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“DO MITO AO FATO i ” – UM APANHADO HISTÓRICO DOS ESTUDOS SOBRE RELAÇÕES RACIAIS E DESIGUALDADES EDUCACIONAIS Dyane Brito Reis (PPGE – UFBA) ii [email protected] RESUMO Neste trabalho objetivamos fornecer um panorama da discussão sobre as diferenças e desigualdades observadas entre brancos e negros no país. Desigualdade esta que gerou dois mundos: o dos negros e o dos brancos e que teve repercussões extremamente fortes no âmbito educacional. Para tal, faremos uma incursão teórica sobre os estudos e a lutas militantes que ensejaram uma proposta de Política de Ação Afirmativa no Século XXI, cujo maior debate está centrado na criação de Cotas para Negros nas Universidades Públicas Brasileiras. Palavras-Chave: Ações Afirmativas; Racismo; Desigualdades Educacionais Introdução A sociedade brasileira há longos anos, propaga e se orgulha de uma suposta democracia racial. Na maioria das vezes, este título é colocado em contraponto ao modelo racial americano. A identidade brasileira foi forjada em torno deste mito, pois se no século XIX a preocupação dos intelectuais com a mestiçagem e a degenerescência desembocava em uma perspectiva pessimista com relação ao futuro brasileiro, no início do século XX a teoria Freyriana vai entender o Brasil como grande caldeirão cultural já que segundo ele: “o alto grau de miscigenação ocorrido no país, em face da falta de preconceito racial do português corrigiu a distância social entre a Casa Grande e a Senzala, o que levou a uma democratização social no Brasil” (Freyre; 1998). Apesar da manutenção da desigualdade entre senhores e escravos, a sociedade brasileira era vista como racialmente igualitária, sem preconceito, discriminação e ódio raciais, especialmente quando comparada com a sociedade americana, que ao contrário apresentava fortes antagonismos raciais (Santos; 1999). Esse consenso sobre a democracia racial brasileira permeou os círculos acadêmicos até metade dos anos 50, quando o Projeto UNESCO iii , a partir das análises de Roger Bastide e Florestan Fernandes concluíram que após o julgo da escravidão, os negros foram marginalizados e uma carga de preconceito e discriminação recaiu sobre eles dificultando o acesso a diversos âmbitos tais como trabalho e educação. Apesar de contestarem a harmonia nas relações raciais,

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  • DO MITO AO FATOi UM APANHADO HISTRICO DOS ESTUDOS SOBRE RELAES RACIAIS E DESIGUALDADES EDUCACIONAIS

    Dyane Brito Reis (PPGE UFBA)ii [email protected]

    RESUMO Neste trabalho objetivamos fornecer um panorama da discusso sobre as diferenas e desigualdades observadas entre brancos e negros no pas. Desigualdade esta que gerou dois mundos: o dos negros e o dos brancos e que teve repercusses extremamente fortes no mbito educacional. Para tal, faremos uma incurso terica sobre os estudos e a lutas militantes que ensejaram uma proposta de Poltica de Ao Afirmativa no Sculo XXI, cujo maior debate est centrado na criao de Cotas para Negros nas Universidades Pblicas Brasileiras. Palavras-Chave: Aes Afirmativas; Racismo; Desigualdades Educacionais

    Introduo

    A sociedade brasileira h longos anos, propaga e se orgulha de uma suposta democracia racial. Na maioria das vezes, este ttulo colocado em contraponto ao modelo racial americano. A identidade brasileira foi forjada em torno deste mito, pois se no sculo XIX a preocupao dos intelectuais com a mestiagem e a degenerescncia desembocava em uma perspectiva pessimista com relao ao futuro brasileiro, no incio do sculo XX a teoria Freyriana vai entender o Brasil como grande caldeiro cultural j que segundo ele: o alto grau de miscigenao ocorrido no pas, em face da falta de preconceito racial do portugus corrigiu a distncia social entre a Casa Grande e a Senzala, o que levou a uma democratizao social no Brasil (Freyre; 1998). Apesar da manuteno da desigualdade entre senhores e escravos, a sociedade brasileira era vista como racialmente igualitria, sem preconceito, discriminao e dio raciais, especialmente quando comparada com a sociedade americana, que ao contrrio apresentava fortes antagonismos raciais

    (Santos; 1999).

