para ele, “a base da tese é a aceitação do prejuízo de afeição acompanhando a morte ou os ferimentos sofridos por um ser humano. Para que ocorra neste caso o dano reflexo ou em ricochete, é preciso que os próximos da vítima sofram um dano de gravidade excepcional”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 56-57).38 Nesse mesmo sentido, ver: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 89.

18

A prova do dano moral também é diferenciada do dano patrimonial. Ela dependerá

da comprovação da própria conduta ofensiva que o gerou, ou seja, provada a ofensa, e

constatada a sua gravidade e a intensidade, de acordo com o princípio da razoabilidade ou

da proporcionalidade, comprovada estará a existência de dano moral. Em outras palavras, o

dano moral está ligado à gravidade do próprio fato ofensivo, derivando, assim, via de regra,

do próprio ato ilícito. A forma mais adequada para fixar o valor da indenização a título de

dano moral é o arbitramento judicial, devendo o juiz, prudentemente, atentar, conforme

observa Sérgio Cavalieri Filho, “para a repercussão do dano e a possibilidade econômica do

ofensor, estimando, assim, uma quantia a título de compensação pelo dano moral”,

observados ambos os princípios acima citados39. O arbitramento judicial, prudentemente

exercido, é a única forma de quantificar o dano material, visto que após o advento da

Constituição Federal de 1988, revogou-se qualquer limitação ou valoração legalmente

prefixada para a indenização a título de dano moral, visto que a própria Carta Magna não

estabeleceu limites numéricos, apenas princípiológicos, revogando-se, assim, em nome da

superioridade hierárquica desta, qualquer prefixação legal existente40.

39 Como exemplo dos argumentos suscitados, segue uma ementa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que evidencia os fatores relevantes na hipótese de arbitramento judicial do dano moral, conforme seque: “RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ENCAMINHAMENTO DE TÍTULO PAGO A PROTESTO. APLICAÇÃO DA TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA. A conduta negligente do banco foi a causa direta e imediata para o evento danoso, razão pela qual e exclusivamente responsável pelo pagamento dos cheques falsos. Dano moral configurado. Critérios para a fixação de um valor adequado. Juízo de eqüidade atribuído ao prudente arbítrio do juiz. Compensação à vítima pelo dano suportado. Punição ao infrator, consideradas as condições econômicas e sociais do agressor, bem como a gravidade da falta cometida, segundo um critério de aferição subjetivo. Apelo provido”. (TJRS, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70004784567, Rel. Des. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, julgado em 25.06.2003) (grifo nosso).40 O mesmo entendimento é retificado por Sérgio Cavalieri Filho (Op. cit., p. 89).

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Merece destaque um último tópico a respeito do dano, justamente aquele que aborda

o dano estético41 que se configura, segundo Sérgio Cavalieri Filho, “quando a vítima sofre

ofensa corpórea que lhe deixa aleijão ou deformidade permanente”. O mesmo autor

classifica o dano estético como uma ramificação do dano moral, sob o argumento de que a

indenização, nesse caso, compreende a dor, o vexame e a humilhação decorrentes da

deformidade física ou do aleijão, características inerentes do dano moral, excluindo,

então, a existência de uma terceira espécie, além do dano material e moral. Em

contrapartida, argumenta que, do dano estético pode advir um dano material, por isso,

admite a cumulação de ambos, negando apenas a cumulação do dano estético com o moral,

visto que o primeiro seria uma subespécie do segundo, sob pena de bis in idem42.

Já Aguiar Dias dispõe que:

[...] a alteração do aspecto estético, se acarreta maior dificuldade no granjeio da subsistência, se torna mais difícil para a vítima as condições de trabalho, se diminui as suas potencialidades de colocação ou de exercício da atividade a que se dedica, constitui sem nenhuma dúvida um dano patrimonial. Não se pode objetar contra a sua reparação, nem quando, erradamente, se considere dano moral, porque nem apresenta dificuldade para avaliação. Deve ser indenizado, pois, como dano patrimonial, o resultado prejudicial da ofensa ao aspecto estético, sempre que se traduza em repercussões de ordem material, porque a lesão a sentimento ou a dor psíquica, com repercussões patrimoniais, traduzem dano patrimonial. É dessa natureza o dano estético que deforme desagradavelmente as feições, de modo que cause repugnância ou ridículo e, portanto, dificuldade à atividade da vítima. Ao lado desse, porém, o dano moral: este consiste na penosa sensação da ofensa, na humilhação

41 Artigo 949 do novo Código Civil: “No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”.42 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 103-105. Da mesma opinião compartilha Sílvio de Salvo Venosa, argumentando que “o dano estático, portanto, é modalidade do dano moral. Pode ser cumulado com danos patrimoniais, como, por exemplo, diminuição da capacidade de trabalho. No entanto, por ser modalidade de dano moral, não se cumula com este sob pena de ocorrer bis in idem”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 37). Ver também: GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 540-541.

20

perante terceiros, na dor sofrida, enfim, nos efeitos puramente psíquicos e sensoriais experimentados pela vítima do dano, em conseqüência deste, seja provocada pela recordação do defeito ou da lesão, quando não tenha deixado resíduo mais concreto, seja pela atitude de repugnância ou de reação ridículo tomada pelas pessoas que o defrontam43.

Mais sintético, Rui Stoco afirma que:

[...] o conceito de dano estético está intimamente ligado ao do dano moral, tendo em vista que aquele acarreta, sempre, prejuízos morais e, às vezes, também, prejuízos materiais ou patrimoniais. [...] A condição sine qua non à caracterização do dano estético, que justifica que se indenize por dano moral, é a ocorrência de efetiva e permanente transformação física na vítima, já que não tendo, hoje, a mesma aparência que tinha, pois esta constitui um patrimônio subjetivo seu, que tem valor moral e econômico44.

No Superior Tribunal de Justiça existem várias decisões que apontam para a

possibilidade de cumulação do dano estético com o dano moral, desde que inconfundíveis

as suas causas e passíveis de apuração em separado45. Ao proferir o voto, no Recurso

Especial nº 65.393-RJ, o então Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar afirma que:

[...] no âmbito dos danos à pessoa, cumumente incluídos no conceito de dano moral, estão a dor sofrida em conseqüência do acidente, a perda de um projeto de vida, a diminuição do âmbito das relações sociais, a limitação das potencialidades do indivíduo, a ‘perdre de jouissance de vie’, tudo elevado a um grau superlativo quando o desastre se abate sobre a pessoa com a gravidade [...]. Essas perdas, todas indenizáveis, podem existir sem dano estético, sem a deformidade ou aleijão, o que evidencia a necessidade de ser considerado esse dano como algo distinto daquele dano moral, que foi considerado pela sentença. E não se confundem que o defeito estético pode determinar, em certas circunstâncias, indenização pelo dano patrimonial, como acontece no caso de um modelo46.

