14
EXPERIMENTANDO Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar Luis Vitor de Castro Jr.' Pedro Rodolpho Jungers Abib2 Josê Santana Sobrinho3 Resumo Abstract Esse trabalho pretende discutir a importancia da Capoeira enquanto instrumento pedagOgico de intervene6o no ambito da escola, priorizando urn processo que enfatize a aquisicao da auto- estima, autonomia e construcao da identidade por parte dos alunos. Relata tambern a experiencia do Festival de Capoeira da Escola, enquanto uma possibilidade de construcao de urn espaco de integrac6o, formaeäo, confraternizacào e aprendizagem voltado para os alunos das escolas piablicas de Salvador. The aim of this work is to discuss the importance of Capoeira as a pedagogical instrument at school, with emphasis on the learning of self respect, autonomy and the construction of a identity by the students. It also presents the experience of the Capoeira Festival at School, as a possibility of building a space for the integration, formation and learning of the students at the public schools of Salvador (Bahia - Brazil). ' Mestrando em Educacao na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) , Professor do Curso de Licenciatura em Educacáo Fisica da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e Capoeirista. 2 Mestre em Educagao pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) , Professor do Curso de Licenciatura em Educagao Fisica (UFBA) e Capoeirista. 3 Professor de Ed. Fisica na Rede Estariva I de Ensino da Bahia e daAPAE - Camagari(Ba)e Capoeirista

Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    3

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

EXPERIMENTANDO

Capoeira e os diversos aprendizados noespaco escolar

Luis Vitor de Castro Jr.'

Pedro Rodolpho Jungers Abib2

Josê Santana Sobrinho3

Resumo Abstract

Esse trabalho pretende discutira importancia da Capoeira

enquanto instrumento pedagOgicode intervene6o no ambito da

escola, priorizando urn processoque enfatize a aquisicao da auto-estima, autonomia e construcao

da identidade por parte dosalunos. Relata tambern a

experiencia do Festival de Capoeirada Escola, enquanto uma

possibilidade de construcao de urnespaco de integrac6o, formaeäo,confraternizacào e aprendizagem

voltado para os alunos das escolaspiablicas de Salvador.

The aim of this work is to discussthe importance of Capoeira as apedagogical instrument at school,with emphasis on the learning ofself respect, autonomy and theconstruction of a identity by thestudents. It also presents theexperience of the CapoeiraFestival at School, as a possibilityof building a space for theintegration, formation andlearning of the students at thepublic schools of Salvador (Bahia- Brazil).

' Mestrando em Educacao na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) , Professor do Curso deLicenciatura em Educacáo Fisica da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e Capoeirista.

2 Mestre em Educagao pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) , Professor do Curso de Licenciaturaem Educagao Fisica (UFBA) e Capoeirista.

3 Professor de Ed. Fisica na Rede Estariva I de Ensino da Bahia e daAPAE - Camagari(Ba)e Capoeirista

Page 2: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

160 M otriviVahcia

Introducfio

Esse trabalho tern a intenedo deabordar a CAPOEIRA como urnimportante instrumento deeducacao no ambito escolar, seja etadesenvolvida como contetado dadisciplina Educacao Fisica ou comocomponente de projetos integrantesdo curriculo da escola, envolvendooutras disciplinas que possampossibilitar uma abordagem maisampla a esse tema. Para tanto, sefaz necessario considera-la comoconhecimento historicamenteproduzido, como fenOmeno queestabelece relacOes corn omovimento de complexidade ecomo manifestacao da culturacorporal, reconstruida e re-significada a partir da oralidadecultural.

