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Capít u lo 5 A FÉ PALAVRA: FO N T E PRIMEIRA E DECISIVA DA TEOLOGIA De onde arranca a teologia? Qual é a sua fonte pr i meira de conhe c í- mento , se u fu ndamento último, seu principio si co? Essaé urna quest á o difícil, porém impo rt an tíssima. En si na Aris te les :  E m t od as as c oi sas , como diz o refr á o p opu lar , ' o pr i me i ro passo é o m ai s im po rta nte ' e , po r es sa mesma ra z á o, ta m bém o mais di fícil . P ois, q ua nto m ai s p od er os a s e de sti na a s er a s ua in fl ue nc ia , mais p equen as o as suas proporcóes, e , portanto, mais difíceis de pe r ceb er. M as , depois que foi descob rto o primeiro corneco, é ma i s ácil faz er- Ihe acréscimos e desenvolver o resto .  FUN<;A o DA FÉREVELADANA TEOLOG I A A fé-pal avr a como p rincípio for mal dateologia Falando em  princípio formal fala mos no que co nf er e e s ecif i c ida d e a teologia , naquilo que funda a te ologicidade da teologia, o u se j a ,s u a rat i o formalis. É p or i ss o o cr it éri o r ad ic al e d ec isi vo q ue n os p er m i t e id e n t if i c a r um discur so como discurso te ológico. Ora , t al p ri nc íp io f or ma l é co ns ti tu ído p ela f é. Ep ist emo lo gi ca m ente falando, é a fé que funda a razáo teológica e nao o contrário . A f avo r da expres siv amente Sto . Ans elmo ( t1109):  A sabedoria humana, confiando apenas em si mes m a , pod e a n tes romp er -se os cornos ( cornuo sib i evelle re ) de encontro ae ss a ped ra (da ) d o qu e d em ov é -la (evellere) co m suas inves tida s ... , ,2. Importa darrno-nos conta que, embora a fé constitua um ato sintético , rico de múltiplas determinac;:óes, das qu ais de st acamos tre s: a t . ARISTÓTELES, Dos arg ume ntos soji stic os, 18 3b, 21 - 2 6, t ra d . bras. Co l . O s Pensadores 4, Abri l, Sáo Paulo, 1973 , p . 203 . 2. E p ístol a d e In c arna on e v er , o p . c i t . injr a , com o Le í t u ra n o fi m d est e capi t ulo . 111 - e xperiencia , fé-palavra e a fé-prática, é precisamente através d a seg unda d i rnens á o , a da fé-palavra, que se nos transmite o co n teú d o  ético essenc i a l d a f é e , po rt an to, o p ri nc ípi o i nt el ig íve l d a t eo lo gi a. =ortanto, quando se afirma que a fé é o principio determinante da te ologia , por fé aqui se entende a fé - palavra . Por outras, é a fé positiva ou do g má tic a, a fides q uae . E m o ut ra s pa lav ra s a ind a, tr at a- se da rrad í c á o apo stólica, condensada no Credo. n ev e - se , contud o, observ ar que qu ando sediz fé-palavra , referimo - nos, em primeiro lugar , nao é l pa lavra da doutrina , mas é l palavra do te st emu- nno . Es te p as sa a tr av és d o qu er ig ma, qu e é a nún ci o e p roc lar na cá o, cu jo port ador é o Apóstolo ou Missionário j e passa em seguida, através da hom ologia , ou confiss á o de fé, como se exprime na profiss á o que faz a Com unidade dos Fiéis. Só depois de ser testemunhada no anúncio e na conf i ss áo , é q u e a fé-palav ra setorna do ut rina, ou seja, en si no sob a forma daCa tequ ese, do Magi st ério e, finalmente , da Teo logia. To davia, este é o lado subjetivo ou an tr op ológico da fé-palavra. Preci- samos recuar e ver qual é o correlato objetivo ou teologal desta fé. pois a fé-pala vra, antes de ser palavra humana, é Palavra de Deus. Dizer que a teologi a parte da fé do Povo de neus só vale se se entende o Povo de Deus co mo consti uído pela Palavra, nao constituinte da mesma. Ele é medido por ela, nao a mede. Po r isso, devemos dizer que, ultimamente, a fonte determinante da teologia é a Palavra de Deus, como prefere a tra d icáo protestante, ou a Reve/ac ;: oo , como costuma dizer a trad í c á o cató l ica. Aliás, o Vaticano 1 1 junta a s d uas expressóes, quan do nomeia urna de suas quatro constitui- c;: óes dog máticas com ostermos : Co nstituic;:aodogmática sobre a Reve/a - c;:o o divi n a eao mesm tempo Ihe dácomo incipit aspalavras: De i Verbum . Qu e d iz er e nt á ot Qu e o p ri nc ip io co nst it uti vo de rr ad eir o d a t e olo gi a é a Palav ra de Deus ou a Revelac;:ao Divina, testemunhada na Bíblia e  tradicion ad a na e pela tgre ja' . A Palavra é a norma da Fé,que é a norma  :S.Aludimo s aqui inst á ncia da Tr adí <;ó o, q ue n a d out ri na c atóli ca é , junto co m a Escr it u ra , u rn a rnedi a < ;aoesse n ci al da Reve la<; áo, quest á o a s er d is cut id a ma i s tar d e ( Ca p . 8/2 ).

Caps.5-8

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  • Captulo 5

    A F-PALAVRA: FONTE PRIMEIRA E DECISIVA DA TEOLOGIA

    De onde arranca a teologia? Qual a sua fonte primeira de conhec-mento, seu fundamento ltimo, seu principio bsico? Essa urna questodifcil, porm importantssima. Ensina Aristteles:

    "Em todas as coisas, como diz o refro popular, 'o primeiro passo omais importante' e, por essa mesma razo, tambm o mais difcil. Pois,quanto mais poderosa se destina a ser a sua influencia, mais pequenasso as suas proporces, e, portanto, mais difceis de perceber. Mas,depois que foi descoberto o primeiro corneco, mais fcil fazer-Iheacrscimos e desenvolver o resto."

    FUN

  • 112

    da teologia. OUseja: a Palavra a norma suprema e ltima da teologia, en- 4

    quanto a Fe e a norma proxirna .

    Procurando sintetizar, poderamos dizer que, para a teologia:

    - a Revelac;:ao o princpio objetivo de sua construco:

    - a F o princpio subjetivo5

    Para falar conjuntamente dos dois aspectos acima, diremos simples-mente "f revelada".

    Fique bem claro que estamos falando especificamente do discurso daf (teologla), nao da vida de f em geral. Claro que, para esta ltima, ocritrio decisivo o amor (cf. Mt 25,31-46 Gl 6,5). Mas convm aqui naoconfundir a ordem da existencia com a ordem da inteligencia, a saber,nao misturemos analiticamente a vida com o pensamento e o amor com odiscurso.

    Ora, na matria que estamos tratando - epistemologia - nos situamosno nvel do pensamento. Eaqui o que conta a f certa, nao a f vivida,embora aquela esteja sempre a servico desta, como a teologia est emfunco da vida crist. Sem dvida, as regras da gramtica existem para sefalar bem, mas na hora do exame o que importa nao falar bem, massaber as regras.

    Eis urna figura para visualizar as anlises feitas:

    REVELAC;Ao

    ---. Prtica ~~~~~

    ---. Experiencia _- ..

    F ---. PALAVRA - - - - - - - ...~~.. TEOLOGIA------- ....

    4. Cf. Marcello SEMERARO - Giovanni ANCONA, Studiare /a te%gia dogmatica, Vivere in, Roma, 1994,p.22.

    5. Cf. Otto H. PESCH,La paro/a di Dio principio oggettivo della conoscenza te%gica, in Walter KERN -Hermann J. POTTMEYER - Max SECKLER(ed.), Trattato di gnose%gia te%gica, Corso di Teologiafondamentale, Queriniana, Brescia, 1990, p. 17-46; Peter NEUNER,ui teae principio soggeccivo dellaconoscenza te%gica, ibid., p. 47-67.

    113

    vemos a que a teologia se pe diretamente na Iinha de derivaco daf~palavra (e esta da Revelac;:ao),sendo s obliquamente determinada pelaf~experiencia e a f-prtica.

    primado absoluto da Revelac;ao

    Importante ter sempre presente que na teologia o primado compete absolu-tamente a Palavra de Deus ou a Revelaco sobre toda a qualquer racionalidade hu-mana. A atitude fundamental do telogo, e antes ainda do crente (para nao falardo ser humano em geral), a de um ativo "deixar ser", "deixar acontecer". Trata-sede urna postura de expectativa, de escuta e, finalmente, de entrega. analogica-mente o que sucede na experiencia do amor ou na conternptaco da beleza.

    A teologia (como, em sua origem, a f) exige um descentramento antropolgi-eo radical: voltar-se do homem para Deus. Pede urna verdadeira "revoluco coper-nicana": deslocar o centro do universo mental da "terra da razo" para o "sol daRevela~ao".

    Onde inicia, pois, a teologa! Dissemos: da f amorosa ou do amor confiante.Ora, isso implica justamente em estupor e em adoraco. Mas estupor e adoracodo que?Do evento resolutivo do destino humano: jesus Cristo. essa experienciaque sustenta, estrutura, mede e regula a ratio theologica crist.

    Nada, portanto, aqui, do cogito cartesiano e nem dos a prioris kantianos. Semdvida, existe no ser humano a "potencia obediencial", o licor inquietum", o "exis-tenctat sobrenatural". Mas nada disso critrio que determine o evento da Revela-~ao e que seja, por conseguinte, o ponto de partida real da teologia.

    Nada, pois, de qualquer dependencia nem condicionamento transcendentalda Revela~ao em relaco ao ser humano. Em vez das rahnerianas "condices dePossibilidade", nao seria melhor falar aqui, usando urna linguagem branda, emc~rreSpondencia ontolgica, tal, por exemplo, como se ve em ato na contempla-~aoda f e no maravilhamento exttico do amor",

    ---------------------------6. Estamos seguindo aqui as reflexes gnosiolgicas de Hans U. von BALTHASAR, espec. em Te%gia e

    SOntit, in Verbum caro, Morcelliana, Brescia, 1975,3" ed., p. 200-229; e em Gloria (1). La percezioned.ella forma, Jaca aook, Milao, 1975; resumo da gnosiologia de Balthasar ern Giovanni FORNERO,LaII/osofia contemporanea, in N. ABBAGNANO, Storia della filosofia, UTET,Turim, 1991, p. 762-766.

  • 114

    o drama da "teologia liberal" pode aqui ser instrutivo. Desde F. schleie-,macher, a teologa protestante, em seu legtimo anseio de dialogar com a razaomoderna ou ilustrada, acabou sucumbindo a seus encantos. Cedeu ao antre,pocentrismo, pelo qual a f s valia em funco da questo antropolgica. K.Barth rompeu com o encantamento modernizante da teologia, restituindo apalavra sua prioridade absoluta. Assim, restabeleceu o teocentrismo, integran-

    do nele a questo humana'.

    Por certo, as teologias da prxis, especialmente a Teologia da Libertaco ,reivindicaram o principio "partir da realidade". Foi urna reaco sadia a urnateologia que havia se tornado doutrinria, abstrata e a-histrica. Contudo, essarevindicaco nem foi e nao sem risco: o de a teologia permanecer presa nocativeiro do antropocentrismo moderno, agora em forma scio-libertadora.

    A esse propsito se compreendem as preocupaces do Magistrio, que socomo o correspondente catlico do poderoso "Nein" de sarth ao fascnio damodernidade. O "partir da realidade", na verdade, s vale precedido por um"partir" mais radical e determinante: o da Palavra de Deus. Do ponto de vistaestritamente teolgico, a Palavra s pode ter a primazia, como se ver melhor

    mais l frente".

    Escritura: testemunha da Revela~aoPraticamente, fazer teologia confrontar criticamente as questes

    humanas com a Bblia, como mostraremos mais a frente (Cap.8/1). Assim,o discurso da f consiste finalmente na reductio ad Scripturas.

    Ora, em relaco as sagradas Escrituras, eis como se exprime a consti-tuco Dei Verbum:

    "A Sagrada Teologia apia-se, como em perene fundamento, na palavraescrita de Deus justamente com a sagrada rradico, e nesta mesma

    palavra se fortalece firmissimamente e sempre se rernoca, perscrutando

    l luz da f toda a verdade encerrada no mistrio de Cristo. ora, asSagradas Escrituras contrn a Palavra de neus e, porque inspiradas, soverdadeiramente palavra de Deus. Por isso, o estudo das sagradaSPginas seja como que a alma da Sagrada Teologia" (DV 24).

    7. Cf. Hans KNG,Grandes pensadores cristianos. Una pequea introduccin a la teologa, rrorta, Madri,1995, p. 183-207: K. sarth, a confrontar com F. Schleiermacher, p. 153-179.

    8. Cf. infra as "lnterpretac;6es equivocadas" e o "Esclarecimento" do Excurso deste captulo.

    115-----portanto, a f revelada aparece como o dado inicial, o ato inaugural, o

    "marco zero" de toda teologia. Essa arranca da e somente da, qualquerue seja a teologia, incluindo a Teologia da ubertaco. Sem esse prtoon,

    ~Teologia da Libertaco pode ainda ser "da Iibertaco", mas nao ser mais"teologia". O mesmo se pode dizer de toda a qualquer teologia, seja elafeminista, tnica, rnacroecurnnica ou eco lgica.