    Esse consenso sobre a democracia racial brasileira permeou os crculos acadmicos at metade dos anos 50, quando o Projeto UNESCOiii, a partir das anlises de Roger Bastide e Florestan Fernandes concluram que aps o julgo da escravido, os negros foram marginalizados e uma carga de preconceito e discriminao recaiu sobre eles dificultando o acesso a diversos mbitos tais como trabalho e educao. Apesar de contestarem a harmonia nas relaes raciais,

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    preconizada por Freyre, tanto Bastide quanto Fernandes ainda acreditavam que na nova ordem capitalista a discriminao antes econmica e social, com base na cor, do que antes uma evidncia do preconceito de cor propriamente dito. Como afirma Marcos Chor Maio este programa de Estudos que se convencionou chamar de Projeto UNESCO no apenas gerou um amplo e diversificado quadro das relaes raciais no Brasil, mas tambm contribuiu para o surgimento de novas leituras acerca da sociedade brasileira em contexto de acelerado processo de modernizao capitalista. (1999)

    Ao final dos anos 70, Carlos Hasenbalg (1979) demonstrou que passados quase um sculo da abolio da escravatura no Brasil, os negros ainda estavam em pior situao econmico-social e poltica que os brancos, indicando inclusive que a desigualdade racial no Brasil e a marginalizao do povo negro era fruto do racismo e deveriam ser explicados pela condio racial desses indivduos.

    O consenso acadmico cientfico sobre a democracia racial s comea, pois, a ser abalado no final dos anos 70. Associado a essa quebra de consenso, ressurge simultaneamente os movimentos sociais negros falamos aqui em ressurgimento, pois as organizaes formadas na dcada de 1970 no foram as primeiras na histria do pas. Logo depois da abolio, no final do sculo XIX, j circulavam jornais voltados para as populaes negras, como o Treze de Maio, do Rio de Janeiro (1888), e O Exemplo, de Porto Alegre (1892). Em So Paulo, a chamada imprensa negra paulista denunciava, nos anos 1920, a discriminao racial. Dela surgiram alguns dos fundadores da Frente Negra Brasileira, em 1931, que chegou a se transformar em partido poltico em 1936, mas logo foi extinta, como os demais partidos, pelo Estado Novo no ano seguinte. Na dcada de 1940 foram fundadas vrias entidades, como a Unio dos Homens de Cor e o Teatro Experimental do Negro denunciado a discriminao e contestando a democracia racial e ainda, valorizando a cultura negra como eixo de constituio de uma identidade racial positiva. (Santos; 2008)

    tambm no final dos anos 80 que o quesito cor (re)introduzido no censo demogrfico brasileiro, em virtude das reivindicaes do Movimento Social Negro. Tal ao permitiu a comprovao estatstica das desigualdades raciais entre negros e brancos. Mais at aqui, por parte do Estado Brasileiro, ainda no h qualquer meno a implementao de polticas de aes

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    afirmativas para negros, embora esta fosse uma aspirao de intelectuais e militantes ligados questo racial.

    As diferenas e desigualdades sociais entre brancos e negros, acumuladas ao longo de toda a

    histria brasileira, geraram dois mundos: o mundo dos negros e o mundo dos brancos conforme analisou Florestan Fernandes (1972) e isto teve repercusses extremamente fortes no mbito educacional. Mas o anseio por educao formal esteve presente nas lutas negras desde o final da abolio at o sculo XX, consubstanciada, no sculo XXI em Polticas de Aes Afirmativas.