Portant°, estamos considerandoa CAPOEIRA como uma expressaopopular presente no contextocultural da sociedade brasileira, quetern intImeras nuancas e possibi-lidades, e que materializa-se a partirdo jogo na roda de capoeira. Logo,temos as primeiras questnes: 0 queé jogo de capoeira? Ern queconsiste o jogo e quais sac) oselementos pedagOgicos ern umaroda de capoeira? Quais os valoressociais e histOricos que permeiamurn processo pedagOgico que tern

como tema central a capoeira? Paratanto, consideramos muito da nossapratica pedagOgica, do nossotrabalho desenvolvido nas escolaspiiblicas, do convivio no universo dacapoeiragem e da "escuta sensivel"dos antigos mestres e estudiosos doassunto.

Esse trabalho pretende estabe-lecer pressupostos de intervened()politico-pedagOgica na escola, tendocomo foco principal a CAPOEIRA,onde sera° discutidos elementoshistOricos dessa manifestacaocultural que a caracterizamenquanto luta pela libertacao,enquanto simbolo de resistenciacontra os variostipos de dominacao,e tambem enquanto espaco para oexercicio da cidadania, de cons-trucao da identidade, auto-estima eautonomia por parte de seuspraticantes, constituindo-se dessaforma num riquissimo processopedagOgico que prioriza umaeducacdo libertadora e conscien-tizadora.

Pretendemos tambern relataruma experiencia que vem seconsolidando nos 01timos tres anosna cidade de Salvador, como urnespaco democratic° e solidario ondecriancas e adolescentes das escolaspUblicas tern a oportunidade devivenciar a Capoeira numa dimen-sao lüdica e cooperativa, tendo

.1

Page 3: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

Ano XI, n2 14, Maio/2000

contato ainda corn antigos ereconhecidos mestres dessa mani-festacao cultural que vem compar-tilhar corn eles, seu conhecimentoe suas experiencias no mundocapoeiristico. Trata-se do FESTIVALDE CAPOEIRA DA ESCOLA, umainiciativa da Secretaria de Educacaodo Estado da Bahia, atraves da suaGeréncia de Ensino Fundamental,e que foi pensado e implementado,nos seus moldes atuais, atraves daconsultoria de urn grupo deprofessores, dos quais dois saoautores desse trabalho.

Capoeira e educacfio

E muito dificil encontrarmosalguern nesse pais, que se mostreindiferente ao ouvir acordes de urnberimbau ou a ressonanciapercussiva de urn atabaque,pandeiro ou agog& De uma formaate pouco racional, reagimos quaseque instintivamente a essesestimulos manifestando atraves donosso corpo, a identificacao cornesses simbolos que nos remetem asmais remotas origens da nossacivilizacao e, particularmente, aoberg° de formacao da nossapluricultural nacao brasileira.

Sabemos que ao longo dahistOria do triste periodo que foi a

escravidao no Brasil, os brancosdominadores se valeram deiniffneras estrategias objetivando adivisao e o enfraquecimento porparte daqueles que chegavam daAfrica, procurando evitar que essesnegros, pertencentes a uma mesmacultura ou que falassem a mesmalingua, se aglutinassem nummesmo local. Sobre isso comentaRIBEIR0(1995):

...a politica de evitar aconcentracdo de escravos oriundosde uma mesma etnia, nas mesmaspropriedades, e ate nos mesmosnavios negreiros, impediu aformacao de nOcleos solidarios queretivessem o patrimOnio culturalafricano (pg.115)

Isso fez corn que familias egrupos sociais inteiros fossemesfacelados, fazendo corn que essessujeitos perdessem, momenta-neamente, seus referenciais,impossibilitando corn isso que osmesmos se organizassem, tra-mando possiveis revoltas ouinsurreicties que pudessemdesestabilizar o regime escravo-crata.

Porem, o negro na condicao deescravo nunca se submeteutotalmente a violencia do branco,quer seja fisica ou simbOlica, criandosuas prOprias estrategias de

Page 4: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

162 MotriviVincia

resistència, sejam elas no ambito desua cultura original, onde conse-guiram preservar aspectos dareligiosidade, da mtlsica, damedicina, da culinaria, da linguaetc., seja no ambito da prOpria lutapela libertacao, onde a Capoeiraexerceu papel fundamental.

