Carmem Barreto

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  • CARMEM LCIA BRITO TAVARES BARRETO

    A PSICOLOGIA CLNICA E O MAL-ESTAR CONTEMPORNEO : IMPASSES E RE-SIGNIFICAES

    MESTRADO EM PSICOLOGIA CLNICA

    UNICAP / PERNAMBUCO

    2001

  • CARMEM LCIA BRITO TAVARES BARRETO

    A PSICOLOGIA CLNICA E O MAL-ESTAR CONTEMPORNEO : IMPASSES E

    RE-SIGNIFICAES

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Universidade Catlica de Pernambuco, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia, sob a orientao dos Professores Doutores Zeferino Rocha e Henriette Morato.

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA CLNICA COORDENAO GERAL DE PESQUISA E PS-GRADUAO

  • COMISSO JULGADORA

    Dissertao aprovada em de de 2001

    Prof Henriette Morato (orientadora) Prof Vera Cury Prof Jesus Vasquez

  • RESUMO Este estudo tem como objetivo compreender o mal-estar contemporneo

    partindo da experincia clnica. Traduz um verdadeiro testemunho da autora

    enquanto pesquisadora, psicoterapeuta e supervisora. Parte de inquietaes

    desalojadoras experienciadas na clnica e utiliza como objeto de reflexo

    terica a Abordagem Centrada na Pessoa, mais especificamente, a Terapia

    Centrada no Cliente.

    Realiza uma leitura crtica da teoria da Terapia Centrada no Cliente,

    analisando a concepo de cincia e a trajetria conceitual empreendida por

    Carl Rogers. Partindo dessa analise, aponta para a insuficincia dos conceitos

    de Tendncia Atualizante e Angstia para acolher e dar passagem ao mal-estar

    contemporneo, indicando a necessidade de uma outra via de acesso que

    apreenda a condio fundamental e originria do homem. Por fim, apresenta o

    conceito de angstia de Heidegger enquanto possvel contribuio para

    fecundar e re-significar a prtica clnica.

    Como resultado do percurso empreendido, a autora revela o momento

    de trnsito em que se encontra, encaminhando-se para uma clnica psicolgica

    enquanto cuidar (Sorge), vinculada a uma teoria do existir humano que pode

    ser lida como uma tica de aceitao da finitude, da transitoriedade, e dos

    conflitos. Tal teoria enseja uma prtica clnica, que envolva um ato de criao,

    como abertura de acolhimento para algo que no se conhece, com

    disponibilidade para se lanar nas complexidades do ser-a. Aponta que,

    apesar de ter encontrado algumas respostas para as inquietaes

    desalojadoras que motivaram o presente estudo, a temtica abordada, pela sua

    complexidade e dinmica prpria, esteve e estar sempre aberta a novos

    olhares e leituras.

  • Dedicatria

    A Camilo, meu pai, com quem aprendi

    a buscar o saber como atitude

    constante na vida.

    Crizanta, minha me, que sempre

    acreditou no meu potencial.

  • Agradecimentos

    A Juarez, companheiro de mais de trinta anos,

    pela presena nas diversas passagens.

    A meus filhos queridos, Juarez, Mirella e Camila,

    pela compreenso e respeito nos momentos de

    produo solitria .

    A Carlos, irmo amigo,

    pelo apoio em todo o percurso pessoal e

    profissional.

    A Camilo Brito, irmo atencioso,

    pela atitude disponvel para com minha

    famlia.

    Herriette Morato, orientadora cmplice,

    pela escuta atenta e intervenes

    desalojadoras.

    A Zeferino Rocha, orientador cuidadoso,

    pelo incentivo, disponibilidade e superviso

    dedicada do texto.

    Maria Ayres, eterna supervisora,

    pela constante crena nas minha possibilidades

    pessoais e intelectuais.

  • A Jesus Vasquez, mestre amigo,

    pelo cuidado com que orientou a leitura da

    filosofia heideggeriana.

    A Lus Claudio Figueiredo, professor atento e disponvel,

    pelas orientaes fecundas na qualificao do

    projeto, quando os caminhos ainda no

    estavam bem definidos.

    s amigas de jornada, Mrcia Tassinari, Tereza Batista, Edilene, Vera e Zaina,

    pela escuta carinhosa e sensvel, sempre

    presentes.

    Aos meus clientes e estagirios,

    pela confiana e inquietaes compartilhadas.

    Aos meus colegas de turma,

    pelos momentos de alegria e desalojamento

    que, juntos, vivenciamos, durante todo o

    percurso do Mestrado.

    Aos professores amigos, lvaro Negromonte, Luza Santos e Simone Bergamo,

    pela reviso criteriosa e cuidadosa do texto.

    UNICAP, em particular, ao Magnfico Reitor desta Universidade e a Decana

    do CTCH,

    pela oportunidade e apoio concedidos.

  • SUMRIO

    Apresentao 01

    I - Situando o que merece ser interrogado 05

    1 Interrogando inquietaes desalojadoras 06

    2 Delineando o cenrio do mal-estar contemporneo 16

    3 Circunscrevendo o mal-estar na clnica contempornea 27

    II Realizando uma Leitura Crtica da Teoria Rogeriana 37

    1 A concepo de cincia na Terapia Centrada no Cliente 42

    2 Terapia Centrada no Cliente: estudo crtico de alguns construtos

    tericos

    48

    3 A concepo rogeriana de Angstia 54

  • III Acolhendo o Momento de Transio 62

    1 A cincia contempornea e a constituio de seus modos de

    subjetivao

    65

    2 A Angstia para Heidegger 69

    3 A Abordagem Centrada na Pessoa 74

    IV Re-significando a minha clnica : partindo de uma certeza

    abalada...

    86

    1 Revisitando a minha clnica 89

    2 Iniciando um novo percurso : re-significando a minha clnica 96

    3 Tecendo algumas consideraes finais no conclusivas... 107

    Referncias bibliogrficas 111

  • Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa, Faa at mais rubra a brasa Da lareira a abandonar! Triste de quem feliz! Vive porque a vida dura. Nada na lama lhe diz Mais que a lio da raiz Ter por vida a sepultura. Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem. Ser descontente ser homem. Que as foras cegas se domem Pela viso que a alma tem! E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra ser theatro Do dia claro, que no atro Da erma noite comeou.

    Fernando Pessoa

  • APRESENTAO

    O tema deste trabalho j residia inquieto em mim. Difcil foi falar, foi

    descrever a experincia que lhe deu origem. Aps percorrer um longo caminho,

    cheio de curvas, ficou claro que meu interesse era compreender o mal-estar

    contemporneo partindo da minha experincia clnica.

    A clnica psicolgica tem apontado, com insistncia, para o sofrimento

    do homem contemporneo, vivendo num mundo perturbado e conturbado, em

    um momento em que identificamos conjunes, descentramentos, disfunes e

    coincidncias na cincia, na economia, na poltica e na cultura. Vivemos, nesta

    passagem de sculo, um momento de transio com a radicalizao das

    conseqncias da modernidade ao lado de sinais que apontam para a

    emergncia de uma nova ordem. O homem contemporneo encontra-se

    mergulhado em um universo de eventos que no consegue compreender

    plenamente, e que parecem estar fora de seu controle. Vive mudanas

    dramticas e abrangentes que apresentam-se, na sua extensionalidade e na

    sua intencionalidade, mais profundas do que a maioria das mudanas dos

    perodos precedentes.

    Enquanto psicloga clnica, vivo tambm este momento de passagem e

    questiono se os instrumentos interpretativos da Psicologia possibilitam a

    compreenso desse processo. Para dar encaminhamento a esses

    questionamentos recorro, nessa Dissertao, minha experincia clnica,

    utilizando como referncia, para subsidiar a reflexo terica que desenvolvo, a

    teoria da Terapia Centrada no Cliente de Carl Rogers .

    Caminhando dessa direo, assumo a proposta metodolgica de narrar

    minha experincia clnica. Nessa perspectiva, a experincia tomada como

  • 2

    fonte de aprendizagem, na tentativa de possibilitar, desvelar, compreender e

    elaborar os dados diversos que foram se desdobrando ao longo da minha

    atividade clnica. Durante o percurso, vou confirmando e compreendendo, a

    insuficincia de alguns construtos tericos da Terapia Centrada no Cliente para

    subsidiar a escuta, a compreenso e a interveno na ao clnica

    contempornea.

    Tal proposta me conduziu para uma leitura crtica da teoria rogeriana.

    importante ressaltar que o objetivo desta leitura no se constitui em um no

    reconhecimento da contribuio de Rogers para a Psicologia Clnica e a

    Psicoterapia, mas, sim, numa busca de respostas aos conflitos e inquietaes

    que vivi e vivo, enquanto supervisora e psicoterapeuta. Inquietaes que foram

    se acentuando, medida que fui me aprofundando na teoria da Terapia

    Centrada no Cliente, cuja perspectiva parecia-me, muitas vezes, insuficiente

    para compreender a dor de existir, vivenciada pelos clientes.

    Iniciado o processo de desconstruo do modelo terico que

    sustentava minha clnica, percebo a necessidade de caracterizar o momento

    atual, no qual se constituem as subjetividades, demandas e perspectivas do

    homem contemporneo. Para isso, lano mo de contribuies das cincias

    sociais, tentando uma compreenso das transformaes sociais associadas

    modernidade, buscando explicitar as conseqncias do seu projeto para o

    momento contemporneo. Ancorada por essa compreenso, realizo uma leitura

    crtica da trajetria da produo cientfica de Rogers, procurando identificar sua

    vinculao com o projeto epistemolgico da modernidade, ao mesmo tempo

    que procuro contextualizar o clima cientfico, religioso e poltico no qual foi

    formado. Posteriormente, realizo uma anlise crtica dos conceitos de

    Tendncia Atualizante e de Angstia, do modo como so formulados na teoria

    da Terapia Centrada no Cliente, buscando revelar as implicaes de se ter

    esses conceitos como orientadores da prtica teraputica.

    Esta proposta parece ser audaciosa. Mas impe-se na premncia de

    atender a necessidade da minha realidade como uma profissional inserida no

  • 3

    momento contemporneo, vivendo os impasses e desafios que se apresentam

    Psicologia Clnica. Situao esta que instiga minha preocupao e aumenta

    minhas inquietaes.

    Nesse momento do percurso, abordo algumas transformaes que

    estamos vivendo e que nos levam para os limiares do contemporneo,

    visitando algumas regies conceituais, especialmente da Filosofia, da Fsica e

    da Qumica. Regies que, apesar de apresentarem campos de conhecimentos

    singulares, apresentam ressonncia entre eles, procurando dar corpo aos

    sinais do nosso tempo que marcam, por produzir a sensao de rompimento

    das figuras atuais, indicando para a emergncia de novas figuras. Nesse

    percurso, ressalto as contribuies de Ilya Prigogine e detenho-me na

    perspectiva heideggeriana do existir humano.

