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UNIVERSIDADE DE BRASLIA MESTRADO EM DIREITO, ESTADO E CONSTITUIO
PATRIMONIALISMO E BUROCRACIA: UMA ANLISE SOBRE O PODER JUDICIRIO NA FORMAO DO
ESTADO BRASILEIRO
DANIEL BARILE DA SILVEIRA
Braslia 2006
1
DANIEL BARILE DA SILVEIRA
PATRIMONIALISMO E BUROCRACIA: UMA ANLISE SOBRE O PODER JUDICIRIO NA FORMAO DO
ESTADO BRASILEIRO
Dissertao de Mestrado elaborada sob a superviso do Prof. Orientador Dr. Terrie Ralph Groth (Univ. da Califrnia/Riverside), do Programa de Ps-Graduao em Direito do Estado da Universidade de Braslia (FD-UnB), apresentada perante Banca Examinadora, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito.
Braslia 2006
2
DANIEL BARILE DA SILVEIRA
PATRIMONIALISMO E BUROCRACIA:
UMA ANLISE SOBRE O PODER JUDICIRIO NA FORMAO DO ESTADO BRASILEIRO
Dissertao apresentada Banca Examinadora como requisito parcial obteno do Ttulo de Mestre em Direito, na rea de Concentrao Direito, Estado e Constituio, pelo Programa de Ps-Graduao em Direito do Estado da Universidade de Braslia (UnB).
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Terrie Ralph Groth Universidade de Braslia (FD/UnB)
Prof. Dr. Antonio Carlos Wolkmer Universidade Federal de Santa Catarina (FD/UFSC)
Prof. Dr. Menelick de Carvalho Netto Universidade de Braslia (FD/UnB)
Braslia, 15 de dezembro de 2006.
3
DEDICATRIA
Gostaria de dedicar este trabalho a meu amigo e pai, Raul Novais da Silveira,
homem inteligente, culto e esforado, dotado de convico moral inquebrantvel e forte
apoiador de meus estudos; minha querida me, Miracelma Barbosa Barile, carinhosa e
deveras atenciosa na busca da polida criao de sua prole; minha irm Ana Catarina Barile
da Silveira, companheira e pessoa de personalidade afetuosa para com os desatinos de seu
irmo; e Luana Vieira Cndido, cuja motivao e pacincia durante todo processo criador se
fizeram fundamentais para a realizao desses penosos escritos. A vocs dedico meu trabalho.
4
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos aqueles que colaboraram, direta e indiretamente,
com amadurecimento de minhas idias e na prestao de todo suporte moral e material para o
desenvolvimento do contedo aqui reunido. Em especial, gostaria de saudar ao querido Prof.
Terrie Ralph Groth, de personalidade cativante e esprito afetuoso, que mais do que meu
Orientador, revelou-se como um amigo e conselheiro, pessoa com quem sempre pude contar e
que constantemente me munia de esforos e do esprito de perseverana para consecuo de
meus mais singelos intentos. Como Prometeu, possui a sublime virtude de doar aos mortais o
grmen do conhecimento e de incitar seus alunos ao desenvolvimento contnuo do esprito
crtico racional, um dom cuja sensibilidade em poucos aflora com tanta naturalidade. Gostaria
tambm de agradecer aos Profs. Antonio Carlos Wolkmer e Menelick de Carvalho Netto pela
elevada colaborao na avaliao deste trabalho, posto que, alm de constiturem dois
intelectuais de mais sublime jaez, revelam-se sempre comprometidos com os propsitos
acadmicos e sociais na seara jurdica. A contribuio de ambos os professores nesse trabalho,
direta ou indiretamente, reforam minha sempiterna admirao, cuja expresso em palavras
nem sempre encontra o mesmo sentido ntimo que converte seus ensinamentos em um
sentimento de elevada gratido. No bastassem todas estas ilustres figuras, gostaria tambm
de agradecer a todos meus professores, amigos, funcionrios da Faculdade de Direito, os
quais me forneceram estmulo e companheirismo em todos os perodos da pesquisa. Tais
pessoas demonstraram que a Fraternidade no somente um valor absorto e distante, mas
essencialmente uma prtica que se cultiva dia-a-dia. Por fim, agradeo em especial a meu pai
Raul, minha me Mira e minha irm Catarina e a doce Luana, que muitas vezes tomado pelos
desgastes intelectual, fsico e emocional provenientes da incansvel pesquisa, souberam
5
cultivar a pacincia em minha vida, consagrando um dom divino prximo da temperana que
proporciona alma indcil e aturdida do mestrando um conforto espiritual sem tamanho,
realizvel apenas por quem ama. A todos vocs sou muito grato por minhas realizaes.
6
A ondulao rtmica das paixes atinge grande altura e nossa volta est tudo escuro. Vem comigo, camarada de elevado esprito, sai do porto tranqilo da resignao para o mar alto onde os homens se fazem na luta das almas e o passado se afasta deles... Mas pensa bem: na mente e no corao do marinheiro deve haver claridade quando tudo est a arder debaixo dele. No podemos tolerar nenhuma capitulao fantstica ante as maneiras, escuras e msticas, das nossas almas, pois quando o sentimento se revolta temos de o prender para podermos governar a nau com sobriedade.
(Max Weber)
7
RESUMO
O presente trabalho investiga a formao histrica do Poder Judicirio brasileiro
enquanto inserto no processo mais amplo de construo de nosso estado nacional. Partindo-se
do referencial terico weberiano, consubstanciado em seus sistemas de dominao burocrtico
e patrimonial (enquanto corolrios de seus tipos de dominao racional-legal e tradicional,
respectivamente), aborda os perodos da Colnia, Imprio e Repblica enquanto momentos
histricos de forte predominncia desses dois modelos de organizao social. Por essa via de
entendimento, em um primeiro plano, analisa metodologicamente a estrutura legal do
Judicirio de cada um desses perodos, de maneira a se poder evidenciar a elevada formao
burocrtica sob a qual a magistratura brasileira se constituiu historicamente, vislumbrada pela
forma de organizao do Judicirio segundo o estudo de sua legislao pertinente. Em um
segundo plano, afastando-se da concepo que privilegia a investigao somente dos
diplomas legais que ensejam a regulamentao da poca, desce ao plano dos fatos para
compreender a forma de atuao da magistratura ptria, revelando seu real comportamento
perante os estatutos normativos postos sua disposio. Assim, pode-se verificar mais
precisamente em que grau tais magistrados comprometiam-se com o cumprimento das regras
legais e em que medida se afastavam desse desiderato. Ao se analisar mais intimamente a
forma de atuao emprica dos magistrados, percebe-se que a elevada regulamentao de suas
atividades normalmente contrastava com uma vasta gama de relacionamentos pessoais e
polticos, dentre inmeras sortes de condutas extralegais, que culminavam no desvirtuamento
das atividades judiciais tpicas. Nesse contraste entre os documentos legais e as mais variadas
formas de relacionamentos e compromissos tecidos ocultamente que se encontra a formao
do patrimonialismo no Judicirio brasileiro, primado por um ethos que indistingue a coisa
8
pblica da privada na exata proporo em que permite que um sem-nmero de interesses
personalistas entremeiem as relaes burocrticas puras, regidas pelo imprio impessoal da
lei. Nos trs perodos histricos estudados verifica-se a manifestao dessas ambivalncias,
posto que encerram primariamente na legislao uma estrutura formal e burocrtica bastante
sofisticada, quando tambm, de forma contraditria, proporcionam paralelamente na vida
prtica a assimilao de relaes pessoais e de interesses setoriais, em um misto de
burocracia e patrimonialismo na formao do Judicirio nacional. nestas contradies que
se podem encontrar um fundamento remoto de algumas deficincias estruturais de nosso
funcionalismo pblico judicial, o qual compelido verticalmente pelo formalismo
insofismvel da lei e horizontalmente influenciado pela referncia cultural que permite a
sobreposio de valores domsticos na esfera pblica. Tais so alguns dos fatores que abrem a
reflexo para se repensar a compreenso do Poder Judicirio nacional, a partir dos
apontamentos aqui minimamente efetuados.
Palavras-chave: Burocracia. Patrimonialismo. Poder Judicirio. Max Weber. Colnia.
Imprio. Repblica. Formao do Estado Brasileiro. Magistratura. Comportamento Judicial.
9
ABSTRACT
The present study investigates the historical formation of the Brazilian Judiciary,
in relation to the process of national state-building. Influenced by the writings of Max Weber,
especially those studies about patrimonial and bureaucratic authority, this investigation
examines the Colonial, Imperial and Republic periods of Brazilian history. First, the
investigation turns to an analysis of organizational structure of the Judiciary during these
specific periods, emphasizing the complex bureaucratic staff formation at the heart of the
national Judiciary. This methodological recourse is pursued by exploring the legal relevant
documents for each historical period. Second, the study examines the social judges behavior,
revealing their authentic procedure towards the normative statutes. Therefore, this formula is
able to measure the judicial commitment to obeying the letter of the law, specifying the
magistrate approachness to the bureaucratic commands present in laws. Based on this
background, we observe two specific orders of judicial comprehension of its social
participation on Brazilian society: one is oriented by the legal statutes which conduct judges
behavior to observe the empire of law, following the bureaucratic procedures accurately;
other, most apparent while the daily practical magistrates activity, is based on personal
relationships, in a manner that private convenience and political allies interests override the
laws supremacy in guiding judicial conduct. This contrast between legal rules and diverse
private commitments in the public sphere characterizes Brazilian judicial patrimonialism.
Public and the private conceptions of state administration are usually confused both as a kind.
On the three historical periods examined it is clearly discernible the convergence of
patrimonialistic and bureaucratic orders at the center of the judicial activity. In these
10
contradictions we find the remote origins of the structural deficiencies of the public judicial
institutions, opening a broader historical debate. The research offers a starting point to broadly
discuss our singular social formation, illuminating the deficiencies of the Judiciary in our
complex society.
Key Words: Bureaucracy. Patrimonialism. Judicial Power. Max Weber. Colony. Empire,
Republic. Brazilian State-Building. Judiciary. Judicial Behavior.