Tendo a sua genese numcontexto extremamente violento,onde a luta pela liberdade e pela vidase fazia necessaria, a Capoeira trazna sua essencia esse carater derevolta contra todo urn sistemadesumano e °pressor. E a auténticamanifestacao de urn grito porlibertacao que vem da alma de urnpovo subjugado, que se apega assuas raizes para encontrar forcas econtinuar resistindo contra umasituacao tab adversa.

Segundo REGO (1968), foramdas regiOes da Africa hojeconhecidas por Congo e Angola,corn predominancia da culturaBantu, que vieram a maioria dosescravos trazidos para o nosso pais,dizendo inclusive que ".. Angola foipara o Brasil o que o oxigeniopara os seres viuos" e continua,citando Taunay e membros do

Conselho da Fazenda de D. Joao VIque diziam que "Angola era o nervodas fabricas do Brasil" (p.15), sereferindo a importancia da mao deobra escrava para todo o sistemaprodutivo e cultural do pais.

Essa forte influencia da culturaBantu, acabou trazendo para oBrasil varios elementos ligados arituals praticados por algumas tribos,entre eles o N'golo4, que somadosa outros rituals provenientes daAfrica, foram os ingredientesbasicos para o surgimento daCapoeira.

Somente nos Ciltimos anos e quea Capoeira vem ganhando status deatividade reconhecida no meiosocial, corn a disseminacao deacademias e metodos de ensino porpraticamente todas as regiOes doBrasil, estando inclusive presenteem diversos 'Daises do mundo, tendosua imagem distanciada de umapratica considerada "marginal", jáque durante decadas, a pratica dacapoeiragem era considerada crime,constando inclusive no cOdigo penalbrasileiro.

A utilizacao da Capoeira comoinstrumento pedagOgico vem sendo,

4 N'Golo mais conhecido como a DANA DA ZEBRA, que ocorre durante a EFUNDULA, festa dapuberdade des mocas, quando essas deixam de ser MUFICUEMAS ( meninas), e passaram acondiceo de mulheres, aptas ao casamento e a procriageo. 0 rapaz vencedor do N"GOLO tinha odireito de escolher a esposa entre as novas iniciadas. Era considerada a tradigeo da luta dos pes.(DECANIO FILHO, 1996).

Page 5: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

Ano XI, n2 14, Maio/2000 163

principalmente na duasdecadas, urn recurso de grandevalia, estando ela presente tanto nocurriculos de escolas de 14 e 22graus, como ern boa parte dasFaculdades de Educacao Fisica, semfalar na sua presenca enquantodisciplina optativa ou como praticadesportiva em quase todas asUniversidades do pais. 0 grandeniimero de projetos de atendimentoa jovens e criancas carentes queutilizam a Capoeira como atividadeltidica e educativa, ern quase todosos grandes centros urbanos do pais,

uma demonstracao clara doreconhecimento de seu valorpedagOgico e da sua aceitacao porparte desse ptablico, como atividadealtamente motivante, sensibilizadorae significativa.

Elementos Itidicos e agressivos,danca e batalha, vida e morte, medoe alegria, sagacidade, mtisica,brincadeira, ancestralidade eritualidade constituem o universo daCapoeira que a caracteriza como umamanifestacao cultural dificil de serdefinida num Onico conceito. Essariqueza de significacOes, quandodevidamente contextualizada ehistoricizada, da a Capoeira umaidentidade muito forte e profunda,construida atraves de toda umahistOria de luta por libertacao, esobretudo pela afirmacao de uma

cultura que se recusa a ser subjugada,embora muito se tenha feito em nossopais para que isso se concretizasse

0 que pudemos observar, apartir de alguns anos de experienciacorn processor pedag6gicosenvolvendo a Capoeira, sobretudojunto a criancas e adolescentesprovenientes de urn nivel sOcio-econOmico mais baixo, e que urndos elementos que mais tern servidocomo indicador da importanciadesse trabalho, reside justamente navalorizacao da identidade e da auto-estima desses jovens (incluindo-setambern ai os adultos) que ao seintegrarem ao universo da Capoeira,comecam a estabelecer umarelacao mais prOxima corn a histOriade seu povo, de sua cultura econsequentemente, de suaidiossincrasia.