    Fecundada pelo encontro com a dimenso heideggeriana de angstia e

    vivendo um processo de apropriao da metamorfose da cincia indicado por

    Prigogine, inicio uma revisita produo rogeriana, agora no mais circunscrita

    ao perodo da Terapia Centrada no Cliente. Foco minha ateno para o perodo

    da Abordagem Centrada na Pessoa e analiso alguns artigos escritos por

    Rogers nessa poca.

    No final dessa revisita constato a dificuldade de Rogers para

    desvincular-se da filosofia da conscincia e da representao, no

    conseguindo incorporar sua noo de subjetividade, fenmenos estranhos a

    essa orientao. Tais fenmenos, revelados nos fragmentos de falas de alguns

    clientes, demandam outra via de acesso que apreenda a condio fundamental

    e originria da condio humana. Indico, ento, a angstia, compreendida

    numa perspectiva heideggeiana, como essa outra via de acesso, j que a

    dimenso rogeriana de angstia se mostrou insuficiente para acolher tais

    fenmenos.

    No embate desses impasses revisito a minha clnica, trabalhando com

    fragmentos de falas de alguns clientes, escolhidos intencionalmente, em funo

    da relevncia que apresentavam possvel manifestao da disposio afetiva

  • 4

    de angstia. Encontro nessas falas os elementos bsicos que, segundo Rogers

    (1977), revelariam e explicariam o sentimento de angstia. Mas, encontro

    algo mais. Falam da dor de existir que no se expressa por contedos

    precisos. Desvelam a conscincia enquanto existencial que, correspondendo a

    voz silenciosa da angstia libertadora, aponta para a finitude .

    Finalmente, aponto a Analtica Existencial de Heidegger como uma

    contribuio relevante na constituio de uma concepo de homem que possa

    acolher o estranho-em-ns, que rompe com a familiaridade do cotidiano. Esse

    estranho revelado nas falas de clientes como algo que no pode ser

    nomeado, que tudo e nada ao mesmo tempo.

    Dessa forma, encaminho-me para uma clnica psicolgica como um

    cuidar (Sorge).

    Atitude por demais ousada e, talvez, utpica. Mas, sem ela no

    avanamos nem encontramos coragem para criticar e re-significar o que, na

    maioria das vezes, assumimos como pronto e acabado. Sem essa utopia no

    poderia caminhar na direo de construir a minha histria enquanto terapeuta e

    supervisora, teorizando e re-significando minha prtica. assumindo este

    desafio e, buscando uma compreenso terica mais prxima do fenmeno

    clnico, que desenvolvo essa Dissertao.

  • 5

    I - SITUANDO O QUE MERECE SER INTERROGADO

    O corpo que atravessa aprende certamente um segundo

    mundo, aquele para o qual se dirige, onde se fala outra

    lngua. Mas ele se inicia sobretudo num terceiro, pelo

    qual transita.

    Michel Serres

    Este trabalho comeou j h algum tempo. A direo, o tema de

    interesse j residia inquieto em mim. Difcil foi falar, foi escrever sobre a

    experincia que lhe deu origem. Experincia que advm da minha prtica

    clnica, enriquecida pela experincia enquanto supervisora de estgio.

    Desde o incio do Mestrado, j no processo de seleo, fazia tentativas

    de dizer algo sobre minhas inquietaes, mas o que consegui, naquele

    momento, foi escrever sobre A compreenso e o lugar da Abordagem

    Centrada na Pessoa no espao cientfico-sociocultural contemporneo. No

    projeto, transformado em artigo (Barreto,1999), abordo a crise instalada na

    teoria da Terapia Centrada no Cliente, procurando, atravs do resgate da

    evoluo da produo rogeriana, identificar as influncias e mudanas que

    foram sendo processadas, articulando-as demanda contempornea. Concluo,

    acreditando que as mudanas realizadas por Rogers, na dcada de oitenta,

    no foram suficientes para sistematizar uma nova fase na teoria da Terapia

    Centrada no Cliente, apesar de possibilitar a construo e reformulao de

    alguns conceitos tericos, numa tentativa de abranger a proposta cientfica da

    contemporaneidade.

    Em junho de 1999, momento em que precisava apresentar o projeto de

    pesquisa para a comisso de professores do mestrado, percebi que a proposta

    inicial no mais me instigava, talvez esgotada no momento em que transformei

    o projeto em artigo. provvel que, no momento em que me apropriei do tema,

    assumindo publicamente uma leitura pessoal e um posicionamento com

    relao teoria da Terapia Centrada na Pessoa, esta etapa do meu processo

  • 6

    tenha sido atendida. O que restava? Restava a minha inquietao com relao

    prtica clnica neste momento contemporneo. Mas, como iniciar este

    percurso crtico partindo da experincia clnica? Como apresentar minhas

    inquietaes e dvidas?

    Buscando um caminho, retomo minha produo cientfica da dcada de

    noventa, procurando encontrar uma direo, algo que possa esboar um

    contorno e orientar meu pensar, j que apresenta registros de minha

    experincia e tem os germes de minhas inquietaes. Mergulho, ento, na

    colcha de retalhos dos meus textos buscando, talvez, um fio condutor.

    Trabalhos escritos para serem apresentados em situaes especficas:

    congressos, palestras, debates, encontros regionais, nacionais e internacionais

    da Abordagem Centrada na Pessoa.

    1 - Interrogando inquietaes desalojadoras

    Percebo que h uma ordem implcita na minha produo, que retrata um

    processo em movimento, que se organiza e se desorganiza conforme o foco,

    como um caleidoscpio. Neste momento, sinto-me seduzida pela questo do

    tempo, seduo que vivida intensamente atravs dos poemas de Jorge Lus

    Borges, principalmente quando na Nova Refutao do Tempo indica:

    Negar a sucesso temporal, negar o eu, negar o universo

    astronmico so desesperaes aparentes e consolos secretos.

    Nosso destino [...] no espantoso, por irreal; espantoso porque

    irreversvel e definido. O tempo a substncia de que sou feito. O

    tempo o rio que me arrebata, mas eu sou o rio; o tigre que me

    destri, mas eu sou o tigre; um fogo que me consome, mas eu sou

  • 7

    o fogo. O mundo desgraadamente real; eu , desgraadamente,

    sou Borges. (Borges, 1989:79)

    Sob esta inspirao, retomo meus textos e percebo que podem ser

    agrupados em quatro momentos.

    Primeiro momento:

    Abordagem Centrada na Pessoa: Pontos de abertura e viso holstica

    da Realidade maro de 1992

    Segundo momento:

    Evoluo da Terapia Centrada no Cliente maio de 1996

    Evoluo das Teorias do Conhecimento: da mitologia fenomenologia

    outubro de 1996

    Terceiro momento:

    Repensando a clnica-escola: da prtica teoria maio de 1997

    Repensando a formao do psiclogo setembro de 1997

    A clnica escola na perspectiva contempornea setembro de 1997

    Quarto momento:

    Cincia : da modernidade contemporaneidade outubro de 1997

    Ressonncias subjetivas em tempos de violncia agosto de 1998

    Abordando a constituio das subjetividades contemporneas numa

    perspectiva fenomenolgico-existencial setembro de 1998

    A compreenso e o lugar da Abordagem Centrada na Pessoa no espao

    cientfico-sociocultural contemporneo outubro de 1998

    Todo este caminho est apoiado num fazer crtico enquanto psicloga

    clnica e supervisora de estgio, formada segundo os princpios da Abordagem

    Centrada na Pessoa A.C.P. Tentando compreender este caminhar, percebo

    no primeiro momento, na A.C.P. dos anos oitenta, a constatao de

  • 8

    possibilidades para uma leitura cientfica vinculada perspectiva holstica da

    realidade, quando indico que

    Rogers evoluiu bastante na maneira de perceber a realidade e

    constatamos que sua obra reflete abertura e receptividade para as

    novas descobertas da cincia, tendo apresentado, gradativamente,

    uma viso holstica, que culmina com a viso evolutiva da

    conscincia e o reconhecimento da dimenso transcendental e de

    unidade da pessoa com o universo. (Barreto, 1992:91)

    Este trabalho j apontava para a preocupao com a maneira como a

    realidade percebida e como o conhecimento cientfico foi sendo construdo.

    Tal apontamento parece ter me mobilizado para, no segundo momento,

    pesquisar e tentar refazer o caminho das teorias do conhecimento, vinculando-

    as aos sistemas psicolgicos, concentrando a ateno na dimenso evolutiva

    da teoria da Terapia Centrada no Cliente. Neste momento, procurava

    encontrar, na prpria A.C.P., respostas para as questes com que me

    deparava na clnica e para as quais no encontrava respostas, reconhecendo

    que Rogers apesar de ter delineado indicadores que apontam para a

    necessidade de reformulao na Teoria da Terapia Centrada no Cliente, no os

    sistematizou de forma consistente (Barreto, 1999:39).

    Acompanhando o percurso indicado pelos meus textos, percebo que,

    conforme vou reconhecendo e me apropriando da necessidade de uma leitura

    crtica da teoria da Terapia Centrada no Cliente, fico mais tranqila e dirijo

    minhas reflexes para repensar o funcionamento da clnica-escola e a

    formao do psiclogo, como se este passo fosse necessrio para poder

    sistematizar as minhas inquietaes sobre a prtica clnica. Ou ser que foi um

    afastamento, uma fuga, j que falar da minha prpria clnica parecia estar

    sendo difcil ?

  • 9

    As reflexes iniciadas em torno da formao do psiclogo e do

    funcionamento da clnica-escola dirigem minha ateno para as questes

    trazidas pelo momento contemporneo, o que motivou a realizao da

    pesquisa Caracterizao da clientela e avaliao dos servios prestados

    comunidade pela clnica-escola de psicologia da UNICAP1. A anlise

    qualitativa dos resultados dessa pesquisa evidencia um sofrimento ou mal-

    estar, que parece estar vinculado ao momento contemporneo, indicando a

    necessidade de criar condies que suportem o estranhamento das paisagens

    que o tempo redesenha no rastro dos acontecimentos(Rolnik, 1994:4). Tais

    observaes me levaram a procurar compreender melhor o que chamamos de

    momento contemporneo, geralmente vinculado falncia do projeto

    civilizatrio moderno, em que nos deparamos com uma sintomatologia singular

    que configura um discurso particular, reflexo da produo de uma rede de

    saber, de poder e de subjetivao que configura e define o momento atual.

