Carlos Alberto Mattos [=] Maurice Capovilla

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  • Maurice Capovilla

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  • Maurice Capovilla

    A imagem crtica

    Carlos Alberto Mattos

    So Paulo, 2006

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  • Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

    Diretor-presidente Hubert Alqures Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira

    Coleo Aplauso Cinema Brasil Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconogrfica Marcelo Pestana Projeto Grfico Carlos Cirne Assistncia Operacional Andressa Veronesi Editorao Aline Navarro Tratamento de Imagens Jos Carlos da Silva Revisores Srvio N. Holanda Dante Pascoal Corradini Amancio do Vale

    Governador Cludio Lembo Secretrio Chefe da Casa Civil Rubens Lara

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  • Apresentao

    O que lembro, tenho.Guimares Rosa

    A Coleo Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memria da cultura nacional, biogra-fando atores, atrizes e diretores que compem a cena brasileira nas reas do cinema, do teatro e da televiso.

    Essa importante historiografia cnica e audio-visual brasileiras vem sendo reconstituda de manei ra singular. O coordenador de nossa cole-o, o crtico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para rea lizar esse trabalho de apro ximao junto a nossos biografados. Em entre vistas e encontros sucessivos foi-se estrei -tan do o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram aber tos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compe seus cotidianos.

    A deciso em trazer o relato de cada um para a pri meira pessoa permitiu manter o aspecto de tradio oral dos fatos, fazendo com que a mem ria e toda a sua conotao idiossincrsica aflorasse de maneira coloquial, como se o biogra-fado estivesse falando diretamente ao leitor.

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  • Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator impor-tan te na Coleo, pois os resultados obti dos ultra-passam simples registros biogr ficos, revelando ao leitor facetas que caracteri zam tambm o artista e seu ofcio. Tantas vezes o bigrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cmplices dessa simbiose, que essas condies dotaram os livros de novos instru mentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexo se estendeu sobre a forma o intelectual e ide-olgica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracte rizava o meio, o ambiente e a histria brasileira naquele contexto e mo-mento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitu ra em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crtico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e conti nuam atrasando o nosso pas, mostraram o que representou a formao de cada biografado e sua atuao em ofcios de lin-guagens diferen ciadas como o teatro, o cinema e a televiso e o que cada um desses veculos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas lingua gens desses ofcios.

    Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biogrficos, explorando o universo ntimo e psicolgico do artista, revelando sua autodeter-minao e quase nunca a casualidade em ter se

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  • tornado artis ta, seus princpios, a formao de sua persona lidade, a persona e a complexidade de seus personagens.

    So livros que iro atrair o grande pblico, mas que certamente interessaro igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleo Aplauso foi discutido o intrincado processo de criao que envol ve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construo dos personagens interpretados, bem como a anlise, a histria, a importncia e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biogra-fados. Foram examinados o relaciona mento dos artistas com seus pares e diretores, os proces-sos e as possibilidades de correo de erros no exerccio do teatro e do cinema, a diferenciao fundamental desses dois veculos e a expresso de suas linguagens.

    A amplitude desses recursos de recuperao da memria por meio dos ttulos da Coleo Aplauso, aliada possibilidade de discusso de instru mentos profissionais, fez com que a Im-prensa Oficial passasse a distribuir em todas as biblio tecas importantes do pas, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de grati-ficante aceitao.

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  • Gostaria de ressaltar seu adequado projeto grfi co, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronolgico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuao.

    A Coleo Aplauso, que tende a ultrapassar os cem ttulos, se afirma progressivamente, e espe ra contem plar o pblico de lngua portu guesa com o espectro mais completo possvel dos artistas, atores e direto res, que escreveram a rica e diver-sificada histria do cinema, do teatro e da tele-viso em nosso pas, mesmo sujeitos a percalos de naturezas vrias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criati vidade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos.

    Alm dos perfis biogrficos, que so a marca da Cole o Aplauso, ela inclui ainda outras sries: Projetos Especiais, com formatos e carac-tersticas distintos, em que j foram publicadas excep cionais pesquisas iconogrficas, que se ori-gi naram de teses universitrias ou de arquivos documentais pr-existentes que sugeriram sua edio em outro formato.

    Temos a srie constituda de roteiros cinemato-grficos, denominada Cinema Brasil, que publi cou o roteiro histrico de O Caador de Dia mantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o

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  • primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a inteno de ser efetivamente filmado. Parale-lamente, roteiros mais recentes, como o clssico O caso dos irmos Naves, de Luis Srgio Person, Dois Crregos, de Carlos Reichenbach, Narrado-res de Jav, de Eliane Caff, e Como Fazer um Filme de Amor, de Jos Roberto Torero, que devero se tornar bibliografia bsica obrigatria para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produo da cinematografia nacional.

    Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da srie TV Brasil, sobre a ascenso, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os proce-dimentos e formas de se fazer televiso no Brasil. Muitos leito res se surpreendero ao descobrirem que vrios diretores, autores e atores, que na dcada de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estdios da TV Ex-celsior, que sucumbiu juntamente com o Gru po Simonsen, perseguido pelo regime militar.

    Se algum fator de sucesso da Coleo Aplauso merece ser mais destacado do que outros, o inte-resse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu pas.

    De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficcia a pesquisa

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  • docu mental e iconogrfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nos-sos artistas, diretores e roteiristas. Depois, ape-nas, com igual entu siasmo, colocar dispo sio todas essas informaes, atraentes e aces sveis, em um projeto bem cuidado. Tambm a ns sensibilizaram as questes sobre nossa cultura que a Coleo Aplauso suscita e apresenta os sortilgios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenrios, cme ras e, com refe-rncia a esses seres especiais que ali transi tam e se transmutam, deles que todo esse material de vida e reflexo poder ser extrado e disse minado como interesse que magnetizar o leitor.

    A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleo Aplauso, pois tem conscin-cia de que nossa histria cultural no pode ser negli genciada, e a partir dela que se forja e se constri a identidade brasileira.

    Hubert AlquresDiretor-presidente da

    Imprensa Oficial do Estado de So Paulo

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  • Meus agradecimentos a Maurice Capovilla, Marlia Alvim, Rosane Nicolau, Susana Schild,

    Carlos Augusto Calil, Marlia Franco, Julio Miranda / Polytheama Vdeo,

    Danielle Almeida Prado e Reynaldo Pires Picozzi.

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    Introduo

    Histrias de sobrevivncia

    No tempo em que suava a camiseta do infanto-juve nil do Valinhense ou do Guarani de Campi-nas, o lpido e franzino Cap jogava no meio-de-campo, na clssica posio de center half. Mais tarde, ao trocar a bola pela mquina de escrever e a cmera de filmar, descobriu que era preciso bater nas onze. Para sobreviver com arte (nos dois sentidos), era necessrio ocupar o campo inteiro, desdobrar-se em vrias funes, cobrar o escanteio e correr para cabecear.

    Nascia, assim, uma carreira das mais peculiares den tro do audiovisual brasileiro. Neste livro, Mau rice Capovilla a rememora, passo a passo, da infncia que em nada anunciava o seu destino profissional at a plena maturidade, que con-tinua a exercer nos vrios ramos da sua rvore de criao: o cinema, a televiso e as escolas direcionadas para essas atividades. Num trajeto de mais de 40 anos, realizou documentrios, fil-mes de fico, programas musicais, telenovelas, telefilmes (rea em que foi pioneiro no Brasil), minissries, institu cionais, etc. Colaborou em fil-mes de amigos , ajudou a criar TVs comunitrias e orientou uma infinidade de jovens nos misteres

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    de uma arte sempre crtica, reflexiva, e focada no povo brasileiro.

    Como tantos cineastas de sua gerao, Capovilla entrou no cinema pela porta do jornalismo e da crtica de cinema. Foi, at certo ponto, uma voz dissonante no coro de elogios da esquerda ao Cinema Novo. Seus clebres artigos dos anos 1960 na revista Brasiliense, embora afinados com as bases ideolgicas do movimento, apontavam contradies e faziam um exigente cotejo entre intenes e resultados.

    Cedo, porm, o ensasta deslocou suas baterias crticas para o terreno da realizao cinematogr-fica. No foi uma vocao descoberta na pureza dos cineclubes e cinematecas, mas engendrada no frtil cruzamento de caminhos com cineastas, escritores, msicos, gente de teatro, bomios, sindicalistas, ativistas polticos, etc. Dos teatros de Arena e Oficina ao Partido Comunista, da Cine-mateca Brasileira s boates da Rua da Consola-o, das redaes de jornal aos piquetes grevistas e aos estdios de futebol, os vrios ingredientes da efervescncia paulistana da dcada de 1960 tiveram encontro marcado na primeira fase da obra de Capovilla.

    So Paulo foi cenrio e inspirao dos trs lon-gas-metragens autorais que ele dirigiu entre

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    1967 e 1976. A modelo Bebel (Bebel, garota pro-paganda), o faquir Ali Khan (O profeta da fome) e os malandros Malagueta, perus e bacanao (O jogo da vida), em que pese virem alguns de obras literrias de amigos, personificam o anti-heri carac terstico da obra de Capovilla. So todos de origem humilde, iludidos por alguma soluo mgica de sobrevivncia material ou de escalada social o show business, o ilusionismo, a vigarice. Vivem processos de ascenso (ou ten-tativa de) e queda, enquanto descortinam um quadro de explorao, ignorncia e ambies toscas, fadadas ao insucesso.

    Se h um tema que unifica boa parte da obra de Maurice Capovilla, assim como a de John Huston, este o do fracasso: aventuras que no se concreti zam, talentos frustrados, golpes mal-sucedidos. O assunto foi estudado no apenas nesses trs filmes. Quando abordou a figura m-tica de Lampio, numa experincia inovadora de contgio entre documentrio e fico no mbito do Globo Repr ter dos anos 1970, no foi s faanhas do canga ceiro que ele se dedicou , mas aos derradeiros ins tantes de sua saga, irremedia-velmente cercado pelas volantes. J no clssico documentrio Subterrneos do futebol, rebento brasileiro na linha do cinema-verdade, examinou, entre outras coisas, a runa do jogador Zzimo

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    Calazans. No por acaso, quando foi Argenti-na filmar a Copa do Mundo de 1978, com Paulo Csar Saraceni, a dupla dividiu os traba lhos entre vitoriosos e derro tados. Capovilla, claro, ficou com os segundos. A dramaturgia do malogro parece-lhe mais rica que a do xito. Favorece uma tomada de posio crtica diante da realidade e uma abordagem do lado mais profundamente humano de suas personagens.