43 DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 743.44 STOCO, Rui. Op. cit., p. 669. Ver também: MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 97-104.45 Ver: STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 116.372-MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 11.11.1997.

21

No mesmo sentido, o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, ao proferir o seu

voto no Recurso Especial nº 48.752-RJ, dispõe que:

[...] vê-se, com sumário trânsito por nossa jurisprudência, que a questão do dano moral e do dano estético está confinada a duas possibilidades. A primeira, considerando-se o dano estético uma modalidade do dano moral, seria possível embuti-lo naquele ou, destacando, poderia ser deferido a outro título, ou seja, a título de dano material, quando presente. Em resumo, neste primeiro aspecto, haveria dano moral puro mais dano material (estético) ou dano moral (estético) mais dano material. Em resumo, neste segundo aspecto, haveria dano moral mais dano estético mais dano material. [...] Assim, por exemplo, se a mutilação de um modelo fotográfico pode ensejar a reparação pelo prejuízo material, pelo prejuízo estético e pelo prejuízo moral, ou em outras palavras, a que, de fato, corresponde a verba indenizatória neste caso? A mutilação, sem dúvida, impede o modelo de seguir na sua profissão, o que ocasiona redução da sua capacidade laboral e, por conseqüência, prejuízo material; por outro lado, há um sofrimento íntimo, uma verdadeira dor da alma, que cobre a indenização por dano moral; por fim, a modificação da estrutura corporal do lesado, o aleijão, a deformidade (art. 1538 do Código Civil) pode ser também objeto de ressarcimento, independentemente daqueles relativos ao dano material e ao dano moral. Ou seja, tecnicamente, é possível que a indenização decorrente da lesão deformante alcance verbas independentes de dano matéria, dano moral e dano estético47.

Ao interpretar o posicionamento predominante no Superior Tribunal de Justiça, o

próprio Sérgio Cavalieri Filho reconhece que prevaleceu no referido Tribunal o:

[...] entendimento de que o dano estético é algo distinto do dano moral, correspondendo o primeiro a uma alteração morfológica de formação corporal que agride à visão, causando desagrado e repulsa; e o segundo ao sofrimento mental - dor da alma, aflição e angústia a que a vítima é submetida. Um é de ordem puramente psíquica, pertencente ao foro íntimo; outro é visível, porque concretizado na deformidade48.

46 STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 65.393-RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 03.10.1995.47 STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 84.752-RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 21.02.2000.48 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 104.

22

Com base nesta linha argumentativa, relembrando o exemplo do modelo fotográfico

citado no referido voto do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, é inegável a

autonomia do dano estético em relação ao dano material e também ao dano moral. Em

outras palavras, as três espécies podem surgir separadamente ou cumulativamente, visto

que as conseqüências de cada uma delas são distintas, ou seja, o dano material atinge o

patrimônio, o dano moral ofende a dignidade da pessoa causando dor, vexame e

humilhação (alterações psicológicas), enquanto o dano estético compreende a repulsa

causada pela deformidade física, ressaltando-se, porém, que nem toda a deformidade que

acarreta dano estético é capaz de abalar o estado psíquico da vítima a ponto de lhe causar

dano moral, conforme os ditames dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Entretanto, para que além seja responsabilizado civilmente, é necessário que, além do dano,

exista um nexo de causalidade entre a conduta do agente e este resultado danoso. Assim, é

imperioso um estudo detalhado da relação causa e efeito, destacando a sua conceituação e

as suas peculiaridades, sob pena de que se responsabilize, erroneamente, alguém que, na

verdade, não possui nenhum dever indenizatório.

1.5.3 O nexo causal

23

O nexo causal49 que une a conduta do agente ao dano, apresenta alguns problemas

ao se deparar com uma multiplicidade de causas, em razão da dificuldade para determinar

qual delas realmente ensejou determinado resultado. Surgiram várias teorias com o objetivo

de solucionar esta questão. Dentre elas, merece destaque a teoria da equivalência das

condições que, como o próprio nome já demonstra, não diferencia as condições ou os

elementos que concorreram para um determinado resultado, ou conforme dispõe Caio

Mário da Silva Pereira, ela considera as causas, “sem a necessidade de determinar, no

encadeamento dos fatos que antecederam o evento danoso, qual deles pode ser apontado

como sendo o que de modo imediato provocou a efetivação do prejuízo. [...] O que

prevaleceria no caso seria a idéia de que, na teoria da equivalência, toda condição que

contribuiu para o resultado constitui causa”50, ou seja, excluindo-se qualquer das causas o

resultado não teria ocorrido. Sérgio Cavalieri Filho critica esta teoria “pelo fato de conduzir

a uma exasperação da causalidade e uma regressão infinita do nexo causal. Por ela, teria

que indenizar a vítima de atropelamento não só quem dirigia o veículo com imprudência,

mas também quem lhe vendeu o automóvel, quem o fabricou, quem forneceu a matéria-

prima, etc.”51, visto que ela equipara todas as condições que contribuíram para o resultado.

Entretanto, Cavalieri não se contenta apenas com a crítica e aponta a teoria da

causalidade adequada como o melhor caminho a ser trilhado52. Esta teoria diferencia o

49 Segundo Sílvio de Salvo Venosa, “o conceito de nexo causal, nexo etiológico ou relação de causalidade deriva das leis naturais. É o liame que une a conduta do agente ao dano. É por meio do exame da relação causal que concluímos quem foi o causador do dano. Trata-se de elemento indispensável”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 39).50 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 78.51 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 59.52 Existem várias decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que utilizam, expressamente, a teoria da causalidade adequada, conforme o exemplo que segue: “APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CHEQUE FALSO. FALSIFICAÇÃO GROSSEIRA. DEVOLUÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE FUNDOS. ENCERRAMENTO DA CONTA. APLICAÇÃO DA TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA. A conduta negligente do banco foi a causa direta e imediata para o evento danoso, razão pela qual e exclusivamente responsável pelo pagamento dos cheques falsos. Inexistência de culpa concorrente do correntista. Dano moral

24

conceito de causa e condição, ou seja, causa é aquilo de que uma coisa depende quanto à

existência; enquanto condição é o que permite à causa produzir seus efeitos positivos ou

negativos. Nesse sentido, ele afirma que, para a teoria da causalidade adequada, causa

[...] é o antecedente não só necessário, mas, também, adequado à produção do resultado. Logo, nem todas as condições serão causas, mas apenas aquela que for a mais apropriada a produzir o evento. [...] Deverá o julgador, retrocedendo ao momento da conduta, colocar-se no lugar do agente e, com base no conhecimento das leis da Natureza, bem como nas condições particulares em que se encontrava o agente, emitir seu juízo sobre a idoneidade de cada condição53.