    Tal preocupao me levou, inicialmente, para um estudo sobre a

    possvel ruptura entre a cincia moderna e a cincia contempornea.

    Comeava, ento, a delinear-se um quarto momento na minha produo,

    quando voltei minha ateno para o processo de remodelao conceitual nas

    cincias, como apresentado por Ilya Prigogine.

    Nesse momento, procurei fazer uma retrospectiva da construo dos

    conceitos cientficos e dirigi minha ateno para as formulaes apresentadas

    por Prigogine(1991 e 1996), que rompe com a noo de tempo cientfico

    tradicional, no qual a dimenso humana est imersa na previsibilidade e na

    reversibilidade temporal. Nessa perspectiva considerei que, a

    metamorfose do tempo, indicada por Prigogine,

    apresenta o mundo como fruto de uma co-existncia que

    em nada pacifica, pois ela tem por efeito um trabalho

    ____________________ 1 Pesquisa desenvolvida na Clinica de Psicologia da Universidade Catlica de Pernambuco, no perodo de 01/09/98 a 30/06/99 em parceria com a Prof Vera Oliveira. Foi realizada com o apoio do Programa de Iniciao Cientfica, UNICAP-PIBIC com a participao de dois alunos bolsistas do Curso de Psicologia e encontra-se para consulta na blioteca da UNICAP.

  • 10

    permanente de produo, na qual o homem se modifica,

    modifica o outro e ao seu ambiente, num trabalho

    permanente de afetao, superando as noes de

    neutralidade e reversibilidade da cincia clssica.

    (Barreto, 1999:16)

    Foi um momento muito frtil em que passei a aprofundar a reflexo

    sobre as ressonncias que este momento contemporneo traz constituio

    das subjetividades, intensificando experincias de desestabilizao e

    estranhamento, apontando para mudanas do discurso social e do discurso na

    clnica.

    Preocupada com tais experincias de desestabilizao e estranhamento

    que intensificam e do nova forma manifestao da sensao de mal-estar,

    inevitvel condio humana, reformulei o projeto inicial do Mestrado e

    comecei a produzir em torno da Psicologia Clnica e o sofrimento humano no

    final do sculo XX, ttulo do segundo projeto apresentado para a Comisso de

    professores, durante o primeiro ano do curso. Este tema permaneceu at o

    final de 1999, permeado por tentativas de compreender o momento

    contemporneo, referenciadas pela proposta de Heidegger de desconstruo

    da tradio ocidental da metafsica. Nesse momento, o contato com a Analtica

    Existencial marcante para o meu processo, principalmente o modo como

    apresenta a angstia que, por no possuir objeto real nem sada racional

    possvel, faz parte da nossa vida, apontando para o nada, espao vazio, no

    qual o ser-a pode aparecer, j que se encontra suspenso no nada. Essa

    perspectiva aponta para uma dimenso muito mais ampla do que aquela que

    respalda a clnica centrada no cliente, direcionada para a manuteno do bem-

    estar e pela prevalncia da razo, na qual a angstia resultado do estado

    de incongruncia entre a estrutura do self e a experincia do organismo.

    Mobilizada pela dimenso heideggeriana da angstia, percebo que,

    gradativamente, essa perspectiva vai modificando minha escuta clnica e

    redirecionando minhas intervenes. Procuro, ento, atravs desses

    desdobramentos, orientados por uma leitura fenomenolgica, fundamentada na

    compreenso da condio humana como apresentada por Heidegger, apontar

  • 11

    possibilidades para uma contextualizao da clnica psicolgica

    contempornea.

    No incio de 2000, finalmente, aps tal caminho cheio de curvas,

    esclareceu-se meu interesse em compreender o mal-estar contemporneo

    partindo da experincia clnica. Para isto, tomo como objeto de reflexo terica

    a Abordagem Centrada na Pessoa, mais especificamente a teoria da Terapia

    Centrada no Cliente, por ser ela a fundamentao da minha formao

    enquanto psicoterapeuta e respaldo para minha atuao enquanto supervisora

    de estgio. Nessa clareira, deparo-me com algumas bifurcaes no caminho

    percorrido, em que questiono se os referenciais tericos, apresentados por

    essa teoria, oferecem subsdios que possibilitem compreender as modalidades

    de constituio das subjetividades e a experincia de mal-estar no momento

    contemporneo. Paralelamente, percebo que a minha clnica j apresenta

    modificaes que apontam para uma leitura compreensiva, respaldada por uma

    perspectiva fenomenolgica hermenutica heideggeriana. Como apresentar tal

    processo? Que mudanas e direes apresenta?

    Tentando compreender o caminho at agora percorrido, tornou-se

    evidente que os questionamentos apresentados apontavam para tentativas de

    respostas a uma possvel insuficincia de alguns construtos tericos da Terapia

    Centrada no Cliente para circunscrever o campo do mal-estar contemporneo.

    Contudo revelaram-se respostas construdas teoricamente que, partindo do

    reconhecimento prvio das limitaes da teoria da Terapia Centrada no Cliente,

    no explicitavam nem apontavam a fonte da busca por respostas, isto , no

    contemplavam nem amparavam situaes de crise vividas. Pelo contrrio, os

    construtos tericos, que antes respaldavam minha prtica, agora pareciam

    colocar-me numa camisa de fora. Eis-me no ponto central, o que me deixa

    ao mesmo tempo, aliviada e assustada. Afinal, falar da minha prtica, assumir

    minhas crises com a A.C.P., depois de tantos anos assumida como referncia

    direta, no fcil. mais fcil teorizar, tomando como referencial construes

    tericas das cincias ou da Filosofia, ou, ento, a prtica clnica do prprio

    Rogers.

  • 12

    Neste momento, a explicitao das minhas inquietaes se impe.

    Preciso apresentar os rudos que deram origem a essas mesmas inquietaes,

    ou seja, a minha experincia clnica abalando minhas convices. Inicial e

    timidamente, em alguns atendimentos, comeou a impor-se uma sensao de

    mal-estar, ao vislumbrar que minha compreenso sobre os significados da

    narrativa trazida pelo cliente estava fundamentada por referencial terico, que

    limitava a apreenso dos fenmenos que emergiam, ou poderiam emergir na

    relao teraputica. Minha experincia revelava que o olhar e a compreenso

    clnica, respaldadas pela teoria da Terapia Centrada no Cliente, dificultavam a

    escuta do sofrimento do homem contemporneo, conseqncia provvel do

    mal-estar existente na cultura e nas organizaes sociais atuais. Comecei a

    distinguir a existncia de certos pontos cegos na teoria da clnica, que

    evidenciavam a insuficincia de alguns construtos tericos da Terapia Centrada

    no Cliente, no sentido de apreender as novas inscries das subjetividades no

    mundo contemporneo. Mas que pontos cegos seriam esses? Afinal, como

    so constitudas as subjetividades atualmente?

    Primeiramente, tornou-se evidente que a clientela revela uma demanda,

    constituda por um contexto sociocultural diferente daquele que respaldou a

    construo terico-cientfica de Rogers, influenciada pelos ideais do

    iluminismo, que apostava no progresso da cincia e no conhecimento racional

    como condies para resolver o sofrimento humano. O cliente fala de uma

    forma de mal-estar que representa o esprit du temps contemporneo, diferente

    daquele da cultura americana dos anos quarenta e cinqenta, sustentada por

    valores moralistas respaldados pela represso, perodo em que Rogers

    estruturou sua proposta para a psicoterapia centrada no cliente. Uma anlise,

    ainda que simplista do contexto, j nos permite compreender, em parte, a

    insuficincia apontada, reconhecendo que a teoria rogeriana representa uma

    construo oriunda de um crivo de condies historicamente determinadas, na

    qual a represso era a prtica de controle social mais freqente. Mas de que

    mal-estar nos fala o cliente?

    O cliente nos fala da experincia de desamparo, de no conseguir se

    situar no mundo atual, sentindo-se perdido, sem valores, sem tradies,

  • 13

    experienciando situaes de profundo desrespeito e desalojamento, no

    conseguindo responder prontamente s solicitaes afetivas, familiares,

    sexuais, profissionais e econmicas. Queixa-se da crise no casamento, do

    relacionamento com os filhos, da dificuldade em definir limites e de assumir

    novos papis, tanto na famlia como na sociedade. No se refere mais fadiga,

    mas fala de stress; no se queixa de tdio, mas sente-se angustiado e at

    mesmo depressivo; no relata, com freqncia, experincias de medo ou

    fobias, mas sente-se em pnico. Utili za, cada vez mais, drogas lcitas e ilcitas

    para diminuir sua sensao de vazio, de impotncia diante das solicitaes

    externas, frente s quais se sente desamparado e desalojado. Refere-se a

    sentimento de culpa e experincia de vazio ao perceber que os valores

    religiosos e morais nos quais fora educado, no se apresentam mais teis

    para atingir a felicidade e a realizao pessoal. Sofre com a ausncia de

    limites e a proliferao de atos transgressores e violentos, constatando que a

    tnica do sem limite se manifesta hoje nos comportamentos, nas falas e nas

    produes. Refere-se a uma perplexidade diante dos fenmenos sociais,

    polticos e econmicos da atualidade, experienciando, com angstia, uma

    sensao de banalizao da vida, pois pouca ou nenhuma ateno dada s

    crises nas instituies, s mortes decorrentes da violncia, aos conflitos

    mundiais. Ouvindo tais falas, pergunto -me: para o que aponta tanto mal-estar?

    Essas falas me desalojam, apontando para uma escuta de outra ordem,

    j que a escuta garantida pela teoria da Terapia Centrada no Cliente

    apresenta-se insuficiente para acolher tais falas. Qual ser, ento, a orientao

    da clnica psicolgica hoje?

    Abordar este tema desafiante e at mesmo assustador, pela

    complexidade e diversidade de elementos e situaes envolvidos. Mas , ao

    mesmo tempo, apaixonante, instigante e emergente , j que se impe com to

    forte urgncia como possibilidade de compreenso do processo de

    subjetivao do homem contemporneo. A clinica psicolgica tem apontado,

    com insistncia, para a experincia do homem contemporneo, vivendo num

    mundo perturbado e conturbado, numa poca que pode ser considerada de

    transio entre o paradigma da cincia moderna e um novo paradigma, de

  • 14

    cuja emergncia se vo acumulando sinais (Santos, 1989:11). Sinais que

    apontam o deslizamento para atitudes fundamentalistas e niilistas ao lado da

    globalizao da economia, propiciando, atravs dos avanos tecnolgicos, uma

    aproximao dos universos, intensificando as misturas e pulverizando as

    diferenas. Cenrio este que aponta para a diluio da suposta diviso entre

    psicologia individual e social, para a abolio entre espao publico e privado,

    evidenciando uma situao em que social e individual esto imbricados.