    A busca pela sobrevivncia tem norteado o trabalho do realizador, seja nos filmes ou fora deles. Nessa lida, tem sido um homem procu ra de histrias. Vai busc-las, preferencialmente, na vida das camadas populares. Foi assim que, em 1963, deu com os costados na escola de documen-trios de Fernando Birri, no interior da Argen-tina, em companhia do amigo Vladimir Herzog. Aquele rpido estgio deixou razes profundas na conscincia do diretor principiante. Ligou sua sensibilidade para sempre ao filme documental e a um modelo de ensino de cinema onde a prtica prevalecesse sobre a teoria.

    O seu credo antiintelectualista no mero biom-bo para a vulgaridade ou a estagnao esttica. O fato de preferir temas populares nunca o dis-pen sou da pesquisa formal, nem de uma encena-o que ultrapassasse o mero naturalismo. Se os seus documentrios recusam a mera observao

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    e assumem a interveno autoral no uso da lin-guagem, a fico de Capovilla tambm segue no rumo de uma representao mais elaborada, seja ela brechtiana, surrealista ou tributria das artes sertanejas. Na maioria de seus filmes, vemo-lo praticar uma narratividade mltipla, fabu lar, incorporando conta dores de histrias, jornalistas, narradores, cantadores, performers, etc. Ser popular, para Cap, no equivale a ser simplrio, nem comodamente recostar-se nos lugares-comuns.

    Da mesma forma, o pouco caso que nutre pelo psicologismo, longe de ser um elogio do determi-nismo social, uma maneira de situar o homem sempre no fluxo de relaes com o outro. A angstia individual s lhe interessa a partir do ponto em que reverbera na vida em comum e diz algo sobre o plano mais amplo da condio humana.

    Nesse sentido, foi curioso que, aps um jejum de mais de vinte anos em trabalhos para cinema, Capovilla retornasse com Harmada, talvez o seu filme mais prximo de uma pauta existencialista. Pela primeira vez, no se falava em dinheiro, pri-vaes fsicas e necessidades materiais. A reentr do Ator vivido por Paulo Csar Perio, de certa forma similar ao ressurgimento do ator e do di-retor, ocorria basicamente no campo espiritual.

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    Era um reencontro com o teatro, a filha, o corpo em uma palavra, a identidade.

    Para Capovilla, na proximidade dos seus 70 anos, dobrar-se sobre a prpria histria para gerar esse livro foi um momento de visvel satisfao. A mim, o seu relato agradou no somente por deixar patente um certo modus operandis do cinema e da TV brasileiros. Gostei da maneira franca, realista e, at diria, modesta com que ele apresentou sua trajetria. Modstia que, muitas vezes, no condiz com a importncia do seu tra-balho para uma definio dos temas e preocu-paes do cinema brasileiro moderno. Exemplo disso O profeta da fome, que ele considera defasado j sua poca, mas que serve hoje como prova de que, entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal, existem tantas pontes quanto ruptu-ras. Da mesma forma, sua passagem pelo Globo Reprter e pela nascente TV Manchete merece crdito na formao de padres de criatividade e excelncia que hoje fazem falta na televiso brasileira.

    Gravamos 25 horas de conversas para este livro. A partir de certo momento, descobri que suas recordaes fluam melhor com lpis e papel frente. Desde ento, no faltaram blocos de folhas brancas, avidamente preenchidas com nomes , rabiscos, setas, arremedos de geometria ,

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    esboos de storyboards. Ao final de cada encon-tro, eu arquivava aqueles garafunhos de mem-ria, guisa de backup hieroglfico.

    Na hora de redigir, achei por bem converter sua prosdia entrecortada em texto mais escorreito. Com relao estrutura, optei por criar alguns captulos temticos, que dessem conta de sua insero em atividades diversas. Assim, os ca-ptulos Futebol, Televiso e Ensinando a jogar traam percursos completos, do incio da carreira atualidade.

    Cabe agora entregar ao leitor esse retrato ainda incompleto de Maurice Capovilla, limitado ao que minhas perguntas foram capazes de retirar dele e ao que ele prprio escolheu para contar. A histria de si mesmo, que de certa forma j constava de seus filmes, mais uma histria de sobrevivncia desse admirvel companheiro.

    Carlos Alberto MattosFevereiro de 2006

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    Captulo I

    Antes do cinema

    Eu tinha 14 anos quando o cinema caiu na minha cabea. No, isso no uma figura de lingua-gem. Eu assistia matin dominical do Rink, em Campinas, quando um estalo ensurdecedor se sobreps ao som do filme. O teto do cinema desabou sobre a platia. Quando recobrei os sentidos, minutos depois, havia escombros de gesso por toda parte. Minha mo ainda segurava a mo de minha namorada. Mas a dela estava estranhamente fria.

    Sa do cinema atnito e traumatizado. Caminhei sozinho at o pronto-socorro, onde enfaixaram minha cabea. Ao todo, 13 jovens perderam a vida naquele desastre horrvel. Seus corpos foram estendidos na calada do Rink.

    Experincia to trgica no me afastaria, porm, de um destino ligado ao cinema. Destino que, alis, no se anunciava durante minha infncia e adolescncia no interior de So Paulo, entre Valinhos, onde nasci, e Campinas. Aquelas ma-tins de filmes e seriados norte-americanos nada pareciam anunciar a respeito do meu futuro.

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    Os fundos da minha casa davam para os fundos de outro cinema, onde havia um campo de bocha. A italianada jogava at tarde da noite, infernizando os ouvidos de minha me. A certa altura, aprendi a saltar o muro alto e penetrar no cinema atravs dos mictrios, colocando-me no cho, quase em-baixo da tela. Ainda assim, os filmes no passavam de uma diverso como outra qualquer.

    Preferia as peladas. Ou as tardes passadas ao lado do meu pai no seu armazm, ajudando-o em alguma coisa, mas principalmente saboreando o movimento de compra e venda. Alm de admi-nistrar o vulgo Armazm do Pedrinho, meu pai, Pedro Lus Capovilla, cuidava de um stio, ambos deixados pelo meu av. Quando criana, plantei dois pinheiros no local. Ali, no bairro de Santa Escolstica, havia uma parte de mata fechada e um pomar carregado de mas, pras, jabuti-cabas, abacaxis e os astros principais, os figos. A cultura do figo, tal como hoje a conhecemos no Brasil, foi trazida pelos imigrantes italianos na ltima dcada do sculo 19. Meu av paterno, Giuseppe Capovilla, tinha sido um deles.

    Giuseppe nasceu em Roncai, na regio de Trento. Queria fare lAmerica e chegou a Valinhos, distrito de Campinas, atrado pela propaganda do governo brasileiro, juntando-se grande colonizao vneta daquela regio. Os italianos

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    Aos 21 meses, amparado pela me

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    traziam na bagagem mudas clandestinas de figuei ra, rvore simblica para eles. Plantaram-nas atrs das antigas casas de escravos onde lhes coube morar. Para dissimular o plantio no auto rizado, podavam regularmente as rvores, ao contrrio do que acontecia na Itlia. Com isso, a frutificao multiplicou-se, da nascendo o figo comercial brasileiro, que conhecido como figo-roxo de Valinhos.

    As famlias de imigrantes da regio se capitali-zaram por meio de suas figueiras. Meu av ca-sou-se com minha av, Ernesta Angeli, tambm de famlia italiana. Na poca da minha infncia, oito em cada dez habitantes de Valinhos eram de origem italiana. claro que havia muitas festas e jogos, muita pasta, e a lembrana do cheiro dos molhos ainda me d gua na boca. Meu pai criava porcos no stio. O dia da matana era uma jornada inteira de regozijo familiar: abrir todas aquelas carnes, separ-las.

    Pequeno, minha predileo era girar a manivela da mquina de ensacar lingia.

    Com o av materno, Pompeu Napoleone, eu gos-tava de sair para caar codornas na savana em tor no de Campinas, seguindo o rastro dos ces perdigueiros. Aquilo me parecia um morti cnio desleal. Os chumbinhos se espalhavam no espao

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    Pinheiro que plantou na infncia, em Valinhos

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    Com a me e um p de figo da ndia no stio em Valinhos

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    aberto, sem qualquer chance para as pobres aves. Na volta, o av trazia as codornas penduradas em torno da cintura, como um guerreiro triunfal. No fim da vida, treinava os ces de outros caadores e ensinava o esporte a gentes de mais posses.

    Na juventude, meu av Pompeu havia sido um ferrovirio anarquista na Itlia. No Brasil, ele e os filhos foram funcionrios da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Esses meus tios eram politi-zados. Um deles coordenava, em fins da dcada de 1930, uma sociedade de socorros mtuos, que recolhia fundos para auxiliar nas questes de sade e nos funerais dos funcionrios. Mas isso era somente a fachada de um ncleo de proteo trabalhista com tinturas anarquistas. Eles produziam textos com anlises crticas da sociedade em relao ao trabalho.

    Funcionavam em regime duplo, como as futuras clulas do Partido Comunista.

    Garoto de provncia

    Nasci a 16 de janeiro de 1936. O nome Maurice Carlos Capovilla sempre me intrigou pelo pre-nome francs. A admirao pelo ator Maurice Chevalier talvez explique essa escolha da minha me, Elvira, mas nunca cheguei a esclarecer com-pletamente o mistrio.