Dessa forma, é inegável a supremacia da teoria da causalidade adequada em

detrimento da teoria da equivalência das condições, sob pena do já citado retrocesso infinito

do nexo causal, ensejando a responsabilidade pelo evento danoso aquele que, na verdade,

nada poderia ter feito para evitar o resultado ou minimizar as suas conseqüências. Assim,

somente devem ser relevadas aquelas causas que realmente contribuíram diretamente para o

evento danoso.

Quanto as concausas, ou seja, aquelas causas que contribuem para o agravamento

do resultado, por não interromperem o nexo causal, não sendo, então, causas adequadas

para produzirem isoladamente o dano, devem ser suportadas pelo agente ofensor, visto que

este assume o risco, já que a conduta da vítima, por si só, não desencadearia tais efeitos. O

configurado. Critérios para a fixação de um valor adequado. Juízo de equidade atribuído ao prudente arbítrio do juiz. Compensação a vitima pelo dano suportado. Punição ao infrator, consideradas as condições econômicas e sociais do agressor, bem como a gravidade da falta cometida, segundo um critério de aferição subjetivo. Apelo provido”. (TJRS, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70004397006, Rel. Des. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, julgado em 16.04.2003) (grifo nosso).53 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 59-60. Caio Mário da Silva Pereira afirma que “se várias causas concorreram para o fato danoso, uma deve, in concreto, ser a que impõe o dever de ressarcimento”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 80).

25

mesmo ocorre com as concausas preexistentes, concomitantes ou supervenientes, isto é, o

agente responde sempre pelo resultado mais grave, independentemente de conhecer ou não

a concausa, exceto quando houver rompimento do nexo causal, constituindo a concausa a

verdadeira causa adequada para a produção do resultado54.

Nesse sentido, são circunstâncias capazes de provocar a exclusão do nexo causal: o

fato exclusivo da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito e a força maior55. Na primeira

hipótese, o comportamento, isto é, a conduta da própria vítima constitui-se no fato decisivo

do evento, sendo esta a causa adequada e idônea para a produção resultado. Já no fato de

terceiro a situação é semelhante, entretanto a causa adequada é atribuída a um terceiro, ou

seja, um estranho perante a relação existente entre o aparente causador do dano e a vítima,

excluindo a relação de causalidade entre eles, e o conseqüente dever indenizatório do

aparente ofensor.

O caso fortuito e a força maior, embora não distinguidos conceitualmente, estão

previstos no artigo 393 do novo Código Civil56, constituindo verdadeiras causas

excludentes do nexo causal e, conseqüentemente, do dever indenizatório. Segundo Sérgio

Cavalieri Filho:

54 Ver: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 71-72; e GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 274-275.55 Conforme observa Sílvio de Salvo Venosa, “o caso fortuito e a força maior são excludentes do nexo causal, porque o cerceiam, ou o interrompem. Na verdade, no caso fortuito e na força maior inexiste relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o resultado danoso. Se o dano ocorreu por culpa exclusiva da vítima, também não aflora o dever de indenizar, porque se rompe o nexo causal”. (VENOSA Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 39).56 Artigo 393 do novo Código Civil: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.

26

[...] estaremos em face do caso fortuito quando se tratar de evento imprevisível e, por isso, inevitável. Se o evento for inevitável, ainda que previsível, por se tratar de fato superior às forças do agente, como normalmente são os fatos da Natureza, como as tempestades, enchentes, etc., estaremos em face da força maior, como o próprio nome diz. É o act of God, no dizer dos ingleses, em relação ao qual o agente nada pode fazer para evitá-lo, ainda que previsível. A imprevisibilidade, portanto, é o elemento indispensável para a caracterização do caso fortuito, enquanto a inevitabilidade o é da força maior. Entende-se por imprevisibilidade, [...], a imprevisibilidade específica, relativa a um fato concreto, e não a genérica ou abstrata de que poderão ocorrer assaltos, acidentes, atropelamentos, etc., porque se assim não for tudo passará a ser previsível. A inevitabilidade, por sua vez, deve ser considerada dentro de certa relatividade, tendo-se o acontecimento como inevitável em função do que seria razoável exigir-se57.

Dessa forma, percebe-se a essencialidade do nexo causa para a configuração da

responsabilidade civil, em todas as suas espécies, ou seja, não havendo nexo causal entre a

conduta do agente o resultado, não haverá, conseqüentemente, nenhum dever indenizatório.

Nessa linha, segue a análise da culpa (lato sensu) como elemento diferenciador da

responsabilidade objetiva e subjetiva, constituindo elemento essencial para a caracterização

desta última espécie, razão pela qual torna-se imperioso o seu estudo, assim como a teoria

do risco que fundamenta a responsabilidade objetiva.

1.5.4 A culpa como elemento diferenciador da responsabilidade civil subjetiva e objetiva

A responsabilidade subjetiva persiste como regra geral dentro do ordenamento

jurídico brasileiro, encontrando amparo normativo nos artigos 186 e 92758, caput, ambos do 57 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 76. Exemplificando, Carlos Roberto Gonçalves destaca que “o caso fortuito geralmente decorre de fato ou ato alheio à vontade das partes: greve, motim, guerra. Força maior é a derivada de acontecimentos naturais: raio, inundação, terremoto”. (GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 412).58 Artigo 927 do novo Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

27

novo Código Civil, merecendo ressalva a observação de Eugênio Facchini Neto, para

quem, “de acordo com a vontade do legislador, a responsabilidade subjetiva continua sendo

o fundamento básico de toda a responsabilidade civil; o agente só será responsabilizado, em

princípio, se tiver agido com culpa”59. Assim, percebe-se que a responsabilidade subjetiva

requer, como elemento essencial, além do dano e do nexo causal, a conduta culposa do

agente.

Por outro lado, a responsabilidade objetiva igualmente depende da existência do

dano e do nexo causal, mas prescinde da existência de culpa, ou seja, ela existe

independentemente da constatação da conduta culposa, sendo a sua existência, portanto,

irrelevante na hipótese de responsabilidade objetiva (responsabilidade sem culpa). Assim,

havendo responsabilidade objetiva, o provável agente causador do dano somente se isentará

do dever de indenizar se comprovar a inexistência de dano ou qualquer causa excludente do

nexo causal, visto que, neste caso, não se perquire a culpa60.

1.5.5 A teoria do risco como fundamento da responsabilidade civil objetiva

A responsabilidade objetiva surgiu em razão da crescente transformação social e

desenvolvimento tecnológico, principalmente após a Revolução Industrial, que demonstrou

a insuficiência e a ineficácia da responsabilidade subjetiva em determinadas situações,

principalmente nas hipóteses de acidentes de trabalho, onde, em muitos casos, devido à

59 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 165.60 Segundo Sílvio Rodrigues, “na responsabilidade objetiva a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, pois, desde que exista a relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e o ato do agente, surge o dever de indenizar, quer tenha este último agido ou não culposamente”. (RODRIGUES, Sílvio. Op. cit., p. 11).