    1- DESIGUALDADES RACIAIS NA EDUCAO

    A CONSTATAO

    O acesso e a permanncia desigual de determinados grupos sociais ao sistema de ensino uma discusso que h dcadas vem ocupando os crculos acadmicos e os movimentos sociais. Hasenbalg (2005) chama ateno para o fato de que na experincia Europia, o princpio da educao primria para as classes baixas emergiu como subproduto do absolutismo esclarecido, mas esta experincia est longe da realidade brasileira quer em ideologia quer na prticaiv. O sistema educacional brasileiro elitista e formado por uma tradicional estrutura, cujas oportunidades educacionais so fechadas a determinados grupos e isso ainda pode ser verificado

    nos dias atuais.

    Como aponta Santos (apud Hasenbalg; 2005); Schwarcz (1993) entre outros, o crescimento do sistema educacional comeou com a criao de algumas escolas de Medicina e Direito quando a famlia real chegou ao Brasil no Sculo XIX. Entretanto, tal sistema educacional esteve distante do mundo prtico, e sua funo foi to somente a produo de smbolos de status.

    Ainda segundo Hasenbalg (2005) no que tange s duas funes bsicas do sistema educacional nas democracias liberais, quais sejam: o desenvolvimento de cidados politicamente competentes, socializados nos valores do sistema e a formao de agentes qualificados para

    ocupar os lugares do sistema produtivo, a primeira funo foi historicamente atrofiada, enquanto

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    que a segunda s ganha corpo com a acelerao da industrializao e a urbanizao do pas em dcadas recentes.

    A Universidade por sua vez, produziu dentro da tradio formalista, grupos de profissionais liberais que excediam as necessidades do sistema econmico. Mais recentemente, essas relaes mudaram e o sistema econmico comeou a exercer forte presso sobre o sistema educacional que se expandiu em Instituies privadas (sobretudo a partir dos anos 80) e desse modo, o aumento das matrculas ocorreu como uma resposta necessidade de ampliar a base de recrutamento. Vale salientar que na contramo desta expanso do sistema educacional est a participao da populao negra. Em acrscimo aos mecanismos de discriminao de classe do

    sistema educacional, cujos efeitos so especialmente sentidos por pretos e pardos, a cor da pele opera tambm como um elemento que afeta negativamente o desempenho escolar e o tempo de permanncia na escola. No Brasil, o trajeto do estudante pelo sistema pblico de ensino est marcado por historia de insucesso e este insucesso tem atingido, sobretudo os negros. sobre estes que recai o peso da excluso. (Barcelos, 1992; Hasenbalg, 1979; Henriques, 2001)

    Entendendo esta situao que uma das principais reivindicaes dos movimentos negros esteve associada educao formal. Essa bandeira de luta, ao contrrio do que se pensa, existente desde o ps-abolio e ganha muita fora no incio do sculo XX. na dcada de 20 que aparecem os primeiros jornais do meio negro (Cf. Fernandes, 1978), no Estado de So Paulo, cujo objetivo era discutir as condies sociais de existncia dos negros no ps-abolio, bem como discutir problemas ligados discriminao racial a que os afro-brasileiros estavam submetidos. Publicavam-se artigos sobre diversos assuntos, entre os quais a necessidade da educao formal para os negros visando superao das dificuldades em que se encontravam ou, se quiser, tendo como finalidade a necessidade de ascenso social, poltica e econmica da populao de ascendncia africana.

    A educao era vista como caminho para a superao das desigualdades. Era ainda a nica ou principal maneira pela qual o negro poderia obter as mesmas oportunidades que os brancos e deixaria de ser um extrangeiro indesejvel. Recebendo educao, o negro poderia evoluir,

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    integrar-se vida nacional, combater a misria em que vivia, os vcios e as doenas que o atormentavam (Pinto, 1993: 183-184).