    ALM DEPALAVRA, A REVELA~AOHISTRIA

    Importa notar que o principio formal ou determinante da teologia - alides quae - nao tem por contedo urna doutrina abstrata, um conjuntode verdades especulativas. Nao. Trata-se, antes, de urna histria: a Histriada salvaco. Por isso, a f crst mais testemunhada (como fato) do queensinada (como doutrina). Melhor, primeiro testemunhada no querlgrna:s depois ensinada na "didaskalia". Em sntese: a teologia nao refletefinalmente urna doutrina, mas a Revela~ao mesma, e esta como verdade-evento: o acontecimento da verdade na histria, do qual a f a acolhida".

    A drnenso histrica da f se mostra com particular c1areza pelaanlise da estrutura mesma do Credo cristo. Em vez de se apresentarcomo um elenco de verdades, aparece antes como urna histria que secanta. Quem fala a nao o filsofo ou o sbio, mas o testemunha, sejaele profeta, apstolo, mrtir ou confessor. Alm da estrutura narrativa, oCredoludeu-cristo autobiogrfico: auto-implicativo enquanto situa oconfessante numa tradico determinada: "Meu pai era um arameu erran-te..." (Dt 26,5). Recitando o Credo, o fiel narra a sua histria, enquantoparticipante dela - histria particular de signficaco universal".

    A f crist nao simplesmente fruto de intulco ou especulaco, maseVento salvador, experienciado e anunciado. "O que ouvimos, o que vimoscorn os nossos olhos, o que contemplamos e nossas mos apalparam ..., nsVa-lo anunciamos" (1}0 1,1.3). "Nao baseando-nos em mitos artificiosos

    --------------------------9, Cf.JOseph DOR, "la raison thologique selon G. colornbo", in Te%gia, 21 (1996) 7-17, aqui p. 13.

    lO, cr N d - "e ./.. tcolas LASH, "Teologias a servic;o de urna tra icao comum, oncurum, 191 (1984/4) 106-120,aqu p. 116.

  • 116

    que vos demos a conhecer o poder e a vinda de Nosso Senhor jesus Cristo,mas como quem foi testemunha ocular de sua majestade" (2Pd 1,16).

    Que a Revela~ao seja sobretudo fato significativo e nao pura teoria,nada melhor o prova que seu ncleo central: o evento jesus e, particular-mente, o ncleo do ncleo: o mistrio pasea!.

    Por isso, a forma literria que assume a Palavra revelada a danarrativa. A histria da salvaco se apresenta exteriormente como urn"mito", mas cujo contedo histrico-salvico ". Mas como a narrativa daf o relato de urna histria real e ao mesmo tempo paradigmtica, elaconstitui de fato urna metanarrativa que revela o sentido escatolgico detodas as outras narrativas.

    A F revelada uma histria com significadoContudo, essa histria histria que carrega urna significaco muito particu-

    lar: histria de salva

  • 118

    Segundo, porque a idia de um conhecimento absolutamente sell1pressupostoS uma uusao. lsso nao existe, a nao ser na fantasia, comomostraram as pesquisas em fenomenologia. De fato, toda ciencia possuseuS princpios de constru~ao, como vimos (Cap. 2). Nisso a teologia naodifere de qualquer ciencia. Melchior Cano j o tnha visto:

    "Nenhuma disciplina em absoluto procura provar atravs de argumen-taco seus prprios principios. por isso mesmo esses se chamam posi-

  • 120 121------------------------------------------------------------dogmtica na medida em que se confronta com as referencias objetivas daPalavra. Nao urna experiencia puramente, e nem mesmo primariamente, subje-tiva. A experiencia deve ser apreciada a partir do contedo mesmo da f revelada.portanto, a f da Comunidade nao constituinte, mas constituida pela Revela~ao.Essa que constituinte.

    Essaconstitui o principio crtico decisivo de tudo, tanto da experiencia da fcomo, em conseqncia, da teologia. Nao a Palavra de Deus que deve se adaptaras pessoas, mas estas quela. Nesse sentido tem razo G. Colombo:

    "A teologia se qualifica no seu sentido prprio de teologia em referenciaa fe, que, na experiencia dos indivduos ou dos grupos, sempresubjetiva. A revelaco ... substancialmente o critrio objetivo da f e aesse ttulo exerce sobre esta, ou melhor, nesta, o controle crtico?".

    Insistimos: o que est em questo aqu nao a esfera da vida, onde, al sirn, oque conta finalmente a prxis do amor; mas est em questo, mais especifca-mente, a esfera da teologia, e aqu o que vale a luz da f.

    trn particular, a Teologia da tibertaco tem sido criticada por "partir daprxis,,22. Eis um tipo de censura que se Ihe tem feito:

    "O defeito fundamental da Teologia da Libertaco tomar a prxis como'principio herrnenutico (metodolgico) determinante' (Lib. Nunc., X, 2)e nao a f,,23.

    O que vem ai dito formalmente verdadeiro. Contudo, a acusaco pode naoser procedente. Com efeito, vejamos como G. Gutirrez define a Teologia datbertaco:

    " a reflexo crtica da prxis histrica a luz da Palavra,,24.Portanro, a fides quae que fornece a teologia seus principios e que Iheconfere urna luz prpria, e nao a vivencia da f de urna Comunidade. Esta mais iluminada que i1uminadora, conquanto possua sua luz (segunda), comoainda veremos (Cap. 7). Ora, que vemos a?Que a prxis histrica aparece nao no papel de instancia

    determinante, mas no de tema ou matria-prima da teologia. Eh, por outro lado,o reconhecimento de que se necessita decisivamente da "luz da f" para refletirsobre a prxis e julg-Ia.

    Ademais, se examinarmos o contexto mais amplo da definico acima, vere-mos que o autor reconhece que a "funco praxeolgica" da teologia "supe eexige", em sua relaco com a Palavra, as funces c1ssicas da teologia: a funcosapiencial ou espiritual e a funco intelectual ou racionar".

    Mesmo assim, seria possvel sustentar que a "praxis" sim o principiodeterminante da teologia caso a entendermos como sendo a prxis de Deus. Defato, a Revelaco, como vimos, nao consiste apenas ou antes de tudo numadOutrina. urna unidade sinttica de "acontecimentos e palavras intimamente

    2. F-prxis: ponto de partida formal da teologia!A prxis animada pela caridade corresponde afidesformata2o Quer se chame

    obediencia, servico, compromisso ou aco, a prxis um componente integranteda f. a f informada, concreta, completa e encarnada, inclusive no mbito social,em termos de [ustca, solidariedade e Iibertaco. , de certa forma, a f acabada,cumprida, consumada, terminada.

    Ora, seria a prxis como talo principio determinante e, por isso, o critrioltimo da teologia? A rigor, nao, pois a prpria prxis, para ser evanglica, supea f em sua positividade. Com efeito, ela tambm necessita ser qua/ificada eapreciada "a luz da f". A ortoprxis supe a ortodoxia". ora, o juzo sobre averdade de urna prtica, ou seja, de sua correspondencia com o plano de Deus,releva igualmente da Palavra de Deus.

    11. Cf. j o titulo de um clssico dessa corrente: Hugo ASSMANN, Teologia desde la praxis de laliberacin, Sigueme, Salamanca, 1973.

    13. Declarac;ao dos Andes, documento de julho de 1985, no qual colaboraram 21 participanteslatino-americanos (bispos, telogos e leigos), entre os quais os brasileiros Dom B. Kloppenburg eDom E. Bettencourt.

    24. Gustavo GUTIRREZ, Teologia da Libercac;ao, Vozes, Petrpolis, 1975, p. 26: concluso do cap. 1.Ver infra a Leitura no fim do Cap. 7.

    15. Cf. IDEM, ibid.

    t 9. Giuseppe COLOMBO,"E lo studioso della fede fini a gambe al'aria', in Avvenire, 16 seto 1984, retorna-do in AD/STA (aomai.jan. 1985, dossier n. 8: "Teologia della Liberazione", p. 91.

    20. Cf. GI 5,6: "A f opera pela caridad e". Para afidesformaca cf. ST 11-11, q. 4, a. 4 ea. 5.

    \ 2 t. Cf. Michael SCHMAUS, A f da igreja, vozes, petrpolis, 1976, vol. 1, p. 171-175; soaventuraKLOPPENBURG, Igreja popular, Agir, Rio de janeiro, 1983, p. 97-100; Enrique CAMBON, ortoprassi.Documentazione e propettive, Citt Nuova, Roma, 1974.

  • 122conexos entre si" (DV 2). O contedo da fe-principio teolgico , portanto, urnaprxis significativa, isto , urna histria mistrico-salvfica.

    xesse caso aparece claro que o primum da teologia nao a prxis do homern,mas sim a "prxis de neus", tal como se testemunha na sagrada Escritura. Nao em primeiro lugar a histria humana, mas a histria da saivacao operada por Deus.Es diz respeito a histria humana na medida em que resposta a histria divina.seia como for, essa prxis de Deus corresponde ao conceito de Revela~ao: seucontedo. Ora, como defendemos aqu, essa a instancia determinante da

    teologia.sern dvida, a prxis tambm urna das fontes da teologia. Mas ela contribui

    para a uumtnaco teolgica como fonte segunda. De seu lugar e importanciafaremos especificamente [ustica mas a frente, num captulo especifico (Cap. 7).

    3. A epistemologia do amorNa perspectiva da Teologia da ubertaco, jon Sobrino props redefinir a

    teologa como inte/lectus amoris, ou ento como inte/lectus misericordiae, justi-tia e, Jiberationis2. Nesse sentido, ele tala ainda da -razo compassiva,,27. E insisteem que esta concepco seria "a maior novidade da Teologia da liberta~ao,,28.

    Mas essa proposta na verdade problemtica, pelo menos como vem coloca-da. Ela pretende substituir a clssica, a da teologia como inte/lectus fidei, o quenao pode ser. pois, o inteJIectus amoris supe e s pode supor o inte/lectus fidei.E dentro dele que deve se situar, a ttulo de urna sua especifica~ao ou destaque.

    Pois o "amor" de que se fala h que ser discernido: Corresponde ao "agap"do NT? animado por ele?Ora, essa pergunta nao to obvia assim. Sefosse claropara todos em que consiste o amor, jesus nao precisaria ter insistido tanto nele aponto de selar essa Ico com seu prprio sangue. portanto, para conhecermos ocontedo do amor, para ele ser verdadeiramente libertador no esprito de jeSUS,somos obrigados a recorrer a luz da f, aos Evangelhos. Sem isso pode-se produzirqualquer teoria humanitria, marxista ou liberal que seja, mas nunca teologia

    realmente crist,

    26. Cf.jon SOBRINO,Elprincipio misericordia, UCA, San salvador, 1993, p. 65-75: "A teologia da Iiberta;Ocomo "intellectus amoris" (trad. bras. Vozes, petrpolis, 1994).

    27. Cf. jon SOBRINO, "Aniquila;ao do nutro - memria das vtimas", in Concilium, 240 (1992/2) 13-21,

    aqui p. 19-21.211.Cf.l. SOBRINO,El principio misericordia, op. cit., p. 49, 71, 74 e 84: 4 vezes.

    123-------------------------------------------------------Nao h por que, a essa altura, contrapor f e amor. pois, repitamos, f aqui

    significa a Revela~ao de Deus. A qual reporta antes de tudo o amor de Deus peloseUpOyo.Se intellectus amoris h, nao se trata em primeiro lugar do nosso amor,mas do amor de Deus mesmo. o que a Palavra da f testemunha. Ora - e aquivoltamos a tese inicial -, esse o principio inarredvel da teologa, de todateologia.

    como veremos ainda (Cap. 7), e epistemologicamente sustentvel (porque o teologicamente) fazer o movimento seguinte: pensar a f a partir da prxis doamor, refletir o Evangelho a partir da libertaco, considerar Deus a partir do pobre.Masj nao mais sustentvel priorizar essemomento, sem cair na "viso do sapo":ver o mundo de Deus, que infinito, do fundo do poco da realidade humana,sempre finita.

    Nao o intellectusfidei que cabe dentro do intellectus Jiberationis, mas antes justamente o contrrio que o correto: a libertaco urna dimensdo da f, eesta o horizonte maior da Iibertaco. Enquanto a libertaco histrica umelemento da f, a f o elemento dentro do qual se situa a Iibertaco. Assimentendida, a "epistemologia do amor" de modo algum se contrape as anteriores,mas se cornpe com elas, pois as pressupe, as amplia e as completa. O "principiomisericrdia" nada mais na verdade que a "inteligencia da f", enquanto esta urna "f que opera pela caridade". A a caridade a ponte entre a f e a aco,mxime a aco Iibertadora.