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dificuldade na comprovação da culpa do agente, a vítima lesada ficava desamparada, tendo

que suportar integralmente o dano. Para evitar esses problemas que, muitas vezes, geravam

situações de clara injustiça, desenvolveu-se, paralelamente à responsabilidade subjetiva

(baseada na teoria da culpa), a teoria do risco61, criando, assim, a responsabilidade objetiva

que independe da existência do elemento culpa.

Apesar desta evolução histórica, o Código Civil de 1916 manteve-se vinculado à

teoria da culpa, colocando a responsabilidade subjetiva como regra geral, deixando a

responsabilidade objetiva para os casos expressamente previstos e para as leis

extravagantes ou especiais. Nesse sentido, referindo-se ao Código Civil de 1916, Caio

Mário argumenta que “autores e tribunais, manifestando franca tendência pela doutrina

objetiva, reclamam, contudo, contra a ausência de disposição genérica a permitir a

afirmação de que ingressou efetivamente, em nosso direito positivo”62. Nesse sentido,

visando superar este problema, surge o novo Código Civil, prevendo uma cláusula geral da

responsabilidade civil objetiva, conforme demonstra o artigo 927, parágrafo único do

referido Código: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos

casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do

dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Dessa forma, percebe-se

a adoção da teoria do risco criado, sem revogar, com a adoção desta cláusula geral 63, os

demais casos previstos expressamente em lei, ainda que na legislação extravagante64.61 Sobre o desenvolvimento histórico que caracterizou o surgimento e os desdobramentos da teoria do risco, ver: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. vol. 1. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 42-83; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 13-25; MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 375.62 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 24.63 As características e peculiaridades inerentes às cláusulas gerais serão analisadas no capítulo II quando se abordar as novas diretrizes teóricas do novo Código Civil.64 Como o novo Código Civil adotou a teoria do risco criado, em razão dos objetivos do presente estudo, não será feita a análise dos demais desdobramentos da teoria do risco como, por exemplo,

29

Antes, porém, de conceituar a teoria do risco criado, necessita-se explicar o

significado do termo “risco” que, segundo Sérgio Cavalieri Filho, “é o perigo, é

probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele que exerce uma atividade

perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente”65. Assim a teoria do

risco criado desprende-se da idéia de culpa, fazendo com que, aquele que, em razão da sua

atividade ou profissão, exponha outrem ao risco de sofrer um dano, deverá responder por

este independentemente de ter agido culposamente, bastando a existência do dano e do

nexo causal, independentemente de ter ou não o agente algum proveito ou vantagem ao

contrário do que proclama a teoria do risco-proveito66.

Os argumentos acima dispostos são ratificados por Eugênio Facchini Neto para

quem:

[...] na vigência do velho diploma civilista, repetia-se a lição segundo a qual o fundamento (único) da responsabilidade civil era a culpa, e que somente em casos específicos, previstos expressamente em lei, albergava o ordenamento pátrio algumas hipóteses de responsabilidade objetiva. [...] A novidade se encontra na segunda parte do referido parágrafo único, onde se consagra uma segunda cláusula geral em tema de responsabilidade civil, reconhecendo-se a obrigação de reparar os danos sofridos independente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. A periculosidade deve ser aferida objetivamente, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios empregados, e não em virtude do comportamento negligente ou imprudente de quem agiu. Ou seja, a periculosidade deve ser uma qualidade preexistente, intrínseca e

o risco-proveito, o risco profissional, o risco excepcional e o risco integral. Para maior aprofundamento destas teorias, ver: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 164-170.65 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 166.66 Caio Mário da Silva Pereira conceitua a teoria do risco criado da seguinte forma: “aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 24).

30

não eliminável. O homem prudente pode apenas reduzir tal periculosidade, sem jamais conseguir eliminá-la67.

Dessa forma, percebe-se a convivência paralela entre a responsabilidade subjetiva e

a objetiva dentro do ordenamento jurídico brasileiro, visto que ambas não se excluem, pois

a responsabilidade subjetiva, baseada na teoria da culpa, persiste como regra geral,

sobrevindo a responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco, quando houver expressa

previsão legal ou quando se demonstrar a incidência da teoria do risco criado, enquanto

prevista na condição de cláusula geral no corpo do novo Código Civil68.

Juntamente com a evolução da teoria do risco, surgiu um movimento que prega a

socialização dos riscos, cujo objetivo primordial seria evitar a irreparabilidade total do

dano, deixando a vítima ao desalento, em razão da fragilidade patrimonial do agente

causador do prejuízo que não teria, muitas vezes, condições financeiras de reparar o dano

por ele causado. Nesse sentido, é importante que seja abordada a questão que envolve a

socialização dos riscos, cujas características encontram amparo nas mudanças advindas

com o novo Código Civil que trouxe consigo uma alteração nas diretrizes teóricas até então

vigentes69.

67 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 166.68 Sílvio de Salvo Venosa ressalta que “a responsabilidade objetiva, ou responsabilidade sem culpa, somente pode ser aplicada quando existe lei expressa que a autorize. Portanto, na ausência de lei expressa, a responsabilidade pelo ato ilícito será subjetiva, pois esta é a regra geral no direito brasileiro. No entanto, advirta-se, o dispositivo questionado explica que somente pode ser definida como objetiva a responsabilidade do causador do dano quando este decorrer de ‘atividade normalmente desenvolvida’ por ele. O juiz deve analisar, no caso concreto, a atividade costumeira do ofensor e não uma atividade esporádica ou eventual, qual seja, aquela que, por um momento ou por uma circunstância possa ser um ato de risco. Não sendo levado em consideração esse aspecto, poder-se-á transformar em regra o que o legislador colocou como exceção”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 15-16).69 As novas diretrizes teóricas inerentes ao novo Código Civil serão analisadas detalhadas no capítulo II, merecendo, em razão da sua importância, uma abordagem separada e mais aprofundada.

31

1.5.6 A responsabilidade objetiva e a socialização dos riscos

O novo Código Civil traz consigo vários princípios basilares que serão

fundamentais para a compreensão sistemática e constitucional do direito civil, conforme

será explanado no capítulo II. Dentre estes princípios destacam-se o princípio da

operabilidade, da eticidade e, principalmente, o princípio da socialidade que prega a

supremacia dos interesses coletivos sobre os interesses individuais, tendo a dignidade da

pessoa humana como valor-fonte do ordenamento jurídico. Nesse sentido, o ser humano,

enquanto viver em sociedade, estará sujeito, através da sua conduta, a causar dano a outrem

de onde surgirá o conseqüente dever reparatório inerente ao instituto da responsabilidade

civil enquanto mantedor da paz e da harmonia na convivência social.