Atraves de letras de miisicas querelatam esse passado de luta esofrimento, da ritualidade presentenas rodas, que remete a toda umatradicao que a transmitida degeracao em geracao e do respeitoa sabedoria popular encarnada nafigura dos mestres mais antigos,podemos afirmar que o ambientevivenciado pelo capoeiristaextremamente significativo no quediz respeito a vinculacao deste corna memOria social que lhetransmitida como heranca, a qual

Page 6: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

164

nao teria acesso por outros meios,dada a precariedade corn que osaspectos ligados as tradicOespopulares e a culturas dos povoshistoricamente subjugadas, sac)tratados pelos programas escolarese pelas instituicOes oficiaisresponsaveis pelos assuntosrelativos a preservacao da memórianacional.

Nesse sentido, devemosressaltar a importancia da histOriaoral como fonte de transmissaodesses conhecimentos e tradicOes,pois segundo BURKE (1992)"...toda histOria depende final-mente de seu propasito social, e ahistOria oral é a que melhorreconstrOi os particulares triviaisdas vidas das pessoas comuns"(p.192), fazendo corn que os tacosculturais que definem esse gruposocial especifico, favorecam aconstrucao da identidade culturalpor parte dos jovens que tern,através da Capoeira, a oportunidadede se reconhecerem enquantopertencentes a uma determinadacultura, cultura essa que é valorizadaa partir da re-significacao doselementos que caracterizam aCapoeira nao mais como "atividademarginal" ou "coisa de desocu-pados", porem como expressao deurn povo que se orgulha de suahistOria, de suas lutas e de seus

antepassados. Uma miasica muitocantada nas rodas, composta pelocapoeirista Luis Renato (FundacaoCultural do Estado da Bahia, 1992),expressa corn clareza esse senti-mento:

As vezes me chamam de negropensando que vâo me humilharMas o que eles näo sabemé que s6 me fazem lembrarque eu venho daquela racaque lutou pra se libertar....

Que criou o Maculeleque acreditava no Candombleque traz o sorriso no rostoa ginga no corpoe o samba no pe (p. 19)

Os aspectos culturais acimareferidos, expressam uma inegavelvinculacao a cultura afro-brasileira,pois sac) justamente individuospertencentes a essa etnia, os quemais tern sofrido no Brasil, asconsequencias de urn processodesumano de exclusao social,heranca do period() escravocrata eproveniente de uma veladadiscriminacao racial, ocultada sobo mito da nossa "democraciaracial", tao propalada mundo afora.Se lido temos como negar que agrande maioria dos jovens emsituacao social de risco, saooriundos da raga negra, isso faz cornque urn projeto politico-pedagOgico

Page 7: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

Ano XI, 14, Maio/2000 165

que proponha uma intervencao noambito escolar, sobretudo ao queatende o piablico mais carente, tenhaque levar em conta o universocultural afro-brasileiro, se quiseraproximar sua proposta pedagOgicado contexto social desses individuos,e dar maior legitimidade a essaintervencao.