    Estava constatado, entretanto, que a educao no atendia de maneira equnime a todas as parcelas da populao; um nmero grande de brasileiro percebia que havia um fosso entre o mito e o fato, ou seja, entre a idia de uma democracia racial e a condio real dos negros no pas.

    Nos anos 30, a Frente Negra Brasileirav, que tinha a educao entre as condies necessrias para a ascenso moral e o progresso material dos negros formalizou essa sua preocupao e valor em seu Estatuto, que no pargrafo nico institua a criao de cooperativas econmicas, escolas

    tcnicas e de cincias e artes, e campos de esportes dentro de uma finalidade rigorosamente brasileira. (Estatuto da Frente Negra Brasileira apud Barbosa, 1998: 110). Segundo Santos (2007), foi para cumprir estes objetivos que a Frente Negra criou onze departamentos para a consecuo dos seus fins (Barbosa, 1998: 105). Entre esses departamentos havia o Departamento de Instruo e Cultura, que era responsvel pela esfera da educao. Alm disso, criou uma biblioteca escolar que funcionava como um espao para estudo e capacitao dos estudantes negros. frente do seu tempo, os frentenegrinos compreendiam que a educao formal no podia se limitar somente sala de aula escolar. Mais tarde foram montados cursos vocacionais e de alfabetizao para jovens e adultos e foi criado um Colgio Elementar. Num primeiro momento, essa escola funcionou extra-oficialmente, mas depois, em julho de 1934, foi reconhecida formalmente pelo estado de So Paulo, que, inclusive, nomeou professores para trabalharem nela (Cf. Pinto, 1993; Siss, 2003 apud Santos; 2007).

    Ao criar escolas para a populao de cor, a Frente Negra estava dando os primeiros passos para a implementao de uma poltica de ao afirmativa, embora ainda no se denominasse assim.

    Infelizmente, quando a Frente Negra se lanou como partido poltico em 36, a fim de dar continuidade aos seus objetivos, o ento presidente Getlio Vargas fechou todos os partidos polticos e entre eles, claro, a Frente Negra Brasileira. Estava, portanto, interrompida mais uma tentativa dos negros brasileiros de inclurem-se atravs da escolarizao e de colocar a questo racial na agenda pblica do pas, ou como nos afirma Santos (2007):

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    Portanto, interrompia-se uma das primeiras tentativas de ao coletiva dos pretos e pardos, aps a abolio, de lanarem-se como sujeitos da sua histria na esfera pblica brasileira, colocando a questo racial no mesmo nvel das demais questes importantes da vida pblica brasileira, sem as presses dos partidos de direita, de centro ou esquerda, para o encobrimento da discusso sobre a questo racial no Brasil. (p. 83/84)

    Como veremos daqui em diante, estava interrompida, mas apenas temporariamente a luta negra pela educao, pois a conveno do Negro de 46 vai retomar estas questes e trazer proposta de polticas pblicas para os negros em diversas reas, inclusive na educao.

    A LUTA POLTICA

    Conforme nos afirma Hasenbalg (1995; 360) h um perodo de silenciamento da questo racial, inclusive no campo acadmico. No auge da ditadura militar a questo racial passa a ser definida como questo de segurana nacional. Some-se a isso a falta de dados, uma vez que o quesito cor foi retirado do Censo Demogrfico de 1970.

    Mais tarde, no final dos anos 70, quando o panorama tornava-se propcio, houve uma rearticulao do movimento social negro e a criao de entidades nacionais de carter mais poltico. Falamos aqui em panorama propcio porque dois fatores so importantes neste momento: 1- a luta dos afro-americanos pelos Direitos Civis e 2 as lutas por independncia ou

    libertao de vrios pases africanos de lngua portuguesa contra o racismo colonial. Tais fatores tero grande impacto no cenrio nacional e vo influenciar decisivamente os jovens negros brasileiros. Este tambm um perodo em que cresce ou se delineia uma auto-estima negra, uma valorizao da aparncia e esttica negras como poltica de afirmao, tambm muito influenciada pelos movimentos negros.