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    Valinhos, nos anos 1930, era uma modesta estn-cia de veraneio, com uma tima gua mineral. Alm da cultura do figo, a cidade tinha uma fbrica da Gessy Lever fundada por italianos e, mais tarde, ganhou a indstria de papis Rigesa. Para mim, no entanto, o maior orgulho era che-gar do stio montado em plo na Suzana, gua de corrida que ganhei do meu pai aos seis anos. Adentrava o calamento urbano a galope, os cascos do animal produzindo fascas e um rudo

    A me, D. Elvira

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    delicioso no atrito com as pedras. Dava uma volta completa pela cidade, cheio de garbo. Os mora dores se assustavam, ameaavam-me com alertas terrveis. Mas as sensaes de confiana e liberdade eram mais fortes que tudo.

    Algo semelhante, mas com motor, ocorreu mais tarde, por volta dos meus 13 anos. Meus pais rumavam para Campinas nos finais de semana e deixavam comigo o Ford 38 de capota conver-svel. Eu reinava ao volante, conduzindo meus amigos pelas estradas de terra rumo aos bailes e namoros de Louveira e Vinhedo, duas cidades prximas. Os carros conversveis viriam a ser uma das minhas paixes.

    Outro motivo de orgulho foi ver a chegada de um tio da Segunda Guerra. Como nico pracinha de Campinas, e ainda por cima ferido no front, ele foi recepcionado por uma multido na estao de trens. Eu estava l, e ganhei dele algumas barras de chocolate americanas. preciso ressaltar que barras de chocolate eram uma novidade espeta-cular na regio.

    Em casa, desde muito pequeno, presenciava as inter minveis reunies de minha me com suas muitas amigas e parentas, um verdadeiro clube feminino. Ficava rondando as pernas das mulhe-res, sem compreender o que tanto falavam sobre

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    Durante a infncia

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    O estudante Capovilla

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    a vida e os afazeres. Um dia, decidido a me pro-porcionar uma formao musical, meu pai levou para casa um piano, ao qual associo os momentos de maior tdio da minha infncia. Sem qualquer talento ou vocao musical, eu tinha que ficar ali durante horas preciosas da tarde, embatu-cado diante do mtodo de P. Bona, arranhando as Sonatas de Chopin, enquanto os amigos me esperavam no campinho de futebol.

    Muito tempo depois, quando meu filho Matias decidiu-se pela carreira de msico, aos 13 anos de idade, meu pai deu-lhe um presente muito especial. Abriu um cofre da Casa de Campinas e retirou um violino j bem arruinado, que eu mesmo nunca tinha visto. Sabia apenas que meu pai, antes de se casar, havia sido violinista na banda de msica de Valinhos.

    Minhas melhores lembranas dele esto ligadas ao armazm e ao stio. O velho tinha um caso de amor com as frutas. Era um exmio praticante de enxertos agrcolas, especialmente da uva ros, obtida da mistura da uva branca com a preta. J na dcada de 1950, quando nos mudamos para Campinas, ele criou uma empresa de transportes e foi o primeiro a levar o figo de Valinhos para o Rio de Janeiro. As primeiras imagens que guardo do Rio so as viagens com meu pai e as caixas de figos, no rumo das bancas de frutas do antigo mercado da Praa XV.

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    Na foto de concluso do curso primrio

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    Meus pais eram catlicos de missa aos domingos e pouco mais. Eu cheguei a ser coroinha, mais pelo prestgio que isso trazia do que por alguma vocao religiosa. Ter o privilgio de empunhar a matraca, abrindo as procisses da Semana Santa, era como fazer um gol de placa. No que eu fosse um exibicionista. Mas aquele destaque no mundo adulto era algo que toda criana interiorana da poca ambicionava. Mais tarde, quando vieram as leituras de Filosofia, eu me converteria num agnstico de verdade.

    No fui um adolescente dado a leituras. S bem mais tarde fui perceber que um dos meus tios ferrovirios possua uma biblioteca bastante curiosa: metade autores polticos, muitos russos, metade literatura rosa-cruz. Ou seja, ele tinha dupla personalidade ideolgica.

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    Cursei o ginsio no Colgio Cesrio Mota, em Campinas. Como todos os estudantes, tinha um passe de trem para as viagens dirias.

    Tambm em Campinas, no Colgio Atheneu Pau-lista, iniciei o curso clssico, j decidido a seguir carreira ligada s Cincias Humanas. Foi nessa poca que vivi alguns ritos de passagem funda-mentais. Com os amigos Manuel Joffily e Charles Hoghenbaun, formei uma trinca inseparvel.

    Com os pais, aos 10 anos, em Santos

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    Estud vamos, lamos e passevamos juntos. Um dia resolvemos pegar a estrada at Santos no Dodge azul que o Manuel havia herdado do pai. Todos menores, sem documentos nem habili tao de motorista, fizemos nossa grande aventura, que terminou nos shows de putas do porto de Santos. Ainda mais decisiva foi a influncia de um professor de Filosofia do clssico, Stenio Puppo Nogueira, que nos abriu a perspectiva de um admirvel mundo novo, o das idias. Eu o via como um sbio, algum que estava alterando minha forma de apreender o mundo. Para ele, nada estava pronto e acabado. Vocs tm que buscar, investigar por sua conta, insistia. Parece simples, mas, para minha realidade de menino provinciano, era uma imensa descoberta. Meus primeiros contatos reais com a Literatura vieram atravs desse estmulo. O professor Stenio no se fechava nos filsofos, mas nos mandava ler Proust e os franceses, Mrio de Andrade e os modernistas. De um ano para outro, tornei-me um leitor compulsivo. Devorava livros para tirar o atraso. Aos poucos, larguei a bola em troca de jogar com a cabea. Em pouco tempo, direcionava meu interesse para a Filosofia. Aos 21 anos, em busca de vida prpria e independente, migrei para So Paulo.

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    Captulo II

    Aprendendo a jogar

    Controle de medicamentos no hospital da Santa Casa de Misericrdia essa foi a minha primeira ocupao na capital paulista. Fatiava o dia entre a farmcia do hospital, o terceiro ano Clssico no Colgio Paes Leme e um cursinho pr-vestibular inacabado. Em 1958, entrava para a Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo.

    Fora do currculo do curso, era um privilgio poder estudar Teoria Geral da Literatura com Antnio Candido e Esttica com a mulher dele, Gilda de Mello e Souza. Com Gilda, durante um semestre inteiro, estudamos a obra de Mrio de Andrade, seu tio. Como trabalho prtico, coube a mim e a outro colega fazer um inventrio das cartas de Mrio que ainda se encontravam na casa da Rua Lopes Chaves. Eu respirava com so-freguido o ar do templo do Mrio.

    Os ares, alis, comearam a mudar sensivelmente quando, no primeiro ano da faculdade, venci a dura concorrncia por uma vaga na famosa penso do Paulo Cotrim.

    Nos quartos da grande casa da Rua Sabar, 400, acomodavam-se estudantes de Filosofia e Arqui-

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    tetura, jovens ligados msica e ao teatro. Pouco depois de mim, chegou Jos Celso Martinez Cor-ra, vindo de Araraquara. Os ensaios do Grupo Oficina ocuparam o poro da casa. A algumas quadras dali ficava o Teatro de Arena, com o Bar Redondo em frente.

    A penso do Cotrim, o Arena e o Redondo for-mavam uma espcie de tringulo dos desgarra-dos em So Paulo, pontos de referncia cultural incontornveis para quem vinha de fora. Ali fui conhecendo Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Juca de Oliveira e os baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso. A Bossa Nova chegou em So Paulo atravs das primeiras visitas de Vincius de Moraes, grande amigo do Cotrim, e instalou sua batida no Joo Sebastio Bar, que ajudei a montar ali perto.

    Aos poucos, fui formando minha turma com Vic tor Knoll e Vladimir Herzog, colegas da Filo-sofia, Guarnieri, Gustavo Dahl. A amizade com o Gustavo vinha, alis, do terceiro ano clssico, onde ramos colegas de classe. Ele era habitu do Cineclube Dom Vital, cujas sesses, no auditrio de uma associao catlica, passei tambm a freqentar. Por ali passava boa parte da intelec-tualidade paulista, inclusive Rud de Andrade e Jean-Claude Bernardet. Na mesma Rua Sete de Abril, na sede dos Dirios Associados, funcionava

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    a Cinemateca Brasileira. Nesses dois locais, fiz minha iniciao cinematogrfica para valer. O Festival de Cinema Italiano realizado pela Cine-mateca, em 1959, foi o marco inicial desse proces-so. At ento, as exibies eram esparsas, falta de um grande acervo de cpias que no fossem de preservao. Depois vieram os festivais de cinema francs e russo/sovitico, e as mostras do cinema polons, do expressionismo alemo, da comdia americana. E ainda Fritz Lang, Griffith, Murnau, Visconti, Rossellini, Wajda, Eisenstein, Pudovkin, Vertov. Tudo aquilo que formou a gerao do Cinema Novo. A partir da, o vrus estava definitivamente inoculado.

    Eisenstein para operrios

    Uma firme conexo entre jornalismo, cinema e poltica se esboou na minha vida entre os anos de 1960 e 1961. Nesse perodo, iniciei-me como reprter no jornal O Estado de S. Paulo, fui tra-balhar na Cinemateca Brasileira e entrei para o Partido Comunista Brasileiro. Um batismo triplo e de peso. Em 1960, Vladimir Herzog, Luiz Weis e eu fomos admitidos no primeiro concurso para reprter do Estado. O jornalismo exercia uma forte atrao sobre mim. Expressar-me por escri-to j no era novidade. Vinha-me exercitando em contos e textos esparsos, nunca publicados. Minha monografia de concluso do curso do

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    Antnio Cndido, publicada como separata da Revista do livro em 1964, foi uma anlise do ldi-co como princpio estrutural da novela O recado do morro, de Guimares Rosa.

    Aparentemente, minha carreira tomaria algum rumo entre a literatura e o jornalismo. No entan-to, o caminho da erudio ou da especializao terica nunca me atraiu. Com um casamento vista, o jornal tambm se afigurava como um em-prego adequadamente seguro. Casei-me nessa poca com Anna Maria Pareschi, uma legtima italiana que havia conhecido em Campinas e que cursava Letras em So Paulo. Com ela teria meus trs primeiros filhos, Lia (1962), Matias (1964) e Adriana (1969).