    Repitamos: pensar Deus a partir do pobre possvel e necessario, e essa defato "a novidade" epistemolgica da Teologia da Libertaco. Mas isso apenas comomomento segundo de urna dialtica maior, cujo primeiro momento, e momentodominante, : pensar o pobre a partir de Deus, como toda a tradico teolgicasustenrou. Aqu sim Deus a instancia produtora, nao mais mera materia-prima".Portanto, partir dos pobres, sirn, mas partindo de Deus, como dissemos (Cap. 3).

    Em concluso, podemos dizer que a teologia sem dvida inte/lectus amoris,mas sempre a partir e no vigor do intellectus fidei, que detm sempre o primadoepistemolgico (nao naturalmente vivencial).

    E nao isso, afinal, que interessa aos mesmos pobres? Ou seja: que o amordeles e por eles seja verdadeiro. Ora, a f a verdade do amor.

    19. Cf. Clodovis BOFF,Epistemologa y mtodo de la teologa de la liberacin, in Ignacio ELLACURA _Ion SOBRINO (org.), Mysterium Liberationis, rrotta, Madri, 1990, p. 79-113, aqui p. 81-82: tese 2.

  • 124

    RESUMINDO

    1. O principio formal objetivo da teologia a Revela~ao ou a palavrade neus. Fazer teologia ver finalmente tudo "a luz da Palavra".

    2. O princpio formal subjetivo da teologia a f-palavra. Teologia refletir Deus e tu do "a luz da f".

    3. A aeveraco divina consiste em palavras e, mais ainda, em fatos.Mas, para efeito da teoria teolgica, a Revela~ao princpio determinanteenquanto mrerpretccro proftica dos fatos salutares, isto , enquantonarrativa significativa.

    4. A Doutrina da f ou a Palavra de Deus se encontra concretamentena Sagrada Escritura, lida e tradicionada na e pela Comunidade eclesial.

    5. A base dos principios acima referidos que a Revelaco detm sobrea razo um primado absoluto. Ela encontra no ser humano certa corres-pondencia, mas nao um condicionamento qualquer. Por isso, o ser humanos pode acolher a Palavra no maravilhamento da conternplaco e do amor,fonte secreta de toda palavra teolgica.

    6. Ressalve-se que a f-palavra principio decisivo apenas no campodo saber teolgico, nao no campo da prtica da vida. Se l vale o critriode verdade, aqui vale ultimamente o critrio do amor autntico. Certo, apalavra da verdade est a servico do amor, mas, para ser eficaz, esseservico precisa ser verdadeiro, correto, ortodoxo.

    7. O "ponto de partida" estritamente terico (epistemolgico) dodiscurso teolgico s pode ser a f positiva.j seu ponto de partida prtico(didtico, ex positivo, pastoral, etc.) pode ser perfeitamente a realidade, avida ou a prxis (cf. Excurso infra).

    8. A teologia, como toda ciencia, parte necessariamente de pressupos-tos ou de princpios, que ela explicita com toda a c1areza (e que inclusiveconfessa). Contudo, os principios nao devem ser confundidos com ospreconceitos. Aqueles abrem a inteligencia, esses a fecham.

    9. O principio determinante da teoria teolgica (nao da prtica da vida)nao pode ser nem a experiencia nem a prtica, mas sim a Palavra (a deDeus. orimeiro. a da f da Comunidade, em seguida). Pois tanto a expe-

    125-riencia como a prtica precisam ambas ser avaliadas a luz da Palavrarevelada e por ela animadas.

    10. A teologia tambm intellectus amoris sim, mas apenas de mododerivado e segundo, pois o amor tambm precisa ser iluminado e dirigidofinalmente pelo intellectus fidei, derivado ele mesmo da Palavra de Deus.

    EXCURSO

    ESCLARECIMENTO SOBRE A EXPRESSO: "PONTO DE PARTIDA DATEOLOGIA"

    Fala-se, freqentemente, hoje em termos de "ponto de partida" da teologia. umaexpresso ambgua.

    Podemos entender ponto de partida numa perspectiva meramente prtica e mesmopragmtica (expositiva, pedaggica, didtica ou ainda pastoral). Nesse caso, o ponto departida pode, sim, ser a experiencia ou a vida. o que se observa no mtodo deexposico, que parte do "ver", para depois seguir com o "julqar" e fechar com o "aqir",usado na Aco Catlica e reconhecido pelo Magistrio3o.

    Mas se entendemos ponto de partida numa perspectiva rigorosamente terica (ouhermeneutica ou ainda epistemolgica em geral), ento a Revelaco ou a f queconstitui esse ponto ".

    Normalmente, na Teologia da l.ibertaco e em muitos documentos da Igrejalatino-americana (Medelln, Puebla, etc.), o primeiro momento o "ver". Mas mesmo a

    a f-palavra o momento determinante. Esta fica apenas suspensa ou colocada entre

    parenteses, mas nao est de modo algum supressa. Pois o "ver" todo animado porela, mesmo se de modo ainda inexpresso.

    J o segundo momento o "julqar". segundo apenas quanto ao processopedaggico, mas nao quanto a importancia. Em importancia o primeiro, pois omomento em que a Palavra de Deus nao apenas "usada", mas exerce seu juzo

    --------------------------------30. Cf. por ex. JoAo XXIII na Mater er Magistra (1961), n. 232; PAULO VI, Octogesima Adveniens (1971),

    n. 4; e a prpria estrutura da Gaudium er Spes.31. Ver Juvenal ARDUINI, Horizante de espettuica. Teologia da Liberta

  • 126soberano sobre a realidade "vista". Para evitar o risco de uma leitura interesseira e seletiva

    da Palavra, haveria que dialetizar sempre os dois momentos, metendo-os sucessivamente

    em confront032

    .Enquanto principio formal, a F dogmtica d a teologia sua perspectiva prpria.

    Colocar-se na perspectiva teolgica ver uma coisa "a luz da Palavra de Deus", ou "aluz da Revela~ao", ou, mais simplesmente, "a luz de Deus". Porm, a expressao maiscomum "a luz da f".

    O principio "a luz da f" possui um carter transcendente. Aponta para a Verdadedivina, a qual, enquanto revelada, ilumina o discurso teolgico. "O principio de todos os

    nossos dogmas tem sua raiz no alto, no Senhor dos cus" - diz Joo Crisstom033

    Portanto, a "luz da f" constitui a "instancia determinante" do processo de produco

    terica da teologia. Designa nao aquilo que se teologiza, mas aquilo pelo qual seteologiza; nao a matria-prima, mas os meios de produ~a034 Nao indica o principio

    sobre o qual se julga, mas o principio com o qual se julga tudo o mais35

    O principio formal da teologia constituido pelo que se pode chamar a "positividade

    crista,,36 Para efeitos de epistemologia, esta aparece como o conjunto dos postulados,

    axiomas, pressupostos ou premissas a partir e em virtude dos quais a teologia trabalha.

    Esse principio determinante, que identificamos na f ou na luz da f, pode ser

    expresso em diversas outras frmulas, possuindo cada uma sua tonalidade prpria:

    _ a Palavra de Deus, a Revela~ao e mesmo as Escrituras;

    _ so os Dados da f, os Artigos do Credo, a Tradi~ao apostlica;

    _ so as Verdades da f, os Mistrios, o Dogma ou a Doutrina crist.

    31. Cf. Agenor BRIGHENTI, "Raices de la epistemologa Y del mtodo de la teologa latinoamericana",in Medelln, 78 (1994) 207-254, dando uma viso global dos resultados de sua tese doutoral Razesda epistemologia e do mtodo da Teologia da Liberta~ao. Omtodo 'ver-ju/gar-agir' da A~aOCatlicae as media~es da Teologia latino-americana, Louvain-la-Neuve, 1993, 544 p.

    33. Apud PIO IX,Qui p/uribus (1846): OS2779.

    34. Cf. Clodovis BOFF,Teologia e prtica. A teologia do politico e suas rnediaces, Vozes, petrpoliS,1978, seco 11, 2 e 3, p. 144-158, onde se aplica o "modelo da prtica terica" de L. Althusser teologia, com especial aten

  • 128 --Por conseguinte, antes de tudo, temos que purificar o coraco pela f, conforme

    se diz de Deus, que "purificou seu coraco pela f" (At 15,9); iluminar os olhospela prtica dos mandamentos do Senhor, porque "o mandamento do Senhor brilhante e d claridade aos olhos" (SI 18,9); e chegar a ser, por uma humildesubmissao ao testemunho do Senhor, como pequeninos, a fim de aprender asabedoria "que nos d o testemunho fiel do Senhor, concedendo sabedoria aospequeninos" (SI 18,8). Pelo que o Senhor disse: "Dou-te gracas, Pai, (...) porque

    revelaste essas coisas aos pequeninos" (Mt 11,25).

    Por certo, isto que aqui digo: quem nao crer, nao compreender. Porque quemnao crer, nao experimentar, e quem nao experimentar, nao compreender. Porquequanto supera a experiencia ao simples ouvir dizer, outro tanto supera a ciencia dequem experimentou o conhecimento de quem s ouviu falar.

    Mais: sem a f e a prtica dos mandamentos de Deus, nao somente impossvel ao esprito compreender as verdades profundas, mas acontece tarn-bm as vezes que, uma vez abandonada a boa consciencia, desapareca ainteligencia e a prpria f se perca. ( ...) Que ningum, por conseguinte, penetrenas obscuridades das questes religiosas seno depois de ter adquirido, nasolidez da f, a gravidade dos costumes e da sabedoria, de medo que, recorrendo,com leviandade e imprudencia, aos inumerveis rodeios dos sofismas, nao se

    veja enredado por algum erro tenaz. ( ...)

    Disse tudo isso para que ningum presuma discutir as mais profundas quest6esreferentes a f sem estar capacitado para tanto; ou, se vier a ter tal pretenso, paraque nenhuma dificuldade ou impossibilidade de compreender possa apart-lo da

    verdade a que aderiu pela f.

    Captulo 6

    A F-EXPERIENCIA: OUTRA FONTE DA TEOLOGIA

    A MONTANTE DA TEOLOGIA:A EXPERIENCIADA F

    F-palavra e f-experiencia

    vimos que a f-palavra determina formalmente a teologia. Mas afidesquae se d no contexto da fides qua. A Palavra da Revela~ao ressoa noespaco da experiencia religiosa. O conhecimento da f nao puramenteterico e menos ainda mera inforrnaco. sobretudo afetivo e experien-cial, envolvendo o ser humano todo. A f implica num "saber substancial".Diz Pio XI:

    "Assim como nao pode dizer que conhece bem um pas longnquo aqueleque soube fazer dele urna descrico extrema mente detalhada, masaquele que por algum tempo ai viveu, assim o conhecimento ntimo deDeus (intimam Dei notitiam) nao se consegue apenas com a investigacocientfica, mas tambm com a comunho estreitssima (conjunctissime)com ueus."

    verdade: a f-palavra naturalmente o elemento discernidor daf-experiencia. Mas esta vem antes. Est a montante de qualquer palavra.O proton da f a experiencia. O intellectus fidei a fonte da ratioteologiae.

    J.H.Newman, que estudou em profundidade a crise ariana, a primeiragrande crise da Igreja provocada pela teologia (Ario era telogo da Escolade Alexandria), intuiu que por trs da mesma havia o confronto entre duasconcep~6es da f crist: a ariana, para quem o cristianismo urna verdadeque se dirige principalmente a inteligencia - donde o privilgio da com-preensao especulativa da f; e a "catlica" ou ortodoxa, para quem ocristianismo urna forca regeneradora que se dirige ao ser humano inteiro,

    1. PIO XI, Studiorum Ducem (1923), encclica recomendando a autoridade de S.Toms de Aquino,

  • 130

    especialmente ao coraco - donde o primado da experiencia e da admi-raco sobre todo entendiment02

    O saber da f saber inicitico: vem de urna experiencia comunicadapor via simblico-sacra mental. saber de convivencia e comunhao. umsaber "desde dentro", nao "desde fora". Da por que o mero "cientista dareligiao" jamais saber como sabe o crente e o telogo crente. Nao saberavaliar corretamente a substancia da f em questo. Isso que vale paraqualquer religiao, vale mais ainda para a f crist'. pai a afirma~ao de Santo

    Anselmo:"Quem nao crer, nao experimentar; e quem nao tiver experimentado,

    nao entender .4

    A saneta vetula": a piedosa velhinha

    Para ilustrar a importancia da experiencia religiosa como fonte desaber, vem ao caso a referencia que vrios doutores antigos fizeram a"santa velhinha crlst''. Agostinho foi o primeiro que fez seu elogio:

    "Que vale juno em face de urna velhinha, que urna fiel crist (aniculam

    fidelem chrsnonomlt'"

    Vem a mente sua exclamaco dolorosa, antes da converso, depois deouvir a histria de alguns monges, particularmente a de Sto. Antao:

    "Levantam-se os ignorantes e arrebatarn o cu, e ns, com todo o nossosaber, privado de coraco, eis que nos revolvemos na carne e no

    sangue.:"

    l. Cf. john Henry NEWMAN, GIi ariani de/ quarto secoro, Jaca sook, Milao, 1981.