11
SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................ 13
1 MAX WEBER E AS FORMAS DE DOMINAO LEGTIMA ........................ 25
1.1 Poder e Dominao ........................................................................................... 26
1.1.1 A Dominao Carismtica ....................................................................... 31
1.1.2 A Dominao Tradicional ....................................................................... 37
1.1.3 A Dominao Racional-Legal ................................................................. 43
1.2 Os Aparatos Coativos de Dominao Poltica .................................................. 48
1.2.1 A Burocracia ............................................................................................ 51
1.2.2 O Patrimonialismo ................................................................................... 57
2 PATRIMONIALISMO E A FORMAO DO ESTADO BRASILEIRO ........... 65
2.1 O Verdadeiro Sentido de Brasilidade do Estado Nacional ........................... 68
2.2 O Patrimonialismo Enquanto Referencial Metodolgico ................................. 89
3 A MAGISTRATURA NO PERODO COLONIAL .............................................. 94
3.1 A Estrutura Legal do Judicirio no Brasil Colnia .......................................... 98
3.2 A Prtica Emprica da Magistratura Colonial .................................................. 107
4 A MAGISTRATURA NO PERODO MONRQUICO ....................................... 132
4.1 Um Momento de Transio: Da Colnia ao Imprio ....................................... 137
4.2 A Estrutura Legal do Judicirio no Brasil Monrquico .................................... 143
12
4.3 A Prtica Emprica da Magistratura Imperial ................................................... 154
5 A MAGISTRATURA NO PERODO REPUBLICANO ...................................... 184
5.1 A Estrutura Legal do Judicirio no Brasil Republicano ................................... 192
5.2 A Prtica Emprica da Magistratura Republicana ............................................ 209
CONCLUSO ............................................................................................................. 232
REFERNCIAS .......................................................................................................... 263
ANEXOS ..................................................................................................................... 272
13
INTRODUO
No dia 16 de fevereiro de 2006, o Supremo Tribunal Federal do Brasil, instncia
mxima do Poder Judicirio nacional, decidiu de forma praticamente unnime a condenao
prtica oficial de nepotismo no funcionalismo pblico, vedando a permanncia e novas
contrataes de parentes em cargos de confiana na estrutura da magistratura nacional. Essa
medida judicial, em verdade, veio corroborar o pensamento anteriormente firmado pelo
Conselho Nacional de Justia (CNJ), posto que, atravs de sua Resoluo n. 07/2005,
entendeu por bem ser a prtica de nepotismo na magistratura um vcio de natureza
solidamente condenvel, cuja manuteno elidiria com os maiores valores sustentados pela
Repblica e pela ordem constitucional ptria.
Em reportagem publicada pela Folha de So Paulo no dia posterior a tal evento,
reproduzia-se o comentrio do Min. Carlos Ayres Britto acerca da histrica deciso, notando
que o acesso mais facilitado de parentes [a cargos pblicos] traz exteriores sinais de
prevalncia de critrios domsticos sobre os parmetros da competncia (FREITAS, 2006,
p. 12, grifo nosso), fenmeno que evidentemente carrearia para a esfera pblica valores e
prticas prprias do ambiente familiar, uma conduta repudiada por qualquer administrao
burocrtica racional moderna.
No obstante o fausto de tal recente julgamento, muito debatida e comemorada
nos meios mais heterogneos de comunicao, o fato que pouco se discutiu a respeito das
causas determinantes de tais fenmenos, denotando um notrio desapreo pelos motivos que
conduziram a situao judiciria de admisso dessas prticas nepotistas, alm de muitas outras
condutas subvertedoras do iderio constitucional no que toca administrao da esfera
pblica. Certamente o desprezo pelos aspectos culturais ou histricos que originaram a
14
formao de nossa magistratura de maneira to avessa aos ideais que limitam os ambientes
pblico e privado traria para ns conseqncias bastante gravosas, carecedoras de uma
compreenso mais ampla desses eventos. A tentativa de se solucionar tais prticas a partir de
uma abrupta cartada da lei, como que compelido por um sopro civilizatrio conduzido pela
letra fria de uma norma jurdica, embora legtima, decerto no restou suficiente para elidir
com o nepotismo em nosso pas. No muito distante de tais eventos, aquela conduta social
ressurgiu atravs de prticas transversas de barganha e da cultura clientelista do favor,
culminando, como ocorrido, nos recorrentes casos de nepotismo cruzado em diversas
localidades do pas.
Conforme se pde verificar na mdia impressa e eletrnica, uma pesquisa
promovida pela Fundao Joaquim Nabuco e pela Associao Juzes pela Democracia (AJD)
sobre o nepotismo no Tribunal de Justia de Pernambuco (TJPE) revelou que, dos 382 cargos
comissionados na Corte, 314 so ocupados por funcionrios no concursados. Desse total,
40% so familiares de desembargadores. Esse levantamento mostrou que o campeo de
contrataes irregulares um magistrado que emprega cinco parentes, cujos salrios totalizam
R$ 24,7 mil por ms. Alm disso, o Dirio Oficial do dia 08/10/05 divulgou a nomeao de
29 novos servidores para o TJPE, fato ocorrido aps o trmino da pesquisa. Nenhum dos
nomeados concursado e quatro so filhos, esposa e irmo de um desembargador. Alm
disso, na mesma semana em que a pesquisa da Fundao Joaquim Nabuco e da AJD foi
divulgada, a imprensa divulgou outro fato semelhante, ocorrido no Tribunal de Justia da
Paraba. Contrariando normas legais, que impem votao aberta nas sesses de promoo de
juzes por critrio de merecimento, a Corte promoveu por voto secreto o filho de um
desembargador1.
1 Fonte: AJD Associao dos Juzes para a Democracia. Trata-se de matria publicada pelo O Estado de So Paulo, no dia 19/10/05, coluna Editorial. Estas informaes podem ser adquiridas no stio da associao. Disponvel em: . Acessado em 27 out. 2005.
15
Embora teoricamente a deciso do STF que convalidou Resoluo do CNJ tivesse
na prtica objetivado extinguir tais comportamentos, verificou-se uma sofisticao dessas
frmulas, representadas, como dito, pelo nepotismo cruzado. Estas relaes consistem na
troca de cargos com membros de outros poderes (Legislativo e Executivo, p. ex.) para fins de
albergar, em um sistema de compromissos mtuos, o apadrinhamento dentro da funo
pblica. Assim se viu nos jornais notcias no muito posteriores citada deciso de nossa
Corte Suprema:
O Ministrio Pblico de Pernambuco comea a investigar a estranha troca de favores entre deputados estaduais e desembargadores para garantir o emprego de parentes. O nepotismo cruzado foi o jeitinho encontrado por eles para driblar a lei. Oito diretores da Associao dos Magistrados de Pernambuco encaminharam a denncia de nepotismo cruzado ao Ministrio Pblico do estado. Eles querem que a troca de gentilezas entre o Judicirio e o Legislativo seja investigada. O Jornal da Globo de ontem mostrou a estratgia, mapeada com a ajuda do Dirio Oficial de Pernambuco. Onze parentes de juzes e desembargadores exonerados foram contratados pela Assemblia Legislativa. J os parentes dos deputados, conseguiram emprego no poder judicirio (grifos nossos)2.
O fato que os estatutos jurdicos que disciplinam a proibio destas prticas
extralegais no bojo da magistratura, embora extremamente importantes para a definio das
regras sociais s quais nossa vida est submetida, deparam-se com uma outra sorte de cdigo
velado que orienta a conduta de seus destinatrios. Na secular formao histrica do Brasil,
quando nos debruamos sobre a vida prtica de boa parte do funcionalismo pblico
(especialmente no Judicirio), podemos nos espantar curiosamente com a concorrncia de
referenciais extrajurdicos que vo determinar a conduta de seus agentes, tais como a prtica
do favoritismo, do jeitinho, do apadrinhamento, do clientelismo, da barganha poltica,
dentre outras formas de concepo da esfera pblica a partir dos mesmos valores regentes da
esfera familiar, privada por excelncia. neste sentido que o comentrio do nosso Ministro se
mostra sensato, pois de forma expressa reconhece certa influncia de critrios domsticos
2 Disponvel em: . Acessado em: 30 jul. 2006. Tais comportamentos e notcias no seriam de forma alguma fatos isolados, podendo ser aqui reproduzidos insistncia se houvesse azo para tanto.
16
na administrao da vida pblica, uma prtica que, como veremos, mostrou-se repetitiva em
nossa vida social.
Tais exemplos atuais, e que poderiam multiplicar-se ao infinito se
aprofundssemos em nossas compreenses acerca das transformaes jurdicas sofridas pela
contemporaneidade, indicam minimamente um fenmeno cotidiano em nossas relaes
sociais, consubstanciado na mistura profunda das concepes pblica e privada de nossa
organizao poltica. No apenas o nepotismo no Judicirio demonstra esse dado social, mas
inmeras outras sortes de malversao da funo oficial indicariam esse trao histrico que
envolve uma profunda simbiose cotidiana entre esses dois mundos, classicamente separados
um do outro. Se precisssemos metodologicamente ao estudo mais afundo nessa temtica,
certamente encontraramos uma ampla influncia de boa parte dos casos de corrupo, de
prevaricao, peculato, dente prticas de clientelismo e favoritismo sob suas mais sutis vestes,
como uma materializao mais viva dessa torrente cultural que nos assola secularmente.
Assim, tais problemas estruturais da esfera pblica so passveis de encontrar um
passado remoto, que podem muito bem ser estudados a partir da compreenso acerca da
formao singular do estado brasileiro, notadamente com enfoque na importncia da
magistratura enquanto agente ativo da estruturao dessas ordens sociais. Analisar
historicamente a importncia do papel exercido pela magistratura na formao do estado
brasileiro trata-se, assim, de um recurso ldimo para conhecermos uma parcela da
complexidade social por ns vivenciada atualmente, na medida em que a slida mistura das
relaes pblico-privadas possui um marco histrico-cultural adquirido por nossas
instituies, assimilveis ainda nos dias de hoje nas vrias manifestaes cotidianas de seus
indivduos.