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    Neste panorama, os movimentos sociais negros ressurgem na luta poltica contra as injustias e opresses scio-raciais e muitas entidades aderem ao movimento nacional por liberdade, igualdade, justia, democracia e cidadania, de fato, e nessa busca, entendem como importante a criao de uma organizao de carter poltico que no somente denunciasse o racismo, mas apresentasse propostas de superao. E foi assim, que em junho de 78 vrias entidades negras mobilizadas contra a discriminao racial vivida diariamente pelos afro-brasileiros fundam, em So Paulo, o Movimento Unificado Contra a Discriminao Racial (MUCDR), que, em dezembro de 1979, no seu primeiro congresso, na cidade do Rio de Janeiro, foi renomeado Movimento Negro Unificado (MNU). A educao continua aqui sendo um tema prioritrio e aparece no primeiro Programa de Ao do Movimento.

    As reivindicaes do MNU, no que tange educao, estavam pautadas nas melhorias das condies de acesso ao ensino; no combate discriminao racial e veiculao de idias racistas nas escolas e na reformulao dos currculos escolares, contemplando a valorizao da Histria e Cultura Africana e Afro Brasileira.vi. A partir desse momento comea a tomar um corpo diferente a luta destes movimentos negros uma vez que suas aspiraes e lutas ganham eco em diversos Estados. Por outro lado, mas no menos importante essa luta negra comea a sofrer muitas crticas das classes dominantes que vm o fato como uma espcie de racismo s avessas. O historiador George Andrews destacou muito bem esta situao, explicando a fonte das inquietaes:

    A primeira que a mobilizao dos negros forosamente recorda aos brasileiros que o seu pas no uma democracia racial que declara ser; se fosse, os afro-brasileiros no teriam queixas especificamente raciais a

    fazer e no haveria campo para um movimento negro. (...)Os brancos no gostam de ser confrontados com este passado racial, tanto devido culpa

    que sua memria pode inspirar quanto devido ao seu medo do ressentimento e do desejo de vingana que se pode esperar os negros abriguem dentro de si aps geraes desse tratamento. Isso por sua vez sugere a segunda fonte de inquietao dos brancos. Os brancos das

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    classes mdia e alta do Brasil so muito conscientes de que esto sentados no topo de uma sociedade muito tensa, em que a maioria da populao sofre as aflies dirias da pobreza e da raa. (Andrews, 1998: 287).

    Mais uma vez, sem dvida os debates afrontam o mito fundador da Identidade Brasileira, qual seja, o de que vivemos em uma Democracia Racial. Se, por um lado, essa nova fase dos Movimentos Sociais Negros fez emergirem antigas inquietaes raciais na sociedade brasileira, bem como protestos da classe dominante, por outro lado, o carter mais aguerrido implicou uma influncia ou participao poltica maior desses movimentos na sociedade brasileira, se

    comparado com os avanos obtidos no passado (Santos; 2007). Mas, vale destacar que estes impactos causados pelo movimento negro na sociedade brasileira foram bastante positivos j que comea a exercer uma forte influncia poltica, obrigando inclusive o Estado a dar respostas na rea racial e esse um momento histrico na conjuntura poltica do pas.

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    O ENFRENTAMENTO

    O enfrentamento questo das desigualdades raciais na educao atravs de polticas pblicas de ao afirmativa, j tramitava no Congresso desde a primeira metade do Sculo XX, atravs de Projeto do Deputado Federal Abdias do Nascimentovii que embora no contasse com uma bancada afro brasileira era a principal voz dos Movimentos Negros no Legislativo. Abdias do Nascimento quem prope em 1987 a implementao do que ele chamou de aes compensatrias para os negros na esfera da educao e vai alm propondo que estas aes contemplem indgenas e mulheres (Nascimento, 1985: 61). Sem apoio no legislativo, a quem pouco interessava polticas compensatrias, o Projeto de Abdias foi arquivado no final dos anos 80 e, de fato, nenhuma medida foi implementada.