    3. Ver nesse sentido as considera

  • 132

    A resposta afirmativa do doutor, o Frei Egdio corre para o jardim e,olhando para a cidade, exclama em alta voz:- - pobre velhinha, ignorante e simples (o vicchierella, poverella, idiotae semplice), ama o teu Senhor jesus Cristo, e poders ser mais que Freisoaventura.:"

    Mas essa tradco da "sabedoria dos simples" est na verdade enral-zada nas sagradas Escrituras. A se diz que Deus mesmo que ensina asabedoria aos pequenos (cf. 51119,97-104). Paulo afirma que a "sabedoriade Deus" por ele pregada est escondida aos "prncipes deste mundo" (1Cor2,6). sjesus mesmo louva ao Pai, porque ocultou os mistrios do Reino aos"sbios e doutores" e os revelou aos "pequeninos" (Mt 11,25). O Esprito o mestre dos fiis (cf. 1Jo 1,20-21.27).

    E por essa sabedoria que Maria, me de jesus, a mais ntimaconhecedora (e anunciadora) dos mistrios divinos, sendo por isso chama-da pelos Padres de verdadeira "Profetisa,,11.

    Caractersticas do conhecimento msticoDe vez que a experiencia da f fonte de conhecimento (mstico) de Deus,

    vejamos como tal conhecimento.

    Para a Bblia, conhecer a Deus passa pela experiencia e pela prtica. O saberbblico profundamente afetivo e concreto. "Quem nao ama, nao conhece a Deus"(tjo 4,7; cf. jr 22,16)12.

    Por outro lado, a f da ordem da percepco espiritual ou da sabedoriapneumtica do Mistrio de Deus (cf. 1Cor 2,6-16). Ora, ela funciona como os primaprincipia da ciencia teolgica. Toda a teologia est potencialmente presente nessainteligencia concentrada e em bloco que a inteligencia da fB.

    10. DA LlSBONA, Chroniche, 1, 1. VII, c. 14, 498.

    r t. Cf. Aloys GRILLMEIER,Maria Prophetin. Eine Studie zu einer messianisch-patristischen Mariologie,in Mit ihm und in ihm, Herder, Freiburg in Breisgau, 1975, p. 198-216.

    11~Ver mais frente o Excurso 1no fim do cap. 7: "Epistemologia biblica".

    t 3. TOMS DEAQUINO, Sent., prol., q. 1, a. 3, q. 2, ad 3.

    133

    Poderfamos descrever O conhecimento mstico por estes tres qualificativos: urn conhecimento apoftico, simptico e exttico ".

    1. Apoftico. um conhecimento inefvel, mais negativo que positivo. Naoque nao possa ser falado, mas a palavra nunca Ihe adequada. Sobra mais silencioque fala. Por que isso? Porque se trata de um saber preterconceitual ou supracon-ceitual. A Iinguagem pequena demais para tal grandeza.

    2. Simptico. um conhecimento por corn-paixo, conaturalidade ou sintonia.supe experenciaco di reta. Sente-se mais que se sabe ". O rgo aqui antuico, o intellectus, como capacidade de "ler dentro", entre as Iinhas. A razove os raios, o intelecto ve o sol. A razo ve as luzes, o intelecto, o foco luminoso.A razo ve os detalhes ( analtica), o intelecto ve o conjunto ( sintticoj".

    3. Exttico. O conhecimento mstico fruto do amor agpico, o amor que saide si e se entrega. Nasce, pois, de urna "perda vantajosa", de urna "alienacoidentificante", de urna "perdco salvadora", s legitimada porque em relaco aoSerAbsoluto 17.S urna existencia descentrada em dreco do Centro da Realidadepermite aceder a tal saber. "Nao sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim"(GI2,20).

    Sentido originrio da palavra "teologia"

    Um estudo sobre a origem da palavra "teologia" instrutivo do queestamos falando ".

    Com efeito, esse termo designava em sua origem urna palavra deproclama~ao de Deus, no sentido da horno logia e do anncio de Deus.Tinha, pois, um contedo mais proftico que doutrinrio. Era dotada deforca performativa, seja ela invocativa, seja evocativa. Seguia a pragmticamas que a gramtica.

    14. Para esta caracteriza;ao seguimos Charles JOURNET, lntroduction la thologie, DDB, Paris, 1947,p. 15-32. Cerco, a f nao um grito apenas, mas tambm um grito, como reconhece o prproHenri DUMRY, La foi n'est pos un cri, Tournai, 1957, p. 10-11.

    15. Cf. sr 1, q, 1, a. 6, ad 3; 11-11, q. 45, a. 2.16. Cf. st 1-11, q. 57, a. 22, ad 2.17. Cf. De Divinis Nominibus, cap. 4, 1. 10.

    18. Ver mais detalhadamente injra Cap. 17: "Histria da palavra 'teologia"'.

  • 134

    tsso mostra que por trs da teologia h um encontro espiritual comDeuS.Telogo algum pode cair no "esquecimento gentico" a respeito desua prtica terica. Lembrar sempre que teologia originariamenteora~ao a neus e proclama~ao de neus. sua natureza nasciva e ntima contemplativa19. Datambm porque sua funco ltima ser sernpre servira adora~a02o.

    Alis, a linguagem religiosa primria e primeira tem um carter invo-cativo: a oraco. Antes de falar de Deus, fala-se a neus. E s no quadroe na rorca do falar-a-Deus que emerge o falar-de-Deus. OUseja: a teologianasce da prece. Esta constitui a "forma interna" daquela"

    pois no quadro do dilogo ou do encontro, isto , no face a face quea teologia tem seu contexto natural. no falar-com-Deus que emerge ofalar-de-Deus no duplo sentido: a Palavra do prprio neus e as palavrasdos humanos sobre neus".

    rats so as origens e tais devem ser tambm as condces em que ateologia se desenvolve23. A teologia ter uma "alma orante" (joo paulo II)ou nao ser teologia portadora de vida. Emblemtico o bilhete que S.Francisco escreveu a Sto. Antonio, dando-lhe permisso de dedicar-se ateologia:

    "Gostaria muito que ensinasses aos rrnos a sagrada teologia, contantoque nesse estudo nao se extinga o esprito da santa oraco e da

    devoco":".

    t 9. Cf. jrrne HAMMER, Discurso em Washington (13/11/1978), in Documentaton Catholique, 1979,

    p. 70-73.

    10. Cf. Frdrick FERR, Le langage religeux a-t-iI un sens?, cogitatio Fidei 47, Cerf, paris, 1970, p.

    157-158.

    11. Cf. Heinrich on, La prre comme langage de la fo, in VV.AA., Paro/e et avnement de Deu,Beauchesne, paris, 1972, p. 63-99, espec. p. 84-87 e 93.

    11. Cf. F. FERR,op. cit., cap. 8, p. 113-124.

    13. Cf. Karl BARTH, mrroouco l teologa evanglica, sinodal, so Leopoldo, 1977, p. 125-133: "Otrabalho teolgico: oraco", do qual damos um excerto como Leitura no fim deste captulo.

    1'4. so Francisco de Assis: Escritos e biografias de so Francisco de Asss, crnicas e outros testemunhosdo primeiro sculo franciscano, vozes/CEFEPAL, petrpolis, 1981,p. 75. Igualmente Sto. Incio detoyota insiste para que seu s filhos unam sempre a eruditio e a pietas: consrnurces, parte IV.

    135

    A RAll MSTICA DA TEOLOGIA:vtsxo HISTRICA

    A tradi~ao teolgica do Oriente: teologia msticaurna rpida olhada na histria da teologia nos mostra a relaco de raiz entre

    teologia e experiencia de f. Sem pretenso alguma de sermos sistemticos,relembremos apenas alguns marcos significativos, tanto na tradico do Oriente,como do Ocidente.

    Comecemos pela Igreja do Oriente. Nessa, a teologia, alm de ser um trabalhoespiritual, fruto do Esprito ( sua 1~caracterstica), a teologia tem tambm carterdoxolgico (2~caracterstica). um hino de gloricaco a Deus. Toda a teologia sefaz ad maiorem Dei gloriam.

    Alm disso, a teologia no Oriente profundamente euconsncc (3~caracters-tica). Ela est referida grande aco de gracas da santa liturgia. Por que? Porqueest toda voltada para Deus e sua gtorificaco. tenoma e teocntrica.

    Assim, para os Orientais, a teologia est estruturalmente vinculada a vida daf. A experiencia religiosa constitutiva do trabalho teolgico. Teologia nao sconhecimento de Deus, mas tambm e mais ainda amor de Deus. No fundo,teologia "viso amorosa de Deus". Nisso os Orientais seguem de perto os Padres.A teologia mstica ou espiritual ou nao nada".

    Nao a toa que no Oriente so chamados "os telogos" por excelencia tresescritores profundamente msticos: S.joo Evangelista, S.Gregrio de Nazianzo esmeo, o Novo Telogo.

    S.joo, em particular, goza na Escola de Alexandria de um lugar central, Seuevangelho visto como portador do saber mistrico da f. Traz um conhecimentoverdadeiramente inicitico, gnstico e sapiencia!. joo reporta as palavras quejorraram do coraco do Mestre e nao apenas de seus lbios. O seu o evangelhodos iniciados nos mistrios da intimidade divina. o evangelho dos amorosos edos contemplativos. Mais: ele comunica um saber divino de que Maria de Nazarfoi a grande iniciada, a mystes maior. Assim se exprime Orgenes:

    "Os Evangelhos so as primcias de toda a Escritura; e o Evangelho dejoo, as primcias dos Evangelhos. Ningum pode captar o sentido deste

    15. Cf. Lli SERTORIUS,La thologie orchodoxe, in R. VAN DERGUCHT- H. VORGRIMLER (dir.), Bilan dela thelogie du XXe. sicJe, Casterman, paris, 1970, t. 1, p. 562-600 U cit. no Cap. 4, Excurso 1).

  • 136137

    Evangelho se nao tiver reclinado a cabeca sobre o peito de jesus e naotiver recebido da parte de jesus a Maria por Mae. E para ser um outrojoo, preciso tornar-se ... o prprio jesus.:"

    Efetivamente, o telogo para ser telogo em profundidade deve ativamente,como o Discpulo Amado, -reclinar a cabeca no seio de jesus'' 00 13,25; 21,20) afim de auscultar-lhe as palavras misteriosas do coraco. Mais: o prprio Logos,que -nos deu a conhecer o pai", foi antes seu confidente, por I/repousar em seuseio" 00 1,18)27.Da ser tambm a ntuco teolgica entendida no vocabulrio da

    mstica nupcial:

    l/A luminaco de todo conceito obscuro um beijo que o Verbo de Deusd a alma perfeita. (...) por isso toda vez que em nosso coraco fazemosalgurna descoberta, sem necessidade de mestre, acerca das doutrinas edas questes divinas, so tantos beijos que nos so dados pelo Esposo,o Verbo de Deus,,28.

    os Orientais sempre foram muito sensveis a teologia entendida como altaespiritualidade. Para eles, teologia muitas vezes sinnimo de mstica. o sentidoque lhe dava o Pseudo-Dionsio (sc. V-VO, como atesta o ttulo de urna obra sua:A teologia mstica. A ele nao separa teologia da conternplaco. Veja-se tambmo que diz Evgrio Pntico (t399), juntando o falar de Deus ao falar com Deus:

    l/Ses telogo, orars de verdade. E se oras de verdade, s telogo-",

    Didoco de Foticia (t ca. 468), um dos mestres espirituais mais conhecidosdo Oriente antigo, ensina que se h de falar de Deus a partir de dentro de Deus:

    I/bom esperar sempre, por urna f ativa na caridade, a iluminaco queleva a falar. Pois nada mais indigente que o pensamento que filosofafora de Deus sobre as coisas de Deus,,32.

    Donde tambm o esprito de oraco que subjaz a raiz de toda pesquisa emteologia:

    I/Quando, ao invs, procuramos algo sobre os ensinos divinos e naoconseguimos descobri-lo, ento ... pedimos a neus a visita de seu Verbocom as palavras da Esposa: 'Que ele me beije com os beijos de sua boca'(Ct 1,1). De fato, o pai conhece a capacidade de cada alma e sabe a qualdelas, em sua mente e em seus sentimentos, deve oferecer, a seu ternpo,

    os beijos do verbo.:"

    Mas foi de modo todo particular a Igreja siraca que pensou a teologia comoforma de ouvaco, A teologia nao conhecimento mas reconhecimento. Seulugar de expresso o culto. Centros de elaboraco desta teologia hnica foramas escolas de Nsibi e de Edessa (hoje na rurqua). Seu grande representante foiSto. Efrm (t 373), animador de ambas as escolas. Nasceujustamente na primeiracidade e morreu na ltima. O melhor de sua teologia se encontra sob a forma dapoesia. Da seu epteto: "a harpa do Esprito santo':".

    A tradi~ao teolgica ocidental: entre mstica e racionalismoMas a prpria tradico teolgica do Ocidente, embora se incline a razo

    raciocinante, nao perdeu de todo o veio orante ou mstico da teologia. A trplicetradico: monstica, agostiniana e franciscana, considerou um ponto de honra darprecedencia ao conhecimento experiencial sobre o cientfico.