Assim, juntamente com o desenvolvimento da responsabilidade objetiva,

(desencadeada pela revolução industrial e tecnológica, visando o ressarcimento dos danos

com base na teoria do risco, procurando sanar as lacunas deixadas pela responsabilidade

objetiva que, muitas vezes, deixava a vítima desamparada, visto que não conseguia provar a

culpa do agente causador do dano) surge o movimento tendente à socialização dos riscos,

com a finalidade de amparar a vítima nos casos em que a indenização assume quantias

consideradas altas, pois é crescente a perda da solidez patrimonial, isto é, da capacidade

econômico-financeira das pessoas, o que dificulta, e até impossibilita, o pagamento de

indenizações com valores considerados atos. Em outras, palavras, a socialização dos riscos

visa evitar a total irreparabilidade do dano, proporcionando, pelo menos, uma indenização

32

básica para a vítima do evento danoso, podendo, por isso, também ser chamada de

reparação coletiva ou indenização autônoma ou social70.

Nessa linha de raciocínio, Sérgio Cavalieri Filho argumenta que:

[...] o dano, por esse novo enfoque, deixa de ser apenas contra a vítima para ser contra a própria coletividade, passando a ser um problema de toda a sociedade. E o seguro é uma das técnicas utilizadas no sentido de se alcançar a socialização do dano, porquanto consegue-se, através dele, distribuir os riscos entre todos os segurados71.

O seguro surge justamente com a função de garantir a reparação do dano, não

influindo, em tese, no cômputo do quantum indenizatório, devendo, entretanto, a quantia

paga pelo segurador ser abatida do montante da indenização a ser paga pelo agente, sob

pena de bis in eadem, amenizando, então, a indenização para o infrator72. Assim, na opinião

de Antônio Montenegro:

[...] a longo prazo, contudo, a substituição da responsabilidade Civil pelos seguros privados e sociais se apresenta como processo irreversível para um mundo em que o cidadão, a cada momento, torna-se vítima ou fonte de danos. [...] A possível desvantagem que a supressão da responsabilidade civil, vale dizer da responsabilidade individual, possa acarretar à ordem jurídica pública seria compensada com a certeza de uma

70 Ver: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 177-179. Segundo Eugênio Facchini Neto, “nas últimas décadas, porém, percebe-se que este modelo misto tornou-se mais complexo, com o surgimento de um terceiro modelo de responsabilidade, não individual, mas coletiva, fundada na idéia de solidariedade. [...] Não se trata de condenar alguém individualizado a ressarcir um prejuízo, mas sim de transferir para toda a sociedade ou para um setor desta, uma parte do prejuízo”. (FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 161-162).71 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 178. Segundo Sílvio de Salvo Venosa, “na responsabilidade objetiva, há pulverização do dever de indenizar por um número amplo de pessoas. A tendência prevista é de que no contrato de seguro se encontrará a solução para a amplitude de indenização que se almeja em prol da paz social. Quanto maior o número de atividades protegidas pelo seguro, menor será a possibilidade de prejuízos restarem irressarcidas. Ocorre, porém, que o seguro será sempre limitado ou tarifado; optando-se por esta senda, indeniza-se sempre, mas certamente se indenizará menos”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 15).72 Ver: MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 239.

33

reparação eficaz, ainda que mínima. [...] Acreditamos que a responsabilidade continuará ainda a ocupar um lugar de destaque na formulação da denominada indenização social, nem que seja a médio prazo73.

Dessa forma, percebe-se a vantagem apresentada pela conjugação da

responsabilidade individual e dos seguros coletivos ou sociais, visto que a supressão da

primeira colocaria em risco a ordem pública e a harmonia social, pois poderia intencionar

um elevado grau de desprezo quanto ao dever de cuidado e uma despreocupação natural no

que tange as conseqüências da conduta, uma vez que todos os danos seriam ressarcidos

pelo seguro. Por outro lado, o monopólio da responsabilidade individual, muitas vezes,

deixaria a vítima ao desalento em razão da incapacidade econômico-financeira do infrator

ressarcir o dano, sendo, por isso, a conjugação desta com o seguro social o melhor caminho

a ser seguido.

Estabelecido o desenvolvimento e a caracterização da influência da teoria do risco

no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a crescente evolução em direção a

socialização dos riscos, resta, para finalizar a diferenciação entre a responsabilidade

subjetiva e objetiva, a análise da culpa enquanto elemento essencial e indispensável para a

caracterização da primeira espécie. Assim, é indispensável a caracterização dos elementos

da conduta culposa, as suas formas de classificação e os seus desdobramentos peculiares,

inerentes à responsabilidade aquiliana.

73 MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Op. cit., p. 376.

34

1.5.7 A culpa como elemento essencial da responsabilidade civil subjetiva

Conforme já anteriormente ressaltado, na responsabilidade subjetiva, além do dano

e do nexo causal, é necessário que haja uma conduta culposa do agente, nos termos dos

artigos 186 e 927 do novo Código Civil. Primeiramente, para que seja possível atribuir a

alguém uma conduta culposa é necessário que este seja considerado imputável, isto é, que

tenha a capacidade de entender e compreender a ilicitude de sua conduta, ou seja, o caráter

antijurídico desta, sendo-lhe, assim, exigível uma conduta adversa que condiga com os

preceitos do ordenamento jurídico. Em outras palavras, é necessário que o agente tenha

maturidade mental (desenvolvimento mental) e sanidade mental (higidez)74.

Quanto à responsabilidade dos incapazes, o novo Código Civil inovou prevendo, em

seu artigo 92875, uma responsabilidade subsidiária e eqüitativa dos incapazes, ou seja, os

incapazes somente serão responsabilizados quando as pessoas responsáveis por eles não

forem diretamente obrigadas a indenizar ou quando estas não possuírem meios suficientes

para arcar com esta reparação. Ressalta-se, ainda, que a responsabilidade dos incapazes será

74 Ao comentar a imputabilidade, Carlos Roberto Gonçalves, dispõe que “pressupõe o art. 186 do Código Civil o elemento imputabilidade, ou seja, a existência, no agente, da livre-determinação de vontade. Para que alguém pratique um ato ilícito e seja obrigado a reparar o dano causado, é necessário que tenha capacidade de discernimento. Em outras palavras, aquele que não pode querer e entender não incorre em culpa e, ipso facto, não pratica ato ilícito”. (GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 20). Caio Mário da Silva Pereira, ao analisar o artigo 159 do Código Civil de 1916, correspondente ao artigo 186 do novo Código Civil, destaca que “o elemento subjetivo do ato ilícito, como gerador do dever de indenizar, está na imputabilidade da conduta à consciência do agente. Todo aquele que, por ação voluntária, diz o artigo, a significar que o agente responde em razão de seu comportamento voluntário, seja por ação seja por omissão. A responsabilidade é excluída no caso de resultar o evento danoso de um fato involuntário (caso fortuito ou de força maior), ou naqueles outros que envolvem a escusativa de responsabilidade [...]. A imputabilidade do ato ao agente liga-se, desta sorte, ao conceito mesmo de ato ilícito”. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 33).75 Artigo 928 do novo Código Civil: “O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”.