    Ao secretrio de redao do Estado, Cludio Abramo, solicitei um posto na editoria cultu-ral. Mas logo vi que as coisas no eram fceis assim.

    No primeiro dia de trabalho, fui mandado para a delegacia de polcia da Praa da S. Passei uma semana aquartelado na delegacia, sem que apa-recesse nenhuma pauta importante. At que um dia vi uma movimentao excitada dos reprteres especialistas de jornais mais populares. Uma tal quadrilha, apelidada de bandidos da Winches-ter, estava encurralada por policiais em algum

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    Formatura na universidade

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    ponto da periferia. Segui-os at o local, onde dois bandidos j estavam mortos e um terceiro se refugiara num matagal. O tiroteio ainda comia solto. Quando cessou, j noite fechada, entrevis-tei o delegado, levantei toda a histria e voltei para o jornal. Redigi umas cinco laudas. Esperava uma estria retumbante. Mas na manh seguin-te, qual no foi minha surpresa ao ver o assunto estampado na capa do ltima hora, mas resumi-do a meras cinco linhas num canto de pgina do Estado. Natal, o chefe de redao, consolou o foca com uma lio inesquecvel: Rapaz, voc no l o seu jornal? Acha que o Estado daria destaque a uma matria policial?

    Passei a ler melhor o jornal. Duas semanas depois, fui transferido para a reportagem geral, onde cobri, entre outros assuntos bem mais interessan-tes, a campanha em So Paulo do Jnio Quadros presidncia da Repblica. Aprendia o ofcio, como todos, na base da intuio, da conversa com os mais experientes e da prtica diria. At essa poca no havia nada como uma escola de jornalismo. Posso dizer que Cludio Abramo foi o meu primeiro mestre informal nessa rea.

    Trabalhei um ano e meio no Estado, at ser con-vidado por Rud de Andrade para desenvolver o departamento de difuso cultural da Cinemateca Brasileira. Fui ocupar a vaga de Gustavo Dahl,

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    que partia com uma bolsa de estudos para o Centro Sperimentale della Cinematografia, em Roma. Cheguei em casa e dei Anna, grvida, a boa notcia: Olha, vou trabalhar na Cinemateca ganhando metade do salrio do jornal.

    Meu destino, alis, seria esse: sempre que tinha um emprego seguro e relativamente bem remu-nerado, resolvia trocar por algo mais incerto. As-sim seria, mais tarde, com a prpria Cinemateca, depois com a ECA-USP. O trabalho, para mim, haveria de ser sempre espordico, irregular e financeiramente pouco compensador.

    O prazer da atividade no raro falaria mais alto. Na Cinemateca, por exemplo, eu j integrava uma espcie de tropa de choque nos debates sobre cinema e realidade. Circulava em torno dos centros aglutinadores que eram a pessoa do Francisco Luiz de Almeida Salles e o barzinho do museu. Admirava as anlises de Paulo Emlio Salles Gomes, mesmo que ele no freqentasse o bar. Via o cinema com olhos de pesquisador. Em outras palavras, sentia-me em casa.

    Minha funo era estimular a formao de cine-clubes pelo Brasil afora. Em Braslia, por exemplo, acompanhei algumas vezes Paulo Emlio em suas primeiras conferncias na UnB (Universidade de Braslia). Eu praticamente carregava as latas para

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    ele e supervisionava a projeo. O acervo volante da Cinemateca no passava de 30 ou 40 filmes, includos dois curtas de Joaquim Pedro de Andra-de, um Joris Ivens, um Eisenstein, alguns Chaplin. Envivamos esse material para universidades e grupos diversos, orientvamos a anlise dos fil-mes e, atravs deles, formvamos uma rede de discusso da realidade brasileira. Onde houvesse uma faculdade, incentivvamos a criao de um cineclube como ponto de agregao e mobiliza-o relativas poltica estudantil.

    Essa rede depois seria utilizada pelo pessoal de msica, assim como pelas clulas do PCB.

    Entrei para o partido em 1961, por causa da mi-nha atuao na USP e junto ao Arena. Participei da criao do ncleo paulista do Centro Popular de Cultura, o CPC, ligado Unio Estadual dos Estudantes. A sede de fato, porm, ficava no ltimo andar do prdio da Editora Brasiliense, di-rigida pelo Caio Graco, filho do Caio Prado Jr. Ali se reunia gente de teatro, msica, cinema, artes plsticas e da universidade. O foco do trabalho era fazer a ligao da arte com a populao atra-vs dos sindicatos. No buscvamos o campons, mas o operrio, que seria um revolucionrio pos-svel, uma sntese do povo brasileiro. Estvamos blindados num conjunto de idias prontas, que na poca nos pareciam muito naturais.

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    Enquanto a turma do Arena se ocupava do sindi-cato dos metalrgicos, eu e Rud nos envolvemos com o sindicato da construo civil, que ficava no bairro da Liberdade. Queramos chegar quela camada ainda mais popular e menos qualificada que os metalrgicos, formada em grande parte de imigrantes nordestinos. Encontramos um an-fiteatro amplo o suficiente para fazer exibies, mas no o hbito de ver filmes. Muito menos as obras politizadas de que dispnhamos. Mesmo assim, levamos um projetor, armamos uma tela e comeamos a anunciar as sesses do cineclube. O Encouraado Potemkin, ttulo de estria, no despertou o interesse de mais do que 10 gatos pingados. Fomos seguindo de fracasso em fracas-so, solenemente desprezados pela nossa platia de revolucionrios entorpecidos.

    As coisas s melhoraram depois de exibirmos o documentrio Zuiderzee, de Joris Ivens, sobre a construo de uma barragem na Holanda. Pela primeira vez no houve debandada no meio da sesso. Os operrios se reconheciam nos colegas holandeses. Aquilo falava diretamente realida-de deles. Rapidamente programamos uma repri-se, conclamando a massa a ver os trabalhadores da construo civil ajudando a combater o nazis-mo. Forvamos um pouco a leitura histrica, mas no era mentira que o dique do Zuiderzee

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    contribuiria, mais tarde, para barrar a invaso da Holanda pelas tropas de Hitler. O boca-a-boca funcionou e a sesso seguinte foi um sucesso. Fizemos um debate fantstico e aumentamos nosso pblico a partir dali.

    Nossa participao nem sempre se limitava ao cinema e aos debates. Na greve geral de mea-dos de 1963, Rud, eu e dois operrios subimos, uma noite, a Av. Brigadeiro Lus Antnio, con-clamando os trabalhadores a deixar os prdios em construo. Chegamos sede do sindicato no dia seguinte pela manh, felizes por havermos arrebanhado cerca de 40 novos grevistas. Parecia a confirmao de uma teoria ideolgica: os in-telectuais driblavam a polcia e conscientizavam os operrios.

    Unio e desunio

    Dessa proximidade com o sindicato da constru-o civil nasceu a oportunidade de realizar meu primeiro filme. No mesmo ano em que o CPC do Rio produzia Cinco vezes favela, ns paulistas idealizvamos uma srie de pequenos filmes polticos. Unio, contudo, seria o nico a entrar em produo.

    Partiu do presidente do sindicato a proposta de fazer um filme didtico para mostrar a impo-

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    tncia dos sindicatos na defesa do emprego, na segu rana no trabalho e nos servios que pres-tava aos afiliados.

    Com alguns operrios mais prximos do cine-clube, criamos um roteiro em que um peo de obra era demitido aps sofrer um acidente. Cole-gas seus dirigiam-se ao patro e advinham outras demisses. Entrava em cena, ento, o represen-tante do sindicato para apoiar o acidentado. Era um argumento bem primitivo, baseado em fatos que ocorriam com freqncia.

    Na filmagem, os operrios indicavam as aes, nos moldes de um documentrio encenado, e in-terpretavam os papis. Para viver o patro impie-doso, chamei Joo Marchner, um crtico de teatro que tinha porte eisensteineano. Rodamos du-rante quatro domingos no canteiro de obras do Edifcio Quinta Avenida, o primeiro arranha-cu da Avenida Paulista. A locao foi obtida graas intervenincia de um dos arquitetos, Pedro Paulo de Mello Saraiva, ligado ao PCB.

    Na minha cabea, o filme se chamava A Luta, em referncia luta operria. Acabou sendo conhecido como Unio. Mas na verdade nunca teve um ttulo formal. Foi montado, mas nunca sonorizado. Que eu saiba, houve apenas uma exibio para a equipe num laboratrio, sendo o

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    filme ento depositado no sindicato. Um rompi-mento poltico determinou que ele jamais fosse concludo. No creio que tenha sobrevivido s atribulaes ps-1964.

    Unio e desunio eis as duas faces de uma mes-ma moeda. O CPC, que j era um saco de gatos, entrou em choque com o Partido em meados de 1963. De um lado, a militncia burocrtica, margem de qualquer ao; de outro, os artistas enfiados at os ombros na ao cultural, tentan-do mudar a cabea das pessoas com o seu ofcio, mas sem se curvar a ordens unidas. A militncia criticava nosso trabalho nos sindicatos, acusan-do-o de no ser poltico conforme os parmetros do Partido. Na minha casa, Guarnieri, Juca de Oliveira e eu escrevemos uma defesa de nossas posies. Mas foi impossvel evitar o racha duran-te uma assemblia, encerrada com o afastamento do pessoal de teatro, cinema e artes plsticas. Assim acabava o CPC paulista, junto com a minha filiao ao Partido.

    Bem-vindos ao Cinema Novo

    Eu j trabalhava na Cinemateca Brasileira quando se realizou, em novembro de 1960, a I Conveno Nacional da Crtica Cinematogrfica, organizada por Rud e Paulo Emlio. Jean-Claude e eu fic-vamos numa mesinha recebendo os convidados.

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    Lembro-me bem da manh em que se apresen-tou um jovem baixinho, troncudo, com uma lata de filme debaixo do brao. Pediu para exibi-lo, como j fizera para um grupo de pessoas no la-boratrio Lder, no Rio. Era Linduarte Noronha e seu Aruanda.