    No incio da dcada de 90 o Movimento Negro, atravs dos seus Encontros Regionais retoma a pauta da questo Negro e Educao. Ainda nesta dcada, deve se destacar aquele que talvez tenha sido o mais marcante evento desse perodo; a Marcha Zumbi dos Palmares que contou, segundo dados oficiais, com cerca de 30 mil participantes. (Cf. Santos, 2006; Cardoso, 2002; ENMZ, 1996).

    Aps a Marcha Zumbi dos Palmares, o Governo Brasileiro criou por meio de Decreto, o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorizao da Populao Negra (GTI). O GTI tinha como expectativa, ao longo do Governo [Fernando Henrique Cardoso], inscrever definitivamente a questo do negro na Agenda Nacional. Isso significar conceder questo racial do negro brasileiro a importncia que lhe tem sido negada (GTI In Brasil, 1998: 39).

    Algumas crticas foram dirigidas a este Grupo de Trabalho, que de fato, s foi instalado um ano

    depois, em 2006 em que pese o fato de que o GTI no foi aparelhado para cumprir adequadamente os seus objetivos, visto que no tinha um corpo tcnico suficiente para a realizao de todas as suas funes. Tambm no dispunha de infra-estrutura adequada, menos ainda de oramento prprio para seu funcionamento adequado (Cf. Santos, 2006a). Se este e outros grupos que foram criados no Governo FHC (1994-2001) como o Grupo de Trabalho para a Eliminao da Discriminao no Emprego e na Ocupao (GTEDEO) no surtiram efeito no

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    plano material, concreto, ao menos a criao de tais grupos possibilitou o incio da discusso da questo racial no interior da estrutura burocrtico-administrativa brasileira e a admisso, por parte do Estado de que h desigualdades raciais no pas, conforme fica explcito no discurso do Presidente:

    Ns, no Brasil, de fato convivemos com a discriminao e convivemos com o preconceito (...), a discriminao parece se consolidar como alguma coisa que se repete, que se reproduz. No se pode esmorecer na hipocrisia e dizer que o nosso jeito no esse. No, o nosso jeito est errado mesmo, h uma repetio de discriminaes e h a inaceitabilidade do preconceito. Isso tem de ser desmascarado, tem de ser, realmente, contra-atacado, no s verbalmente, como tambm em termos de mecanismos e processos que possam levar a uma transformao, no sentido de uma relao mais democrtica, entre as raas, entre os grupos sociais e entre as classes (Cardoso, 1997:14-16).

    Tal constatao, aliada luta dos movimentos negros e ao enfrentamento da questo racial no pas, fez o Governo Brasileiro, apontar, pela primeira vez na Histria, a possibilidade de implementao de Polticas de Aes afirmativas. Mas, ainda no era neste Governo que isso ocorreria, alis, foi pblica e amplamente divulgada a resistncia do Ministrio da Educao (daquela poca) implementao deste tipo de poltica:

    No considero o projeto ideal [o sistema de cotas raciais] porque sempre entendi que o preenchimento das cotas nas universidades deveria ter como regra apenas o critrio social (o de renda) uma vez que a diferenciao na educao brasileira se d muito mais por critrios sociais do que raciais. Basta lembrarmos que 70% da populao indgena recebe at trs salrios mnimos e que 68% da populao negra e 72% dos pardos tm uma renda de at trs salrios mnimos, para percebermos

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    que o critrio de renda mais abrangente e justo que o de raa. (In: www.paulorenatosouza/reportagemmanchete)

    Estas e outras declaraes do Ministro e do prprio presidente da Repblica naquela poca, somada resistncia que se encontrava na sociedade implementao de poltica com recorte racial, sobretudo no ensino superior, vo adiar para a dcada seguinte tal prtica.