    Efetivamente, a epistemologia da Teologia Monstica procurou sempre alter-nar e conjugar o sciendum e o experiendum, a gramtica e a cornpunco, dando,porrn, precedencia ao ltimo plo ". cornudo, a tendencia mais forte destateologa era para o lado da experiencia. S.Bernardo foi o primeiro telogo a falar

    convco do Mestre alexandrino que nenhuma craco teolgica tem lugarseno por torea de urna "ferida" de amor, como a ferida do cora~ao de crist0

    30

    16. ORGENES,Commentaire sur saint lean, Col. Sources Chrtiennes 120, Cerf, paris, 1966, 1. 1, c. 4, 23, p. 70-73, tambm cit. por joAO PAULO 11,Redemptoris Mater, n. 47.

    11. Cf. ORGENES,Op. cit., Col. Sources Chrtiennes 385, cerf, paris, 1992,1. 32, c. 20-21, 260-279,distinguindo o simples "repousar" 00 13,23) do "reclinar-se" sobre o peito de jesus 00 13,25),considerada esta ltima urna -attude melhor e mais excelente". Cf. CarlosjOSAPHAT, "originalidadeevanglica da teologia e seu dilogo interdisciplinar", in Espac;os (ITESP),4 (1996) 5-25, aqui p. 8-9:

    "Tradic;ao jonica".. 18. ORGENES,Comentrio ao cntico dos Cnticos, 1,1.

    \

    19. IDEM, oo. cit.30. Cf. H. Urs von BAlTHASAR, Paro/e et mystre chez origne, Cerf, paris, 1956, p. 130, nota 25.

    3 t. A Orac;Cio,60.

    31. Centrias, Col. Sources Chrtiennes, Cerf, paris, 1955, cap. 7; cf. cap. 67-68 tratando da relacoteologia e conternplaco,

    33. Cf. Wilhelm GEERLlNGS,Riflessione su/la teologia fondamento/e, in W. KERN - j.M. POTTMEYER -M. SECKlER (ed.), Trattoto di gnoseologia teologica. Corso di teologia fondamentale, Queriniana,Brescia, 1990, p. 393.

    34. Cf. jean lEClERCQ, L'amour des lettres et le dsir de Dieu, Pars, 1957.

  • 138

    da "experiencia" espiritual. Refere-se ao "livro da experincia?". A propsito,leia-se apenas aqui este seu testemunho polmico:

    "Nao convm a esta teologiaa leitura, mas a unco,os Iivros (litterae), mas o Esprito,a erudico, mas a prtica dos mandamentos do senhor":",

    Para a Escola Franciscana, que aplicou a teologia o esprito do Poverello, ateologia toda marcada pela unctio da conternplaco. essencialmente scientiaaffectiva3 7.

    Seu maior representante, S. Boaventura, situando-se na linha de Orgenes,Evgrio e Agostinho, desenvolveu toda urna teoria do conhecimento de Deusenquanto saber mstico-experiencial. O pice do saber divino para ele consiste noconhecimento per intimam unionem, in ecstatico amo re. A "mais se sente do quese conhece Deus". Efetivamente, um conhecimento que provm da unio, dotoque atravs do "tato espiritual", toque esse que urna forma superior de ver".

    ODoutor Serfico, diferentemente de S.Toms, acentuou o sentido experien-cial da sabedorta". Define a sabedoria como um saber saboroso: "Sabedoria deum lado vem de 'saber' e do outro vem de 'sabor",40. A partir da define a teologiacomo "conhecimento santo da verdade enquanto digna de f e de amor" (veritatisut crediblis et dligiblis notitia soneto)".

    35. Sermons sur le Cantique, Sermo lII, 1, Col. Sources Chrtiennes 414, Cerf, Paris, 1996, t. 1,p. 76, n.1 e p. 100. "Liber experientiae" expresso de vrios autores do sc. XII: Elredo de Rievaulx, Isaacda Estrela, Guigo o Cartuxo: Ibid.

    36. Carta 108: para Toms. Na mesma Iinha vai o testemunho do Beato Francisco de Sena (t1328), daOrdem dos Servos de Maria: "O que ensina a teologia nao a erudico, mas a unco, nao a ciencia,mas a consciencia, nao os Iivros (karta) mas a caridade (charitas)": Legenda, in Monumento OSM,V, p. 226, n. 11.

    37. Cf. W. DETTLOFF,Franciscanos (teologia dos), in Heinrich FRIES(ed.), Dicionario de teologia, toyola,so Paulo, 1970, vol. 2, p. 229-234.

    38. Cf. Luciano Campos LAVALL, O mistrio santo. "Deus pai" na teologia de Karl Rahner, Loyola, soPaulo, 1987, p. 128-138.

    39. Seguimos aqu Boaventura KLOPPENBURG,"O afeto colegial dos bispos", in Communio, vol. 4, n. 21(1985).

    \40. III Sent., disto 27, a. 2, q. 5. Toms nao desconhece essa rradico: cf. 11-11,q, 45, a. 2, ad 2 e ad 1.

    41. De Donis Spiritus sancti, 4,19.

    139

    Nesse sentido, teologia pertence mais ao genero da sabedoria que ao daciencia, poi s sabedoria, para ele, era o saber saboroso. "A sabedoria umconhecimento afetivo" (notitia transiens in offectutn esr sapientia)42.

    A teologia est finalizada ao amor. "Pois este conhecimento (teolgico) ajudaa f e a f est de tal modo na inteligencia que move naturalmente ao afeto,,43.

    Nesse ponto, Boaventura herda claramente de Agostinho, que assevera: "Naoh bem que se conheca perfeitamente se nao se ama perfeitamente,,44. Do mesmomodo, alias, que outro agostiniano, Gregrio Magno, quando identifica amor econhecimento (amor ipsa notitia est)45.

    Clssico o texto bonaventuriano, colocado em valor pelo Vaticano n naoptatam Totius (nota 32), ao ensinar corn que esprito se h de estudar teologia:

    "Ningum creia que Ihe bastea leitura sem a unco,a especula~ao sem a devoco,a investiga~ao sem a admira~ao,a atenco sem a alegria,a atividade (indstria) sem a piedade,a ciencia sem a caridade,a inteligencia sem a humildade,o estudo sem a graca divina,

    a pesquisa humana (speculum) sem a sabedoria inspirada por Deus,,46.

    Outro franciscano, Sto. Antonio, doutor da Igreja pouco aproveitado pelostelogos, tem urna gnosiologia que vai tambm na linha do conhecimento mstico,antecipando nisso S.joo da cruz",

    j a ESCOlsticaPosterior se afastou perigosamente da fonte espiritual dateologia. O resultado foi que a teologia deixou de nutrir a f, tornando-se

    42. In Hexaemeron, 5, 13.

    43. I Sent., proern., q. 3, resp,

    44. AGOSTINHO, De Diversis Quaestionibus, 83, q, 35, n. 2.

    45. Hom. 27 in Evang.: PL 76, 1207.

    46. Itinerarium mentis in Deus, prlogo, n. 4, trad. bras. Itinerrio do Cosmo ao Omega, Vozes,Petrpolis, 1968, aqui p. 44. Reportamos, como Leitura no fim do Cap.21, o texto da Optatam Totius,mas sem a ctaco.

    47. Cf. Francisco da Gama CAIEIRO,Santo Antnio de Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa,1995,2 vol., aqu vol. 1,p. 374-421.

  • 140

    acentuadamente doutrinria. A Escolstica Tardia, desligando a Suma Teolgicada Bblia, que era a sua fonte, tanto do ponto de vista histrico como estrutural,agravou ainda mais a situaco.

    Entrementes, a reaco da vertente contemplativa nao cessou de se fazersentir. Assirn, no fim da Idade Mdia, encontramos a bela figura do Chanceler deparis, joo Gerson que leva as alturas a "teologia mstica", contrapondo-a a"teologia especulativa".

    "A teologia mstica nao olha as operaces do intelecto ou do sentimento,mas somente a unidade ou a unio da essncia do esprito ou da mentecom Deus. Por isso, nao se ocupa com Deus enquanto verdade, amor,beleza, mas consiste em um amplexo s espiritual, inefvel e mesmoassim experimental entre o ESpoSOe a tsposa?".

    Erasmo (t 153 6) redige um verdadeiro "manifesto teolgico": Razao ou mtodosinttico para se chegar a verdadeira teologia, em que faz um apelo pela volta asEscrituras e ataca toda reflexo, tanto sutil quanto ftil, tal como se praticava naEscolstica do tempo, pleiteando por um teologia simples e escrituristica". Emsua Carta a Dorpius e em seu famoso Elogio da loucura faz as mesmas crticas. Dizneste ltimo Iivro:

    "Esses insignificantes faladores ... experimentam tanto prazer em ocu-par-se dia e noite com essas suavssimas nnias (ter-se-la Deus unidopessoalmente a urna mulher, ao diabo, a um burro, a urna abbora, aurna pedra?) que nem tempo Ihes sobra para ler ao menos urna vez oEvangelho e as Cartas de S.paulo."so

    Lutero, por sua parte, faz urna devastadora crtica a teologia escolstica. Atacaseu intelectualismo e ve nela urna 'forca transviante" da f. Acusa-a, por seu

    48. jean GERSON,La te%gia mistica, Paoline, Roma, 1992, p. 29.

    49. O nome completo da obra tem seu interesse: Hatio seu methodus compendio perveniendi ad veramtheologiom, parac/esis Le. exhortatio ad sanctissimum er sa/uberrimum christianae philosophieStudium (Razao ou mtodo sinttico para se chegar a verdadeira teologia, paraclese, ou seja,exortaco ao santissimo e utilissimo estudo da filosofia cristal. A obra chegou a ter 35 edices emmenos de 25 anos.

    50. ERASMO, E/ogio da /oucura (1509), cap. 53, Ediouro, Rio de janeiro, s.d., p. 125-136, aqui p. 133. Cf.ainda Clodovis BOFF, "Erasmo: a atualidade do nao-conformismo", in Vozes, 12, dez. 1969, p.\1060-1082, espec. 1071-74. Ver tarnbrn P.GOOET,Erasme, in Diccionnaire de Thologie Catholique,letouzey et An, paris, 1939, t. V, aqui col. 394.

    141----------------------------------------------------------

    objetivismo, de alienar a alma do Deus da Alianca e do Cristo salvador. Carregandocontra ela, confessa desolado: "Assim foi que perdi a Cristo"Sl.

    trn contrapartida, agostiniano que era, Lutero prope urna teologia de tipoexistencial, contra posta a especulaco. Para ele, "s a experiencia faz o telogo"(sola experientia fadt theologum)s2. Nessa linha, ele fala inclusive em prxiss3.

    "Quem nao tenha sido agricultor durante cinco anos, incapaz decompreender Virglio, os seus idlios pastoris e os seus poemas campes-tres: e quem nao tiver sido associado durante vinte anos a adrninistracodum grande Estado, incapaz de compreender perfeitamente as cartasde Ccero. Do mesmo modo, ningum suponha que pode compreendera Sagrada Escritura se durante cem anos nao governou as Igrejas comos Profetas, como Elias e Eliseu, com joo Batista, com Cristo e com osApstolos. Nao toque, pois, esta divina Eneida, mas adore humildementeos seus tracos.:"

    Com seu conhecido rompante, dispara:

    " vivendo, mesmo morrendo e se danando que o telogo se constri,e nao compreendendo, lendo ou teortzandov".

    Pouco depois, o conhecido diretor espiritual, Miguel de Molinos (t1696),condenado como fautor do "quietismo", afirma:

    "O telogo possui urna dsposico mais fraca para a contemplaco doque o rude. (,..) Est com a cabeca to cheia de fantasias, imagens,opinies e teorias que a luz verdadeira nao consegue a penetrar-".

    Mas venhamos ao nosso sculo, e citemos logo os modernistas. Apesar de seuunilateralismo, tentara m resgatar o contedo experiencial da f e sua relevancia

    5 t. Cf. Yves CONGAR,Martin Luther, sa foi, sa reforme, Col. Cogitatio Fidei 119, Cerf, Paris, 1983.

    52. Tischreden 1, 16; apud J. WICKS, Introduzione a/ metodo te%gico, PIEMME, Casale Monferrato (AL),1994, p. 19.

    53. " isto verdadeiramente conhecer a Oeus: experimentar realmente na prxis (in praxi) que s ele sbio, que sua vontade suavssima, sendo a nossa tola e pssima": Op. Weimar, 44, 592. Nota:Lutero escreve praxi em grafa grega!

    54. Ed. Enders, vol. XVII, p. 60.

    55. Op. Weimar 5, 163, 28: "Vivendo, immo moriendo et damnando, fit theologus, non intelligendo,legendo, sive speculando." Ainda: -oracao, rneditaco, tentaco como mtodo correto (rechteWeise) de estudar teologa": op. cit., 50, 658.