    Vimos o filme em sesso privada no Cine Coral e ficamos estarrecidos. Rud decidiu apresent-lo naquela mesma noite, antes da pr-estria de A doce vida, de Fellini. Aruanda pegaria de surpresa todos os crticos mais importantes do pas e at mesmo Paulo Emlio. A alta burgue-sia paulista tambm estava presente sesso. Ningum escapou do impacto de um filme que exem plificava perfeio a idia de um cinema em mudana.

    Aruanda seria um dos destaques do I Seminrio do Filme Documentrio, que a Cinemateca pro-moveu no Teatro de Arena, em 1961. Roberto Santos, Rud e Jean-Claude eram os principais expositores. Jorge Bodanzky, um dos alunos, foi outro que se deixou influenciar definitivamente por aquela nova imagem do Brasil.

    Comeavam a chegar a So Paulo as notcias das transformaes promovidas pelos cineastas ca rio-cas e baianos. Mas o Cinema Novo s seria lan a-do oficialmente na cidade em outubro de 1961.

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    Rud, Jean-Claude e eu organizamos um Dia do Novo Cinema. No pavilho do Ibirapuera, duran-te a VI Bienal, exibimos os curtas Aruanda, Arraial do Cabo (Paulo Csar Saraceni e Mrio Carneiro), Couro de gato, O poeta do castelo e O mestre de Apipucos (Joaquim Pedro), Um dia na rampa (Luiz Paulino dos Santos), Igreja (Slvio Robatto), Desenho abstrato (Roberto Miller) e Apelo (Tri-gueirinho Neto). A sesso foi apresentada por Rud e seguida de um debate acalorado sobre o destino do cinema brasileiro entre a arte e a indstria.

    O conjunto de filmes (fico e documentrio) provocava um choque diante da paralisia do cinema paulista de ento. Desde O grande mo-mento, de Roberto Santos, no surgia em So Paulo um sinal equivalente de renovao. Havia qualidade, claro, em filmes como Osso, amor e papagaio, de Carlos Alberto de Souza Barros e Csar Mmolo Jr., ou Noite vazia, de Walter Hugo Khouri. Mas ns, no sem um certo sectarismo, exigamos o novo, alm da preocupao social e poltica que transparecia nos filmes do Rio, da Bahia e tambm da Paraba.

    Essas posies tomariam a forma de texto nos arti gos que escrevi para a Revista Brasiliense a partir de 1962. Eram anlises marcadas por crit rios ideolgicos mais ou menos rgidos,

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    prati cados no mbito do CPC. Foi o que me levou , por exemplo, a apontar um amoralismo neutro em Os cafajestes, criticar O pagador de promessas por cultuar o heri messinico e at denunciar um certo passadismo sentimental portanto no revolucionrio em Arraial do Cabo. Em contrapartida, elogiava o modelo de produo independente de Cinco vezes favela. No perdoava o que entendia como um certo populismo regionalista. Identificava os filmes logrados esteticamente, mas que falhavam na comunicao das idias que tinham de ser pas-sadas naquele momento.

    Hoje minha viso no seria diferente, mas dela provavelmente resultaria uma anlise menos aguda, mais matizada. J em meados da dcada de 60, quando fiz crticas com certa regularidade em diversos jornais, utilizava parmetros menos dogmticos.

    Fui compreendendo que o crtico, sem abrir mo do rigor, precisava encontrar o que o filme prope, em lugar de avali-lo por critrios prede-terminados. Ocorre s vezes de o prprio autor no saber muito bem a proposta do seu filme, j que o processo criativo nem sempre racional e consciente. Cabe, ento, ao crtico colaborar nesse desvendamento.

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    De minha parte, o exerccio crtico aos poucos se imbuiu da conscincia de quem tambm queria fazer cinema. Meu contato com o meio progredia rapidamente. Paulo Emlio era um m que atraa os cineastas cariocas Cinemateca Brasileira. Na mo oposta, eu tambm costumava viajar ao Rio para encontrar-me, por exemplo, com Da-vid Neves, Joaquim Pedro e Leon Hirszman. Na volta, relatava tudo a Paulo Emlio, que usava esse material como subsdio para sua coluna no Suplemento Literrio do Estado. Entre outras iniciativas, lembro-me de ter participado da orga-nizao de uma pequena mostra do novo cinema baiano no cineclube de Santos. O fato que logo me tornei um entusiasta do Cinema Novo, sem perder, no entanto, o ponto de vista crtico.

    Meninos de So Paulo e de Santa F

    A oportunidade de fazer Meninos do Tiet, meu segundo curta-metragem, surgiu em conversas com um amigo do Estado, Victor Cunha Rego, jornalista, diplomata e poltico portugus exilado do regime salazarista. Casado com uma mulher muito rica, ele resolveu produzir um filme e co-laborou na gestao da idia. Criei um esboo de roteiro em torno de um grupo de meninos mise-rveis que brincam no rio Tiet. Mergulham e se divertem, enquanto na outra margem do rio a polcia montada faz sua ronda de praxe. A mesma

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    tropa de Adhemar de Barros, especializada em dissolver manifestaes. Os mesmos cavalos que perseguiam estudantes e grevistas.

    Em dado momento, um dos meninos cai na gua e quase se afoga. Um soldado o salva, o que na minha concepo era tambm uma forma de prend-lo. H um plano simblico por trs das aes ordinrias de um e outro grupo. Documen-trio e encenao se interpenetram, como em Unio. Rodamos em 35 mm, o que era raro em curtas daquela poca, mas sem som direto.

    O resultado foi um filme contemplativo, que no gostei de rever recentemente.

    O filme foi exibido no Festival dos Povos, em Florena (Itlia), enviado pelo Itamaraty. Quan-to ao produtor, retornaria depois a Portugal, onde dirigiu jornais, ajudou a fundar o Partido Socialista Portugus e foi Secretrio de Estado do primeiro governo Mrio Soares.

    J li referncias a uma suposta influncia de Tire Di, de Fernando Birri, sobre Meninos do Tiet. Historicamente, porm, isso no verdade. O filme do Birri, para quem no sabe, um docu mentrio sobre crianas pobres que pedem moedas passagem dos trens por Santa F. Eu j estava em plena filmagem quando Birri esteve

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  • 55no Brasil, convidado por Rud, seu ex-colega no Centro Sperimentale de Roma. Ele at fez uma visita nossa locao. Foi nessa ocasio que assisti pela primeira vez a Tire Di.

    Falava-se com admirao da Escola de Docu-mentrios de Santa F, na Argentina, fundada por Birri em 1956. A idia das escolas de cine-ma borbulhava na cabea de Paulo Emlio, na minha e na de muita gente por aqui. Tire Di e Los Inundados, exibidos na sala da Cinemateca com a presena de quase toda a equipe (Birri, Edgardo Pallero, Manuel Gimenez), traduzia perfeio nossos ideais de um cinema realista, crtico e popular.

    Edgardo Pallero, Fernando Birri e sua esposa Carmen, na Cinemateca em 1962

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    Tnhamos as idias e aqueles eram os corpos para estrutur-las, completos com cabea, tronco e membros. Os filmes do Birri nasciam da expe rin-cia de Cesare Zavattini com o fotodocumentrio, uma espcie de lbum ou exposio de foto grafias com legendas resultantes de entre vistas. O foto-documentrio que deu origem a Tire Di, realiza-do pelos alunos junto aos habitantes da regio , resultara de longa e estreita convivncia com os trabalhadores e suas famlias. Los Inundados , por sua vez, era um filme-escola que dava conta de uma relao profundamente dialtica entre realidade e fico. Era representado por pessoas comuns que se transformavam em atores.

    Em torno do Birri formou-se um grupo composto, alm de mim, por Srgio Muniz, Geraldo Sarno, Vladimir Herzog, Rud, Paulo Emlio e o fot-grafo Thomaz Farkas. Numa dessas conversas maravilhosas, cheias de esperana e determina-o, surgiu o convite para eu e Vlado fazermos um estgio em Santa F.

    Para l partimos em meados de 1963, durante um inverno rigorosssimo. Foi uma viagem louca, de nibus e barco, via Montevidu. Passamos alguns dias na casa do Birri em Buenos Aires, fazendo uma imerso em curtas latino-america-nos. Em Santa F, a escola ocupava um galpo no campus da Universidad Nacional del Litoral.

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    Espao de aulas , oficina e centro de produo se combinavam ali dentro. Eu diria que 80% dos alunos vinham de Buenos Aires, entre eles Ricar-do Aronovich e Fernando Solanas.

    Durante quase trs meses, observamos atenta-mente as atividades da escola.

    Na maior parte do tempo, acompanhei o jovem Gerardo Vallejo na preparao de um filme com camponeses. Seguia os grupos de alunos no vai-e-vem dirio entre o campus e as reas residenciais pobres, fotografando seguidamente at amadurecer a proposta do filme. Uma expe-rincia fascinante.

    A originalidade da escola era seu mtodo de ensi-no, que surgia de maneira emprica, a partir de uma experincia prtica. O fotodocumentrio, feito com cmera fotogrfica e gravador, era mais que uma pesquisa antropolgico-jornalstica para treinar o olho do futuro realizador. Era o ponto de partida para uma atitude moral e crtica diante da realidade. Tornou-se o princpio hist-rico e a concepo ideolgica do documentrio latino-americano que iria desembocar em La Hora de los Hornos, de Solanas.

    Santa F foi a primeira escola de cinema genui-namente latino-americana. At ento, as notcias

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    que tnhamos a esse respeito vinham principal-mente dos relatos de Gustavo e Rud acerca do Centro Sperimentale de Roma. Ali, a nfase estava no ensino terico, cabendo aos melhores alunos ganhar uma assistncia em filmes de grandes diretores. Em Santa F, o que mais cha-mou nossa ateno foi a maneira como a prtica extrapolava o mero currculo e o processo de trabalho prevalecia sobre a teoria.