    Como conseqncia dessa transio, vivida no momento atual, as

    referncias que respaldavam a compreenso do sujeito moderno, ancoradas

    pela conscincia e pela racionalidade instrumental, esto sendo questionadas,

    bem como as figuras subjetivas concebidas como relativamente estveis, que

    respaldavam a construo desse modo de ser. Modo que se apresenta com a

    noo de ordem ligada ao equilbrio, onde o sujeito fundamento de sua

    prpria existncia : funda sua liberdade e constri sua essncia.

    Deparamo-nos, hoje, com contornos subjetivos efmeros, nos quais a

    fragilidade das figuras de subjetividade ocupa posio fundamental. Apresenta-

    se como fragmentao do espao e, ao mesmo tempo, como contrao do

    espao-tempo, no sendo mais apenas uma nova forma de subjetivao, mas

    sim a matria prima, por meio da qual outras formas de subjetivao so

    constitudas. Diante dessa situao, como descrever o mal-estar

    contemporneo?

    Falar do mal-estar contemporneo leva, diretamente, para a questo da

    subjetividade, pois como indica Birman (1999) no se pode falar de mal-estar

    sem que se aluda ao sujeito, j que o mal-estar se inscreve no campo da

    subjetividade. [...] o mal-estar a matria prima sempre recorrente e

    recomeada para a produo do sofrimento nas individualidades.(p.15).

    Tendo, portanto, o sofrimento do sujeito contemporneo como pano de fundo,

    como tentar desvelar e, at mesmo, traar uma cartografia do mal-estar no

    momento contemporneo? Momento esse que apresenta um modelo de

    cincia em que identificamos conjunes, descentramentos, disfunes e

  • 15

    coincidncias numa dimenso tica e esttica do ser humano e de seus

    contextos sociais e culturais. Momento em que o avano das novas tecnologias

    comunicacionais e cognitivas produzem efeitos nas estruturas clssicas e

    modernas da verdade, do sujeito, da histria e do mundo.

    Essa situao representa um dos fenmenos mais perturbadores de

    nossa poca, implicando um dar-se conta da reviravolta subjetiva da

    realidade, direcionando o foco de interesse dos pensadores contemporneos

    para os processos de constituio da subjetividade e os impasse

    experienciados no momento contemporneo. Um ponto indicador dessa

    reviravolta a compreenso da constituio da subjetividade fora do mbito

    da identidade e da representao, voltada , agora, para a nfase nos mltiplos

    processos de subjetivao, engendrados nas dimenses sociais, culturais e

    temporais.

    Iniciado o processo de compreenso do mal-estar do cliente na clnica e

    delineada a desconstruo do modelo que no o sustentava, encaminho

    minha interrogao. Torna-se, agora, necessrio caracterizar o momento

    contemporneo no qual se constituem subjetividades, demandas e

    perspectivas. Para isso, lano mo de contribuies das cincias sociais,

    tentando uma compreenso das transformaes sociais associadas

    modernidade, para delinear uma possvel aproximao com o cenrio deste

    final de sculo.

    2 - Delineando o cenrio do mal-estar contemporneo

    Para delinear este tema to desafiador que aborda as questes

    levantadas pelo embate da modernidade/ps-modernidade, optamos por uma

    anlise sociolgica na tentativa de compreender as conseqncias das

    alteraes econmicas, polticas e culturais da constituio moderna no

    momento contemporneo. Como suporte terico para esta tarefa recorremos

  • 16

    s idias apresentadas por Zigmunt Bauman e Anthony Giddens, autores

    contemporneos que analisam a constituio da modernidade, explicitando as

    conseqncias do seu projeto para o momento contemporneo.

    No apagar das luzes deste conturbado sculo XX, deparamo-nos com

    um momento de transio que traz em seu bojo uma confrontao crtica

    racionalidade moderna, representando, desse modo, uma crtica profunda ao

    projeto da modernidade. Estamos vivendo um perodo de radicalizao das

    conseqncias da modernidade, ao lado de sinais que apontam para a

    emergncia de uma nova e diferente ordem nas formas de conhecimento.

    O projeto da modernidade encontra-se em crise; o pensamento

    contemporneo decreta a morte da subjetividade moderna em qualquer uma

    das suas dimenses, tanto como sujeito universal quanto como indivduo

    indiviso e auto-centrado. O momento contemporneo nasce como crtica e

    problematiza a maneira de como conhecer e dizer a verdade. Mas como

    compreender este momento contemporneo e seus desafios? Em que consiste

    a situao atual? Que processos, que elementos tornaram esse fim de sculo

    to conturbado? Estariam os projetos delineados pela modernidade

    concludos? Ou, inacabados, apenas estariam acenando para vitrias que

    ainda no se realizaram completamente, produzindo algo ainda no muito

    claro? A contemporaneidade nos escapa?

    Alguns autores argumentam que ainda no vivemos em um mundo ps-

    moderno, reconhecendo que uma possvel nova ordem j esteja a caminho ,

    assumindo, desse modo, que estamos no limiar de uma nova era, a qual as

    cincias sociais devem responder e que est nos levando para alm da prpria

    modernidade (Giddens, 1991:11) . H uma tendncia em reconhecer que o

    estado de organizao precedente est chegando a um fim, o que expresso

    nas indicaes ps-modernismo, sociedade ps-industrial.

    Outras discusses sobre essa questo esto fundamentadas nas

    transformaes institucionais que indicam a passagem de um sistema baseado

  • 17

    na manufatura de bens sociais, para outro baseado, mais centralmente, nos

    meios de comunicao e na informao. Um dos aportes que representa este

    enfoque, apresentado por Marcio DAmaral, que entende por

    contemporaneidade: pensar o efeito das novas tecnologias comunicacionais e

    cognitivas sobre as estruturas clssicas e modernas da verdade, do sujeito, da

    histria e do mundo (DAmaral, 1996:13). Para esse autor, o efeito das novas

    tecnologias comunicacionais e cognitivas produz novos desafios e turbulncias

    no nosso momento histrico. preciso lev-las em considerao, pois

    representam, tambm, parte do campo de experincias, onde as modalidades

    da experincia de si e do mundo se constituem.

    Essas questes so, tambm, enfocadas pela Filosofia. Lyotard(1993),

    responsvel pela popularizao da noo de ps-modernidade, caracteriza o

    momento ps-moderno, enquanto condio cultural, pela incredulidade diante

    do metadiscurso filosfico-metafsico nas suas dimenses atemporais e

    universalizantes. Enfoca o conflito da cincia com os relatos, considerando,

    como caracterstica da ps-modernidade, a evaporao da grand narrative.

    Desenvolve, como hiptese de trabalho, o pressuposto de que o saber muda

    de estatuto ao mesmo tempo que as sociedades entram na idade dita ps-

    industrial e as culturas na idade dita ps-moderna (Lyotard, 1993:5). Segundo

    esse autor, o saber cientfico apresenta-se como uma espcie de discurso

    afetado pela incidncia das informaes tecnolgicas. Dessa forma, a

    perspectiva ps-moderna estaria vinculada a uma pluralidade de reivindicaes

    heterogneas de conhecimento, no concedendo, assim, a primazia cincia.

    Segundo Giddens(1991), a desorientao, que acomete o sujeito

    contemporneo, decorre do fato de termos sido apanhados em um universo de

    eventos que no compreendemos plenamente, e que parecem em grande

    parte estar fora do nosso controle (p.12). Sugere que, para resolver essa

    questo, no basta criar novos termos, como ps-modernidade, mas, sim,

    compreender melhor a natureza da prpria modernidade. Esta tem sido

    insuficientemente abrangida pelas cincias sociais, indicando que estamos

    vivendo um momento de radicalizao das conseqncias da modernidade, ao

    lado do contorno de uma nova ordem que ps-moderna.

  • 18

    Diante de tal quadro, percebemos que h um acordo, em diversas reas

    de conhecimento, de que vivemos um momento de transio, no qual os efeitos

    da modernidade esto exacerbados. Tais efeitos constituem o solo em que se

    situa, historicamente, o tipo de subjetividade que se apresenta e desafia a

    clnica psicolgica contempornea. Como nosso interesse tentar identificar

    esses desafios e impasses, impe-se conhecer, primeiramente, como eles se

    apresentam ao homem contemporneo, a fim de poder circunscrever os novos

    cenrios do sofrimento subjetivo. Desse modo, aos poucos vou percebendo

    que escutar esse sofrimento impe no somente a necessidade de uma anlise

    da modernidade e de um diagnstico de suas conseqncias, como tambm a

    caracterizao da emergncia de uma ordem ps-moderna, cujos sinais j se

    fazem notar na era atual. Para atingir esse objetivo, as perspectivas levantadas

    por uma abordagem sociolgica podem facilitar o entendimento das questes

    que nos interessam, pois permitem uma introduo ao estudo da vida social

    moderna. No pretendo, com isso, dizer que ser desenvolvido um estudo

    detalhado dos modos de vida produzidos pela modernidade, mas apenas

    recorrer a algumas de suas explicaes como indicadoras da organizao dos

    modos de subjetivao vigentes, a fim de encaminhar a compreenso dos

    impasses da minha prtica clnica e da teoria que antes a sustentava

    Ao analisar o processo e a natureza da modernidade, Giddens (1991)

    enfatiza a necessidade de sublinhar o conjunto de descontinuidades

    associadas ao perodo moderno, indicando que os

    modos de vida produzidos pela modernidade nos

    desvencilham de todos os tipos tradicionais de ordem

    social, de uma maneira que no tem precedentes. (...)

    Mas as mudanas ocorridas durante os ltimos trs ou

    quatro sculos um diminuto perodo de tempo histrico

    foram to dramticas e to abrangentes em seu impacto

    que dispomos apenas de ajuda limitada de nosso

    conhecimento de perodos precedentes de transio na

    tentativa de interpret-las. (Giddens,1991:14)

  • 19

    Nesse mesmo texto, afirma que as transformaes envolvidas na

    modernidade, tanto em sua extensionalidade (atingindo todo o globo), como em

    sua intencionalidade (alterando caractersticas da existncia cotidiana), so

    mais profundas do que a maioria das mudanas dos perodos precedentes.

    Aponta como caractersticas que marcam esta diferena: o ritmo de mudana,

    o escopo da mudana e a natureza intrnseca das instituies modernas .