Premidos por tais assertivas que nosso trabalho se insere, balizando-se por esse
complexo pano de fundo que determina o campo de relaes sociais travadas diuturnamente
17
em nossa vida poltica. Por tal razo, o presente estudo serve-nos como uma tentativa terico-
metodolgica de compreender a formao do Poder Judicirio brasileiro enquanto inserto na
construo histrica do estado nacional, na medida em que busca levantar alguns dos
problemas e vicissitudes histrico-culturais aptos a desvelar a singular faceta erigida pela
magistratura nacional no seio da complexa sociedade brasileira em constante transformao.
O trabalho que ora se apresenta parte do pressuposto que as condies sociais e
culturais que influenciaram a formao da magistratura brasileira proporcionaram a
consolidao de uma prtica emprica recorrente, em que pese as profundas rupturas legais
sofridas pelos perodos estudados. Colnia, Imprio e Repblica so as bases temporais sob
as quais se assentam estas premissas, posto que, no obstante a heterogeneidade de formaes
polticas, jurdicas e sociais que distinguem tais perodos uns dos outros, a marca cultural que
os une encontra-se presente nas inmeras manifestaes cotidianas da magistratura, quando se
pe a analisar mais especificamente a prtica emprica de seus juzes. Trata-se de investigar
esta singular caracterstica histrica do pas que encontrou na formao do Poder Judicirio a
manifestao mais exata de sua relativa continuidade, sem que houvesse uma ruptura aberta
com seu passado capaz de produzir uma radical modificao em suas bases estruturais.
O que se prope no presente trabalho , assim, explorar uma compreenso
alternativa de alguns dos problemas vivenciados pela magistratura nacional, solidamente
reproduzidos pelas deficincias histricas enfrentadas e de certa forma recrudescidos pela
cultura singular na qual tais indivduos se inserem em seu mister prtico. Dito de outra forma,
trata-se de fornecer uma compreenso diferenciada, embora de modo alguma exclusiva,
acerca dos problemas jurdico-institucionais ptrios, teoricamente desprezados por grande
parte dos doutrinadores nacionais. Os fatores advenientes da cultura ou do traado histrico
de um povo se inserem em uma forma de concepo dos problemas jurdicos que extravasa a
recorrente atribuio das normas como supremas vils dos problemas vivenciados por nossa
18
prtica jurdica, auxiliando-nos a vislumbrar deficincias estruturais que comprometem a
eficcia todo o sistema de direito, inclusive da prpria norma estatal.
Neste sentido, para a realizao deste desiderato servimo-nos de apoio das
clssicas lies do jurista e socilogo alemo Max Weber. Seu aporte conceitual nos auxilia
no fornecimento de um referencial terico e metodolgico capaz de entender como se
procedem essas aes habituais, imersas em uma rede de relaes intersubjetivas que garante
o significado cultural a que seus agentes atribuem s relaes de poder exercidas
cotidianamente. Assim, partindo das premissas conceituais weberianas, buscaremos no
Captulo 1 deste trabalho delinear como que essas relaes pblicas e privadas se organizam
enquanto orientadas pela predominncia de determinados sistemas de dominao,
notadamente a burocracia e o patrimonialismo. Tentaremos compreender como esses
sistemas de gerenciamento das funes institucionais originam concepes diferenciadas de
estado, que, por sua vez, culminam nas diversas compreenses acerca da natureza e das
funes exercidas socialmente pela autoridade. Partindo da viso de Weber sobre as relaes
de poder existentes na comunidade poltica, discutiremos a despeito de seu referencial
explicativo acerca das formas pelas quais as sociedades se organizam, fundadas na crena da
legitimidade das ordens emanadas por quem exerce determinada autoridade. Trata-se do
estudo de suas trs formas de dominao legtima, expressas pela dominao carismtica,
pela dominao tradicional e, por fim, pela dominao racional-legal. Posteriormente,
com base nos conceitos anteriormente estudados, que em tese garantem apenas a convico
ntima pela qual se obedecem s ordens legtimas, passa-se compreenso dos sistemas de
dominao desenvolvidos pelo autor, mais especificadamente a burocracia e o
patrimonialismo, corolrios das dominaes legal e tradicional, respectivamente. neste
ncleo de sistemas de dominao teoricamente opostos que centralizaremos nossos esforos
para compreender a realidade institucional brasileira no tocante ao Poder Judicirio,
19
compreendido como um rgo reflexo de sua formao estatal que reproduz cotidianamente a
latente mistura de tais sistemas, trazendo graves conseqncias para a modernidade. As
polarizaes entre as dominaes legal e tradicional e as ambivalncias entre as formaes
burocrtica e tradicional garantem o fio condutor de todo trabalho, consistindo em um
leitmotiv hbil a se compreender a continuidade das relaes de poder travadas socialmente
em nossa dbil esfera pblica, entremeada por profundas influncias da concepo privada de
seus participantes.
Logo em seguida, antes mesmo de avanarmos para a anlise histrica do Poder
Judicirio que servir de base para a utilizao de tais conceitos, passaremos por um exame
mais especfico acerca da utilizao do referencial weberiano como forma de explicao dos
problemas do estado brasileiro. Assim, o Captulo 2 objetiva demonstrar que as temticas do
patrimonialismo e da burocracia decerto no constituem uma novidade em nossa abordagem
terica, a qual, embora considere que inexistam estudos especficos que tratem da
magistratura travestida sob esta tica, certamente sabe-se que a administrao pblica e o
estado como um todo j foram alvos pretritos de renomados estudos. Busca-se aqui levantar
a literatura ptria que se debruou anlise dos problemas estatais brasileiros, na medida em
que fornecem importantes elementos analticos para nossos fins aqui propugnados,
posteriormente retomados em nossa tarefa de compreenso da formao histrica do Poder
Judicirio no Brasil. Tal ponto do trabalho presta-se tambm a pautar a situao atual dos
estudos referentes leitura do estado brasileiro segundo o prisma weberiano, denotando uma
sorte de tat dart da literatura contempornea acerca das influncias de Weber nos autores
que se dedicaram compreenso dos problemas nacionais.
Assim, construdo o pano de fundo que servir de referencial analtico em todo
texto, passa-se ao Captulo 3 de nossa exposio, a partir do qual se centram as atenes
especficas ao incio da formao histrica do Judicirio no pas. A abordagem busca reavaliar
20
a princpio o sistema jurdico do Brasil-Colnia, denotando os principais diplomas legais e
toda a estrutura formal de organizao de sua magistratura, no intento de se demonstrar o
elevado grau burocrtico sob o qual tal estrato social estava constitudo. Como veremos, a
complexa teia de relaes legais e instncias judiciais, delimitadora das aes dos juzes com
base no primado da lei, contrastava empiricamente com uma srie de relaes de cunho
pessoal, consagradoras de um misto ecltico de administrao judicial baseada na manifesta
indistino das esferas pblica e privada. Por um lado, a sociedade colonial estava jungida
legalmente a um vasto conjunto de ordenaes impessoais, estipuladoras das aes polticas
oficiais e que teoricamente amarravam a populao a um grupo de instituies formais,
estatalmente controladas, tal qual a magistratura metropolitana. Estas formalizaes legais e
institucionais caracterizariam a sofisticada rede de relaes burocrticas, que, medida em
que a histria ganhava seu curso, tornava-se cada vez mais intensa e agigantada na vida
poltica do Brasil da poca. Paralelamente a tais situaes, a prtica judicial no afastava,
quando pelo contrrio assimilava, uma srie de relacionamentos paralelos administrao
oficial, caracterizadores de relaes de parentesco, interesse e objetivos comuns que se
entremeavam s ordens oficiais, normalmente consentidos pela metrpole portuguesa. Esse
misto de relaes privadas imiscudas nos comandos de ordem pblica originava
empiricamente a viso propugnada por Weber do patrimonialismo, contraditoriamente
nascido a partir de sua vertente burocrtica solidamente desenvolvida. Era essa mistura de
relaes que, na prtica, caracterizava a Justia da poca como vendida, bastarda, suja,
assertivas bastante comuns para os crticos da poca.
Logo em seguida, no Captulo 4, parte-se para o estudo do Brasil Monrquico,
inaugurando uma nova situao poltica, jurdica e social que poderia culminar na
transformao do estado de coisas vivenciado at ento, proporcionando a maior separao
das esferas pblico-privada. Desta forma, buscar-se- perquirir as inmeras transformaes
21
jurdicas e institucionais sofridas pelo Judicirio brasileiro nessa poca, demonstrando-se as
modificaes mais relevantes que puderam legalmente conferir magistratura uma nova
roupagem, especialmente carreadas pelo advento da Constituio de 1824. Saindo da
abordagem legal acerca do sistema jurdico encontrado na poca, passamos compreenso da
prtica emprica magistratura, no sentido de se poder revelar como e em que grau tais
dispositivos legais vinham sendo estritamente cumpridos. Para a realizao desta aspirao
buscou-se inserir a magistratura no sistema social da poca, especialmente no que concerne a
suas ligaes com as elites polticas, fundando-se em um recurso metodolgico apto a depois
se avaliar o grau de cumplicidade a que seus juzes estavam submetidos para com aquele
estrato social. Nesta medida, os fatores de recrutamento, de socializao e da prtica judicial
favoreceram a construo de uma burocracia slida, amplamente amparada por estatutos
jurdicos que delimitavam o campo de aes e as garantias da judicatura imperial. Entretanto,
em que pese toda formalidade legal qual estavam submissos os juzes, sua conduta cotidiana
demonstrava o forte afastamento das regras estabelecidas, favorecendo a ascenso de
condutas extralegais veiculadoras de interesses personalistas, marcados por um sistema de
compromisso entre os magistrados e o sistema de dominao regional. Tais evidncias podem
ser mais bem manifestas ao se vislumbrar a forma de recrutamento dos magistrados no poder
pblico, bem como pelo caminho percorrido por tais juzes para a ascenso na carreira
poltica, alm da prtica contenciosa tpica da judicatura na dissoluo dos conflitos sociais.
Mais uma vez, os procedimentos burocrticos, como veremos, tinham sido relegados a
segundo plano, propiciando a assero de prticas patrimonialistas de modo a minar a conduta
oficial da magistratura imperial.