35

sempre eqüitativa76, não podendo privar, o incapaz e seus dependentes, do mínimo

necessário para a sobrevivência, sempre respeitando o princípio da dignidade da pessoa

humana77.

Para a caracterização da culpa, é necessária a presença de um ato ilícito, ou seja,

uma conduta humana voluntária e antijurídica, ou seja, nas palavras de Caio Mário da Silva

Pereira:

[...] os atos jurídicos ilícitos, ou simplesmente atos ilícitos, que se caracterizam em procedimentos em desconformidade com o ordenamento legal, ou ao arrepio dele, violando um mandamento ou uma proibição do direito. [...] Assim considerando, a teoria da responsabilidade subjetiva erige em pressuposto da obrigação de indenizar, ou de reparar o dano, o comportamento culposo do agente, ou simplesmente a sua culpa, abrangendo no seu contexto a culpa propriamente dita e o dolo do agente78.

Apesar da distinção da culpa lato sensu em culpa stricto sensu o dolo, muitas

pessoas defendem a inutilidade desta classificação, sob o argumento de que não há utilidade

prática, visto que o Direito vigente não faz qualquer distinção entre as modalidades de

culpa e a sua gravidade, sendo que o agente responde pela extensão do seu dano, isto é

pelas conseqüências de sua conduta, sem questionar a intencionalidade ou a gravidade da

76 A indenização eqüitativa será melhor analisada no capítulo IV quando for abordada a hipótese prevista no artigo 944, parágrafo único do novo Código Civil, objetivo central do presente estudo.77 Nesse mesmo sentido, quanto à responsabilidade dos incapazes, Eugênio Facchini Neto dispõe que “atualmente, há uma forte tendência universal a torná-los mais uma vez responsáveis pela reparação dos prejuízos a que derem causa, sob o prisma da eqüidade. Tratar-se-ia de uma responsabilidade patrimonial, não de responsabilidade pessoal. [...] Perante o novo diploma, a responsabilidade do incapaz será subsidiária, pois somente será acionada se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. [...] De qualquer sorte, a responsabilização direta dos incapazes só ocorrerá se os recursos necessários ao pagamento da indenização não privarem o incapaz ou as pessoas que dele dependam do necessário, segundo a dicção da lei”. (FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 172-173). Quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana, este será analisado e caracterizado no capítulo III quando se tratar exclusivamente do referido tema.78 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 28-30.

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sua conduta. Em outras palavras, no que tange a interferência do grau de culpa na

estipulação do quantum indenizatório, Carlos Roberto Gonçalves destaca que:

[...] o Código Civil, entretanto, não faz nenhuma distinção entre o dolo e a culpa, nem entre os graus de culpa, para fins de reparação do dano. Tenha o agente agido com dolo ou culpa levíssima, existirá sempre a obrigação de indenizar, obrigação esta que será calculada exclusivamente sobre a extensão do dano79. Em outras palavras, mede-se a indenização pela extensão do dano e não pelo grau de culpa. Adotou o legislador a norma romana, segundo a qual a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar (in lege aquiliana et levissima culpa venit)80.

Entretanto, o novo Código Civil, no seu artigo 944, parágrafo único, previu uma

exceção ao princípio do restitutio in integrum (segundo o qual a indenização deve ser

medida unicamente pela extensão do dano, independentemente da intencionalidade ou do

grau de culpa do agente), estabelecendo uma redução eqüitativa da indenização na hipótese

de excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e a extensão do dano. Para a

compreensão e interpretação da dita exceção, faz-se necessária, primeiramente, a

classificação da culpa lato sensu, bem como a correta caracterização dos seus graus, para

que se possa, posteriormente, estabelecer a conceituação e os limites da regra do artigo 944,

parágrafo único do novo Código Civil.

79 Esta é a regra contida no artigo 944, caput, do novo Código Civil: “A indenização mede-se pela extensão do dano”.80 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 265. No mesmo sentido, Sérgio Cavalieri Filho, dispõe que a culpa lato sensu abrange “toda espécie de comportamento contrário ao Direito, seja intencional, como no caso do dolo, ou não, como na culpa. Para alguns não há utilidade prática na distinção entre dolo e culpa, porquanto, o nosso Direito vigente, o agente responde igualmente pelas conseqüências da sua conduta, sem se indagar se o resultado dano entrou nas cogitações do infrator, ou se a violação foi especialmente querida. Sustenta-se que a função da indenização é exclusivamente reparadora dos danos sofridos pelo lesado”. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 42). Ver também: FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 183-185; e DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 120.

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Assim, a culpa lato sensu pode ser classificada em culpa stricto sensu e dolo,

dependendo da intencionalidade da conduta do agente, isto é, caso o agente tenha desejado

o resultado terá agido dolosamente, caso contrário, tenha o resultado surgido a partir da

infração ao dever de cuidado, caracterizado pela falta de diligência, evidencia-se a culpa

stricto sensu81. Aguiar Dias observa que:

[...] a culpa, genericamente, entendida, é, pois, fundo animador do ato ilícito, da injúria, ofensa ou má conduta imputável. Nesta figura encontram-se dois elementos: o objetivo, expresso na iliceidade, e o subjetivo, do mau procedimento imputável. A conduta reprovável, por sua parte, compreende duas projeções: o dolo, na qual se identifica a vontade direta de prejudicar, configura a culpa no sentido amplo; e a simples negligência (negligentia, imprudentia, ignavia) em relação ao direito alheio, que vem a ser a culpa em sentido restrito e rigorosamente técnico82.

Com outras palavras, Sérgio Cavalieri Filho em busca da correta diferenciação

existente entre a culpa stricto sensu do dolo, explica que:

[...] tanto no dolo como na culpa há conduta voluntária do agente, só que no primeiro caso a conduta já nasce ilícita, porquanto a vontade se dirige à concretização de um resultado antijurídico - o dolo abrange a conduta e o efeito lesivo dele resultante -, enquanto que no segundo a conduta nasce lícita, tornando-se ilícita na medida em que se desvia dos padrões socialmente adequados. O juízo de desvalor no dolo incide sobre a conduta, ilícita desde a sua origem; na culpa, incide apenas sobre o resultado. Em suma, no dolo o agente quer a ação e o resultado, ao passo que na culpa ele só quer a ação, vindo a atingir o resultado por desvio acidental de conduta decorrente da falta de cuidado83.