    Nas ordens sociais atuais, por conta da tecnologia e das redes de

    comunicao, a condio de mudana extremamente rpida, atingindo

    diferentes reas do globo que so colocadas virtualmente em interconexo.

    Nosso tempo assiste ao surgimento da sociedade da informao,

    marcada pela nfase no conhecimento e pela velocidade alucinante das

    inovaes tecnolgicas e comunicacionais, gerando uma crescente imbricao

    entre realidade virtual e realidade efetiva, cada vez menos diferenciadas pelo

    jogo do simulacro social. Vivemos a conjuno da cincia, da tecnologia, da

    economia, da biologia e da industria, alm de vermos nascer possibilidades de

    manipulao gentica, de prolongamento da vida, que trazem mudanas para a

    condio humana.

    uma ordem que se apresenta como conseqncia da prpria

    modernidade, ao lado de novos indcios de organizao, permeados por sua

    vez, por relaes humanas matizadas pelo simulacro virtual da informao.

    Essas relaes acontecem em um mundo em que o tempo cronolgico e

    existencial passam a sofrer as influncias da virtualidade, o que, ao lado de

    outros elementos decorrentes do processo de transio que vivemos, contribui

    para que o encontro com o outro torne-se uma possibilidade tendencialmente

    remota e que este outro , pouco a pouco, no escute nem a si mesmo.

    Tais reflexes nos encaminham para outro aspecto tambm importante,

    porm pouco enfatizado e compreendido: o dinamismo da ordem social que

    deriva da separao do tempo e do espao. Nas culturas pr-modernas, o

    tempo estava vinculado ao lugar sendo, portanto, impreciso e varivel,

  • 20

    constituindo a base da vida cotidiana. O advento da modernidade, com a

    inveno e difuso do relgio mecnico, arranca o espao do tempo,

    possibilitando relaes com outros ausentes, localmente distantes. Possibilita,

    tambm, o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe, retirando a

    atividade social dos contextos localizados, possibilitando a reorganizao de

    relaes sociais atravs de grandes distncias, retirando-as de uma condio

    de situacionalidade. A desvinculao do tempo e do espao, com a inveno

    da escrita, possibilita outros modos de organizar a ao e a experincia. Nas

    culturas tradicionais, o modo de organizar a ao e a experincia era atravs

    da tradio, que garantia a continuidade do passado, presente e futuro. Nas

    culturas orais, alm da tradio, passa a existir outros modos de organizar a

    ao, que, com a interveno da escrita, expande o nvel do distanciamento

    tempo-espao e cria uma perspectiva de passado, presente e futuro, onde a

    apropriao reflexiva do conhecimento pode ser destacada da tradio

    designada (Giddens, 1991:44).

    Como conseqncia desse processo, as reivindicaes da razo

    instrumental substituram as da tradio, passando a oferecer uma sensao

    de certeza maior do que a apresentada pelos dogmas da tradio. Essa

    sensao de certeza, construda por e atravs de conhecimento

    reflexivamente aplicado, foi, segundo Giddens (1991), fruto de uma

    interpretao errnea, pois no se pode garantir que qualquer elemento do

    conhecimento, constitudo reflexivamente, no ser revisado. Em cincia,

    nada certo, e nada pode ser provado, ainda que o empenho cientfico nos

    fornea a maior parte da informao digna de confiana sobre o mundo a que

    podemos aspirar. No corao do mundo da cincia slida, a modernidade

    vagueia livre (Giddens, 1991:46). Embora os iniciadores da modernidade

    buscassem certezas, atravs da razo, para substituir os dogmas da tradio,

    na realidade, devido circularidade do conhecimento, o que se evidenciou foi a

    constituio de princpios revisveis, por circularem dentro e fora do ambiente

    que descrevem.

    As disjunes, descentramentos, como a ruptura com as concepes

    providenciais da Histria e a dissoluo da aceitao de fundamentos devem

  • 21

    ser vistos, de acordo com Giddens(1991), como resultantes da auto-

    elucidao do pensamento moderno, conforme os remanescentes da tradio e

    das perspectivas providenciais so descartados. Ns no nos deslocamos para

    alm da modernidade, porm estamos vivendo precisamente atravs de uma

    fase de sua radicalizao(p.57).

    Para consubstanciar esse ponto de vista, o autor faz uma anlise

    detalhada dos significados que com maior freqncia so atribudos ps-

    modernidade. Indica que a dissoluo do evolucionismo, o desaparecimento

    da teleologia histrica, o reconhecimento da reflexibilidade meticulosa,

    constitutiva, junto com a evaporao da posio privilegiada do

    Ocidente(ibid,p.59) apontam, no para uma nova ordem, mas para a

    radicalizao da modernidade que perturbadora e significativa, levando a

    um novo e inquietante universo de experincia. Considera que o

    posicionamento, comumente vinculado ps-modernidade, de falta de

    credibilidade nos fundamentos da epistemologia, ao invs de indicar a

    superao da modernidade, muito mais significativo se considerado como a

    modernidade vindo a entender-se a si mesma (ibid, p.54). Desse modo, a

    modernidade estaria vivendo um momento, ao tomar-se a si mesma como foco,

    de constituio de um conhecimento explcito, reflexivo, sobre seu prprio

    modo de funcionar.

    Deparamo-nos, ento, com a problemtica da prpria modernidade que,

    ao revelar-se enigmtica em seu cerne, nos deixa como legado perguntas

    que no so somente do mbito dos filsofos, socilogos ou psiclogos, mas

    que, como fenmenos, filtram-se em ansiedades, cuja presso todos ns

    sentimos, e que constituem o cenrio para a emergncia do mal-estar

    contemporneo.

    O declnio do Ocidente, de acordo com a perspectiva descontinuista

    apresentada pelo autor, representa no o resultado da diminuio do impacto

    das instituies ocidentais mas, ao contrrio, o resultado de sua disseminao

    global, fruto do processo de globalizao poltica, econmica, tecnolgica. A

  • 22

    globalizao considerada como uma das conseqncias fundamentais da

    modernidade e pode ser definida como

    um processo de desenvolvimento desigual que tanto

    fragmenta como coordena, introduzindo novas formas de

    interdependncia mundial, nas quais, mais uma vez no

    h outros. Estas por sua vez, criam novas formas de

    risco e perigo ao mesmo tempo que promovem

    possibilidades de longo alcance de segurana global..

    (Giddens ,1991:174)

    Continuando o processo de tentar compreender os efeitos e impasses

    da modernidade, ressaltamos a perspectiva de Bauman (1999), quando aponta

    para o fato de que o projeto iluminista da modernidade nunca deixou de

    produzir autoconhecimento da sociedade moderna mas esse produto racional,

    ao invs de cumprir a tarefa da ordem, vai desembocar na contingncia do eu

    moderno, da sociedade moderna, pois

    o insight da contingncia representa a auto-iluso das

    modernas cincias sociais que informaram da

    contingncia acreditando descrever a necessidade,

    expuseram a particularidade supondo falar da

    universalidade, deram uma interpretao tradicional

    pretendendo uma verdade extraterritorial e extratemporal,

    mostraram indeciso travestida de aparncia, indicaram o

    provisrio na condio humana crendo-se portadoras da

    certeza do mundo, revelaram a ambivalncia do projeto

    humano quando supunham descrever a ordem natural.

    (Bauman,1999:244/245)

    Tal posicionamento, aponta para o fato de que a clareza e transparncia

    ordenadas para a vida humana, que seriam oferecidas pela razo instrumental,

    no aconteceram, e nos deparamos hoje com a irremedivel contingncia da

  • 23

    existncia humana, com a inevitvel ambivalncia de todas as opes,

    identidades e projetos de vida. Parece , ento , que a proposta da modernidade

    viveu de uma auto-iluso, no conseguindo apresentar um mundo solidamente

    ordenado para ser habitado pelo homem, cuja existncia seria considerada

    moderna na medida em que produzida e sustentada pelo projeto,

    manipulao, administrao, planejamento (Bauman,1999:15). importante

    ressaltar que foi esta auto-iluso, baseada em (falsas)crenas, que sustentou a

    estrutura de poder contemplada pela mentalidade moderna ao proclamar a

    crena na verdade do prprio conhecimento. Em tal estrutura, a verdade passa

    a exercer a funo de uma relao social, constituda numa hierarquia de

    unidades de superioridade e inferioridade, exercendo o poder atravs de uma

    forma hegemnica de dominao.

    Tal reflexo permite uma melhor compreenso do modo de funcionar do

    mundo ocidental que, tendo adotado como modelo a civilizao moderna,

    passa a exercer o domnio sobre o resto do mundo dissolvendo sua alteridade,

    que, por ser considerada como um erro ou como o caos, deveria ser superada

    pela verdade que tinha como proposta instalar a ordem. Nessa perspectiva, a

    diferena significa desordem e caos e todo o esforo do intelecto moderno

    deveria estar voltado para suprimi-la, eliminando tudo o que no pode ser

    definido, classificado, ordenado. Como conseqncia dessa prtica moderna,

    teramos a intolerncia que, na nsia de anular a ambivalncia, exige a

    negao dos direitos e das razes de tudo que no pode ser assimilado a

    deslegitimao do outro (Bauman, 1999:16).

    Apesar de o projeto da modernidade identificar a ordem como o contrrio

    do caos, Bauman(1999) indica que exatamente essa negatividade que

    representa a possibilidade da ordem se constituir. Aponta que ambos, ordem e

    caos, so irmos gmeos e foram concebidos diante do colapso da ordem

    divina do mundo, onde o mundo simplesmente era, sem pensar em como ser.

    Diante disso, o momento de compreenso de uma ordem do mundo pode ser

    considerado como o nascimento da modernidade, que se constituiu como um

    tempo em que se reflete a ordem, criada para restringir o que era natural.

  • 24

    Tais argumentaes nos levam a considerar que a existncia humana

    passa a ser moderna no momento em que contm a alternativa da ordem e do

    caos, apesar de todo o esforo do projeto da modernidade em ordenar o

    mundo, em contrapor preciso semntica ambivalncia, transparncia

    obscuridade, clareza confuso. exatamente dessa luta que se constitui a

    modernidade que, atravs do projeto e do planejamento, busca o controle e a

    manipulao da natureza, perseguindo a classificao dos objetos e dos

    eventos atravs de praticas de separao. Essas prticas buscam a excelncia

    local, especializada, e tm como arcabouo central a oposio, a dicotomia,

    criando uma falsa simetria, em que, o poder capaz de fazer diferena

    centralizado em um dos plos da oposio. O outro plo apresentado como o

    oposto, o exilado, o suprimido, dependendo do primeiro para ser identificado no

    seu isolamento. No entanto, o primeiro que detm o poder diferenciador

    depende do plo suprimido para poder se auto-afirmar.