    56. OS2264.

  • 142

    para a teotogia". um de seus representantes mais cultos, G. Tyrrel critica ateologia intelectualista, dizendo que com ela o "telogo poderia nao ter mais fdo que um cachorro?",

    Reportemos, por fim, um testemunho dos nossos tempos, D. Hlder cmara.Ao receber o ttulo honoris causa pela Universidade Catlica de Lovaina (Blgica),arengou os numerosos telogos a presentes nestes termos:

    "Nao vos contenteis em serdes pesquisadores que dilaceram o dadoteolgico com pulso firme e rno fria. (...) Nao gasteis o melhor de vossotempo neste trabalho negativo. Tomai em vossas mos algumas verda-des slidas e de tal modo elas vos possuam, se insiram em vs, sejamvosso sopro e vossa vida, que chegueis a ser algum que no meio dasdvidas seja f encarnada, audvel, tanglver'".

    Para fechar esse sobrevo, recordemos que a Teologia da Libertaco igual-mente procurou recuperar a vertente mstica da teologia falando da "experienciade Deus no pobre" como sua fons et origoo

    Resultado: importancia da "Teologia genuflexa"

    Que significa tudo isso para a existencia teolgica? Que toda boateologia banha no contexto da conternplaco. A teologia como urnaestrela: para poder brilhar, precisa de seu oxlgnio: a oraco. Teologia naose faz s sentado, estudando ou de p, ensinando. Teologia se faz tambme em primeiro lugar de joelhos, orando. a "teologa genuflexa", como seexprimiu von salthasar".

    Na verdade, j encontramos na Bblia esta posco adorante do conhe-cedor de Deus. Paulo "dobra os joelhos diante do pai" para pedr-lhe que

    57. Cf. PIO x, Pascendi (1907), n. 14, onde exp6e a doutrina modernista da f como experiencia; e n.39, onde a critica e condena.

    58. Apud Ambroise GARDEIl, Le donn rvl et la thologie, cerf, paris, 1932, 2' ed., p. 200.

    59. In Grande Sinal, n. 8, out. 1970, p. 624 (procuramos melhorar a redaco).

    ~o.Cf. Gustavo GUTIRREZ,O Deus da vida, loyola, so paulo, 1972.61.'Cf. Hans Urs von BAlTHASAR, Ensayos teolgicos I. Verbum Caro, Guadarrama, Madri, 1964, p. 267

    (orig. al. johannnes verlag, Einsiedeln, 1961).

    143

    "conceda" aos fiis de feso "cornpreenderem qual a largura e o cornpri-mento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excedea todo conhecimento" (Ef 3,14.16.18). salorno, o Sbio, tambm implorou-urn coraco que escuta", "um coraco sbio e inteligente" (1Rs 3,9.12). Olivro da Sabedoria Ihe atribui a belssima oraco para obter a sabedoria (Sb9,1-12).

    A prpria libertaco, tema axial da teologia que leva seu nome, antesde ser teoria teolgica, prece, como se ve nos Salmos. "Clamaste na aflicoe eu te Iibertei" (SI81,8). Mais ainda: na experiencia da Igreja latino-ame-ricana, libertaco, antes de ser teologia, foi exortaco pastoral, foi prticacrst (antes dos telogos da libertaco, apareceram os leigos engajados eos pastores profticos). Mas antes ainda de tudo isso foi grito orante dopovo: "Ouvi o clamor do meu povo e desci para libert-lo" (Ex 3,7-8).

    As religies em geral entendem que o verdadeiro conhecimento deDeus vem por via de revelaco do alto. Da por que prescrevem gestos dereverencia sagrada como condico de sua manltestacao. Eis um exemplotirado dos costumes indgenas:

    "Antes de conversar sobre coisas sagradas, preparamo-nos por meio deoferendas ... Um encher o cachimbo e passar a outro, que o acender,oferecendo-o a terra e ao cu ... Depois furnaro juntos ... S entoestaro prontos para conversar.r'"

    TEOLOGIACOMOSABEDORIA

    Sabedoria e ciencia: 1!!distinc;ao

    Para indicar a fonte (assim como a forma) religiosa da teologia, ahistria Ihe confere o nome de "sabedoria": teologia sabedoria.

    A tradico antiga, que vem de Aristteles, passa por Ccero, porAgostinho e, atravs deste ltimo, assumida pelos medievais, distinguiaclaramente, embora nao rigidamente, ciencia e sabedoria.

    62. Palavras do indio sioux Mato-Kuwapi ("Ca

  • 144

    Sto. Agostinho definiu ciencia como o conhecimento das coisas huma-nas e temporais; e sabedoria como o conhecimento das coisas divinas eeternas63 Sabedoria seria, portanto, o saber dos fins derradeiros, decisivos,eternos. Seria finalmente o saber do sentido da vida, que regula em seguidao caminho tico. Aqui sabedora vem definida formalmente por seucontedo ou objeto: o divino, nao ainda por suajormo de expresso, comoveremos mais adante.

    Sabedoria e ciencia: esta a primeira grande distinco a reter naintrincada problemtica referente a teologa como sabedoria. Esta distin-co se refere ao contedo ou tema do conhecimento, independentementeainda de seu modo de acesso ou de sua Iinguagem.

    Sbio aquele que conhece o destino ltimo da vida e procura vivereticamente em conseqncia. Esse tambm o sentido que possui "sabe-doria" nas sagradas Escrituras, especialmente nos Iivros sapienciais. OAquinate, que recolhe aqui a tradco bblica, explica que, ao contrrio dequem sbio, tolo aquele que "avalia de modo equivocado (perverse) aquesto do sentido geral da vida (communem finem vime)''".

    Porque fala de Deus enquanto Sentido absoluto de tudo, a teologia sabedo-ria. Contudo, embora sendo a sabedoria suprema, pe-se ao lado de outrassabedorias. Efetivamente, seguindo aqui Toms de Aquino, haveria tres tipos desabedoria:

    1. A sabedoria metafsica. a sabedoria da razo natural ou filosfica: a dosfilsofos e sbios;

    2. A sabedoria teolgico. a sabedoria da razo iluminada pela f revelada: ados telogos;

    3. A sabedoria espiritual. a sabedoria mstica, infundida pelo Esprito a partirda experiencia do amor divino: a da "velhinha crist", dos santos e dos msticos".

    63. Cf. De Trin., XII, 15, 23-25; XIII, 1-19; XIV, 1, 3; De Civ. Dei, XII, 12, 17; 14, 22; para S.Toms, cf. ST1-11,q. 57, a. 2; 1-11,q. 66, a. 2. Cf. Henri-Irne MARROU, Saint Augustin et la fin de la cu/ture antique,Boccard, Paris, 1938, espec. p. 561-569: "Scientia et sapientia dan s la langue de Saint Augustin". Adistinco nao absoluta: pode haver tanto urna "sabedoria cientfica", como urna "cienciasapiencial".

    64. ST 11-11,q. 8, a. 6, ad 1.

    65.'Cf. Charles jOURNET, Introduction la thologie, DDB, paris, 1947, p. 9-10 (a estrutura de todo olivro segue a triplice diviso de sabedoria); Cipriano VAGAGGINI, Teologia, in Giuseppe BARBAGLlO -

    145

    considerando agora a histria a vo de pssaro, vemos que no Mundo Antigoexistem tres grandes reaiizaces da sabedoria:

    - a indiana: espiritual-ascendente (religiosa);

    - a grega: natural-racional (metafsica);

    - e a hebraica: revelada-descendente (pistica).

    A Idade Mdia, por sua parte, articulava sabedoria e ciencia, colocando asegunda sob a jurisdico da primeira (para falar a verdade, de um modo um tantoditatorial). j a Idade Moderna fez urna reviravolta: colocou a ciencia acima dasabedoria (Descartes; j Sigrio de Brabante). Mais: declarou o fim da sabedoriateolgica (Descartes). Em seguida, decreto u o fim da sabedoria metafsica (Kant).Finalmente, pediu a ciencia os servicos da sabedoria. Foi o drama do despotismoda ciencia, agora privada da guia da sabedoria (cienticsmoj'".

    Nos dias que corrern, a razo moderna parece felizmente "recuperar a sensa-tez", como atesta m as diversas crticas que se fazem hoje a mOdernidade, inclusiveo chamado "ps-modernov".

    Sabedoria mstica e sabedoria teolgica: 2!distin~io

    Mas o que nos interessa propriamente aqu perceber que a teologia essencialmente um tipo de sabedoria, tipo na verdade mais alto que otipo de sabedoria puramente filosfico, porm inferior a sabedoria espiri-tual ou mstica. Sim, a sabedoria mstica situa-se no curso superior dasabedoria teolgica. Como se distinguem e como se articulam essas duassabedorias?

    A sabedoria mstica urna sabedoria-dom: infundida pelo EspritoSanto no coraco do fiel. um "padecer" a Deus. Apresenta-se no mododa experiencia. Exprime-se no juzo "espontneo- ou no discernimento

    Severino DlANICH (ed.), Nuovo Dizionario di Teologia, Paoline, Cinisello Balsamo (MI), 1985, 4' ed., p.16265; Paul THION, Foi er Thologie selon Godefroid de Fontaines (tese de doutorado na PUG),Lovaina, 1966, p. 171-175.

    66. Resumimos aqui as lices dadas por jacques MARITAIN em Roma em 1934 e publicadas em Scienceer Sagesse, Labergerie, Paris.

    67. Cf. jean LADRIRE, OS desafios da raciona/idade, Vozes, Petrpolis, 1979, espec. cap. 8 e 9;Boaventura de Souza SANTOS, Introdw;iio a urna ciencia ps-moderna, Graal, Rio de janeiro, 1989,espec, cap. 2: "Ciencia e senso cornurn", propondo a reconcilia

  • 147146

    "instintiVo" acerca das coisas de neus. Nesse nivel, a sabedoria caracte-rizada pelo seu modo de apreenso: dom do Esprito acompanhado deun~ao. A virgem Maria a figura da Sofia: a "sede da sabedoria", a

    'd' d P l ,,68-custo la a a avra .j a sabedoria teolgico uma sabedoria-virtude: ela vem pelo esforco

    (per studium). Representa o labor do discurso. a sabedoria que, alrn de

    sentir, sabe.Esta a segunda grande distin~ao na ardua cuesco da teologia como

    sabedoria. Refere-se ao modo de apropria~o desse saber absoluto das

    coisas, que a sabedoria.Em termos de valor, devemos reconhecer que a sabedoria-dom (sabor mstico)

    situa-se na raiz da sabedoria-virtude (saber teolgico). Antes de ser discursohumano sobre neus, a f experiencia do Esprito santo. Diz tucas. "O Senhorabriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras" uc 24,45). Mente a onos, ou, na linguagem bblica, o "cora~ao", rgo da inteligencia espiritual. A f sentimento antes de ser entendimento. Est no cora~ao antes de entrar nacabeca. primeiro intui~ao (espiritual) e depois saber (terico)".

    Relembrando que o lugar da experiencia luminosa da f a rorio superior, ou

    melhor, a inteligencia da fe, podemos dizer com Sto. Toms:"O discurso (teolgico) da razo (da fe) comeca sempre na inteligencia(da fe) e sempre acaba na mesma inteligencia (da f).,,70

    Teologia sapiencial e teologia cientfica: ]!! distin~aoDemos agora um passo a mais e vejamos que forma discursiva pode

    ter a sabedoria teolgica, ou que modo de expressao assume.

    Efetivamente, a sabedoria em geral pode se apresentar seja na Iingua-gem tipicamente sapiencial, Iinguagem quente, emocional, envolvente,como em Platao, Agostinho ou S.Boaventura; seja na Iinguagem cientfica,

    68. Cf. Pedro IWASHITA, Maria e lemanj, paulinas, sao paulo, 1991, p. 357-364. Para Maria, cf. touis

    BOUYER, Le trne de la sagesse, Cerf, paris, 1957.69. Cf. jacques MARITAIN, "\1 n'y a pas de savoir sans intuition", in Revue Thomiste, 70 (1970) 30-71.

    Ver tambm a noco central em Bergson de intui

  • 148Nao h, pois, oposic;ao, mas distinc;ao e artcuaco entre sabedoria

    sapiencial e sabedoria cientfica. A ciencia confere ao sabor sapiencial aforma do saber terico. efetivamente o que fez S.Toms com S.Agost-nho: ele pos a teologia sapiencial desse ltimo nos termos da teologiacientfica74. Assm, "o ao mudo devorou toda a substancia espiritual daguia de Hipona,,75.ja nuns scotus nao hesita em entremear linguagempiedosa e linguagem centica".

    contudo, preciso fazer aqu um reparo crtico. A reduc;ao da sabedorial forma da ciencia, por outras, a passagem da linguagem prpria (emocio-nal) l linguagem apropriada (conceitua\), nao vai sem resto. Esseprocessonao se d sem ganhos e perdas: ganha-se em rigor, mas perde-se emcalor". Essareduc;ao se paga com o sacrifcio da quentura que a linguagemprpria da sabedoria (a saplendal) comunica ao esprito. A ciencia ilumina,sirn, mas a sabedoria que aquece e move. Tal a virtude e ao mesmoternpo o limite da teologia de Toms de Aquino, definida como "sabedoria

    sob forma de ciencia".

    seja como for, fica claro que existem duas espcies ou formas funda-mentais de teologia: a sapiencial e a cientfica. Cada urna delas tem suasvantagens e suas desvantagens. por isso mesmo, elas nao se opem, antesse complementam. O ideal, evidentemente, possuir, em sntese dnmca,a sabedoria-dom-sabor-experiencia junto com a sabedoria-virtude-saber-ciencia. Ser ao mesmo tempo "telogo sbo" e "telogo sabido".