81 Ratificando este pensamento, Carlos Roberto Gonçalves dispõe que “o dolo consiste na vontade de cometer uma violação do direito, e a culpa, na falta de diligência. Dolo, portanto, é a violação deliberada, consciente, intencional, do dever jurídico”. (GONÇALVES, Carlos Roberto, Op. cit., p. 34).82 DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 108.83 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 43. Aguiar Dias complementa argumentando que “ficou-nos a concepção de culpa genérica, que se desdobra em dolo e culpa propriamente dita; aquele não é o vício de vontade, mas o elemento interno, que reveste o ato da intenção de causar o resultado, ao passo que na culpa, em sentido restrito, a vontade é dirigida ao fato causador da

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Neste enredo, percebe-se que a culpa stricto sensu deriva do descumprimento do

dever de cuidado, ou seja, o agente não agiu com a diligência normal e exigível, conforme

as circunstâncias do caso concreto, gerando um dano a outrem, sendo, então, a sua conduta

culpável. Este dever de cuidado deve ser considerado objetivamente, segundo o critério do

homem médio, ou seja, utilizar-se-á uma conduta padrão e ordinária, condizente com as

atitudes, o zelo e as características do homem médio para que, através de um comparativo

com a conduta do agente no caso concreto, seja possível constatar se este agiu ou não de

forma culposa. Assim, a culpa, enquanto conduta voluntária com resultado involuntário,

decorrente da infração do dever de cuidado, ficando limitada à previsão ou previsibilidade

do próprio resultado. A primeira é caracterizada pela antevisão, isto é, o agente mentaliza o

resultado, entretanto não intenciona sua concretização. Já a previsibilidade, enquanto limite

extremo da conduta culpável, é justamente a possibilidade de previsão do resultado,

acarretando, conseqüentemente, o dever de evitá-lo, de acordo com as características do

homem médio, enquanto parâmetro de conduta cautelosa e diligente. Caso o resultado seja

imprevisível, estaremos diante do já mencionado caso fortuito ou força maior, causas

excludentes do nexo causal e,

conseqüentemente, da responsabilidade do agente84.

lesão, mas o resultado não é querido pelo agente. A culpa é a falta de diligência na observância da norma de conduta, isto é, o desprezo, por parte do agente, do esforço necessário para observá-la, com resultado, não objetivado, mas previsível, desde que o agente se detivesse na consideração das conseqüências eventuais da sua atitude”. (DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 120).84 Nesta mesma linha de raciocínio, GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 17-20. Sérgio Cavalieri Filho aponta, além do critério objetivo de aferição da previsibilidade, acima analisado, o critério subjetivo que tem em vista as condições pessoais do sujeito como, por exemplo, a idade, o sexo, o grau de cultura, entendendo, assim, ser conveniente a conjugação dos dois critérios em prol de uma solução justa e correspondente à realidade. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 44-48).

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A culpa pode ser exteriorizada através de uma conduta imprudente, negligente ou

imperita. Segundo Sérgio Cavalieri Filho:

[...] a imprudência é a falta de cautela ou cuidado por conduta comissiva, positiva, por ação. [...] Negligência é a mesma falta de cuidado por conduta omissiva. [...] A imperícia, por sua vez, decorre da falta de habilidade no exercício de atividade técnica, caso em que se exige, de regra, maior cuidado ou cautela do agente85.

No mesmo sentido, Aguiar Dias dispõe que:

[...] nesse título, estão, com efeito, compreendidas a negligência, a imprudência e a imperícia, que são todas formas desse elemento essencial: a falta de diligência, falta de prevenção, falta de cuidado. Negligência é a omissão daquilo que razoavelmente se faz, ajustadas as condições emergentes às considerações que regem a conduta normal dos negócios humanos. É a inobservância das normas que nos ordenam operar com atenção, capacidade, solicitude e discernimento. Consiste a imprudência da precipitação no procedimento inconsiderado, sem cautela, em contradição com as normas de procedimento sensato. É a afoiteza no agir, o desprezo das cautelas que devemos tomar em nossos atos. [...] Omissão é negligência, o esquecimento das regras de proceder, no desenvolvimento da atividade. [...] Negligência se relaciona, principalmente, com desídia; imprudência pe conceito ligado, antes que qualquer outro, ao de temeridade; imperícia é, obrigatoriamente, a falta de habilidade86.

Por outro lado, a culpa também pode ser classificada em razão da sua gravidade ou

intensidade. Segundo Sérgio Cavalieri Filho:

[...] a culpa será grave se o agente atuar com grosseira falta de cautela, com descuido injustificável ao homem normal, impróprio ao comum dos homens. [...] Haverá culpa leve se a falta puder ser evitada com atenção ordinária, com o cuidado próprio do homem comum, de um bonus pater familias. Já a culpa levíssima caracteriza-se pela falta de atenção

85 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 48.86 DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 120-121. A mesma linha argumentativa, apresenta: GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 19.

40

extraordinária, pela ausência de habilidade especial ou conhecimento singular87.

Assim, percebe-se a importância desta distinção da culpa em razão da sua

gravidade, visto que estes conceitos embasarão, no capítulo IV, a aplicação da redução

eqüitativa da indenização nas hipóteses de excessiva desproporção entre a gravidade da

culpa e a extensão do dano, nos termos do artigo 944, parágrafo único, do novo Código

Civil.

Quanto à distribuição do ônus da prova, existem dois sistemas de comprovação da

culpa. A culpa provada é a regra geral, cabendo, então, à vítima provar que o agente obrou

com culpa88. Já na outra hipótese, da culpa presumida, ocorre uma inversão deste ônus da

prova, ou seja, presume-se a culpa do agente causador do dano, cabendo a ele provar que

não agiu com culpa, sendo tal presunção é relativa, admitindo prova em contrário, como,

por exemplo, alguma excludente do nexo causal que, conseqüentemente, exclui o dever de

indenizar.

Faz-se necessária também a análise da culpa concorrente, cuja doutrina

predominante prefere, acertadamente, denominar de concorrência de causas ou de

responsabilidades, visto que o problema é resolvido, principalmente, através da análise do

nexo causal, ou seja, da conexão entre as condutas e o resultado, apontando a interferência

e a gravidade de cada uma delas. Nesse caso, a vítima também concorre para o evento

danoso, não sendo o agente o único causador do dano, por isso, concorrência de causas ou

de responsabilidades. Em outras palavras, caso a conduta do agente não constitua a única

87 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 49. Ver também: GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 264; e PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 71.88 Sobre a distribuição do ônus da prova, ver artigo 333 do Código de Processo Civil.

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causa adequada para a produção do resultado, isto é, havendo a concorrência da vítima,

deve-se dividir a indenização proporcionalmente, conforme o grau de culpabilidade de cada

um dos envolvidos. Parte da doutrina, entretanto recomenda dividir a indenização em partes

iguais caso não seja possível constatar o grau de interferência de cada uma das condutas, ou

seja, a contribuição efetiva para a ocorrência do resultado danoso89.