    Apesar de tentar suprimir o caos, a modernidade precisa dele para poder

    instalar a ordem e construir os conceitos que apresenta como representantes

    de sua ao e modelo. dessa forma que define doena em oposio sade,

    o estrangeiro em oposio ao nativo, o leigo em oposio ao especialista.

    Seguindo essa argumentao, Bauman (1999) indica que a

    ambivalncia seria o refugo da modernidade sendo esta a mais genuna

    preocupao e cuidado da era moderna, uma vez que, ao contrrio de outros

    inimigos derrotados e escravizados, ela cresce em fora a cada sucesso dos

    poderes modernos. Seu prprio fracasso que a atividade ordenadora se

    constri como ambivalncia (p.23).

    Dessa forma, apesar do projeto da modernidade ter desenvolvido toda

    uma luta contra a ambivalncia, por conta da prpria lgica interna do projeto,

    esta torna-se a sua principal fonte. Permitindo, assim, com que a diferena

    seja, progressivamente, assumida de forma clandestina pela modernidade,

    que ao continuar pensando a diferenciao, que perpetrava como

    universalizao, concretiza seu processo de auto-iluso.

  • 25

    Tal processo gera conseqncias culturais para a constituio das

    subjetividades contemporneas, que vivem numa poca de reconciliao com

    a ambivalncia num mundo implacavelmente ambguo, fruto da derrota

    histrica da grande campanha moderna contra a ambivalncia. Este momento

    traz conseqncias prticas para o homem contemporneo, que vivendo num

    mundo sem alicerces, depara-se com a contingncia como condio humana.

    Tal situao exige uma reflexo das problemticas polticas e morais deste

    momento, o qual deve ser assumido tambm pela Psicologia, j que no

    espao privilegiado da situao clnica, que este homem desamparado,

    assustado, vivendo sob condies de reconhecida contingncia, vem chorar

    suas desiluses, vem falar do seu pnico do mundo e dos outros, vem buscar

    saber cuidar-se.

    Este novo e inquietante universo de experincia compe o campo de

    experincias no qual as subjetividades contemporneas so constitudas.

    neste solo que se situa, historicamente, o tipo de subjetividade que se

    apresenta clinica psicolgica contempornea, que segundo Rolnik(1994)

    seria o tipo de subjetividade do homem moderno, que vive este momento de

    transio e que se encontraria em estado avanado de eroso. Como, ento,

    este homem v o mundo? Como vive o efeito perturbador de se descobrir

    vivendo na contingncia quando foi educado para viver na necessidade? Como

    experincia este momento de passagem no qual no mais conta com o dogma

    da tradio teleolgica nem com a certeza da razo, mas sim com as linhas de

    virtualidade de sua experincia ? Como consegue lidar, se que consegue,

    com a perda da iluso de completude e da imagem de uma ordem igual ao

    equilbrio ?

    E ns, enquanto psiclogos clnicos, vivendo tambm a radicalizao da

    modernidade, como podemos acolher este momento de passagem ? Nossos

    instrumentos interpretativos possibilitam uma compreenso deste processo ?

    Como nos situamos diante da instaurao de novas ordens sociais e de uma

    nova forma de pensamento que indicam o esgotamento dos discursos

  • 26

    universalizantes e apontam para a possibilidade de coexistncia das

    problemticas, acolhendo a diferena, a diversidade, a contingncia e a

    ambigidade?

    Nesse momento surge a necessidade de compreender como, na minha

    prtica clnica, tenho acolhido a singularidade dos clientes ao manifestarem as

    formas que vivenciam este mal-estar contemporneo. Para isso, escolhi relatar

    momentos da minha prtica clnica, resgatando o processo de mudana que foi

    ocorrendo e as inquietaes que desencadearam e mantiveram este processo.

    Dessa maneira, acredito que estarei delineando o meu percurso na clnica

    psicolgica, descobrindo nele o contexto vivenciado com os clientes e

    estagirios, bem como os indicadores das mudanas que foram se

    processando na minha compreenso e re-significao dessa prtica.

    No fcil dar passagem s inquietaes que nos atormentam. Assumi-

    las significa desalojamento, o que bastante ameaador. Mas, assumir esse

    desalojamento tambm a condio de possibilidade de novas construes,

    de dirigir-me a um outro lugar. Elas j do sinais de que precisam ser

    acolhidas, apesar do medo de desestabilizao que provocam. Como, ento,

    dar passagem s inquietaes? Como proceder apropriao da experincia

    que originou essas inquietaes?

    Para tentar dar passagem e assumir as inquietaes provenientes da

    minha prtica clnica, voltarei a percorrer o caminho via minha experincia.

    Porm, agora, no mais no mbito da construo terica, mas no campo das

    vivncias, narrando-as de modo a possibilitar um trabalho de elaborao do

    vivido cujo sentido se completa ao ser comunicado.

    3 Circunscrevendo o mal-estar na clnica contempornea

  • 27

    A proposta de narrar minha experincia clnica oferece-se como

    possibilidade de tematizar-se como foco de reflexes na tentativa de produzir

    conhecimento. Nesse sentido, parte da experincia como a possibilidade de

    ver-se a si mesmo diante da tarefa de navegar pelos mares do diverso, do

    plural e do alheio, inventando, contra a linearidade convencional dos modelos

    de pesquisa, as articulaes que dem conta de seu trajeto labirntico em torno

    do fenmeno (Schmidt, 1990:70). Ancorada nesta proposta metodolgica,

    apresentarei uma breve narrativa do percurso da minha experincia como

    psicloga clnica, ao mesmo tempo que tentarei compreender as mudanas

    que foram acontecendo e que deram origem s inquietaes que mobilizaram

    este trabalho.

    Nesta perspectiva, a experincia tomada como fonte de aprendizagem,

    na tentativa de possibilitar a elaborao dos dados diversos que foram se

    desdobrando e sedimentando ao longo da minha prtica clnica e da minha

    experincia enquanto supervisora de estgio. Neste sentido, tomar a

    experincia como fonte de aprendizagem implica, ainda, a necessidade de

    explicitar um sentido de aprendizagem no qual a experincia seja contemplada

    (Morato e Schmidt in Morato, 1999:125). Tal posicionamento implica o

    reconhecimento dos processos de aprendizagem como possibilidades de

    conhecimento e de atribuio de significados para as experincias vividas.

    A presente pesquisa, inspirada nesta postura, retrata o percurso da

    minha experincia clnica. Em alguns momentos assume o sentido de um

    verdadeiro testemunho da minha vida como pesquisadora, terapeuta e

    supervisora de estgio. Testemunho cujos sentidos procuro compreender a

    partir da reflexo sobre a matria-prima relatada nos testemunhos-depoimento,

    que so tematizados na tentativa de produzir conhecimento.

    Inicio, ento, narrando o modo como minha prtica clnica foi sendo

    constituda. Iniciada sob a orientao da teoria da Terapia Centrada no Cliente,

    foi desenvolvida em consultrio particular, ao lado de outros psiclogos que

  • 28

    seguiam a mesma orientao. Rodvamos sempre no mesmo crculo de

    pessoas e tnhamos superviso e reunies de estudos com o mesmo

    profissional. Durante alguns anos, trabalhei sentindo nesta pertinncia uma

    certa tranqilidade e conforto.

    Contudo, a partir de um determinado momento, comecei a ficar inquieta,

    questionando as aes clnicas (escuta e interveno) fundamentadas na teoria

    da Terapia Centrada no Cliente, o que foi gerando desconforto e um

    sentimento de insuficincia, apesar de no localizar de onde procediam.

    Gradativamente, comecei a dar-me conta do incio de algumas inquietaes no

    momento em que o trabalho com alguns clientes parecia no sair do lugar. Por

    mais que fizssemos, continuvamos num interminvel crculo de giz. Algo

    escapava e nossas falas no deslizavam. Sentindo-me impotente, passei a

    questionar as referncias tericas cotidianas que respaldavam minha escuta e

    compreenso do processo do cliente. Sem respostas, e atribuindo essa

    situao paralisante minha insuficiente compreenso dos pressupostos

    tericos em expressiva expanso na comunidade psi, afastei-me do

    consultrio. Direcionei minha ateno para as disciplinas que lecionava no

    Curso de Psicologia. Neste perodo, participei de diversos grupos de estudos,

    de base psicanaltica, buscando encontrar respostas para as questes que no

    conseguia responder tendo como base a teoria da Terapia Centrada na

    Pessoa. Quem sabe, pensava, outro referencial terico pudesse desemperrar

    minha atuao e compreenso. Percebi , ento, que para nada me serviria a

    mudana de orientao ( que poderia, sim, ser a posio de sada mais fcil),

    sem antes, partindo das minhas inquietaes, inclinar-me para uma

    compreenso contextualizada do processo de construo da teoria rogeriana e

    de seus seguidores. Decidida a apropriar-me de minhas inquietaes e levar

    adiante possveis reflexes, retomei a clnica, iniciando um movimento de

    participao intensa nos eventos e encontros da Abordagem Centrada na

    Pessoa, buscando encontrar situaes que possibilitassem e dessem

    passagem s minhas inquietaes. Na realidade, o que encontrei revelou-se

    ambguo: ou uma defesa cega dos princpios rogerianos de forma acrtica e

    atemporal, ou questes, perguntas, inquietaes de alguns colegas que

    pareciam estar vivendo a mesma situao que eu. Em alguns grupos desses

  • 29

    inquietos percebi a tentativa de re-visitar a proposta rogeriana atravs de

    leituras filosficas com base na fenomenologia e no existencialismo, proposta

    essa que me interessou e qual fiquei vinculada por algum tempo. Naquele

    momento, sentindo-me mais confortvel, por tais propostas iniciantes de ir

    alm da teoria rogeriana, assumi, na Universidade, a superviso de estgio na

    Abordagem Centrada na Pessoa. Esta paz durou pouco. Voltaram as

    inquietaes e a mesma velha sensao de que algo no discurso dos clientes

    me escapava, sensao essa acentuada pelo desconforto sentido nas

    supervises, quando me flagrava articulando a prtica dos alunos com a teoria

    da Terapia Centrada no Cliente, numa tentativa de compreenso do processo.