    A IMPLEMENTAO DE POLTICAS AFIRMATIVAS EM EDUCAO

    Estes primeiros anos do sculo XXI tm sido marcados por diversos ganhos para a comunidade negra, na rea educacional. As reivindicaes histricas dos Movimentos Sociais Negros visando ao aumento da quantidade de afro-brasileiros no ensino pblico superior tm obtido algumas respostas positivas nesta dcada, mesmo sob fortes presses em sentido contrrio, especialmente presses da grande imprensa e de parte significativa da intelectualidade brasileira (Santos; 2007).

    mister ressaltar a importncia que teve a Conferncia Mundial contra o Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, realizada entre 30 de agosto a 7 de setembro de 2001, na cidade sul-africana de Durban. Esta Conferncia fortaleceu, no Brasil, a discusso sobre a necessidade de implementao de aes afirmativas para os negros em diversos mbitos, mas, sobretudo na sade, trabalho e educao. Esta importncia foi tamanha que em 2002 a questo racial esteve presente na agenda poltica de todos os candidatos presidncia da repblica, fenmeno jamais visto em nosso pas.

    Aps a eleio de Luiz Incio Lula da Silva e, importante que se diga, sob presso dos

    movimentos negros foi criada a Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir)viii. Em seu discurso oficial, Lula assim como FHC reconheceu que h discriminaes e desigualdades raciais no pas, rompendo com o antigo discurso da Democracia Racial. Entretanto, mais que o Governo anterior, este avana e envia ao Congresso Nacional Brasileiro o

    Projeto de Lei n 3.627, de 20 de maio de 2004, que institui Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas pblicas, em especial negros e indgenas, nas

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    instituies pblicas federais de educao superior e d outras providnciasix. A partir desse momento, insere-se no cenrio nacional diversas discusses sobre a questo racial em nmeros e propores nunca antes vistos. Intelectuais, militantes, estudiosos e sociedade em geral passam a se posicionar frente s iniciativas do Governo Federal.

    O tema que predominou na imprensa brasileira foi a criao de cotas para negros nas Universidades Pblicas, inclusive, muitas vezes o debate sobre as aes afirmativas foi reduzido esta discusso, como se uma fosse sinnimo exato da outra. Intelectuais das mais diversas reas; Comunicadores; Artistas de TV; Jornalistas, entre outros foram convidados a emitir sua opinio a respeito do novo sistema [o de cotas] que na opinio de muitos, ameaava a Democracia Racial Brasileira [O MITO]. Por outro lado, ativistas, pesquisadores e outros tantos intelectuais explicavam como e por qu o sistema de cotas era necessrio para uma efetiva igualdade na sociedade brasileira que ao longo dos anos alijou negros e indgenas para no citar todas as categorias sociais e raciais discriminadas - da educao, do trabalho e de outras esferas da vida econmica e social [ O FATO].

    fato que o debate dividiu opinies, fato tambm que o sistema de cotas (raciais) j so uma realidade em grande parte das Universidades Pblicas Brasileiras, mas a nossa discusso no cessa neste artigo (ou pelo menos no deveria), uma vez que precisamos discutir agora uma outra poltica afirmativa; a da permanncia material e simblica destes jovens, ingressos pelo sistema de reserva de vagas, nas Universidades. Se no basta ter acesso ao ensino superior, um erro considerar as polticas de ao afirmativa, dado o seu conceito, apenas como cotas na Universidade. Evidentemente cabe a discusso sobre o acesso, incluindo a as escolhas pelo tipo de curso, mas tambm as condies materiais para o estudo, quais sejam transporte, alimentao e aquisio de textos e livros (permanncia material), bem como as condies de insero ou de sobrevivncia no sistema de ensino (permanncia simblica).