Todavia, por outro lado, aCapoeira enquanto privilegiadoinstrumento de educacao, nao podese restringir somente ao universo dapopulacao oriunda da raga negra,sobretudo em se falando detrabalhos desenvolvidos emambientes onde prevaleca aexclusao social, pois sabemos queexiste tambern um ntimero grandede individuos oriundos de outrasetnias nessas condicOes. Nessesentido e que a Capoeira assumeum carater universalizante, poisquando caracterizada enquantosimbolo de luta pela libertacao, oprOprio sentido de "liberdade" deveser ampliado podendo desse modo,ser estendido a todo aquele que deuma forma ou de outra, se encontranuma situacao de restricao aos seusdireitos fundamentais enquantocidadao. VIEIRA e FALCAO (1997)expressam de forma interessanteessa analise:

A propalada resistencia culturalvinculada a Capoeira precisa se

adequar aos momentos atuais. Aprincipal luta do capoeirista, nosdias de hoje, nao deve ser contraurn determinado feitor,individualmente, como aconteciaantigamente, nem tampouco,contra outros praticantes deCapoeira. A luta da Capoeira, nosdias de hoje, deve ser contraqualquer tipo de opressao,discriminacao e pela construcao deuma sociedade mais justa, livre edemocratica (p.2).

Vista sob essa Otica, a pratica daCapoeira adquire dimensOes bemmais amplas do que uma simplesatividade corporal relacionada a umadeterminada etnia, e passa a ter urnsignificado de pratica social,ampliando o eixo da discussaosobre as questhes raciais e etnicas,para as questhes de classe socialdentro do sistema capitalista, poisenvolve elementos importantes quepodem levar a uma reflexao criticasobre a realidade e o contexto socialque envolve o seu praticante.GIROUX e SIMON (1994) afirmamque todo trabalho pedagOgico deve"...comegar pela nomeacao eproblematizacäo das relagOessociais, das experiéncias e dasideologias construidas por meio deformas de expressäo popular..." econtinuam dizendo que "...boaparte do trabalho politico dapedagogia consiste em articular

Page 8: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

166

praticas nao somente dentro dedeterminados ambientes,,mastambêm entre eles." (p.115). E umaoportunidade de estabelecervinculos entre o que acontece naroda de Capoeira, e a sociedade, deuma forma mais ampla, trazendonovas possibilidades de inter-pretacdo dos fenOmenos que maisdiretamente atingem o cotidianodos alunos. Segundo o COLETIVODE AUTORES (1992), o tratamentoa ser dado a conterldos presentesem processos pedagOgicosenvolvendo temas da culturacorporal, deve partir de umametodologia diferenciada e transfor-madora, capaz de priorizar urnsentido/significado que possa:

abranger a compreensâo dasrelacOes de interdependencia quejogo, esporte, ginastica e danca (ououtros temas que venham acompor um programa deEducacao Fisica), tern corn osgrandes problemas sOcio-politicosatuais como: ecologia, papeissexuais, saide piiblica, relacOessociais de trabalho, preconceitossociais, raciais, distribuicao derenda... (p.62).

Dessa forma, os educadoresmais diretamente envolvidos corn oprocesso ensino-aprendizagem daCapoeira, nâo podem se omitir doseu importante papel, pois segundo

GUTIERREZ (1988), a esta altura doseculo torna-se impossivel, ate paraeducadores medianamente cons-cientes, desligar as implicacOeseconOmicas, sociais e politicas desuas atividades pedagOgicas.

Assumir essa importante tarefa,implica em adotar a posturaquestionadora e desafiadora quecaracteriza urn processo pedagOgicobaseado numa educacâo liberta-dora. Nesse sentido a Capoeirasempre foi uma contestacdo aoestabelecido. Ao inverter a lOgicadas coisas, quando fica de pernaspara o ar subvertendo assim esse"olhar" para o mundo, o capoeiristaexprime o sentido major da dialeticahumana. Assim, cabe ao educadorestabelecer "pontes" entre essasqualidades que caracterizam urnborn capoeirista, corn posturas aserem assumidas nas suas praticassociais, ou seja, ser tambem urn"born capoeirista" no enfrentamentodas dificuldades e obsteculos davida e na construcâo da sua prOpriacidadania. Ao comentar sobreprocessos pedag6gicos visandouma educacäo libertadora, FREIRE(1970), ern seu livro Pedagogia doOprimido, diz:

...o que temos de fazer, na verdade,é propor ao povo, através de certascontradici5es basicas, sua situacdo

If

Page 9: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

Ano XI, nQ 14, Maio/2000 167

existencial, concreta, presente,como problema que, por sua vez,o desafia e assim, the exigeresposta, nao so no infvelintelectual, mas no nivel de,acâo(p.86)

Urn processo pedag6gico que seutiliza da capoeira como temaprivilegiado no ambito da escola,seja como conteGdo da aula deEducacao Fisica, seja comocomponente de urn projetocurricular envolvendo outrandisciplinas, tern condicOes de reunirtodos os elementos indispensaveisa formacao de uma conscienciacritica e reflexiva sobre a realidadeque cerca o aluno, que por sua vez,tern a possibilidade de se reco-nhecer como sujeito de uma praxispolitico-pedagOgica, dentro dosprincipios de uma educacaolibertadora.

Concordamos corn VIEIRA eFALCAO (1997) quando afirmamque o feitor de hoje se transfiguroue tern muito mais poder. Na maioriadas vezes, ele esta vinculado aestruturas responsaveis pelaconsolidacao de urn sistemaperverso e tambern muito poderoso,que sob o discurso da modernidade,vem provocando a maior barbariede todos os tempos em nosso pais.E nesse aspecto, nao podemos ficarindiferentes a essa situacao,

principalmente na condicao deeducadores, pois temos o dever deposicionarmo -nos criticamente,propondo uma intervencaopedagOgica que seja capaz de criaralternativas a esse modelo desociedade vigente.

A Capoeira, em nossa opiniao,representa uma possibilidadeconcreta na construcao de solucOescriticas e criativas como alternativaspedagOgicas de intervencao,principalmente no que diz respeitoao trabalho voltado para as camadasmais carentes de nossa populacao.Passaremos a seguir, a descreveruma experiencia que vem seconsolidando nos taltimos 3 anos nacidade de Salvador, comoconstrucao coletiva de uma dessaspropostas.

A experiencia dofestival

No ano de 1996, a SecretariaEstadual de Educacao da Bahia,atraves da Gerencia de EnsinoFundamental, solicitou a consultoriade urn grupo composto por 5professores, docentes da redeestadual de ensino e da UniversidadeFederal da Bahia, para coorde-narem o Il Festival de Capoeira daEscola como continuidade do I

Page 10: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

168 Motrivi vn cia

Festival, que havia sido implantadono ano anterior, e que tinha comoobjetivo selecionar urn grupo deestudantes para representarem aBahia nos JEB's (Jogos EscolaresBrasileiros) daquele ano. Porentender que os objetivos de urnFestival nä° poderiam ser o deselecionar e premiar os "melhores",esse grupo de professores prop6suma reformulacao no projeto. Essanova proposta que comecava a sergestada, nao residia no simples fatoda modificacao do regulamento,mas no redimensionamento de todaa concepcao do Festival, que sebaseava agora em outros principios:ao inves do atleta, o capoeirista, aoinves da competicao, a cooperacao,ao inves da disputa, a confrater-nizacao, ao inves da medalha, alembranca, ao inves do jogo contrao adversario, o jogo corn o parceiro.Enfim a possibilidade de tornar reala interacao entre os alunos, e suainsercao critica no universo daCapoeira.

0 objetivo do II Festival deCapoeira da Escola foi entao:

possibilitar aos alunos da RedeEstadual de Ensino Fundamentale Medi° de forma lalica eprazerosa, a participacdo no IVFestival de Capoeira, conside-rando a construcâo do conheci-mento sobre a capoeira, contem-

plando as mUltiplos aspectos derefere'ricia sistematizados nacompreensao dos mitos e rituais epreservando as valores sOcio-histOrico-culturais (1996).

0 II Festival foi dividido emquatro momentos diferentes, masnao independentes, pois cadaatividade tinha vinculo corn toda aproposta do festival: as rodas deCapoeira, as apresentac6es culturaisdas escolas, as oficinas cornmestres de Capoeira e a confrater-nizacao.