    Que processo? Do cliente, do aluno, da relao teraputica, da psicoterapia, da

    teoria centrada na pessoa, da superviso, e , acima de todos, o processo das

    minhas inquietaes. Por essas articulaes, comecei a encontrar espaos

    vazios que, nem mesmo podiam ser preenchidos pelas contribuies que tinha

    assimilado de possveis re-leituras da ACP, atravs da fenomenologia e do

    existencialismo. Desse modo, abriu-se a urgncia de retomar o caminho de

    questionamentos. No me parecia justo para comigo mesma, nem para com

    meus clientes e alunos, assumir, mais uma vez, passivamente, as

    contribuies de possveis re-leituras. Dispunha, agora, de uma experincia

    clnica que precisava ser considerada e legitimada para referendar reflexes

    crticas.

    Vejo-me , ento, convocada a mergulhar nesta experincia para depois,

    e somente depois, retirar-me dela e poder formar idias. Para pensar, preciso

    buscar clarear um sonho, um devaneio. Tentar dar-lhe um esboo de contorno.

    Primeiros rabiscos. Amorfos. (Morato, 1989:5). difcil comunicar o que estou

    querendo dizer. No sei por onde comear. Vai ficando claro que retomar,

    refazer, reconhecer o fazer, possibilita a elaborao, a reflexo, a compreenso

    do que foi vivido e que, muitas vezes, no foi identificado.

    O que estou tentando refletir sobre o meu fazer enquanto terapeuta,

    recorrendo para isso s situaes de desconforto provenientes da minha

    prtica clnica, ao meu prprio desalojar. Situaes que geram a sensao de

    no ter conseguido apreender a significao da demanda do cliente e,

  • 30

    conseqentemente, de no ter conseguido, atravs de intervenes

    adequadas, favorecer o processo, funcionando como intercessora2 da

    experincia de desalojamento do cliente.

    Neste momento, confirmo a experincia vivida por Morato(1989), na

    elaborao de sua tese de doutorado, ao indicar que podendo reconhecer-me,

    posso expressar-me e compartilhar essa possibilidade com vocs.[...] Ao

    resgatar-me tambm me situo. Situando-me, uma nova perspectiva possvel

    surge: a minha pertinncia (p.10).

    partindo da minha experincia que evidencio mais uma possvel

    conseqncia desse processo: o apropriar-me de mim mesma, que possibilita

    construes novas e criativas. trabalhando na ressonncia com aquilo que

    me afeta que vou poder apropriar-me. Quem sabe, provavelmente, desse

    modo, a expresso do que est em transformao na minha experincia clnica

    encontrar possibilidade de traduo.

    Para isso, inicio uma viagem, no cronolgica, que, como testemunho,

    apresenta o meu percurso na clnica psicolgica, agora direcionado para

    revelar situaes em que senti que os construtos tericos, apresentados pela

    teoria da Terapia Centrada no Cliente, eram insuficientes como escuta,

    compreenso e interveno na ao clnica contempornea.

    Comeo a viagem, carregando, na bagagem, lentes de viso da

    natureza humana expressa na teoria rogeriana. Contudo, ofuscada pela

    sensao de limitao de minha escuta e compreenso da condio humana

    na experincia clnica, tais lentes acabam revelando-se como saia justa.

    Miopia minha ou lente limitada? Ouso encaminhar uma reflexo. Limitao de

    viso de natureza humana, to carregada de dicotomia e de essencialismo

    que precisa ser revisitada.

    _____________________ 2 Intercessora um termo utilizado por Suely Rolnik (1995), no texto Subjetividade e Historia , publicado pela Revista Rua do Ncleo de Desenvolvimento e Criatividade da UNICAMP, em que assumindo a noo introduzida por Deleuze de intercessor, define-a como algum que funciona como intercedendo a favor do estranho que nos habita.

  • 31

    Limitao essa oriunda do reconhecimento da contradio presente no

    pensamento de Rogers (1970) que, ao fazer uma analogia da natureza humana

    com a natureza animal, ressalta as caractersticas de positividade e

    sociabilidade como inerentes ao homem, enquanto a hostilidade e a

    destrutividade seriam decorrentes de influncias sociais. Distingue entre o

    natural e o social, ao mesmo tempo que reconhece a sociabilidade como valor

    implcito ao organismo individual. Como filho legtimo da modernidade, funciona

    dentro da lgica do pensamento moderno. Ao defender a polaridade

    homem/sociedade, configura mais nitidamente o carter indiviso e centralizador

    da sua noo de pessoa, que representa uma tentativa de escapar da

    ambigidade e da contingncia da condio humana, atravs de uma

    concepo essencialista e naturalista do ser humano. Uma viso teleolgica,

    moralmente positiva que, considerando a pessoa como centro, enfatiza um

    potencial de desenvolvimento, que lhe inato, de carter intrinsecamente

    positivo da natureza humana. Nessa perspectiva, como compreender a clnica

    e a funo do terapeuta? Facilitao do processo de expresso da tendncia

    atualizante para o desenvolvimento inerente pessoa, atravs de condies

    bsicas propiciadas pelo terapeuta na relao com o cliente. Mas, ento, como

    compreender sua restrio quando, na prtica clnica, essa perspectiva que

    respaldava a minha compreenso do fenmeno clnico, no contemplava

    minha experincia de que algo ficava de fora. Algo na comunicao do cliente,

    por ser estranho a esse modo de compreenso de constituio da

    subjetividade, no tinha passagem. Esse estranhamento, tantas vezes

    angustiantemente experienciado, no podia ser compreendido, unicamente,

    como resultado do estado de desacordo entre o self e a experincia. A relao

    teraputica no podia mais ficar restrita a condies que possibilitassem o

    desbloqueio de certos sentimentos. Algo pedia passagem e trnsito,

    demandando ser acolhido como prprio da condio humana.

    medida que encaminhava tais reflexes, configurava-se que o grau

    das lentes tambm estava sendo alterado. Com este outro olhar, minha prtica

    Neste texto, faz uma analogia entre intercessor e o analista, cuja tarefa consistiria, basicamente, em se colocar escuta do estranho, convocando e acolhendo no analisando, o estranho que o habita.

  • 32

    revelava transformaes que eu s reconhecia quando da fala de meus

    clientes. Em trnsito entre a margem que j no via, mas ainda sem ver a outra

    para onde me dirigia, s vezes minha escuta apoiava-se no jeito de ser

    tradicionalmente centrado na pessoa. Nesses momentos, em alguns

    atendimentos, o prprio cliente apontava diferenas na minha atitude,

    indicando que, apesar de se sentir compreendido, era atravs do meu outro

    novo jeito de ser que ele se sentia mais acolhido, mesmo saindo da sesso

    mais angustiado e desestabilizado. Mas que outro novo jeito seria esse?

    Chego questo da angstia e constato a mudana que ocorreu na

    minha ao enquanto terapeuta. Gradativamente, fui me afastando da

    necessidade de resoluo de estado de incongruncia entre a experincia do

    cliente e a imagem que tinha de si (self) que, expressa a compreenso do

    processo de subjetivao que respaldou a construo da teoria da Terapia

    Centrada no Cliente. Essa construo apresenta a leitura de um trabalho

    clnico efetivado, por Rogers, no Centro de Aconselhamento da Universidade

    de Chicago (1951-1954), assentado na prtica da terapia com clientes

    neurticos. Neste momento, Rogers(1970), considera que esta postura

    fenomenolgica, apesar de no pretender uma resoluo objetiva dos

    problemas apontados pelo cliente, abre para ele

    um novo caminho de vida, no qual faz a experincia dos

    seus sentimentos de um modo mais profundo e elevado,

    num campo mais extenso e dilatado. O indivduo sente-se

    nico e mais solitrio, mas tambm, muito mais real, de

    tal maneira que suas relaes com os outros perdem o

    carter artificial, tornam-se mais profundas, satisfazem

    melhor e introduzem a realidade da outra pessoa no seio

    da relao. (p.181)

    Apesar de confirmar a validade desta experincia, percebo-a restritiva,

    no conseguindo abarcar a experincia de estranhamento que passa, ento, a

    ser acolhida, por mim, como representando no um momento no processo de

  • 33

    mudana, mas como prpria da condio humana. Esta mudana trouxe

    conseqncias prticas significativas. Fui podendo acolher a angstia do

    cliente como , tambm, a minha prpria angustia. No mais voltava minha

    ateno e interveno para a possvel resoluo, pelo cliente, do estado de

    incongruncia entre o Self e a experincia, podendo, assim, dar passagem

    para a angstia enquanto possibilidade de emergncia do novo. Isto no

    significa um culto angstia. Antes delineia outra possibilidade de

    compreenso, vinculada outra mesma viso da condio humana, diferente

    daquela presente na concepo de pessoa da teoria rogeriana.

    Esta outra possibilidade implica o reconhecimento da condio humana

    configurada entre um plano de foras ilimitado, infinito, nascente de mltiplas

    possibilidades de ser, e a concretizao espacial e temporal dos territrios da

    existncia que se apresentam marcados pela dimenso de finitude .

    Vai ficando clara a necessidade de uma atitude, diante da condio

    humana, que permita acolher a complexidade, a multiplicidade de

    possibilidades que emergem a cada momento e que abrem o dilogo entre

    conceitos antagnicos, como ordem e desordem, certeza e incerteza. Neste

    contexto, a singularidade e a contingncia humanas so redescobertas e

    contempladas. Apesar de aparentemente fcil de ser descrita, essa atitude

    difcil de ser vivida. Fomos educados, o cliente e eu, para separar, classificar,

    estabelecer uma ordem visvel com vista previso e controle. No fcil se

    disponibilizar para uma relao, acolhendo o mltiplo, a singularidade e o

    contingencial. No fcil dar passagem para o processo de formao e

    desmanchamento das figuras que provocam a vertigem de desestabilizao,

    em que preciso ter a coragem de ser o outro que se , a de nascer do

    prprio parto, e de largar no cho o corpo antigo (Lispector, 1992:131).

    No foi nem est sendo fcil disponibilizar-me e acolher o mltiplo em

    mim e no outro. A essa altura, a viagem que iniciei pela trilha da minha

    experincia est mais para uma aventura. E aventura desestabiliza, pois

    implica abrir-se para o desconhecido desalojador e sem amparo.

  • 34

    Desestabilizao, compreendida por ns como experincia de

    desamparo que se quer a todo custo superar, mas que a condio de

    liberdade do prprio homem. Este homem, desestabilizado, no tem mais

    certezas, sem ancoragem em noes que indiquem sua essncia, vive

    arrebatado pelo mar revolto de um devir constante, onde os acontecimentos

    ocorrem. Estamos diante de uma dessencializao da noo de sujeito, o que

    no significa a negao do sujeito, mas sim a superao de um modo de ser j

    dado; assumindo, agora, a indissociabilidade inconcilivel entre dentro e fora,

    uma Curva de Mobius; o que faz da subjetividade um estranho, um sempre

    outro, um si e um no si ao mesmo tempo (Rolnik, 1997).