    74. o que mostroujacques MARITAIN, Les degrs du savoir, DDB,paris, 1948, 5' ed., Cap. 7, p. 577-613.

    75. A. GARDEIL, apud j. MARITAIN, Op. cit., p. 607.

    76. Cf. De primo principio, in Obras del Doctor sutil Juan ouns scotus, BAC,Catlica, Madri, 1960, comoraces. p. 595 (inicio), p. 602 (cap. 2), p. 622 (cap. 3) e p. 646 (Cap.4). Cf. da argentina Raquel rscnerDE DIEZ, La piedad del pensar: lenguaje orante en nuns sscoto, in Leonardo SILEO(dir.), Via scoti,

    PAA-Antonianum, Roma, 1995, p. 1011-1021.

    77. Cuidado: como a sabedoria pode ser urna virtude humana, a ciencia pode ser tambm um domespiritual (alis, pertence a lista dos dons do Esprito). Depende da forma como vem ao ser humano:se por conquista laboriosa ou se por oferta gratuita do alto. Quanto aos dons "intelectuais"concedidos pelo Esprito, eis como Toms de Aquino (ST11-11,q. 8, a. 6, c) os explica:_ inteligencia: penetrocdo em profundidade das coisas da f;_ ciencia: discernimento correto das coisas criadas;_ sabedoria: discernimento correto das coisas divinas;_ conse/ho: aplicaco correta da f nas coisas particulares.

    149

    De resto, S.Boaventura explicita assim a reaco entre elas. Consideraque os Dominicanos representam o ideal da teologia cientfica, por issoso como os Querubins, os brilhantes anjos da ciencia. j os Franciscanosrepresentam o ideal da teologia sapiencial, por isso so como os Serafins,os ardentes anjos do amor. A diferenca est em que os primeiros "dedi-cam-se principalmente l especulaco ... e em seguida l unco", ao passoque os segundos se entregam "em primeiro lugar l unco e depois lespeculac;ao." E conclui: "E oxal este amor ou unco nao se afaste doQuerubim.,,78

    o que a experiencia mstico-sapiencial d a teologiaA teologia desdobra discursivamente a sabedoria-sabor comunicada

    pela f. Ela explicita racionalmente o que a experiencia religiosa intui "numgolpe de vista trepidante" (in ictu trepidantis ospecrusr" Como a razodesenvolve a inteligencia, assim a teologia cientfica: faz passar a ernocoreligiosa ao nvel do conceito.

    A rigor de termos, a experiencia, por si s, nao d evidencia alguma.o que d, sim, certeza e convcco. luz que mais aquece do que ilumina.Donde a necessidade do trabalho da teologia.

    Certo, a teologia nao a nica forma discursiva da experiencia de f.Ao lado dela temos a poesia, como em S.joo da Cruz ternos a homiltica,como em Brulle, e assim por dante". Mas a teologia o discurso racionalda f. E nisso ela tem um papel nico e nsubstituivel'".

    Ma o que confere l teologia a experiencia de f? Confere unco,quentura, pathos e ernoco. D fervor e alegria. A devoco nao constituia teologa, como sabia Newman com seu dito: "Theology is no devotional".Mas a devoco est na fonte da teologia e seu principio existencial e

    78./n Hexnmeron, 22, 21.

    79. AGOSTINHO,Confisses, VII, 17.

    80. Cf. j. MARITAIN, Les degrs du savoir, op. cit., p. 582.

    8t. sabido que a Dei Verbum (8,1) ve o desdobramento da Palavra revelada segundo tres linhas: aoraco, a pregaco e a reexo.

  • 150151

    motivacional. Nesse sentido, ela nao pode nao acompanhar a fala teol-gica. se urna teologia nascida da experiencia pneumtica convence amente e empolga o coraco.

    podemos dizer simplesmente: a f d l teologia o "fremito da vida".s animada pela f-experiencia temos uma teologia viva e fecunda. A fvivida a "alma" da teologia.

    concluindoFica, portanto, claro que a teologia, para ser boa, nao Ihe basta ser

    inteligente. Ela tem que exalar o "bom perfume de Cristo" (cf. 2Cor 2,14-16).Nao lhe suficiente ser bem arrurnada: preciso tambm que cheire bernl

    Ademais, se verdade que a teologia nasceu da fides qua, tambmverdade que a teologia pode ajudar, e muito, a mesma fides qua, especifi-camente, a espiritualidade. sabia-o a noutora Teresa d'vila, que, "dosconfessores, diz que importa que sejam terraocs:". Pois se certo queteologia sem santidade indigencia, igualmente certo que santidade semteologia um perigo! Mas sobre isso voltaremos mais tarde (Cap. 13).

    portanto, fica amplamente evidenciado que a teologia tem uma dimen-so pneumtica. Teologia um saber carismtico, mesmo quando seencontra na forma da teoria. Ela nao pode se reduzir ao campo da razo.Tem que banhar sempre na esfera da f, que saber mstico do divino.

    Pois, "o homem animal (natural) nao pode compreender as coisas doEsprito de neus: so para ele loucura" (1cor 2,14). A f, principio perma-nente e estrutural da teologia, seiva de seu percurso discursivo, se baseiaultimamente "nao sobre discursos persuasivos da sabedoria (humana),mas sobre a manifestaco do Esprito" (icor 2,4)83.

    RESUMINDO

    1. A palavra da f determinada, a montante, pela experiencia da f. pois desta que a teologia fontalmente se nutre.

    2. A "velhinha crist" o tipo de todo fiel (tarnbrn do telogo), que,crendo na simplicidade de seu coraco, se torna discpulo do Esprito, quethe faz conhecer o sentido da vida de maneira muito mais profunda queo poderia compreender o maior pensador, privado da f.

    3. O conhecimento mstico ou espiritual, tpico do saber originrio daf, um saber apoftico ou negativo, simptico ou experiencial e extticoou exdico/pascal.

    4. "Teologia" um termo que, em seus primrdios, designava uma"palavra sobre Deus": palavra de nvocacao ou de anncio. A cienciateolgica faz bem em nao esquecer o sentido mstico de sua raiz etimol-gica, para guardar sempre um fundamental perfil contemplativo e querig-rntico.

    5. A tradico teolgica do Oriente conservou sempre urna ligaco vivacom avida espiritual e com a liturgia. L, teologia ou supe conternplacoe "eucarista",

    6. No Ocidente, a vertente mstica da teologia nunca se perdeu de todo,como testemunham as correntes monstica, agostiniana e franciscana.Houve, contudo, na teologia uma deriva grave para o lado de um intelec-tualismo esterilizante.

    7. A primeira posico do telogo de joelhos. S uma "teologagenuflexa" obtm do Esprito o dom de uma mente iluminada: inteligencia,sabedoria, ciencia e conselho, Que iluminaro em seguida todo o seu laborteolgico.

    8. Do ponto de vista de seu contedo, a teologia sempre sabedoria,sto , saber das coisas supremas e divinas, mesmo sob forma de "teologiacientfica" (sabedoria em estado de ciencia). Agora, do ponto de vista desuaforma de expresso, s a "teologia sapiencial" sabedoria, isto , sabersaboroso. Contudo, quer sob uma forma, quer sob outra, a teologia nao formalmente (embora sim radicalmente) sabedoria-dom (espiritual), massabedoria-virtude (intelectual), porque vem pelo trabalho do conceito.

    81. Tal o ttulo do cap. 5 do caminho da perfeic;o, in Obras completas, Ed. carmelo, Aveiro (1978),

    \ 2' ed., p. 416-418.83. Cf. F. LAMBIASI _ R. LATOURELLE- R. FlSICHELLA,Dizionario di Teologia Fondamentale, Cittadella,

    Assis, 1990, p. 1174.

  • 152153

    9. A teologia pode ser sabedoria tambm num segundo sentido. quando a teologia reveste a forma de um discurso saboroso, afetivo,experiencial (Sto. Agostinho, S. Boaventura). a te%gia sapiencia/. Adiferen~a dessa forma de expresso, a teologia pode tambm assumiroutra, a do saber terico. a te%gia cientfica (S.Toms, nuns scotus),

    10. O que d a experiencia da f a razo da f o "fremito da vida".s um telogo que banhe na experiencia do Esprito vivificador e que saiadai gotejando poder produzir urna teologia viva e vivificadora.

    Ora, a diferenca da sabedoria-estudo, que prpria dos telogos, a sabedoria, comosaber intuitivo, prpria dos msticos. Tem um carter pneumtico: um dom do Esprito

    Santo. uma sabedoria-dom e nao uma sabedoria-conquista racional. S o "homemespiritual" a possui (d. 1Cor 2,15). Ela sup6e que a pessoa seja instruda e tocada peloAlto. Aqui nao se "aprende", mas se "apreendido". Sabe-se Deus por paixo, sofrendo

    . ) - f 88(patlens r e nao por es orr;o .

    EXCURSO

    S. TOMS DE AQUINO: TEORIA E PRTICA DA SABEDORIA TEOLGIA

    A dialtica que S. Toms estabelece entre a experiencia espiritual e o conhecimento

    teolgico muito fina e complexa. Diferentemente de Agostinho e de Boaventura, para

    os quais "o amor ve", S. Toms entende segurar clara a diterenca entre a experiencia e

    a inteligencia. Para ele, o amor (vontade) pode ser a fonte (causa) da sabedoria, mas

    nao sua sede (sujeito). Sede do conhecimento sapiencial sempre a inteligencia, nao a

    vontade.

    1. Sabedoria experiencial na teologia de Toms de Aquino

    Apesar de S. Toms definir e praticar a teologia como ciencia, ele nao deixa de

    reconhecer, no interior mesmo de sua teologia e de sua prtica teolgica, o alto papel

    da sabedoria enquanto saber afetivo e experiencial, mstico e pneumtico acerca dos

    mistrios de Deus.

    O que pode fazer o amor mover a inteligencia ao conhecimento: Ubi amor ibi

    aCUIUS89.Pode tambm sintoniz-Ia com seu objeto. Pode enfim mediar o conhecimento,

    enriquecendo subjetivamente o objeto. Em suma, a experiencia amorosa de Deus dispoe

    para a teologia. Tem um papel propriamente ma tiva dar, mas nao constitutivo. A

    experiencia espiritual representa um conhecimento supra-humano e supraconceitual'".O mstico nao "aprende" coisas (mathein), mas "sofre" toreas (pathein). Mais que saber,ele intui, adivinha (mantein)91.

    Assim, ele sabe perfeitamente que "sabedoria", em latim, faz aluso a "cienciasaborosa" (sapida scientia) e que um saber, melhor, um "juzo" "por inclinar;ao"

    Uudicare per madum inc/inationis), distinto do "juzo" "por conhecimento" (per modumcognitionis). Fala tambm no juzo por "cornpaixo". por "conaturalidade"84, ou por"afinidade,,8s

    Para o Doutor Anglico, nao se pode negar a existencia de um "conhecimento

    afetivo ou experimental" de Deus. quando algum "experimenta em si mesmo o gostoda docura divina e a complacencia na vontade divina ... Assim somos adrnoestados paraque provemos a vontade de Deus e degustemos sua suavidade,,86 Reconhecendo que

    existe um "conhecimento da verdade" que nao "meramente especulativo", mas

    "afetivo". afirma que os soberbos s possuem o primeiro, enquanto o segundo

    reservado aos humildes: "Os soberbos se deleita m em sua prpria excelencia, enquantotrn averso (fastidiunt) pela excelencia da verdade". E, citando o livro dos Provrbios,diz: "ande est a humildade a est a sabedoria,,87

    2. S. Toms: exemplo de "teologia genuflexa"

    Vejamos agora como S. Toms d exemplo de "teologia experiencial" em sua prpriaprtica teolgica. Ora, ele, que ti do por um telogo extremamente analtico e frio,

    insistentemente qualificado pelos testemunhos do processo de canonizaco como um"hornern de grande orar;aO,,92 Diariamente lia um captulo de "teologia espiritual", as

    88. Cf. ST 1, a. 1, q, 6, ad 3.

    89.lIl Sent. d. 35, q. 1, a. 2, sol 1, citando RICARDO DE sAo VTOR, Benjamin minor 13: Pl196,10, queassrn prossegue: "libenter aspicimus quem multum diligimus" (olhamos com prazer as pessoasque muito amamos).

    90. Cf. Mons. Antonio PIOlANTI, Conoscenzo sapienzia/e di Dio in S. Tommoso d'Aquino, in AA.VV.,Prospettive Teologiche moderne, Atti dell'VIII Congresso Tomistico Internazionale IV, PontificiaAcademia di S. Tommaso, Librera Editrice vaucana, Cidade do Vaticano, 1981, p. 114-125.

    91. A razo e a ernocao religiosa ntctaco) eram para Aristteles a dupla fonte de certeza a respeitodas coisas divinas. Cf. Werner JAEGER, la naissance de la Thologie, Col. Cogitatio Fidei 19, Cerf,Paris, 1966, p. 96, incluindo a nota 51.