    Essa inverso me parecia fundamental, uma maneira inteiramente nova de organizar o pen-samento. No se partia da histria do cinema para chegar anlise do filme e da ao filme propriamente dito, como ocorre na academia. Ao contrrio, o ponto de partida era a idia do filme. Para desenvolv-la, buscavam-se as informaes necessrias. Todo o currculo era montado em funo de um projeto de realizao. A teoria estava ali para subsidiar a ao prtica.

    Na vida assim o conhecimento um processo terico resultante de uma necessidade. Precisa-mos entender o mundo para sobreviver e produ-zir. Se eu quero sair de casa, preciso aprender os caminhos. A geografia no seno o resultado da necessidade de nos deslocarmos. De certa forma, aprendi com o Birri que isso vale tambm para o cinema.

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    A Hora do golpe

    Na volta de Santa F, j sem o emprego na Cine-mateca, fui admitido pelo ltima hora como reprter especial. Foi um perodo curto, mas inten so. Fiz algumas sries de matrias, como a do faquir Silk, que mais tarde inspiraria o Ali Khan de O profeta da fome. Em outra ocasio, sa com um fotgrafo a bordo de um DC3 para fazer uma srie de reportagens sobre sindicalismo rural em diversos Estados brasileiros. Por fim, Samuel Wainer me nomeou editorialista de cidade do jornal. Cinco dias antes do golpe militar, publi-quei uma entrevista com o bispo de Santo Andr apoiando as reformas de base do Jango.

    Na tarde do dia 31 de maro, ao chegar re-dao, recebi a notcia de que estudantes do Mackenzie e manifestantes estavam se encami-nhando para empastelar o ltima hora, ou seja, apedrejar o prdio e destruir as mquinas. Com o passar das horas, estimulado pela prpria polcia do Adhemar, o grupo engrossava ao longo de um trajeto que inclua o Maria Antnia (prdios da USP localizados na rua do mesmo nome) e o Estado.

    Na ausncia dos diretores do jornal, formamos rapidamente um comit para encaminhar uma soluo. O chefe de reportagem da rea policial

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    puxou um revlver e, romanticamente, nos con-clamou a enfrentar o inimigo. Mais prudente, o comit decidiu pedir segurana ao II Exrcito. Por volta de 4 da tarde, antes mesmo de chegarem os militares, dispensamos o pessoal e fechamos o jornal. Por fim, dois caminhes do exrcito se postaram entre o prdio e os manifestantes. Entregamos as chaves a um tenente e fomos embora. No prelo, inacabada, ficou uma edio extra sobre a tentativa de Jango de organizar uma resistncia em Porto Alegre.

    No bar da esquina da Av. So Joo com o Anhan-gaba, reunimo-nos eu, Rud, Juca, Guarnieri, Jean-Claude... No fundo, ramos os remanes-centes do antigo CPC que nos ajuntvamos para aplacar o susto e avaliar a situao. Dali, segui-mos para a casa de Caio Graco, onde discutimos estratgias de disperso. Dois dias depois, minha mulher e meus filhos foram para Americana, onde viviam os pais dela, enquanto eu e Vlado nos alojvamos num apartamento do pai dele, no Guaruj.

    As primeiras semanas em So Paulo foram com-plicadas. Era ali que se montava o aparato de represso e a inteligncia da primeira fase do re-gime. Trs meses depois, eu seria arrolado como testemunha pela Justia Militar. Pretendiam que eu revelasse as localizaes dos lderes campo-

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    neses que havia entrevistado para as matrias do ltima hora sobre sindicalismo rural. Quiseram me incriminar tambm por ter pertencido ao Partido. Tudo isso me levou a ficar semiforagido durante cerca de quatro meses.

    Ainda em abril de 1964, fiquei hospedado por duas semanas no apartamento de Thomaz Fa-rkas, tambm no Guaruj. Para no dizer que no falei de flores, foi nesse perodo que germinou a idia de se fazer uma srie de documentrios, que Thomaz produziria e iriam constituir um marco do gnero no Brasil.

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    No infantil do Guarani de Campinas (ltimo direita)

    No time juvenil, em 1953 (o primo cio o primeiro aga-chado esquerda e Maurice, o ltimo da mesma fila)

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    Captulo III

    Futebol

    Como documentarista, meu interesse pelo fu-tebol foi certamente estimulado pela viso de Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade. Mas isso no basta para explicar minha parceria com Thomaz Farkas em Subter-rneos do futebol. Esse projeto, na verdade, eu j acalentava havia algum tempo. No sem um certo primitivismo radical, pretendia confrontar a mitologia do futebol com sua realidade social. Os bastidores do esporte nunca haviam sido devassados no cinema. De alguma maneira, eu estava dialogando com a minha prpria paixo, brotada na infncia em Valinhos.

    Uma aparente vocao para os gramados nascera nas peladas com os primos. Dois deles eram ti-mos jogadores. Waldir chegou a ser profissional por um curto perodo. cio foi titular do Vasco, vendido para o Sporting Cristal de Lima, no Peru. L fraturou a perna e abandonou o futebol. Vol-tou para Valinhos e virou dono de bar.

    Quanto a mim, era habilidoso o suficiente para que o fsico franzino no me intimidasse. A par-tir dos oito anos, no perdia a chance de correr atrs da bola. Um dia soubemos que a equipe

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    do Palmeiras estava concentrada na Fonte Snia, uma estncia hidromineral a trs quilmetros do centro de Valinhos. O grupinho da pelada deu um jeito de entrar clandestinamente pelos fundos do parque e se esgueirar entre as r-vores at o local onde eles treinavam. Ficamos agachados atrs do gol defendido pelo famoso goleiro Oberdan Catani, um gigante de quase dois metros de altura e mos que pareciam gar-ras enormes. Na poca, os goleiros no usavam luvas. Num dado momento, o vigoroso argentino Lus Villa desferiu uma bomba da grande rea e o Oberdan simplesmente estendeu o brao e encaixou o petardo na concha de uma das mos. Ns, midos, ficamos estatelados diante da cena. Ao voltarmos para casa, mais que eufrico, eu estava acabrunhado. Futebol era aquilo coisa para homens como Lus Villa e Oberdan, e no para pirralhos de vrzea como ns.

    Esse complexo de inferioridade foi parcialmente curado quando, por volta dos 12 anos, fui cha-mado a integrar o time infanto-juvenil do Vali-nhense. A cidade tinha dois times: o da fbrica de papel e o do clube oficial, o Valinhense. Este possua um estdio bem razovel, onde passei a jogar. S a me fixei na posio de meio-de-cam-po, j que no tinha porte para ser atacante nem zagueiro. Confortava-me a existncia de Jair da

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    Rosa Pinto, o meia-esquerda do Vasco e depois da Seleo Brasileira. Apesar de pequeno e magro, ele era um craque, dono de um chute temvel.

    Fiz minha passagem da infncia para a adoles-cncia dentro das quatro linhas. Compreendi que o jogo tinha uma organizao, um tcnico, um juiz, determinadas regras. O futebol, alis, sempre teve uma funo agregadora na minha vida. Influenciou minha maneira de ver o mundo atravs da solidariedade, do esprito de equipe, par a par com a necessria individualidade. O jogo reflete um pouco o funcionamento da sociedade e por que no? da criao cine-matogrfica. Provavelmente em funo dessa minha experincia no futebol, quando trabalho com uma equipe de cinema, eu no hierarquizo as funes nem casso a autonomia de ningum. Marcar um gol to importante quanto contri-buir para ele ou impedir um gol adversrio. No jogo, ningum pode mandar dentro do campo porque cada um depende do outro. Da mesma forma, acho que no sou um diretor adepto de imposies de qualquer ordem.

    O futebol, que poderia ser usado nas escolas como um modelo de comportamento social, tornou-se, porm, uma forma de ascenso, um instrumento do culto celebridade e ao dinheiro. A arte transformou-se em ofcio. Em seu estado

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    puro, o futebol seria uma metfora da sociedade ideal. Basta ver a pureza que havia nos jogadores da dcada de 1950, ainda no tragados por essa viso profissionalista e mercadolgica que viria depois. Nilton Santos e Garrincha, por exemplo, nunca acumularam fortunas.

    Na minha poca de jogador aspirante, eu s aspi-rava mesmo ao prazer de lidar com a pelota e os companheiros. Durante um campeonato entre as cidades pequenas da regio, devo ter me desta-cado a ponto de receber um convite, junto com meu primo cio, para jogar no juvenil do Gua-rani de Campinas, que acabava de ingressar no campeonato paulista. Treinvamos pela manh e, tarde, assistamos ao treino dos profissionais. Nos jogos, fazamos as preliminares. Disputamos um campeonato em vrias cidades do interior do Estado. Havia sempre uma torcida nas arqui-bancadas, e no nego que aquilo me agradava, embora nunca tenha visualizado um futuro como jogador. Em 1953, eu e cio fomos descobertos por um olheiro do Fluminense. Passamos entre dois e trs meses treinando nas Laranjeiras, at que meu pai me convocou para retornar casa e aos estudos.

    A entrada no curso Clssico e a influncia do professor Stenio acabaram por fazer do futebol uma experincia a superar. No voltei a freqen-

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    tar os estdios, nem fao o torcedor-padro que se esgoela por causa do seu time. Em So Paulo, fui Palmeiras na infncia, Guarani na juventude e Santos na idade adulta. No Rio, sempre torci pelo Flamengo. De qualquer forma, nunca perdi algum tipo de interesse pelo esporte das multi-des. Foi ele que me lanou definitivamente no cinema, mediante uma viso crtica, em Subter-rneos do futebol.

    Farkas e os Subterrneos do Brasil

    Quem poderia prever que aquela reunio na casa de Thomaz Farkas, no Guaruj, logo depois do golpe de 1964, faria histria? Para mim, pelo menos, parecia apenas um esforo para levantar nosso moral de cineastas desarvorados em ple-na implantao de uma ditadura. L estvamos Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Srgio Muniz, Vladimir Herzog, eu e os argentinos Manuel Horcio Gimenez e Edgardo Pallero, vindos da Escola de Cinema Documental de Santa F. Costumo dizer que foi uma terapia ocupacional que rapidamente se transformou em operao profissional.