0 momento da roda deCapoeira é muito significativo, poisé a roda que caracteriza a Capoeiraenquanto uma manifestacao deexpressao da cultura do povo. Aroda, durante o Festival, obedeciaaos fundamentos, regras e rituais jaconsagrados no ambito dacapoeiragem, onde os participantestinham a oportunidade, através dojogo de demonstrar corporalmentesuas "habilidades". A roda eracoordenada por dois professores,que controlavam a duracao dotempo de jogo de cada dupla. Naoera permitido compra de jogo, e asalunos de uma escola jogavam cornalunos de outras escolas, já quecada roda era composta por alunosde quatro escolas diferentes queeram chamadas a cada vez.

Page 11: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

Ano XI, r = 14, Maio/2000 169

No segundo momento, aapresentacao de grupos culturais,era justamente a possibilidade devalorizar a criatividade do trabalhodesenvolvido por cada escola. Osalunos tinham a oportunidade decriar e recriar as diversas expressOesartisticas do povo brasileiro. Era urnmomento, onde muitas vezes elesconseguiam contextualizar a praticada Capoeira corn a sua realidade,ou entao tratavam de homenagearmestres reconhecidos da Capoeira,traziam a tona movimentos sociaisde lutas de resistencia da histOria dopovo brasileiro, como os quilombos,Canudos e outros, recitavampoesias, promoviam espetaculos dedanca, literatura de cordel, enfim asmais diversas formas possiveis deexpressao. Cada escola tinha urntempo de dez minutos para aapresentacao.

0 terceiro momento eraconstituido pelas oficinas peda-gOgicas, que consistiam em ampliaros conhecimentos no universo dacapoeiragem. Neste trabalho,geralmente, convidavamos mestresrenomados na Capoeira. Cadaoficina tratava de conhecimentosdiferentes, como: toque de berim-bau, construcao de berimbau,construcao de instrumentos depercussao, Capoeira Angola,Capoeira Regional, etc... e eles

tinham a oportunidade de escolherqual oficina gostariam de participar.As oficinas tinham urn carater depossibilitar aos alunos aprofun-darem seus conhecimentos, tantodo ponto de vista pratico comoteOrico.

Urn outro dado importante, e quea comissao organizadora do Festivalpreocupou-se em valorizar tambernatraves da indumentaria, a culturaafro -brasileira, quando instituiu autilizacäo por parte das criancas, doAgbada, que segundo o Mestre Didi,e urn nome de origem Yoruba esignifica: amplo e longo blusâo usadopelos homens africanos. Todos osalunos participantes receberam entaoo Agbada como originariamenteutilizado nas casas de tradicaoafricana: cores vivas — vermelho,branco e preto, corn desenhossimbOlicos de instrumentos usados naroda de capoeira como berimbaus,atabaques, agogOs, etc. Optamos poressa indumentaria ern oposicao acalca e camisa branca de algodao,trajes popularmente utilizados nacapoeira, por entendermos que essavestimenta remete ao tempo daescravidao, onde os negros eramviolentados e humilhados. Aoutilizarmos o Agbada, priorizamos avalorizacao dos signos afro -brasileiroscorn referencia nas tradicOes quedignificavam esse povo e essa cultura

Page 12: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

170 Motrivilancia

em seu lugar de origem, a Africa.Entendemos que assim, caminhamospara uma educacao verdadeiramentemulti-cultural e plurietnica.

Esse Festival teve a participacaode aproximadamente 500 criancas eadolescentes de varias escolaspiablicas de Salvador, e durou tresdias, onde foi garantido almoco edistribuicáo de agua para todos osparticipantes. 0 III Festival deCapoeira da Escola, ocorrido em1997, realizou-se praticamente nosmoldes do anterior com apenasalguns ajustes e pequenas modifi-ca95es no regulamento, porem ontimero de participantes cresceuconsideravelmente, atingindo quase800 criancas durante os tres dias deduracao.