Ao adentrarmos na Repblica Velha, conforme poderemos verificar no Captulo
5, constata-se que as transformaes sofridas no perodo no foram suficientes para elidir a
torrente cultural legada por nossos antepassados, renovando sob novas vestes as condutas
22
patrimoniais de outrora. Desta forma, a Repblica inaugura na histria brasileira o advento de
uma situao poltica prpria, marcada pela predominncia da Constituio e pela exaltao
de vrias transformaes institucionais extremamente importantes para a superao de sua
herana maldita patrimonial. O presidencialismo, o federalismo, um parlamento eleito e
temporrio, um Judicirio de competncias bem delimitadas e garantias funcionais expressas
eram as principais marcas constitucionais prometidas pelo perodo republicano, conducentes a
propiciar o maior controle entre os poderes e de modo favorvel a tornar a magistratura cada
vez mais profissional e racionalizada. No obstante todas estas transformaes legislativas,
veremos que a prtica de sua judicatura reproduzia as manifestaes patrimonialistas
recorrentes em nossa vida brasileira, notadamente marcadas pela submisso do sistema
judicial ao sistema poltico vigente na poca. Deste modo, o compromisso com a Poltica dos
Governadores das faces estaduais, recrudescido com o slido pacto coronelista registrado
nas localidades, fornecia a vinculao dos interesses aos quais os magistrados deveriam
reproduzir na esfera do Poder Judicirio. O grau de compromisso destes juzes com o sistema
poltico vigente poder ser medido no que concerne ao procedimento de recrutamento das
carreiras judiciais, bem como pela sua forma tpica de atuao nas funes jurisdicionais. So
nessas esferas de ao dos magistrados que se podem identificar as marcas institucionais da
corrupo, do favoritismo, do sistema de barganha poltica, do nepotismo dentre outras
prticas patrimoniais tpicas em que critrios domsticos prevalecem sobre a incolumidade
da esfera e funes pblicas.
Percorrendo todo este caminho, ser possvel constatar, ao final, o atipicismo
sincrtico das regras que determinavam a conduta da magistratura ptria: embora formalmente
vinculada a uma srie de estatutos formais determinantes de suas competncias e aes,
representadas pelas regras burocrticas premidas pelo imprio da lei, normalmente, quando da
prtica cotidiana dos juzes, essas relaes formais se entrecruzavam com uma srie de
23
orientaes subjetivas, notadamente influenciadas pelos interesses pessoais ou pelas
predisposies partidrias dos magistrados. Essa marca cultural acabaria por consagrar
secularmente no corao de nossa esfera pblica uma srie de relaes domsticas que
maculariam a construo de um espao pblico autnomo, veiculador do signo da
impessoalidade e das garantias mnimas onde o indivduo se faz cidado. Assim,
patrimonialismo e burocracia, dois conceitos de base weberiana, servem-nos perfeitamente
como moldes a se poder lanar um olhar interpretativo sobre nossa realidade institucional
judiciria, possibilitando-nos compreender uma parcela dessa complexa esfera estatal to
importante para nossas vidas contemporneas.
nesse misto de relaes que nosso trabalho se propugna a descortinar, sempre
como um ponto de partida, uma mais acalorada discusso acerca de nossas prticas judiciais
cotidianas. Longe de ser um trabalho histrico puro, posto que consciente ou
inconscientemente se obnubilam determinados acontecimentos em valorizao de outros
inevitveis para a compreenso do presente tema, o fato que o trabalho ora apresentado
serve-se metodologicamente da Histria como um instrumento para a compreenso
estruturalista de uma determinada elite, tal qual a dos magistrados. Como nenhuma sociedade
pode ser ingnua em deixar de compreender a formao de suas elites, este trabalho busca
enveredar por estas sendas, na singela contribuio que poder trazer ao debate pblico nesta
seara do conhecimento. Trata-se antes de investigar a compreenso da formao da
magistratura nacional a partir de um prisma terico weberiano, do que a traduo mais
fidedigna de todos os fatos histricos que envolvem o cenrio apresentado.
Deste modo, se alguns acontecimentos igualmente grandiosos nesse vasto perodo
estudado foram desprezados, h de se tolerar a dificuldade de selecionar aqueles eventos mais
tendentes compreenso do tema aqui proposto, no ntido esforo de realizar as finalidades
eletivas que toda temtica se prope a seus autores realizar. Ademais, os pouco mais de onze
24
meses voltados especificamente para a elaborao do presente estudo restam demasiado
curtos para uma abordagem mais completa e talvez mais ampla dos problemas apresentados.
de se considerar que essa exigidade manifestou-se agravada ainda pelo intenso desgaste
fsico, intelectual e emocional que todo trabalho acadmico dessa natureza proporciona, o
qual, somado aos desalinhos propiciados pelos infortnios da vida, s vezes silenciosamente
obscurecem nossa vista, impossibilitando-nos de enxergar algum fundamento colorido mais
profundo. Na lio de Max Weber, o propsito da cincia essa eterna vocao para ser
superada, na medida em que as formulaes de hoje podem futuramente sofrer
aprofundamentos, revises e desdobramentos mais especficos, uma tarefa para ns digna de
ulteriores elucubraes. Por ora, se o agrupamento de nossos esforos no restar
suficientemente completo ou deleitoso aos leitores deste trabalho, pede-se que tenham
complacncia de nossas volies. Como a jovem rvore cujo primeiro fruto colhido foi
acrrimo, certamente, em uma outra safra, ser bem mais adocicado.
25
1 MAX WEBER E AS FORMAS DE DOMINAO LEGTIMA
Para o estudo do tema a que nos propusemos abordar, os trabalhos do jurista e
socilogo alemo Max Weber servem notadamente como referencial terico de extrema
importncia para a compreenso do fenmeno pesquisado. Ao fixar estruturas conceituais
conducentes a classificar as inmeras formas de organizao social baseadas no poder da
autoridade poltica, Weber denota uma fundamental distino entre o modelo de poder de
estado assentado em uma burocracia racional e o conjunto de prticas polticas
patrimoniais, avesso este quase sempre ao primeiro paradigma, fenmeno que serviu como
campo de debates para toda teoria poltica moderna, inclusive no Brasil contemporneo.
Deste modo, antes de se tecer maiores consideraes acerca de seu modelo
interpretativo da realidade faz-se necessrio preparar o eixo conceitual em que tal pensamento
se assenta, esclarecendo seu campo de observao especfico. Assim, a primeira parte do
Captulo ir esclarecer algumas idias acerca do conceito de dominao em Weber, como
sendo um segmento extrado de sua teoria sobre as formas de dominao legtima, buscando-
se determinar em quais cenrios nossa pesquisa tramita nesse complexo campo referencial.
Logo em seguida, centralizaremos nossas atenes em dois modelos bsicos de sistemas de
dominao: o primeiro, de carter racional-legal e prprio das sociedades modernas,
representado por sua forma mais pura, a burocracia; a outra, tpica das dominaes
tradicionais, entendida como um desenvolvimento gradual das dominaes patriarcais, qual
seja, o patrimonialismo puro. Estas consideraes servem de pano de fundo para o qual se
desenvolver todo trabalho, no intento de se buscar demonstrar, nos captulos subseqentes,
como o sistema judicirio brasileiro se desenvolveu a partir dessas formas, encerrando um
26
esqueleto formal burocrtico imerso em prticas patrimonialistas, paradoxo que molda de
forma peculiar nossas instituies ptrias.
1.1 Poder e dominao
Ao voltar seus olhos para o comportamento humano social, o jurista e socilogo
alemo Max Weber identifica que grande parte das aes entre os indivduos subsiste a partir
de estruturas em que o elemento dominao figura como centralizador da permanncia de
certa ordem e que garante, em outra medida, a prpria sobrevivncia de toda uma
coletividade. Sob seu olhar analtico, sem qualquer exceo, todas as searas em que relaes
sociais esto sendo travadas existe uma preponderncia muito forte da incidncia de
complexos de dominao sobre tais aes, que na maioria de suas formas assegura
determinada organizao da sociedade.
Esta significao no implica, evidentemente, que todas aes sociais so
estritamente frutos de relaes de dominao, o que refletiria, indubitavelmente, uma notria
incoerncia prtica. Entretanto, o que Weber adverte que a imensa maioria dos
comportamentos selados entre indivduos pressupe um grau concreto de dominao, idia
que desempenha um papel fundamental para entender-se o funcionamento da sociedade sob
seus mais diversos pontos de vista.
Ao se versar sobre tal temtica, Weber adverte seus leitores que basicamente se
est a discorrer sobre relaes de poder, posto se tratar a dominao de uma sorte de exerccio
do poder, ou mesmo, um caso especial de poder (1999, v. 2, p. 187). Assim, Poder
(Match), como nos traz o autor, significa toda a probabilidade de impor a prpria vontade
27
numa relao social, mesmo contra resistncias, seja qual for o fundamento dessas
legitimidades (1999, v. 1, p. 33). Em outros termos, a idia de poder que Weber trabalha
situa-se na seara das formas mais tpicas de aes sociais, entendida como a possibilidade de
impor, ao comportamento de terceiros, a vontade prpria. Trata-se da configurao mais pura
de poder do homem sobre outro homem, um comando expresso ou simblico que afeta
singularmente a capacidade geral de ao do dominado. Nesta viso, a presena de poder nas
relaes sociais um aspecto, qui o mais importante, de todo relacionamento coletivo,
conferindo-lhe sua caracterstica intersubjetiva to peculiar. Encontramos relaes de poder
na religio, na poltica, nos relacionamentos mercantis, nas relaes erticas, nas decises
judiciais, nas discusses cientficas ou mesmo nos atos de benemerncia, ou seja, o elemento
potestativo est presente nas mais diversas manifestaes de comportamentos sociais
possveis. Assim, na viso de Weber, o indivduo no somente um sujeito mas
essencialmente um objeto de poder, fator que confere ao fenmeno sua mais completa
bilateralidade. Onde quer que existam agrupamentos humanos o poder estar presente,
pulverizado e disperso por seus detentores, simbolizando a forma mais tpica do agir social
baseado em elementos de alteridade.