Por outro lado, quando houver concurso de agentes ou co-participação, isto é,

quando as condutas de duas ou mais pessoas concorrem efetivamente para o evento danoso,

tem-se a responsabilidade solidária prevista no artigo 942, caput, do novo Código Civil90.

Esta solidariedade, segundo o parágrafo único do artigo citado, estende-se às pessoas

designadas no artigo 932 do novo Diploma Civil91, ou seja, aos responsáveis indiretos,

constituindo a chamada responsabilidade civil por fato de outrem92, que será objetiva (sem

culpa) nas hipóteses do artigo 933 do Código citado93. Assim, temos a divisão em

responsabilidade direta e indireta. A primeira consiste na regra geral, ou seja, é a

responsabilidade por fato próprio. Já a responsabilidade indireta ocorre quando uma pessoa

é responsável por um fato de outrem, um terceiro, incidindo excepcionalmente, apenas

89 Ver: Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 229; DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. vol. 2. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 693-698; e VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 40-42.90 Artigo 942 do novo Código Civil: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932”.91 Artigo 932 do novo Código Civil: “São também responsáveis pela reparação civil: (I) - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; (II) - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; (III) - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; (IV) - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; (V) - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia”. 92 Ver: FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 183.93 Artigo 933 do novo Código Civil: “As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”.

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quando existir entre o autor do ato ilícito e o responsável indireto um vínculo jurídico,

impondo para este último um dever de guarda, vigilância ou custódia em face daquele94.

Dessa forma, havendo responsabilidade indireta, decorrente da inobservância do dever de

cuidado, conforme Carlos Roberto Gonçalves:

[...] a culpa pode ser, ainda, in eligendo: decorre da má escolha do representante, do preposto; in vigilando: decorre da ausência de fiscalização; in committendo: decorre de uma ação, de um ato positivo; in ommittendo: decorre de uma omissão, quando havia o dever de não se abster; in custodiendo: decorre da falta de cuidado na guarda de algum animal ou de algum objeto95.

Analisando-se a culpa in custodiendo, percebe-se que, a responsabilidade pelo fato

dos animais, disposta no artigo 936 do novo Código Civil96, que segundo Eugênio Facchini

Neto:

[...] embora se possa entender que se trate de presunção de culpa, ou de simples inversão do ônus da prova, entendemos que o novo dispositivo prevê uma autêntica responsabilidade objetiva, pois não exige o legislador que se prove a culpa do dono ou detentor do animal. O fato de tal pessoa excluir a sua responsabilidade não significa tratar-se de responsabilidade subjetiva, pois ser objetivamente responsável não implica o dever de indenizar sempre - significa apenas não ser necessária a demonstração de sua culpa. A responsabilidade objetiva admite causas de exclusão de

94 Ver: DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 508-553. Sérgio Cavalieri Filho ressalva afirmando que “na realidade, a chamada responsabilidade por fato de outrem, expressão originária da doutrina francesa, é responsabilidade por fato próprio omissivo, porquanto as pessoas que respondem a esse título terão sempre concorrido para o dano por falta de cuidado ou vigilância. Assim, não é muito próprio falar em fato de outrem. O autor do dano material é apenas a causa imediata, sendo a omissão daquele que tem o dever de guarda ou vigilância a causa mediata, que nem por isso deixa de ser causa eficiente. Em apertada síntese, a responsabilidade por fato de outrem constitui-se pela infração do dever de vigilância. Não se trata, em outras palavras, de responsabilidade por culpa alheia, mas por culpa própria decorrente da violação do dever de vigilância. Por isso, alguns autores preferem falar em responsabilidade por infração dos deveres de vigilância, em lugar de responsabilidade pelo fato de outrem”. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 131-132).95 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 34. Ver também: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit., p. 50.96 Artigo 936 do novo Código Civil: “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”.

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responsabilidade. Dentre estas encontram-se justamente a demonstração da interveniência do caso fortuito ou de força maior, a presença de culpa da vítima e o fato de terceiro97.

Em sentido contrário, Sílvio de Salvo Venosa dispõe que:

[...] o Código aponta, no artigo sob exame, o proprietário ou detentor do animal. Cuida-se do que tem o poder de direção. Alguns pretendem ver nessa responsabilidade uma aplicação da teoria do risco. No entanto, trata-se, à evidencia, de presunção de culpa98.

Quanto à responsabilidade civil pelo fato das coisas, na hipótese disposta no artigo

937 do novo Código Civil99, que prevê a reparação do dano causado por ruína de edifício ou

construção, a discussão é semelhante no que tange a divergência entre a aplicação da teoria

da culpa ou a teoria do risco. Em outras palavras, Sílvio de Salvo Venosa defende a

responsabilidade subjetiva com culpa presumida100, enquanto Eugênio Facchini Neto

argumenta pela incidência da teoria do risco, isto é, da responsabilidade objetiva101. Já na

hipótese do artigo 938 do mesmo Diploma Legal102, que prevê a responsabilidade por coisas

caídas de edifícios, ambos autores concordam quanto à incidência da responsabilidade

objetiva103.

97 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 181-182. 98 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 87. No mesmo sentido de Sílvio de Salvo Venosa, argumenta Sílvio Rodrigues (RODRIGUES, Sílvio. Op. cit., p. 143). Segundo Carlos Roberto Gonçalves, “a responsabilidade do dono do animal, é, portanto, presumida. Basta que a vítima prove o dano e a relação de causalidade entre o dano por ela sofrido e o ato do animal. Trata-se de uma presunção vencível, suscetível de prova em contrário. Presume-se, com efeito, ao dono do animal que se exonere da responsabilidade, provando qualquer uma das excludentes mencionadas: culpa da vítima ou força maior”. (GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 499).99 Artigo 937 do novo Código Civil: “O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta”. 100 Segundo Sílvio de Salvo Venosa, “o dispositivo cria uma presunção de culpa em favor da vítima, caso contrário, seu ônus probatório dificultaria a possibilidade de ressarcimento do prejuízo”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 82). Ver: GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 504-506.101 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 182.102 Artigo 938 do novo Código Civil: “Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido”.103 Ver: VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 83; FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 182; RODRIGUES, Sílvio. Op. cit., p. 130-133; e GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 507-511.

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Terminada a analise da culpa, e conseqüentemente da responsabilidade

extracontratual, resta, ainda, a abordagem da responsabilidade contratual. Como a

conceituação e a diferenciação entre ambas as espécies já foi, anteriormente, explanada,

merecendo apenas ser relembrada, segue-se o estudo dos requisitos e das peculiaridades

inerentes à responsabilidade contratual, visto que a adoção da teoria clássica ou dualista

enseja tal procedimento, visto que a responsabilidade contratual possui características e

desdobramentos próprios.

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