    Thomaz tambm era, de certa forma, um ama-dor. Alis, ele nunca vestiu o personagem do produtor. Queria compartilhar seus aparelhos com os amigos para fazer documentrios sobre

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    a realidade brasileira. Na verdade, queria fo-tograf-los, sair junto com a equipe. J havia planejado com Birri um filme sobre a reforma agrria no governo Jango. Agora nos oferecia uma cmera 16 mm que Arne Sucksdorff tinha trazido ao Brasil, um gravador de som Nagra, pelcula e recursos para comear a trabalhar. Na minha cabea, diante da viso do equipamento, a coisa comeava mesmo a funcionar.

    Geraldo tinha um projeto sobre migrao e saiu na frente com Viramundo. Em seguida, toquei o meu sobre futebol. Paulo Gil obteve ajuda fundamental de Farkas no acesso e recuperao do material de Benjamim Abrao para viabilizar seu roteiro de Memria do cangao. No Rio de Janeiro, Manucho Gimenez dirigiria Nossa escola de samba.

    Coube a mim fazer o som de Viramundo, aps um rpido aprendizado com o Nagra. Esses quatro filmes estiveram entre as primeiras experincias estruturadas de se fazer som direto no docu-mentrio brasileiro. O de Garrincha, alegria do povo no era propriamente som direto, j que a entrevista do Garrincha fora gravada em est-dio. O uso do Nagra trazia para a filmagem uma espcie de segundo olho, o olho do microfone, que deveria captar em sincronia e com a mesma qualidade que as imagens da cmera. Como

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    ainda no havia o cristal que tornava o gravador independente, este era ligado cmera por um cabo. A situao era comparvel de um celi-batrio por mais de 60 anos, que de repente se casa e tem que coabitar com algum. A mudana de comportamento era brutal. E acho que ainda no foi completamente resolvida.

    Naqueles documentrios de 1964, ns comeamos a trabalhar um relacionamento de equipe que seria vital dali para frente. Em Viramundo, todas as minhas atenes estavam concentradas na operao do Nagra. J ao realizar Subterrneos do futebol, na maior parte do tempo, consegui conciliar essa funo com a de diretor.

    Embora esse filme seja freqentemente filiado corrente do cinema-verdade, eu ainda no conhecia os trabalhos de Jean Rouch e nem do cinema direto americano, que j faziam a cabea do documentarismo internacional. Nossa inspira-o de origem eram os filmes do Birri, alm do Garrincha. Mas, em relao a esse documentrio de Joaquim Pedro, minha proposta de aborda-gem era bem distinta.

    O ttulo ideal j estava na capa de um livro do jornalista e treinador Joo Saldanha. Depois de terminadas as filmagens, vim de trem ao Rio especialmente para visit-lo na redao do

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    Filmando Subterrneos, com Thomaz e seu monop

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    Em Subterrneos, com Armando Barreto e Pel

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    Jornal do Brasil e pedir sua autorizao. Ele me perguntou se havia filmado o livro.

    Expliquei que no. Ainda bem, disse ele, por-que aquilo no daria filme de jeito nenhum.

    Para dar filme, eu contava com uma estrutura prvia baseada em trs personagens: o iniciante Feijo (Lus Carlos de Freitas), que tinha feito, dois anos antes, o papel do jovem Pel no filme O rei Pel, de Carlos Hugo Christensen; o prprio Pel, cone mximo em plena glria aps o bicampe-onato mundial no Chile; e Zzimo Calazans, um craque tambm bicampeo, mas em decadncia por causa de uma certa acusao de suborno. Eram trs negros dentro de uma parbola sobre o aspirante, o dolo e o cado. At ento, o cinema ainda no tinha passado essa viso da trajetria do jogador como coisa efmera. Eu queria contra-por a iluso da fama incompatvel condio para sobreviver depois dela. Queria falar da utilizao poltica do craque pelos cartolas, das enormes diferenas no padro de salrios. E ainda havia a inteno de mostrar um lado trgico da torcida perdedora, uma tristeza que nada tinha a ver com a euforia dos Fla-Flus.

    Retrica de agit prop

    A equipe de Subterrneos do futebol uma smula das minhas relaes naquele incio da d-

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    cada de 1960. O prprio Thomaz Farkas assumiu a fotografia do filme, juntamente com Armando Barreto na filmagem de jogos e estdios cheios. Armando trazia sua experincia do Canal 100, onde foi discpulo de Francisco Torturra, o cine-grafista que mais ajudou a cunhar aquele estilo de se filmar futebol. Tive colaboraes de Joo Batista de Andrade, Francisco Ramalho e Clarice Herzog. Edgardo Pallero, na produo executiva, representava a turma do Birri, embora sem uma interveno mais direta nos trabalhos de campo. Na montagem, contei com uma consultoria de Roberto Santos, com quem vinha estabelecendo uma relao profcua e que se tornaria um dos meus principais mentores. E havia, principalmen-te, meu assistente de direo, Vladimir Herzog.

    Amigos desde o primeiro ano da Faculdade de Filosofia, conheci bem a personalidade do Vlado. Os pais dele tinham sofrido muito em funo da guerra. A famlia carregava o peso da cultura judaica. Vlado era uma pessoa muito tmida, contida, dona de uma grande sensibilidade que podia reverter em impresso de fragilidade. Ele se diferenciava da maioria de ns por um certo desnimo, uma descrena no seu potencial para realizar as coisas. Tinha uma capacidade de racio nalizao e de participao profunda, mas sempre discretssimo, longe de todo excesso.

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    s vezes me parecia viver na expectativa de uma tragdia iminente.

    Vlado sempre quis fazer cinema. Mas, por con-tin gncias diversas, foi levado a tomar outros caminhos. Depois de fazer o curso de Arne Sucks dorff , realizou um curta interessante sobre pescadores de Copacabana, chamado Marimbs, que ajudei a finalizar em So Paulo. Ele, por sua vez, teve uma pequena participao no meu Meninos do Tiet. Em 1964, entrou na equipe de Subterrneos.

    O nosso eixo principal era a campanha do San-tos no campeonato paulista daquele ano, que acompanhamos de julho a novembro. Saamos no Citron do Thomaz para filmar os jogos em Vila Belmiro, Campinas, Ribeiro Preto, Guara-tinguet. Quando a partida era no Pacaembu, Thomaz simplesmente saa de casa com seu famoso monop e caminhava at o estdio. Em finais de semana, procurvamos a garotada nos campinhos de vrzea.

    Com um microfone direcional potentssimo, far-tei-me de captar os sons diretos do campo e da torcida, uma novidade e tanto. Infelizmente, o negativo da entrevista com Pel dentro do cam-po se deteriorou e ns tivemos de repeti-la em condies no to favorveis. Mas usamos o som

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    da primeira, resultando numa falsa sincronia. De maneira geral, era dura a batalha nesses primei-ros tempos do som direto. As entrevistas mais longas costumavam sair de sincronia e tnhamos que recuper-la mediante um estratagema de laboratrio. Pelo que sei, foi o documentarista francs Franois Reichenbach quem orientou Walter Goulart a fazer loopings de imagem e som para repor manualmente a sincronia.

    Durante os primeiros quatro meses de filmagem, eu trabalhava virtualmente na clandestinidade. Temia ser convocado para depor como testemu-nha no processo do sindicalismo rural. A partir de julho, verifiquei que meus conhecimentos j no seriam to importantes e voltei a dormir na minha casa.

    Ao fim da captao, tnhamos um material cauda-loso de entrevistas, jogos, flagrantes de torcida. Pedi a Roberto Santos que discutisse comigo os caminhos da montagem. Embora partisse de uma estrutura prvia, claro que muita coisa foi criada na moviola. Na abertura do filme, usamos algumas imagens de euforia futebols-tica do Canal 100. Em seguida, abramos nossa vereda crtica em torno da esperana dos jovens atletas, da explorao do jogador, da loucura e da alienao da torcida. Embora estivssemos presentes, no conseguimos filmar um acidente

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    Thomaz Farkas e Vladimir Herzog

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    Filmagens de Subterrneos, com Zzimo e sua esposa

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    com a arquibancada do estdio do Santos por excesso de lotao. Usamos, ento, arquivos de televiso (que na poca filmavam em 16 mm) e criamos um sentido simblico para as correrias e imagens de pnico. Tratava-se de caracterizar o futebol como espetculo explorado por uma s-rie de interesses. Eu no tinha provas, mas havia indcios suficientes de jogos corrompidos, juzes comprados, jogo de foras polticas intervindo no destino dos clubes.

    Tenho que admitir uma retrica s vezes forada na associao entre as imagens e o texto escrito a posteriori pelo comentarista Celso Brando. Essa politizao do assunto era bastante compreen-svel nos documentrios da poca. Subterrneos tambm tinha um qu de agit prop, modelo que conheceria seu pice em 1968.

    De qualquer forma, eu no pretendia ser taxativo ou bombstico. Tanto que pedi a Antero de Oli-veira, ator do Arena, uma narrao com voz bem natural, em tom de conversa. Algo bastante dife-rente do padro de locuo em voga, sobretudo nos cinejornais de futebol. H quem pense que coloquei a Cano do Exrcito no treinamento dos jogadores do Palmeiras como uma ironia aos militares. Mas, com um pouco de ateno, verifi-ca-se que os jogadores a princpio esto mesmo cantando a msica. Os preparadores fsicos em

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    geral vinham do Exrcito. Eu me limitei a fundir, aos poucos, o som direto com uma gravao de disco, transformando o ambiente sonoro original em trilha musical.

    Em alguns momentos, optei por congelar bre-vemente a imagem no instante decisivo de um lance, para logo prosseguir. Queria com isso enfatizar o lado plstico do futebol como arte, frisar aquele momento que exprime a beleza e a fora do esporte. Para algumas pessoas, isso evocava a clebre paradinha inventada por Pel na cobrana de pnaltis.