Entretanto, dentre as inmeras fontes de poder, Weber assinala especificamente
que duas espcies so de extrema importncia para compreendermos as relaes travadas
socialmente, de maneira a se possibilitar entender uma parcela ampla do funcionamento da
sociedade: o poder derivado de uma infinidade de interesses que se desenvolve em um
mercado livre (esfera da economia) e o poder da autoridade que exerce seu mando e cujos
sditos recebem o dever de obedincia (esferas do direito e da poltica) (1999, v. 2, p. 187 et
seq.; BENDIX, 1986). Deste modo, quando Weber trata do conceito dominao, elemento
central de seu esquema explicativo sobre a manuteno de relaes de poder no seio social,
atm-se unicamente ao seu sentido restrito, ou seja, excluindo-se o poder baseado e uma
28
constelao de interesses orientada pela esfera do mercado, e centrando sua ateno nas
relaes de mando e obedincia, nas relaes de autoridade por excelncia.
Neste sentido, dominao (Herrschaft) definida por Weber, em seu conceito
classicamente reproduzido, como a probabilidade de encontrar obedincia a uma norma de
determinado contedo, entre determinadas pessoas indicveis (1999, v. 1, p. 33). Assim, uma
relao de dominao pressupe que determinada pessoa detenha o poder para que outra no
o tenha (comumente chamado pela sociologia americana de teoria da soma zero) (LEBRUN,
1999, cap. I). Trata-se de uma relao que reciprocamente estabelece um sentido de ao
entre a autoridade (o governante) e seus sditos (governados), baseando os comportamentos
destes agentes no binmio direito de mandodever de obedincia. Conforme o prprio
Weber salienta,
Por dominao compreenderemos, ento, aqui, uma situao de fato, em que uma vontade manifesta (mandado) do dominador ou dos dominadores quer influenciar as aes de outras pessoas (do dominado ou dos dominados), e de fato as influencia de tal modo que estas aes, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do prprio contedo do mandado a mxima de suas aes (obedincia) (1999, v. 2, p. 191).
A preocupao central do pensamento weberiano, insta consignar, e que
posteriormente serviu de esquema explicativo para toda uma sorte de tericos polticos e
juristas na contemporaneidade, reside em compreender como relaes sociais baseadas em
elementos de poder perduram no tempo em determinadas comunidades polticas. A
individualizao das relaes de poder fixadas por Weber se atm especialmente a buscar uma
matriz conceitual que possa justificar o aspecto da permanncia do poder, no to somente
advindo de uma relao vis--vis, mas que fundamentalmente se estabelece em um grande
contingente humano, gerando atos contnuos de obedincia em larga escala. A complexidade
de sua anlise se prende na fundamentao de como uma sociedade pode se organizar
submetida a comandos de poder emanados por uma autoridade de forma sucessiva, de
maneira, assim, a estabelecer probabilidades bastante acentuadas no grau de cumplicidade dos
29
indivduos para com a manuteno dessa relao, gerando uma estabilidade do elo mando-
obedincia. No arcabouo terico weberiano, portanto, um dos problemas fundamentais a
serem resolvidos foca-se no fenmeno da estabilizao do poder, caracterstica fundamental
da manuteno de todo comportamento social, poltico e jurdico de determinada coletividade.
Por conseguinte, a idia trazida por Weber no tocante ao conceito de dominao
situa-se em uma seara em que a legitimidade do exerccio desse poder pea fundamental
para que ela se desenvolva eficazmente. No se trata do fato de qualquer espcie de exerccio
de poder ou influncia sobre o outro se configure como relaes de dominao
essencialmente dotadas de legitimidade, pois se deve considerar que uma dominao para ser
legtima requer certa vontade de obedecer e interesse na obedincia (WEBER, 1999, v. 1, p.
139). Este aspecto denominado de crena na legitimidade (ou princpio da
legitimidade), que se configura como elemento essencial pelo qual uma ordem da autoridade
possvel de ser imposta, ou tambm, fenmeno capital que permite a um governante atuar
instituindo regras de observncia aceitas como vlidas e livremente obedecidas, de forma
contnua. Um sistema de dominao, para nosso autor, apenas pode se desenrolar com
eficincia se estiver envolto em seu vu de legitimidade, sem o qual transformaria uma
relao de autoridade em uma sorte de exerccio de poder ilegtimo, que desconhece, em suas
grandes linhas, qualquer interesse ou vontade na obedincia.
Segundo Weber, a crena na legitimidade de uma ordem no problema de
natureza meramente filosfica e desprovida de contedo prtico. Ela pode estabelecer
contribuies fecundas para a perdurao de uma relao de autoridade e denota diferenas
prementes entre os sistemas de dominao. Conforme preleciona Reinhard Bendix,
[...] como todos os outros que gozam de vantagens sobre seus companheiros, os homens no poder querem que sua posio seja considerada legtima e suas vantagens merecidas, e querem interpretar a subordinao de muitos como a sina justa daqueles sobre quem recai (1986, p. 234).
30
E continua, logo em seguida, demonstrando extrema lucidez analtica:
Todos os governantes, portanto, desenvolvem um mito sobre sua superioridade natural, que geralmente aceito pelas pessoas em situao instvel, mas que podem tornar-se objeto de um dio passional quando alguma crise faz com que a ordem estabelecida parea discutvel (1986, p. 234).
Note-se que Weber afirma que para existir uma relao de dominao devem-se
possuir trs elementos bsicos componentes da estrutura de domnio: um sujeito dominante,
como sendo aquele que representa a autoridade; os sujeitos dominados, destinatrios dos
comandos emanados por quem exerce essa autoridade; e um quadro administrativo,
incumbido dos atos de execuo dos mandamentos determinados pelo dominante em relao
aos dominados. Importante ressaltar que esse quadro administrativo representa para o direito e
para a poltica o denominado aparato coativo estatal, frmula composta por um instrumento
formal (ordenamento jurdico) e material (funcionrios estatais) de imposio dos mandados e
que estabelece a ordem na coletividade. Essa engenharia tripartite a estrutura mais genrica
da dominao, a qual na prtica pode assumir diversas formas, representadas, conforme
Weber classificou, pelos trs tipos de dominao, teoria amplamente reproduzida pelos
tericos contemporneos e psteros do nosso autor alemo.
Assim, Weber desenvolveu um esquema analtico capaz de tipificar basicamente
trs formas ditas puras (tipos-ideais3) de exerccio regular da dominao legtima, ou, em
outros termos, trs formas bsicas de perdurao da crena na legitimidade do poder de
3 Essas formas de dominao, cabe ressaltar, so denominadas por Weber como sendo tipos-ideais, ou seja, um recurso metodolgico utilizado pelo cientista toda vez que necessita compreender um fenmeno formado por um conjunto histrico ou uma seqncia de acontecimentos, os quais no podem ser encontrados na realidade em seu estado puro , mas que se situam apenas no plano da abstrao terica (ARON, 1999, p. 465). Nada mais do que um recurso cientfico-metodolgico que se vale o pesquisador para compreender uma realidade ou um fenmeno dado, preservando-se os pressupostos de neutralidade axiolgica e objetividade cientfica. Trata-se, como afirma Julien Freund, de uma ucronia, isto , aquilo que no se situa nem se pode situar em nenhum tempo (2000, p. 57). Com tal frmula, diz-nos Florestan Fernandes, visa o estudioso do comportamento humano social, artificialmente, controlar a obteno de dados e sua interpretao (1959, p. 96-97). Segundo o prprio Weber, obtm-se um tipo ideal mediante a acentuao unilateral de um ou vrios pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenmenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor nmero ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogneo de pensamento (1991, p. 106, grifos do autor).
31
mando, cada um deles relacionados ao aparelho administrativo que tem sido usado para
justificar o comando. So eles: a) dominao carismtica; b) dominao tradicional; e c)
dominao racional-legal4.
1.1.1 A Dominao Carismtica
A dominao carismtica aquela baseada na venerao extracotidiana da
santidade, do poder herico ou do carter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta
reveladas ou criadas (WEBER, 1999, v. 1, p. 141). Detm carisma aquela pessoa cujos
dotes so considerados extraordinrios, sobre a qual recaem habilidades excepcionais, at
sobrenaturais, caractersticas pessoais estas bastante desenvolvidas em relao aos demais
membros do grupo e que por este motivo exercem seus possuidores a dominao. Conforme
nos esclarece o autor, carisma
[...] uma qualidade pessoal considerada extracotidiana (na origem, magicamente condicionada, no caso tanto dos profetas quanto dos sbios curandeiros ou jurdicos, chefes de caadores e heris de guerra) e em virtude da qual se atribui a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos especficos ou ento se a torna como enviada por Deus, como exemplar, e, portanto, como lder (WEBER, 1999, v. 1, p. 158-159, grifo do autor).
O exemplo tpico de chefe carismtico o lder de uma tribo, o profeta, o heri
militar, o demagogo ou mesmo o revolucionrio. Por esta razo, em decorrncia de virtudes
consideradas providenciais, tais homens exercem a dominao sobre seu quadro
administrativo, este no entendido como profissionais especializados, porm como
4 A relao entre o dominador e o aparelho administrativo extremamente importante para detalharmos a forma assumida pela dominao. Segundo dizia, a classe de relao de legitimidade entre o soberano e seu quadro administrativo muito varivel de acordo com a classe de fundamento da autoridade que entre eles exista, sendo decisiva em grande medida para dar a estrutura da dominao. (WEBER, 1999, v. 1, p. 171-172). Para uma anlise semelhante vide tambm Saint-Pierre (1991), Cohn (2002), Macrae (1975) e Gert e Mills (1982).