Já no IV Festival, ocorrido em1998, o ntimero de participantesatingiu praticamente a mil criancas efoi acrescentado urn outro momentoque consistiu na exibicáo de filmessobre capoeira. Exibimos videosreferentes aos Festivais anterioresonde muitos tiveram oportunidade dese verem nas telas, alem da exibicäode varios documentarios sobre otema, onde percebiamos a expectativae curiosidade dos alunos ao veremos antigos mestres jogando e falandosobre Capoeira.

Consideraciies finals

A partir da experienciaconstruida ao longo de tres anos, oFestival de Capoeira da Escola vemse consolidando como a concre-tizacâo da possibilidade de umaabordagem diferenciada, no que dizrespeito a encontros e eventos degrande porte que tenham comoobjetivo a integracao e troca deexperiencias entre alunos dasescolas ptiblicas, e vem afirmar avalorizacäo de uma expressáocultural importantissima para o povobaiano e brasileiro, na perspectivade enfase nos aspectos histOrico-socials e na construcäo daidentidade, da auto-estima e dacidadania de criancas e adoles-centes da cidade de Salvador.

Independente da orientacãopolitico-ideolOgica dos orgâosoficiais gestores de politicaseducacionais, temos sempre quebuscar espacos para construirmosnovas propostas de intervencdo.Esperamos que essa experienciapossa frutificar.

... joga menino, mostra oque o Mestre ensinou,mostra que arrancaram a planta,mas a semente brotou,e se for bem cultivada, dare bomfruto e bele for... (D.P.)

Page 13: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

Ano XI, n2 14, Maio/2000

Bibliografia

BURKE, Peter (org). A escrita dahistOria: novas perspectivas. saoPaulo, Editora da UNESP, 1992.

COLETIVO DE AUTORES. Metodo-logia do Ensino de Educagao Fisica,Sao Paulo, Cortez, 1992.

DECANIO FILHO, Angelo A. AHeranga de Pastinha, Salvador,Producao independente, 1996.

DIDI, Mestre. HistOria de urn TerreiroNag& Salvador, Max Livronad, 1988.

FREIRE, Paulo. Pedagogia doOprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra,1970.

FUNDACAO CULTURAL DO ESTADODA BAHIA., 1992

GIROUX, Henry e SIMON, Roger.Cultura Popular e Pedagogia Cntica:a vida cotidiana como base para oconhecimento curricular, in Curriculo,Cultura e Sociedade-MOREIRA e SILVA(org.), Sao Paulo, Cortez, 1994.

GUTIERREZ, Francisco. Educagaocomo praxis politica, sao Paulo,Summus, 1988.

LUZ, Marco Aurelio. Cultura Negra erntempos POs-Modernos, Salvador,SECNEB, 1992.

MORIN, Edgar. Ciencia corn Cons-ciéncia, Rio de Janeiro, BertrandBrasil, 1998

REGO, Valdeloir. Capoeira Angola:ensaio sOcio-etnografico, Salvador, Ed.ltapua, 1968.

RIBEIRO, Darcy. 0 Povo Brasileiro, Riode Janeiro: Companhia das tetras,1995

SECRETARIA DE EDUCACAO DOESTADO DA BAHIA. Regulamento doll Festival de Capoeira da Escola,1996.

VIEIRA, Luis Renato e FALCAO, JoseL. Cirqueira. Mentiras que parecemverdades: alguns sofismas sobre aCapoeira, Goiania (Conbrace), mimeo,1997.

Endereco do autor:Pedro R. J. Abib — Rua BornConselho, 17-E — ltapua —

Salvador(Ba) CEP 41.620-730

Tel (071) 249-3123 — res. ou 247-1822 r.50/51 — UFBA

e-mail: [email protected]

Page 14: Capoeira e os diversos aprendizados no espaco escolar

4