    Esporte chapa-branca

    A primeira sesso dos quatro novos document-rios produzidos por Thomaz Farkas se deu na sala da Cinemateca, na Rua Sete de Abril, em 1965. A partir da, o conjunto de filmes obteve excelente repercusso junto intelectualidade e crtica. Os temas da migrao nordestina, do carnaval, do futebol e do cangao apareciam com o impacto de um tratamento novo. Um cinema que ia direto aos personagens, dispensando intermedirios. verdade que esses filmes ainda eram hbridos. No estvamos completamente seguros de que a imagem e o som direto pudessem revelar tudo. At hoje recorro narrao, se julgo imprescind-vel. Mas, de qualquer maneira, ali comevamos

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    a descobrir que a realidade falava por si, sem a necessidade, imperiosa at ento, de um narra-dor constante para conduzir o pensamento.

    O documentrio deixava de ser uma brincadeira de jovens e era admitido no meio universitrio como instrumento de anlise social. Aps a exi-bio no Festival Internacional do Filme, no Rio, esses trabalhos passaram a repercutir em festivais internacionais e no mbito do Cinema Novo. Trs anos depois, chegavam ao grande pblico em lanamento comercial, enfeixados no longa-metragem Brasil verdade.

    Foi imensa a importncia de Thomaz Farkas como pioneiro da produo independente de documentrios no cinema brasileiro moderno. At ento, contavam-se os exemplos nos dedos: Aruanda, Um dia na rampa, Arraial do Cabo, Maioria absoluta. No mais, a produo dependia de instituies oficiais como o Itamaraty e os insti-tutos do livro, do cacau e do cinema educativo.

    Do Itamaraty, por sinal, partiu a encomenda que me levaria de volta ao tema dos esportes, ainda em 1965. O ministro Wladimir Murtinho pediu a David Neves que realizasse um panorama das atividades esportivas no pas para enviar s em-baixadas no exterior. David preferiu fotografar e me chamou para dirigir Esportes no Brasil. Usamos

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    a empresa de Luis Srgio Person para o repasse da verba e samos em busca das principais estrelas.

    L estava eu, no espao de um ano, passando de um ensaio crtico para um filme de propaganda sobre os esportes.

    Como funcionrio de uma idia, parti no encalo de jovens promissores e estrelas consagradas. Da segunda categoria entrevistamos Garrincha, Pel, o boxeador der Jofre, os atletas Adhemar Ferreira da Silva e Jos Flix da Conceio, a tenista Maria Esther Bueno, o nadador Manoel dos Santos. Enfocamos ainda o time de basquete do Cornthians. Com pelcula de 35 mm, fizemos muitas imagens em contraplong (angulao de baixo para cima), visando uma esttica de pico. A msica de Francisco Mignone completava o servio do tpico filme-exaltao.

    Glauco Mirko Laurelli, montador do Person, im-primiu um ritmo gil e atraente s cenas. O texto foi escrito por Hamilton Almeida, jovem-prodgio do jornalismo carioca que estava sendo levado para So Paulo por Mino Carta para ser reprter superespecial do Jornal da tarde.

    Apesar de chapa-branca, Esportes no Brasil no um mau filme. Tanto que, enviado pelo Itama-raty para o Festival do Filme Esportivo de Cortina

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    DAmpezzo, na Itlia, ganhou o Prmio Erca. Eu s tomaria conhecimento disso ao receber o trofu em casa. Curiosamente, minha memria apagou o fato de que ele foi exibido comercial-mente no cinema Picolino, em So Paulo, em programa duplo que vergonha! com Cidado Kane. Jamais entendi a lgica dos exibidores...

    Derrota na Argentina

    O universo dos esportes tem sido recorrente em minha carreira. Acho que nos procuramos mutu-amente. Ainda em meados de 1965, eu pretendia estrear no curta de fico com a adaptao do conto Pega Ele, Silncio, de Ignacio de Loyola Brando, meu colega no ltima hora. Era a his-tria de Z Lus, um jovem negro e pobre que treina em campos de futebol para ser boxeador. A expectativa de uma luta decisiva condensa os desejos de ascenso social da famlia e de reco-nhecimento do pessoal do morro. Mas Z Lus perde. Meu projeto tambm foi a nocaute. Com o Ignacio, porm, eu me juntaria dois anos depois na transposio de Bebel que a cidade comeu.

    A bola rolaria mais uma vez at meus ps na Copa do Mundo de 1978. O filme oficial daquela Copa tem uma histria tortuosa, que comea com o poltico, advogado, empresrio e poeta Milton Reis, deputado cassado pelo AI-5.

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    No sei se a ligao com Joo Havelange o aju-dou a ganhar uma concorrncia da Fifa para produzir o filme da Copa. Sem experincia no ramo, ele levou o projeto ao produtor Jarbas Barbosa, que chamou Paulo Csar Saraceni e a mim para dirigir.

    Era a maior produo em que havia me envolvido at aquela poca. A equipe principal tinha mais de 50 pessoas, entre cinegrafistas com experin-cia em futebol, diretores de fotografia, tcnicos de som, assistentes e pessoal de produo. Em-barcamos para a Argentina trs semanas antes do incio da Copa. Pouco depois, chegou um conti ner de navio com cerca de 30 cmeras, sen-do duas novssimas Arriflex BL-3 autoblimpadas (protegidas contra o som do motor), as primeiras do gnero a aparecerem no Brasil. Recebemos, ainda, duas lentes de 1.200 milmetros, verdadei-ros canhes de quase 1 metro de comprimento que podiam detalhar a expresso de um jogador cado no meio do campo. Alm, claro, de um Rio da Plata de negativo. Mais experimentado na fome que na fartura, eu me sentia afogado em material.

    Em cada um dos seis estdios Buenos Aires, Mendoza, Mar del Plata, Crdoba, Rosrio e Santa F - estudamos previamente a colocao das cinco cmeras e organizamos um esquema de

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    alter nncia para otimizar os custos. Um sistema de comunicao atravs de rdio garantia a siner-gia da equipe. Planejamos at o uso da cmera lenta, obtida com um dimmer que alterava a ve-locidade de captao das mquinas. Tudo estava to bem traado que a presena de diretores na hora dos jogos seria at mesmo dispensvel.

    Uma vez que o futebol trata, no fundo, de vence-dores e derrotados, Paulo Csar e eu resolvemos dividir assim as tarefas: ele filmaria tudo o que cercasse os vitoriosos o goleiro que agarra o p-nalti, o artilheiro que marca o gol, etc; eu ficaria

    Com Saraceni e equipe na Copa 78

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    com os perdedores. Para o meu gosto, o drama dos derrotados muito mais interessante que a alegria dos vencedores. J o temperamento en-tusiasmado do Paulo no combinaria mesmo com os vencidos. Ele ficava to alucinado, torcendo beira do campo, que chegou a ser expulso no jogo contra a Espanha. Queria seguir a Seleo Brasileira e, ironicamente, teve que filmar a vi-tria da Argentina.

    O grande charme acabou sendo a derrota do Bra-sil. Mas a nossa idia de filme oficial ultrapassava o limite dos estdios. Na prtica, concebemos dois filmes em paralelo para serem montados como um s. Havia o dos estdios e o das ruas. Enquanto no Brasil vivamos a abertura poltica, a Argentina atravessava a pior fase da ditadura do general Jorge Rafael Videla. O clima era de medo. J nos primeiros dias de nossa estada em Buenos Aires, tivemos que sair do hotel de pijamas, no meio da noite, por causa de um alarme de bomba.

    O estdio do River Plate ficava a cerca de um quilmetro do local onde se torturavam os presos polticos. Nos intervalos entre os grandes jogos, percorramos a cidade para tentar entender como o pas estava recebendo a Copa.

    O povo tinha um acesso muito restrito festa. A televiso, em preto-e-branco para grande parte

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    da populao, era privilgio das classes mdia e alta. No entorno da capital, numa das Villas Mise-rias (como eram chamadas as favelas argentinas), filmamos um grupo de jovens jogando pelada com as camisas da Holanda e da Argentina. Estavam macaqueando um espetculo que no podiam ver. Captamos cenas em casas de tango, no bairro da Boca, nas quebradas da cidade. Filmamos as mes da Plaza de Mayo, driblando a polcia com nossas credenciais da Copa. Minha mini-equipe nessas incurses inclua Hlio Silva na cmera e Juarez Dagoberto no som.

    Em dado momento, os conflitos da produo comearam. O pagamento semanal da equipe tcnica atrasou e ns, diretores, tomamos sua de-fesa, ameaando interromper os trabalhos. Aps a partida final, recusamo-nos a cumprir a ordem de entrevistar o Videla na tribuna de honra do estdio. Para ns, o filme j havia terminado. Depois de voltarmos ao Brasil, soubemos que as 66 horas de negativos estavam sendo negociadas com a Argentina. Vender aos vitoriosos poderia ser mais lucrativo do que exibir aos derrotados. Apelamos a Roberto Farias, ento presidente da Embrafilme, que atuou no sentido de impedir o embarque do material. Em funo disso, eu e Paulo fomos demitidos, e logo depois tambm o Jarbas. Abrimos um processo exigindo o con-

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    trole sobre a edio do filme, mas perdemos sob a alegao de que ramos meros trabalhadores contratados.

    Maurcio Sherman e Victor di Mello assumiram o projeto, mas no quiseram ou no puderam uti-lizar o material de rua que havamos preparado. Consta que Juarez teria entregado as gravaes sonoras sem os boletins de identificao, o que tornaria a sincronizao um processo demasia-damente longo e penoso.

    O fato que Copa 78 O poder do futebol, lan-ado comercialmente no ano seguinte, pouco ou nada tem a ver com o nosso projeto inicial. A entrevista com Videla foi comprada de alguma televiso.

    E tenho dvidas quanto autenticidade da en-trevista com o lder montonero, coisa que nunca fizemos. Meu nome e o do Paulo Csar, se que constam dos crditos, esto naquele rabicho que corre diante da platia j vazia.

    Bola rolando na tv

    Zico fez tabelinha comigo em duas ocasies. A primeira, em 1977, num documentrio pro-duzido por Jean-Gabriel Albicocco para a TV francesa Antenne 2. Razes populares do futebol

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