32
discpulos, seguidores e homens de confiana, os quais crem nos dotes sobrenaturais do
chefe mais do que propriamente em regras estabelecidas em um estatuto normativo ou
decorrentes de uma longa tradio. No h hierarquia na execuo das tarefas de governo,
nem competncias fixadas previamente, intervindo o chefe de prprio ofcio, muitas das
vezes, em ocasies em que se constata ineficcia operacional nas atividades perpetradas por
seus subordinados. Trata-se de um exerccio de mando no racional e basicamente emocional,
fundamentado na confiana, s vezes fantica, que isenta momentaneamente o poder de
quaisquer crticas. As regras so estabelecidas pelo prprio governante, sem a observncia a
nenhum princpio exterior que no esteja disposto em suas prprias convices. As decises
no possuem embasamento normativo racional algum, no existem normas jurdicas abstratas,
no h princpios ou sentenas jurdicas. Cada deciso a pura criao do direito, que se d
quele caso em particular, mormente invocando deuses, inspiraes ou orculos. Via de regra,
portanto, o chefe carismtico no obedece a princpios (sequer lei ou aos costumes), ao
menos enquanto perdura a legitimidade na crena dos squitos nos atributos extraordinrios
de suas aes. No toa que Weber insistia em afirmar que o carisma a fora
revolucionria que arrebata as tradies ou normas em momentos de crise, pois muda a
conscincia e as aes habituais por isso afirma ser uma fora extracotidiana instaurando
uma fase de experimentao de um surrealismo idealista, que, em algumas situaes, tende a
se rotinizar e perdurar em uma coletividade, ou seja, tradicionaliza-se ou legaliza-se.
Exemplos modernos de chefes carismticos so as figuras emblemticas de Lnin e Fidel
Castro, como chefes de estado, Jesus Cristo, como lder religioso, os Aiatols entre os
muulmanos xiitas e mesmo o Dalai-lama, chefe poltico do Tibete e lder espiritual do
Lamasmo (vertente mais tradicional do Budismo).
Sob a gide da dominao carismtica, a pessoa do chefe poltico de
fundamental importncia para a prpria sustentao da ordem estabelecida, na medida em que
33
as ordens do lder carismtico so fielmente seguidas por seus sqitos, crentes na
predestinao ou nos atributos excepcionais da autoridade. por essa razo que Julien Freund
assevera que todo domnio carismtico implica na entrega dos homens pessoa do chefe,
que se acredita predestinado a uma misso (2000, p. 169). Neste sentido, a manuteno da
relao mando-obedincia, sua estabilidade, repousa na virtude da confiana, atributo tpico
das relaes privadas, que em muitos dos casos mola propulsora de aes baseadas na cega
sujeio fantica em certas ocasies ou mesmo na f, caracterizada pela crena absoluta na
palavra e nos atos do lder, desprovida em sua maioria de contedos crticos ou de atos
materialmente questionveis. Trata-se de uma sorte de dominao estigmatizada por seus
aspectos irracionais, de carter eminentemente emocional, cuja legitimao encontra-se
solidificada na figura do chefe carismtico in persona. Tal lder se propugna, em diversos
casos, a execrar e a punir socialmente os no adeptos de suas veleidades, de forma totalmente
avessa s convenes exteriores quelas que no decorram unicamente de sua deliberao
ntima5.
Evidentemente que um tipo de dominao que se baseia sob esses pressupostos
pende por se constituir pelo irrestrito descaso pelas instituies j firmadas, ou mesmo pelo
desrespeito s normas estabelecidas e aos costumes vigentes, posto que a vontade do lder
carismtico tem o condo de moldar a forma pela qual se instaura a ordem, as prticas oficiais
e as regras de necessria observncia dos seus dominados. A execuo fiel dos mandamentos
proferidos pelo chefe se mantm intacta por seus subordinados, na medida em que seus
atributos, considerados sobrenaturais, exercem um forte atrativo para a coletividade. Neste
condo, a fidelidade ao cumprimento das ordens carismticas proporcional manuteno da
crena na excepcionalidade do lder. Caso o virtual encanto dos seus seguidores remanesa 5 J nos dizia Weber: O poder do carisma [...] fundamenta-se na f em revelaes e heris, na convico emocional da importncia e do valor de uma manifestao de natureza religiosa, tica, artstica, cientfica, poltica ou de outra qualquer, no herosmo da ascese, da guerra da sabedoria judicial, do dom mgico ou de outro tipo. Esta f revoluciona os homens de dentro pra fora e procura transformar as coisas segundo seu querer revolucionrio (1999, v. 2, p. 327).
34
abalado em momentos de crise ou ainda pela longa exposio ao dever de obedincia, a
manuteno do sistema de dominao cai por terra, ao menos que outros impulsos igualmente
privilegiados venham-lhe tomar lugar, renovando e robustecendo a legitimidade das ordens
emanadas. No toa que o tradutor francs de Weber afirma que
Toda poltica carismtica , pois, uma aventura, no somente por se arriscar ao fracasso, mas porque ela incessantemente obrigada a reencontrar um novo el e a fornecer outros motivos de entusiasmo para confirmar seu poderio (FREUND, 2000, p. 170).
Em realidade, toda forma carismtica de exerccio da dominao tem por
fundamento a idia da prova, ou seja, baseia-se na constante submisso do poderio do
governante a exames ou a aes que exteriorizem seus dons sublimes. Assim, a legitimidade
da dominao do chefe carismtico sustentada na medida em que consegue demonstrar a
seus seguidores que possui dons solidamente desenvolvidos, de cunho sobrenatural (entendido
aqui no sentido de que ningum os possui). A partir do momento em que tais provaes no
conseguem mais surtir efeito sobre a massa, o sistema de dominao desmantela-se,
fenecendo sua autoridade. Assim nos demonstra Weber:
O heri carismtico no deriva sua autoridade de ordens e estatutos, como o faz a competncia burocrtica, nem de costumes tradicionais ou promessas de fidelidade feudais, como o poder patrimonial, mas sim consegue e conserva apenas por provas de seus poderes na vida. Deve fazer milagres, se pretende ser um profeta, e realizar atos hericos, se pretende ser um lder guerreiro. Mas sobretudo deve provar sua misso divina no bem-estar daqueles que a ele devotamente se entregam. Caso contrrio, ele evidentemente no o senhor enviado pelos deuses (1999, v. 2, 326, grifos do autor)
Assim, toda dominao que se fundamenta por critrios carismticos tem por
caracterstica sua atipicidade, de expresso eminentemente revolucionria em grande parte
delas, como sempre acentuava Weber. Isto se d pelo fato de que muitas das grandes
transformaes no sistema de dominao legal ou consuetudinrio passaram pelo crivo de
lderes carismticos, cujas propostas e o mecanismo de ao social justamente vieram
arrebatar o status quo, substituindo-o por uma promessa que apenas aquelas pessoas dotadas
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de grandes poderes ditos sobrenaturais ou mgicos poderiam subverter aquela realidade,
renovando-a. A idia que Weber nos traz situa-se no fato de que a dominao baseada no
carisma tem por conseqncia a entrega fiel dos dominados s regras postas pelo lder
inaudito, avesso a toda norma oficial e tradio est escrito, mas eu vos digo. O
comportamento dito revolucionrio do chefe carismtico repousa justamente na inverso de
todos os valores, dos costumes estabelecidos e das regras j consolidadas, os quais cedem
lugar ao discurso promissor, proftico e herico do lder, dotado de fora apta a transformar a
realidade circundante. Desta forma, fundamentado em suas prelees e em seu esprito de
subverso, o lder carismtico arrebata o passado e instaura o novo, brotando no grupo o
reconhecimento desse dom de graa pessoal6, de maneira a faz-los acompanhar
devotamente em sua empreitada, seja por entusiasmo, seja pelo desespero. A Histria, neste
sentido, demonstra inmeros casos de fenmenos carismticos que clamam por seu aspecto
revolucionrio, sendo desnecessrios cit-los em sua singularidade7.
Entretanto, curiosamente, o grande problema das dominaes carismticas no
reside propriamente na transformao da ordem imperante, mas se d na necessidade de que a
legitimidade das ordens do chefe carismtico encontre longa continuidade, mesmo aps a
morte ou a sada desses lderes de seus postos de comando. Todo momento revolucionrio, e
toda dominao carismtica fundada sob tais bases, por conseguinte, necessita estabilizar-se, a
fim de que a prpria vida social encontre harmonia para desenvolver-se satisfatoriamente. O
grande problema das dominaes de natureza carismtica, como salientava Weber, trata-se,
6 A palavra carisma, em sua origem grega chrisma, denota certa origem que se confunde com uma designao fortemente carregada de religiosidade. Seu significado induz idia de dom de graa. 7 Enquanto a ordem burocrtica se limita a substituir a crena na santidade daquilo que existe desde sempre nas normas da tradio, pela sujeio regras estatudas para determinado fim e pelo saber de que estas, desde que se tenha poder para isto, podem ser trocadas por outras regras com determinado fim, no sendo, portanto, nenhuma coisa sagrada, o carisma, em suas formas de manifestao supremas, rompe todas as regras e toda tradio e mesmo inverte todos os conceitos de santidade. Em vez da piedade diante dos costumes antiqssimos e por isso sagrados, exige o carisma a sujeio ntima ao nunca visto, absolutamente singular, e portanto divino. Neste sentido puramente emprico e no-valorativo, o carisma, de fato, o poder revolucionrio especificamente criador da histria (WEBER, 1999, v. 2, p. 328).
36
ento, da necessidade da sucesso. Destarte, toda dominao carismtica busca, com o
decorrer do tempo, encontrar mecanismos de perdurar-se no domnio, de forma a que tais
sistemas lentamente tendam a tradicionalizar-se, ou seja, a transformar os procedimentos de
dominao em rotina, em hbito, instaurando uma dominao carismtica fortemente
acentuada de influncias tradicionais, baseadas em costumes. Ou ainda, tende a legalizar-se,
de maneira s ordens do governante carismtico assentarem-se em comandos legais,
estabelecidos em lei, que em certa medida reforam seu atributo de legitimidade e permitem
com que o lder continue a governar, obter o reconhecimento de seus sditos e a impor sua
vontade coletivamente. Inmeros so os exemplos, como o do governante que designa seus
sucessores, nomeando o filho ou irmo como novo lder, v.g., com ou sem aprovao de seus
partidrios transferindo o seu carisma ao parente ou designado; ou a busca por um novo
Dalai Lama, escolhendo-se o chefe carismtico atravs de critrios em que se possvel
identificar o escolhido ao assegurar as qualidades ditas extraordinrias do eleito, de maneira
a instaurar-se uma tradio de busca pela criana reencarnada por Buda; ou mesmo a soluo
romana, consistente no ritual de designao do novo Csar, aclamado posteriormente pelas
legies; ou ainda, por fim, a escolha do lder dada mediante revelao por orculos ou
baseando-se em indcios de alguma manifestao divina sobre o indivduo. Em suma, o
carisma, que nasce como eminentemente pessoal, reforado pelo dom de graa e pela
habilidade do lder em lidar com as massas, tende necessariamente com o tempo a
institucionalizar-se, permitindo, assim, com que se mantenha continuamente a dominao,
estabilizando a relao mando-obedincia e reproduzindo um sistema de poder social capaz
de impor ordens dotadas de legitimidade.