    91. Cf. os testemunhos recolhidos em santiago RAMIREZ, Sntesis biografica de Santo Toms, in SumaTeolgico, Catlica, Madri, 1947, p. 59*-60*.

    84. Cf. ST u-u, q. 55, a. 2, c.: sobre a Sabedoria.

    85. Cf. Sent. III d. 35, q. u, a. 1, q. 1.

    86. ST 1, q. 64, a. 1, ad 3.87. ST u-u, q. 162, a. 3, ad 1.

  • 154

    Co/lationes Patrum (Conferencias dos Padres) de Cassiano. Perguntado por que inter-

    rompia assim a elaboraco terica, responde:

    "Eu tiro dessa leitura a devoco e por esta subo mais facilmente a ospeculaco.o coraco acha a modo de se derramar em devoco e a inteligencia, qracasa devo~ao, se eleva as mais altas regi6es,,93

    Seu colaborador direto, espcie de secretrio, Frei Reginaldo, afirma dele:

    "Nunca cornecou a escrever qualquer obra sem antes ter rezado e derramadolgrimas. E quando duvidava num ponto, recorria a oraco e, banhado emlgrimas, voltava de sua dvida iluminado e instrudo,,94.

    S. Toms entendia seu trabalho teolgico como uma vocaco religiosa pessoal e

    como um verdadeiro ato de obediencia a Deus. Confessa:

    "Para usar as palavras de Sto. Hilrio, vejo claramente como principal tarefa

    de minha vida e meu dever para com Deus isto: falar dele atravs de todas as

    minhas palavras e sentimentos.,,95

    E, todos os dias, ajoelhado aos ps do crucifixo, rezava assim:

    "Concede-me, Deus misericordioso,

    desejar com ardor o que tu aprovas,

    procur-Io com prudencia,reconhec-lo com verdade,realiz-Io com perfeico,para o louvor e glria do teu norne."

    Sabemos que nos ltimos tres meses de sua vida, teve uma violenta crise espiritual

    e intelectual, depois da qual nao pode mais teologizar. Passava o tempo na' oraco e nochoro. Instado por Frei Reginaldo sobre por que nao mais escrevia e referindo-se ao

    arroubo que teve na missa do ltimo 6 de dezembro, confidenciou:

    "Depois do que vi, parece-me palha tudo o que escrevi. Por isso nao possomais escrever,,96.

    93. GUILHERME DETOCCO,Vida, cap. 22.

    94. REGINALDO DEPIPERNO,processo de Npo/es, 1319.

    95. Summa Contra Gentiles, 1,2.

    96. segundo S. RAMIREZ, oc. cit., p. 47'.

    155

    Nao sem relevancia que sua ltima atividade teolgica, j doente (malria?), foiexplicar o Cntico dos Cntkos aos monges de Fossa Nova que o estavam hospedando. assim que ficou representado at hoje num alto-relevo posto na cela em que faleceu.E ao receber o vitico, dois dias antes de morrer, fez um supremo esforco, levantou-se

    do leito, pos-se de joelhos diante do SS. Sacramento e orou com estas palavras:

    "Eu te recebo a ti,preco da redenco da minha alma;eu te recebo a ti,

    vitico de minha pereqrinaco.Foi por amor de ti

    que estudei,

    velei,

    trabalhei,

    preguei. . ,,97

    e enSlnel.

    Deste modo ficou claro que, para ele, a teologia era realmente o que se tinha desde

    sempre proposto: um ato de amor e de servico a Deus.

    LEITURA

    KARLBARTH:

    Teologa Jnvocotvc"

    O objeto do labor teolgico nao vem a ser "Algo" nem "Algo superiorabsoluto" ... antes "Algurn", nao "urna coisa", mas "Ele", o Uno, que existe naoqual "ser-cm-si", passivo e mudo, mas que se revela em sua obra, que, como tal, tambm a sua Palavra. A tarefa do labor teolgico a de ouvir este Uno, que falaem sua obra; de prestar cantas desta Sua Palavra a si mesmo, a Igreja e ao Mundo.

    97. Cf. Antonin D. SERTlLLANGES(ed.), Prires de saint Thomas d'Aquin, Are Catholique, Paris, s.d., p.78-79. Devemos acrescentar que a oraco termina assim, sempre dirigindo-se a Cristo na Eucaristia:"jamais falei algo contra ti. Contudo, se falei algo por ignorancia, nao quero apegar-me minhaopinio. E, se falei algo incorreto, entrego tudo correco da Igreja Romana."

    98. Karl BARTH, Introducdo te%gia evanglica, Sinodal, so leopoldo, 1977, p. 128-129 (orig. alem.EVZ-Verlag, zurique, 1962). Essa obra constitui o ltimo seminrio dado pelo telogo, seu "cantodo cisne". titulo do excerto acima nosso.

  • 156

    Com isso ter de aprender e proclamar, antes de tudo, que a Palavra deste Uno

    nao nenhum anncio neutro, mas que o Fato crtico da Histria, da relaco entre

    Deus e o ser humano. "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te conduziu da casa da

    servidao do Egito. Nao ters outros deuses diante de mim!" S levando a srio ofato de que Deus quem dirige a Palavra ao ser humano, esta poder ser percebida

    e compreendida como sendo Palavra da verdade, referente a obra de Deus, averdade do prprio Deus.

    Assim tambm todo o raciocinar e falar humanos em relaco a Deus s podero

    ter o carter de resposta a ser dada a sua Palavra. Nao se trata de nenhum raciocinarou falar acerca de Deus, mas exclusivamente de um raciocinar ou falar divinos,

    dirigidos ao ser humano, cujo falar segue ao falar de Deus e a ele se relaciona.

    E assim como seria errado se a oraco se relacionasse a um "Algo" divino ... ,

    poderia ser igualmente errado e, com certeza, seria um raciocnio inadequado

    referente a Deus, se se referir a Ele ... na terceira pessoa. S poderemos raciocinare falar em relaco a Deus, de forma autntica e adequada, se a Ele respondermos;

    se, portanto, aberta ou secretamente, de forma implcita ou explcita, com Ele

    tratarmos na segunda pessoa.

    Mas isso quer dizer que o labor teolgico ... dever realizar-se essencialmente

    em forma de um ato litrgico, como invocaco de Deus, como oraco dirigida a

    Ele. Revelando esse estado de coisas, Anselmo de Canturia colocou, acima daprimeira modalidade de sua doutrina sobre Deus, o Monolgion, urna segunda, quechamou de Proslgion, na qual realmente passou a desdobrar tudo o que tinha adizer a respeito da existencia e da "essncia" de Deus, dirigindo a palavra di reta-mente a Ele, do princpio ao fim, em urna nica oraco. ( ... )

    Urna teologia ... que perdesse de vista a relaco eu-tu, na qual Deus o Deusdo ser humano e vice-versa; urna teologia que assim tivesse o nao-essencal pelo

    essencial, s poderia ser urna teologia falsa. Teologia autntica, ao considerar queDeus s poder ser seu objeto se for sujeito que atua e fala, ser necessariamente,

    de forma implcita ou indireta, Proslgion ..., ser oraco.

    Todos os movimentos litrgicos que surgem na Igreja chegam tarde, se suateologia, na prpria base, nao for movimento litrgico, se nao for praticada como

    proskynesis, isto , como adoraco.>

    Captulo 7

    A F-PRTICA: MAIS OUTRA FONTE DA TEOLOGIA

    A terceira fonte do conhecimento teolgico a f-prtica. Melhor queterceira fonte, poderamos dizer terceiro afluente do nico rio - a Frevelada.

    Usamos aqui o termo "prtica" no sentido do compromisso cristo emgeral. A f-prtica a "f que opera pela caridade" (GI 5,6). o momentoativo da f, o qual se particulariza nas prticas: tica, interpessoal, tico-poltica, social, pastoral e assim por diante. Falamos na "prtica" comofonte da teologia, mas poderamos tambm falar em termos de "vida","realidade", a "histria" ou coisa que o valha.

    Mas vejamos antes de tudo as vrias funces da prtica no mtodoteolgico. Assim destacaremos o modo como a prtica possui um potencialgnosiolgico.

    LUGAR DA PRTICA NA TEOLOGIA

    Diversas fun~oes da prticaA prtica entra na teologia a vrios ttulos:

    1. A prtica pode ser a matria-prima da teologia. o theologizandum,o-que-deve-ser-teologizado.

    2. A prtica pode ser o objetivo (tlos) da teologia. rata-se ento de urnateologia a servco da prtica da f, da caridade libertad ora. Disso trataremos maisadiante (Cap. 13).

    3. A prtica pode ser ortus, fons et origo da teologia. afirrnaco daanterioridade absoluta da f concreta sobre toda e qualquer reflexo sobre ela.Tal anterioridade temporal (vem antes) e ao mesmo tempo axiolgica em termosabsolutos ( mais importante). Isso significa que, para um telogo, vem antes,como ato 1, a prtica concreta da f e s depois, como ato II, a teologia. assimque a relaco prtica com a prtica, a saber, o compromisso concreto com urnaComunidade de f constitui urna condico pr-epistemolgica para todo telogo(ct. mais ti frente neste captulo: "Prtica: ponto zero da teologia").

    4. Enfim, a prtica pode ser tarnbrn um princpio cognitivo. E aqu chegamosao tema deste captulo. Queremos mostrar que a f-prtica tambm arche na

  • 158

    constru~ao da teologia. Trata-se na verdade, como veremos melhor, de umprincipio subordinado e dependente do principio principal e determinante: af-palavra, que analisamos atrs (Cap. 5). A f esclarece a prtica, mas tambm a

    prtica esclarece, a seu modo, a f (Cap. 7).Acabamos de falar da prtica como "principio" de conhecimento em teologia.

    Digamos que se trata de principio "cognitivo" como sinnimo de "gnosiolgico"ou "epistemolgico". poderamos falar tambm em principio "terico", "herme-

    nutco" ou ainda por outros nomes.Esclare~amos, contudo, e desde j, que prtica pode ser princpio em outros

    quatro sentidos diferentes:1. Como principio cognitivo. o que acaba de ser enunciado e que ter de ser

    ainda explicado. a tarefa do presente captulo.

    2. Como principio material. no sentido de que a prtica oferece a teologia omaterial sobre o qual a luz da f vai se exercer. concretamente quando a teologiatrata da vida, da histria, dos "sinais dos ternpos", interpretando naturalmente

    tudo isso "a luz da f".3. Como principio temporal. no sentido de origem cronolgica: que a prtica

    da f vem antes da prtica da teologia. O telogo tambm pode dizer com Gthe,no Fausto: "No principio era a aco". E se joo tern razo quando proclama: "Noprincipio era a palavra", porque a palavra de neus potencia ativa e criad ora.

    4. Como principio prtico (pastoral, didtico ou pedaggico). quando, nocurso da construco teolgica, a prtica ocupa o primeiro momento da reflexo:o momento do "ver". Ora, "partir da realidade" um principio que convm demodo todo particular a destinatrios da teologia que so "agentes de pastoral".

    5. Como principio motivaciona!, na medida em que a prtica move areflexc teolgica. Aqui o interesse por mudar a realidade condiciona

    realmente a reflexo 1.

    o valor cognitivo da prtica: tese de fundoMas em que sentido particular a prtica tambm (com a f-palavra

    e a fe-experiencia) principio epistemolgico da teologia no sentido de

    t. Cf.Wolfhart PANNENBERG,Epistemologia e reologia, Queriniana, Brescia, 1975, p. 272 e 304. A elecontrape os "principios" (tericos), que fazem parte do "contexto de justificaco", aos "interesses"(motivacionais), que comp6em o "contexto de descoberta".

    159

    gerador de conhecimento? Digamos logo que no sentido de constituir umprincipio interpelador e verificador da verdade teolgica na histria.

    sem dvida, a prtica fundamentalmente o theologizandum, o-que-se-teologiza. Nao a rigor o theologizans, o principio da teologizaco, que,como vimos, a Palavra da f. Mas a prtica nao deixa de projetar certaluz por sobre a teologia: ela aluda a desvelar o Deus revelado, sua verdadee seu projeto na histria. Iluminada, ilumina, como por efeito de retorno("volta dialtlca"), No sentido que acabamos de referir, poderamos dizer:a f "determina" a prtica e a prtica "sobredetermina" a f.

    Representemos ento numa figura nossa tese de fundo:

    F > ______ determina . PRTICA

    ~ sobredetermina ~

    Retornando os tres nveis da f, entendida esta como principio geralda teologia, podemos mostrar a respectiva diferenca desses nveis assim:

    - A f-palavra o principio formal ou determinante;

    - A fe-experiencia o principio existencial;

    - A f-prtica o principio interpelador e verificador.

    Procuremos representar aqui a trplice influencia da f em relaco aoconhecimento teolgico, isto , como experiencia, palavra e prtica,figurando-a ao modo de um rio, respectivamente com seu curso superior,mdio e inferior:

    - EXPERINCIA ------ --..

    REVELAC;AO-F - PALAVRA --------------.. TEOLOGIA---.- PRTICA ----------Ora, para discutir como pode a prtica ser fonte de conhecimento ou

    principio cognitivo em teologia, devemos primeiro examinar como se da Revelaco divina.