    O debate sobre as aes afirmativas faz rever crenas e pressupostos que sustentam a identidade brasileira, sobretudo o mito da democracia racial. O debate sobre aes afirmativas em educao, por sua vez, traz tona a possibilidade da quebra de privilgios, uma vez que apenas um segmento social tinha possibilidades de acesso a todos os cursos sobretudo os mais nobres- da

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    Universidade. No se pode negar que o nvel Universitrio (NU) ainda um distintivo social em nosso pas.

    i Ttulo inspirado no artigo Entre o mito e os fatos: racismo e relaes raciais no Brasil de Carlos Hasenbalg (1995)

    ii Aluna do Programa de Ps Graduao em Educao Doutorado (UFBA) e Bolsista CAPES

    iii No anos de 1951 e 52 a UNESCO patrocinou uma srie de estudos sobre as relaes raciais no Brasil. As pesquisas

    foram desenvolvidas no Nordeste e Sudeste e objetivou apresentar ao mundo a experincia das relaes raciais julgadas singular e bem sucedidas. iv

    Grifo meu v A Frente Negra Brasileira foi fundada em 16 de setembro de 1931 e durou at 1937, tornando-se partido poltico

    em 1936. Foi a mais importante entidade de afro-descendentes na primeira metade do sculo, no campo scio-poltico.

    vi Este ltimo item s ser implementado definitivamente em 2003 atravs da Lei Federal n 10.639 que altera a

    LDB e insere as disciplinas Histria da frica e Cultura Africana e Afro Brasileira nos Currculos Escolares. vii

    Este militante-intelectual dos Movimentos Negros brasileiros havia retornado ao Brasil em 1981 do seu auto-exlio (Cf. Nascimento apud Contins, 2005; Semog e Nascimento, 2006). Ele se candidatou a uma vaga no parlamento brasileiro pelo Partido Democrtico Trabalhista (PDT) do Rio de Janeiro, nas eleies de 1982. Concretamente, Abdias foi eleito como suplente de Deputado Federal, mas como o ento governador eleito do Estado do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, convocou alguns deputados federais do seu partido ou coligao para serem secretrios de Estado, abriram-se vagas para alguns suplentes exercerem o mandato de deputado federal na legislatura de 1983-1986, da Cmara dos Deputados (Santos; 2007). Neste mesmo ano, tambm como suplente, foi eleito o Deputado Carlos Alberto Oliveira (Ca) que tambm ganhou assento na Cmara e foi autor da Lei 7.716 primeira Lei Brasileira a prever expressamente o racismo como inafianvel e imprescritvel (Reis; 1998 mimeo). viii

    Em 21 de maro - Dia Internacional de Combate Discriminao Racial - foi criada a SEPPIR. Trs meses aps a posse do Presidente eleito. ix

    O PL n 3627/2004 estabelece que: Art. 1 As instituies pblicas federais de educao superior reservaro, em cada concurso de seleo para ingresso nos cursos de graduao, no mnimo, cinqenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino mdio em escolas pblicas. Art. 2 Em cada instituio de educao superior, as vagas de que trata o art. 1 sero preenchidas por uma proporo mnima de autodeclarados negros e indgenas igual proporo de pretos, pardos e indgenas na populao da unidade da Federao onde est instalada a instituio, segundo o ltimo censo da Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE.

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    REFERNCIAS

    ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em So Paulo (1888-1988). Bauru: Edusc, 1998.

    BARBOSA, Mrcio (Org.). Frente Negra Brasileira: depoimentos. So Paulo: Quilombhoje, 1998.

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    CARDOSO, Fernando Henrique. Pronunciamento do Presidente da Repblica na abertura do seminrio multiculturalismo e racismo. In: SOUZA, Jess (Org.). Multiculturalismo e racismo: uma comparao Brasil-Estados Unidos. Braslia: Paralelo 15, 1997.

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