37
1.1.2 A Dominao Tradicional
A dominao tradicional ocorre [...] quando sua legitimidade repousa na crena
na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais (existentes desde sempre)
(WEBER, 1999, v. 1, p. 148). Trata-se da crena na legitimidade do poder de quem exerce a
dominao pelo fato de que sua investidura decorre de longa tradio, segundo um costume
inveterado, a partir de uma autoridade que sempre existiu. o costume de determinada
coletividade que indica quem exerce o poder e que tambm garante a legitimidade do
exerccio da dominao. Tpico caso o dos governantes chamados ao poder por ordem de
progenitura (monarca, v.g.), pelo fato de serem os mais velhos gerontocracia (conselho de
ancios, p. ex.), por possurem glebas de terra patrimonialismo puro (como provncias
etc.). Os governados so sditos ou pares que se caracterizam no por obedecerem s ordens
puramente arbitrrias dos governantes ou normas jurdicas postas, porm se detm a
observar somente as regras estabelecidas pelo costume vigente, por uma tradio ou por
lealdade ao senhor decorrente estritamente de um status reconhecido pelo decorrer dos
tempos. Bem verdade, o que pode ocorrer em prtica, neste ltimo caso, a obedincia sim s
ordens privadas do soberano, mas que via de regra decorrem diretamente da legitimao de
sua assuno ao poder por deferncia a uma tradio arraigada. As idias de justia, de
retribuio por um desagravo cometido, tm por base ditames consuetudinrios, de aspecto
nitidamente cultural. O aparato administrativo constitudo basicamente por vassalos (no
feudalismo), ou mesmo partidrios leais, senhores tributrios, parentes (dominao esta ltima
derivada de laos consangneos). A aplicao do direito, em sua forma pura, no constitui
propriamente a sua criao, porm atm-se sobretudo interpretao dos sagrados
mandamentos ditados pelo tempo, ou seja, segue a reproduo de tcnicas e procedimentos j
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consolidados culturalmente, firmados por uma prtica social que reproduzida continuamente
pelas vrias geraes.
Deste modo, na dominao tradicional, a autoridade designada a ocupar a chefia
poltica no porque detm inmeros atributos excepcionais, como na dominao carismtica,
porm sua ascenso ao mando se d por obedincia da sociedade a um costume vigente sob o
meio social, a um hbito contnuo que se desenrola historicamente por geraes e que, por
conseguinte, aceita pelo grupo naturalmente. A legitimidade da ordem estabelecida, neste
caso, est fundada no prprio costume e a obedincia a que a comunidade poltica pratica
apenas exercida se estiver em conformidade com uma tradio, ou seja, baseada na crena
na inviolabilidade daquilo que foi assim desde sempre (WEBER, 1999, v. 2, p. 234).
Portanto, o limite da dominao do chefe tradicional conferido justamente pelas barreiras
que lhe impem os valores culturais e os costumes de determinada sociedade, sendo que o
puro arbtrio, entendido como o emprego da vontade pessoal ilimitada do chefe em suas
ordens, , via de regra, estritamente incompatvel com esta sorte de domnio, arriscando-se o
governante a encontrar slidas resistncias por parte de seus sditos e pondo sob
questionamento o prprio sistema de dominao estabelecido.
Sob a estrutura da dominao tradicional, portanto, todas as categorias normativas
a que a sociedade obedece esto vinculadas ao poder fundamental da tradio, ou, como
Weber ordinariamente proclamava, na crena da inviolabilidade do eterno ontem. Trata-se
da pujana do poder do hbito, instaurado no meio social e reproduzido fielmente sculos a
fio que assegura o cumprimento das regras de convivncia coletiva, seja por uma disposio
psquica (assim sempre foi e no h razo para algum mudar o status quo social) ou mesmo
por temor reverencial manifestao dos poderes mgicos surgidos a partir da inobservncia
da tradio (como punio ao indivduo por quebrar certa ordem coletiva, ao desrespeitar um
costume vigente). Basta lembrar da sentena de Talmude (Talmud), que o Homem no altere
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jamais um costume (WEBER, 1999, v. 2, p. 235), e se ter a mais exata medida da
importncia do costume como forma tradicional de organizar a sociedade, geradora de
comandos consuetudinrios implicitamente carregados de magia e sacralidade, que em
hiptese alguma poderiam ser desobedecidos pelos membros de determinada comunidade
poltica.
De outra sorte, a obedincia s ordens proferidas pelo senhor tradicional est
garantida pela submisso pessoal dos sditos ao seu governante, ligada no por preceitos
abstratos formulados em lei, porm em normas no estatudas, derivadas diretamente dos
preceitos sagrados que a tradio afirma no decorrer dos tempos. Obedece-se ao senhor
porque assim sempre ocorreu, estando a legitimidade calcada nessa temporalidade que se
reproduz continuamente pelos sculos, o que garante o cumprimento desses mandamentos
praticamente sem questionamento, atravs de aes muitas vezes irrefletidas por parte dos
membros de determinada coletividade.
Existem inmeras sortes de dominao tradicional, e no raro esto misturadas ou
de distino fluidas, dentre as quais as que mais se destacam so a gerontocracia (governo
em que o poder cabe aos mais velhos), o patriarcalismo (casos em que o poder
determinado pelo pertencimento a uma determinada famlia, normalmente sendo a dominao
exercida por um indivduo chefe da comunidade domstica pater familias ou despts
,determinado segundo regras de sucesso (1999, v. 1, 151)), o sultanismo (forma de
dominao na qual est calcada no arbtrio livre do governante, munido de um aparato
administrativo prprio para fazer valer suas ordens), o feudalismo (forma de dominao
baseada em um contrato de status, em termos de vassalo-suserano, regidos pelo sentimento
de fidelidade pessoal entre ambos selado pela idia de honra), e, finalmente, o
patrimonialismo (dominao exercida com base em um direito pessoal, decorrente de laos
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tradicionais, obedecendo-se ao chefe por uma sujeio instvel e ntima, derivada do direito
consuetudinrio porque assim sempre ocorreu).
Entretanto, Weber insiste em seus escritos que a forma mais tpica de dominao
tradicional, e que constitui fator de elevada importncia para se compreender historicamente a
organizao de muitos grupos sociais, o sistema patricarcal de dominao, caracterizando
uma espcie de gnesis, ou um momento embrionrio, que propiciou posteriormente a
formao dos grandes complexos de dominao patrimonial encontrados pelas civilizaes
mundo afora (WEBER, v. 2, p. 234 et seq).
O patriarcalismo o sistema de dominao tradicional que se desenvolve a
partir de relaes essencialmente pessoais, em que o governante aceito pela coletividade para
exercer legitimamente a dominao , por excelncia, o chefe da comunidade domstica.
Trata-se da forma mais pura e primria de dominao baseada em laos pessoais, posto que
est fundada na figura da autoridade familiar. Neste sentido, o patriarcalismo implica em uma
forma de dominao essencialmente ntima, pois vincula diretamente os membros do
agrupamento domstico ao poder exercido pelo pater famlias, determinando uma sujeio
imediata e prxima, que se arraiga no seio de determinada comunidade por fora de uma
tradio. Por conseqncia, a consolidao histrica dessa prtica social torna-a comumente
aceita pelos indivduos, repercutindo sua aquiescncia de tal forma a transmitir s linhagens
descendentes o mesmo mtodo de organizao comunal, baseada sempre na preponderncia
da figura da autoridade familiar.
Neste diapaso, esclarece-nos Reinhard Bendix:
Dentro do grupo familiar, a autoridade a prerrogativa privativa do senhor, designado de acordo com as regras definidas de herana. Ele no dispe de quadros administrativos ou de qualquer mecanismo para impor sua vontade, mas depende da vontade dos membros do grupo de respeitar sua autoridade, que ele exerce em nome do grupo como um todo. Os membros do grupo familiar relacionam-se com ele de modo totalmente pessoal. Eles o obedecem e ele os dirige, na crena de que
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os deveres de uns e os direitos dos demais so parte de uma ordem inviolvel que tem o carter sacrossanto da tradio imemorial (1986, p. 260)8.
Sob tal estrutura, a dominao patriarcal virtualmente ilimitada, sendo
transmitido tal poder ao novo senhor em casos de sucesso ou ausncia do chefe da
comunidade domstica. Entretanto, os limites desse poder, como dito anteriormente, esto
presos ao carter tradicional da sociedade, ou seja, aos costumes a que ela est jungida. Em
verdade, esta dupla caracterstica o poder aparentemente inexpugnvel e sua real limitao
pelos hbitos sociais justamente o aspecto mais genuno da dominao tradicional
patriarcal, em que se unem os amplos poderes do senhor no mbito de sua comunidade
domstica, constrangidos implcita e explicitamente pelo carter sagrado da tradio, que lhe
impem limites mais ou menos rgidos ao uso arbitrrio de suas veleidades. Nesta viso,
Weber define importantes consideraes:
O contedo das ordens est vinculada tradio e limitado por ela. Um senhor que violasse a tradio sem constrangimento colocaria em risco a legitimidade de sua prpria autoridade, que se baseia inteiramente na santidade dessa tradio. Como questo de princpio, est fora de cogitaes criar novas leis que se desviem das normas tradicionais. Contudo, novos direitos so criados de fato, mas apenas atravs de seu reconhecimento como vlidos desde os tempos imemoriais. Fora das normas da tradio, a vontade do senhor limitada apenas por consideraes de eqidade nos casos especficos, e esta uma limitao altamente elstica. Assim, sua dominao est dividida em uma esfera estritamente vinculada tradio e outra em que sua vontade arbitrria prevalece (1999, v.2, p. 256).
Uma outra caracterstica importante do patriarcalismo que sua esfera de atuao
alcana um mbito limitado, estritamente vinculada dominao de um grupo familiar. Da a
razo pela qual essa sorte de dominao se constitui como uma das formas mais primrias de
exerccio de dominao social, justamente por se restringir a parcelas bastante reduzidas do
contingente populacional de determinada comunidade poltica, encerrando sua preponderncia
8 Continua Bendix: Originalmente, a eficcia dessa crena dependia do medo aos infortnios mgicos que recairiam sobre quem inovasse com relao tradio e sobre a comunidade que permitisse a quebra dos costumes. Este modelo foi gradualmente superado pela idia de que as divindades haviam gerado as normas tradicionais e atuavam como guardis delas. Mesmo em condies de secularizao, tais crenas esto implcitas na aceitao natural do costume. Neste sentido, a devoo filial pela pessoa do senhor est associada reverncia para com a santidade da tradio, e, enquanto o primeiro elemento aumenta fortemente o poder do senhor, o segundo tende a imit-lo (1986, p. 260).
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sobre os membros do agrupamento domstico. Trata-se, em verdade, de uma dominao
essencialmente pessoal e que s subsiste quando o grupo reconhece na figura do pater
familias essa autoridade.
No obstante, uma dominao patriarcal comea a sofrer inmeros
desvirtuamentos prticos quando se considera o exerccio do poder senhorial sobreposto a
vastos territrios, extrapolando os limites da comunidade domstica. Deste modo, a
disponibilidade de impor ordens por parte do senhor encontra-se afetada quando defronta
seus domnios perante territrios extremamente extensos, de maneira que nestas hipteses h
uma lenta modificao nas estruturas de dominao. Assim, uma dominao que inicialmente
se consolidava apenas via mando pessoal do senhor, a partir do momento em que ampliada
geogrfica e demograficamente, adota como mecanismo de controle social e exerccio do
poder legtimo um aparato administrativo, de sorte a que as funes antes exercidas pelo
chefe, em pessoa, acabam gradualmente sendo delegadas a pessoas de sua confiana ou a
parentes consangneos, engendrando uma estrutura complexa de dominao.
Esta passagem o ponto caracterstico que encerra o surgimento das grandes
dominaes patrimoniais, que via de regra nascem a partir de uma necessidade de
racionalizao da administrao patriarcal pura. Trata-se de uma ampliao da esfera de
domnio pessoal e tradicional que encontra em uma estrutura complexa de dominao o meio
para desenvolver-se sobre grandes contingentes populacionais dispersos sob um vasto
territrio. Quanto s caractersticas do patrimonialismo, deixaremos tal ponto para ser
discutido de forma mais ampla em seo prpria subseqente (1.2.2).
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1.1.3 A Dominao Racional-legal
Essa ltima categoria desenvolvida por Max Weber, componente de seu esquema
explicativo sobre suas trs formas de dominao legtima, denomina-se dominao legal ou
tambm chamada de dominao racional-legal, e ocorre quando sua vigncia est [...]
baseada na legitimidade das ordens estatudas e do direito de mando daqueles que, em virtude
dessas ordens, esto nomeados para exercer a dominao (WEBER, 1999, v. 1, p. 141). A
caracterstica fundamental deste tipo de exerccio de mando se d pelo fato de que as pessoas
obedecem ao governante no por ele apresentar atributos excepcionais (como na dominao
carismtica) ou mesmo em funo de estar exercendo o poder em decorrncia de um costume
de longo tempo (na dominao tradicional), mas se deve unicamente observncia a preceitos
jurdicos, derivados de leis em seu sentido normativo. Nesta sorte de dominao obedece-se
regra abstrata e impessoal, formalmente engendrada, que estabelece quem e em que
medida se dever obedecer, e no pessoa individualizada, enquanto dotada de seu direito
prprio. Como decorrncia deste princpio mximo, as pessoas so consideradas iguais
perante a lei, na medida em que as ordens impostas so vlidas igualmente para todos,
inclusive para o governante (princpio moderno da obedincia per legem e sub legem). Sob tal
regime, vige a idia de que todo direito poder ser estatudo racionalmente, seja de maneira
convencional ou outorgada, devendo ser respeitadas essas normas pelos membros do grupo e
reconhecidas como vlidas pelos indivduos exteriores quela coletividade. De igual maneira,
afirma-se que todo direito um cosmo de regras abstratas, podendo ser criado ou alterado
segundo regras processualmente corretas (autopoisis), tendo a judicatura como responsvel
pela aplicao desses estatutos e a administrao como entidade destinada proteo dos
interesses da coletividade nos limites fixados por essas normas legais. Em tal acepo, o
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senhor materializado na figura do superior, o qual obedece e atua, em conjunto com seu
quadro administrativo, sempre com fulcro em critrios fixados por tais normas jurdicas
(principio da legalidade). Os membros da coletividade no so nem sqitos, nem
seguidores, nem sditos ou discpulos, porm, pelo fato de prestarem deveres a essas normas e
terem seus direitos civis nelas garantidos, so chamados cidados. Assim, este aparato
administrativo exige funcionrios, os quais so qualificados conforme a atividade que
exercem, observando o regime de hierarquia e competncias fixas dispostas em lei, atravs de
nomeao estabelecida por contrato para o exerccio de suas atividades, remuneradas estas
com salrios, mormente em dinheiro. Esto submetidos tambm a um srio controle e
imposio rgida de disciplina no servio. No que toca aos atos perpetrados por esses
funcionrios componentes do aparelho administrativo, constata-se que todos eles so
documentados e cujas ordens adotam necessariamente a forma escrita. Os meios materiais de
administrao e produo so completamente separados do quadro administrativo, o que
significa que se separa radicalmente os bens pblicos do patrimnio privado dos funcionrios.
A tpica forma de dominao racional-legal a burocracia (WEBER, 1999, vol. 1, p. 142-
143), vista com mais detalhes mais adiante (seo 2.1.1).
Sob a gide da dominao racional-legal, a legitimidade das ordens estatudas
pelo governante est assegurada pelos preceitos estabelecidos pela lei, de maneira a se
consolidar uma sorte de dominao essencialmente normativa e impessoal. Enquanto que nas
dominaes carismtica e tradicional (nesta especialmente no patriarcalismo e no
patrimonialismo) o papel da pessoa do governante um elemento fundamental para a
manuteno da estabilidade da relao mando-obedincia, na dominao legal essa
pessoalidade desconsiderada em prol do imperativo abstrato e inominvel da lei, que se
consolida em estatutos e direcionada a todo um nmero de cidados indeterminados, os
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quais ficam compelidos a obedecer a esses comandos sob pena de sofrerem punies
institucionalizadas, praticadas por profissionais especializados em exercer tal mister.
Assim entendido, a dominao de que se trata revela um carter impessoal, j que
a obedincia ao governante no est ligada prpria pessoa detentora do poder, mas decorre
unicamente da condio de a obedincia dos cidados estar vinculada ao contedo das normas
jurdicas validamente engendradas. Sobretudo, o prprio governante est submetido nesse
sistema ordem jurdica, critrio tambm impessoal que orienta sua atividade.
Neste sentido, o sistema de dominao fulcrado na forma de exerccio de poder
racional-legal se vincula de modo essencial ao contedo estabelecido em normas jurdicas,
que possuem a peculiaridade de poderem ser mudadas a qualquer momento, sem que com isso
haja rompimento no elo de legitimidade sobre o qual se assenta o governante. Neste caso, o
fator diferencial dessa sistemtica se situa no fato de que, na dominao racional-legal, a
crena na legitimidade das ordens estatudas no estar sendo violada desde que aqueles
indivduos designados a alterar as leis (os legisladores em seu sentido mais lato) sigam regras
de substituio normativa de maneira processualmente corretas, ou seja, desde que sigam,
quando da ocasio da modificao da ordem jurdica, as regras previstas por essa prpria
ordem jurdica para a elaborao e substituio de normas no conjunto de leis de determinada
sociedade (o dito processo legiferante). Assim se refere um do mais renomados
comentadores de Weber:
Como os outros tipos de autoridade, a dominao legal baseia-se na crena em sua legitimidade e todas essas crenas so, em certo sentido, consideradas comprovadas. A autoridade carismtica, por exemplo, depende de uma crena na santidade ou no carter exemplar de uma determinada pessoa, mas essa pessoa perde a autoridade logo que aqueles sujeitos a ela deixam de acreditar em seus poderes extraordinrios. A autoridade carismtica existe apenas enquanto provar a si mesma, e essa prova aceita ou rejeitada pelos seguidores. A crena na legitimidade de uma ordem legal tem um carter circular semelhante. A dominao legal (existe) em virtude de um estatuto... A concepo bsica de que qualquer norma legal pode ser criada ou modificada por uma promulgao processualmente correta. Em outras palavras, as leis so legtimas se forem promulgadas e a promulgao legtima se ocorrer em conformidade com as leis que determinam os procedimentos a serem seguidos (BENDIX, 1986, p. 324).
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Tais pessoas que ocupam a figura da autoridade, aqueles indivduos designados
pela lei a exercerem o direito de mando de forma mais ou menos temporria, fazem-no apenas
embasados na estrita legalidade, fator que propicia ao governante exercer suas funes com
seu respectivo grau de legitimidade, bem como, em contrapartida, limita suas aes ao
imprio da lei. Na dominao racional-legal, legitimidade e legalidade so dois atributos que
em muitos aspectos se confundem, posto que, no plano de ao humana, a conduta do
indivduo que obedece ao governante apenas se efetiva se este agir em conformidade com o
ordenamento jurdico vigente, extraindo da sua legitimidade. Legalidade e legitimidade
encerram a base estrutural nessa forma de exerccio do poder, garantindo seu
desenvolvimento de forma eficaz para todo um grupo de cidados destinados ao dever de
obedincia. Segundo Michel Coutu, a viso weberiana consagra o formalismo jurdico como
caracterstica das sociedades modernas que justamente propiciou uma sorte de dominao que
se desvincula do seu carter pessoal, relegando-a a um plano objetivo e inominvel. Assim
diz:
A ligao assim traada entre o