    Incontornveis, as experincias de desestabilizao e estranhamento

    que acentuam a sensao de mal-estar, inevitvel condio humana,

    impem-se a cada um de ns. Acentuam-se pela situao de transio que se

    apresenta no momento contemporneo. Situao em que coabitam; o homem

    moderno, que apesar de moribundo ainda resiste e apela para o script j dado

    para gerar sua existncia, e o homem contemporneo, que tenta abrir-se para

    o que lhe aponta aquele seu estranho, que o habita e do qual sabe sem saber,

    por ainda ser apenas penumbra. Esse estranho, em seu ser, habita a dimenso

    invisvel, gerando seu prprio devir, como tecelo que executa sua tarefa,

    inventando novos modos de existncia, nos quais ele mesmo reinventado.

    esse homem/cliente dividido que chega ao consultrio, chorando suas

    iluses, vislumbrando novas possibilidades de existncia das quais no

    consegue, ainda, apropriar-se. Esse homem sofre, sente-se em pnico, pois o

    script conhecido no mais responde s situaes contingenciais com as quais

    se depara. E eu, homem/psiclogo, tambm desalojada e chorando a perda

    das certezas de velhos sistemas tericos acolho este homem. Ambos nos

    abrimos para uma viagem/aventura conjunta , num mar revolto, procurando

    encontrar, nas nossas velhas crenas, a direo a ser seguida. Triste engano,

    pois na maioria das vezes, os mapas antigos apresentam um contorno dos

    continentes, mas no indicam possveis rochedos, novas rotas martimas,

  • 35

    possvel presena de icebergs que podem fazer naufragar nossas

    embarcaes. Precisamos apropriar-nos das novas indicaes, assumindo

    voluntariamente o desligamento da iluso da permanncia e da estabilidade

    das rotas conhecidas, para que possamos construir novas possibilidades de

    viver e de criar.

    assim que me sinto. A teoria da Terapia Centrada no Cliente como

    um mapa antigo que delineia uma rota de ao, mas que precisa ser revisto.

    Necessidade de reviso, talvez, j delineada pelo prprio Rogers que, ao

    transferir-se para a Califrnia em 1964, onde criou o Center for Studies of The

    Person, onde, dirigindo seu interesse para as possibilidades desta orientao

    em contextos sociais, deixou, segundo Cury (1993), os rumos da Terapia

    Centrada no Cliente queles que o haviam acompanhado at ento (p. 56).

    Esta posio me instiga e me mobiliza para a tarefa de tentar explicitar as

    novas rotas que fui traando a partir da minha experincia clnica, que,

    sutilmente, vo-se desvelando, indicando a necessidade de apropriao.

    assim que me sinto, tambm, com meus clientes, escutando sua dor

    por ter que largar no cho o corpo antigo e o seu esforo em tecer uma nova

    rota lutando para no sucumbir ao medo do estrangeiro. com esse prprio

    que se estranha, que trabalho na clnica. Para isso, preciso de uma

    compreenso da condio humana que me possibilite acolher o morrer a cada

    dia, que me viabilize um debruar-me para o que no humano beira o inumano,

    para questes to dilacerantes de nosso modo de ser humano contemporneo.

    desse modo que minha experincia na clnica aponta para a

    necessidade de questionar o modo como a teoria rogeriana compreende a

    condio humana. A descrio da minha experincia clnica constitui-se numa

    tentativa de explicitar a inquietao pela insuficincia que esta compreenso,

    expressa na teoria da terapia rogeriana, revela. Revisitada a minha

    experincia, torna-se necessrio, agora, fazer uma leitura crtica da proposta

    epistemolgica de Rogers e da elaborao de alguns de seus construtos

    tericos bsicos. a tarefa que encaminho no prximo captulo, onde tentarei

  • 36

    efetivar esta leitura crtica, considerando e contextualizando o percurso terico

    que Rogers percorreu.

    II REALIZANDO UMA LEITURA CRTICA DA TEORIA

    ROGERIANA

    S poderia haver um encontro de seus mistrios se um

    se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos

    incognoscveis feita com a confiana com que se

    entregariam duas compreenses.

    Clarice Lispector

    Neste momento, apresenta-se um ponto crucial, mas tambm orientador

    do processo da elaborao deste trabalho, e que pode ser apresentado como a

    necessidade de realizar uma leitura crtica da teoria da Terapia Centrada no

    Cliente. Como realizar este percurso crtico? Como por em questo a possvel

    insuficincia de alguns construtos tericos da Terapia Centrada no Cliente, no

    sentido de oferecer subsdios para circunscrever o campo do mal-estar

    contemporneo?

    Para realizar este percurso crtico, ser refeita a trajetria do trabalho

    cientfico de Rogers, procurando identificar sua vinculao com o projeto

    epistemolgico da modernidade. Posteriormente, sero discutidos alguns dos

  • 37

    construtos tericos da Terapia Centrada no Cliente, tentando mostrar alguns

    pontos cegos, que indicam a provvel insuficincia de certos construtos

    tericos da proposta rogeriana para uma compreenso do mal-estar

    experienciado pelos clientes.

    Inicialmente, para situar o percurso terico de Rogers, sero

    apresentadas algumas caractersticas do conhecimento na modernidade, o

    qual, diferentemente do saber aristotlico e medieval, apresenta uma viso de

    mundo em que a razo ocupa o lugar central. o momento ureo da afirmao

    da conscincia e de suas representaes, levando a uma centralizao na

    razo instrumental, separando natureza e cultura, atribuindo cultura algo de

    humano e natureza algo de no-humano. Essa polarizao sujeito/sociedade

    e natureza foi sendo absorvida pela filosofia do sculo XVIII que, com a

    perspectiva kantiana, defende a separao total entre as coisas-em-si e o

    sujeito transcendental. Para Latour(1994), o kantismo confirma a Constituio

    moderna, torna os dois plos constitucionais incomparveis, ao mesmo tempo

    que deixa visvel o trabalho das mediaes, reconhecidas como intermedirios

    que deslocam as formas puras j que, o conhecimento s possvel no ponto

    mediano, o ponto dos fenmenos, atravs de uma aplicao das formas puras,

    as das coisa-em-si e as do sujeito (p.56). Os hbridos, neste sentido, so

    reconhecidos, mas apenas como mistura das formas puras, como

    intermedirios.

    Entre as grandes correntes modernas, representantes desta estratgia,

    Latour (1994) situa a Fenomenologia que, tentando abandonar essa posio de

    polaridade entre, de um lado a conscincia pura e do outro o objeto, coloca-se

    no meio. Tenta atravs da noo de intencionalidade transformar a

    Separao (Kant) e a Contradio (Hegel) em Tenso Insupervel entre

    sujeito e objeto. Para o referido autor, os fenomenlogos, ao no atriburem

    nenhuma essncia ao sujeito puro nem ao objeto puro, acreditam ter superado

    Kant e Hegel e aspiram a um posicionamento mediano, sem que a mediao

    esteja ligada aos dois plos. No entanto, para Latour (1994), o que fazem

    desenhar um trao entre plos reduzidos a quase nada. Modernizadores

  • 38

    inquietos, podem apenas estender a conscincia de alguma coisa que

    somente uma fina passarela sobre o abismo que aumenta aos poucos (p.58).

    Os grandes movimentos filosficos da modernidade tentaram, atravs da

    separao, da contradio e da tenso insupervel, lidar com a polaridade

    sujeito/sociedade e natureza indicando que no h medida comum entre o

    mundo dos sujeitos e dos objetos, mas anulavam esta distncia ao praticarem

    a hibridao, medindo, por exemplo, humanos e coisas em conjunto com as

    mesmas medidas.

    Gradativamente, as leis universais naturais e os sistemas

    representacionais sociopolticos, da Constituio moderna, no mais podiam

    absorver a proliferao dos hbridos, apontando para um terceiro estado que

    no era mais representado pela ordem dos objetos ou pela ordem dos sujeitos.

    Segundo Latour(1994) tal proliferao aponta para o seguinte diagnstico: o

    crescimento dos quase-objetos saturou o quadro constitucional dos modernos

    (p.55),o que exige uma nova constituio que possa acolher os hbridos,

    nomeando-os, possibilitando a compreenso do sucesso e do fracasso dos

    modernos. No momento, tentaremos acompanhar esta estratgia da

    Constituio moderna na constituio da Psicologia e da teoria da Terapia

    Centrada no Cliente, representante fidedigna dessa constituio.

    Na Psicologia, essa polarizao pode ser observada na constituio das

    Matrizes do Pensamento Psicolgico apresentada por Figueiredo (1996). As

    Matrizes Cientificistas desconhecem a singularidade subjetiva do indivduo,

    assumindo predominantemente, o modelo cientfico de cincia. Acreditam que

    exista algo que pode ser pensado como verdade, falam de evidncias, testes,

    provas e demonstraes. Defendem um realismo ontolgico, com a crena de

    que existe uma realidade independente do sujeito que a conhece e confirmam

    a predominncia do mtodo das cincias naturais, buscando a ordem natural e

    comportamental dos fenmenos psicolgicos.

  • 39

    No outro plo, teramos as Matrizes Romnticas e Ps-romnticas, que

    reconhecem e sublinham a especificidade do sujeito, reivindicando a

    independncia da Psicologia diante das demais cincias, procurando novos

    cnones cientficos que a legitimem, crescendo sem a segurana que as

    Matrizes Cientificistas ostentavam. Esto direcionadas para o esclarecimento

    da lgica, da trama conceitual, procurando entender como os conceitos de uma

    teoria se interligam. Preocupam-se com a retrica dos saberes, em que a

    organizao dos argumentos e as linguagens metafricas tm peculiaridades

    diferentes, de acordo com cada abordagem, criando um estilo que caracteriza

    cada escola, fazendo parte do conhecimento produzido. Desenvolvem um

    conhecimento que busca o esclarecimento das articulaes entre os processos

    cognitivos e as outras dimenses das prticas sociais.

    O modo como as matrizes do conhecimento psicolgico so construdas

    reflete a forma de construo do conhecimento na modernidade, evidenciando

    algumas caractersticas da relao sujeito-objeto do conhecimento que

    merecem ser comentadas, visando subsidiar uma melhor compreenso da

    proposta epistemolgica rogeriana. Na perspectiva moderna, o conhecimento

    s se consuma na forma de conceitos, expressos numa linguagem objetiva,

    cuja representao estaria totalmente adequada ao objeto enquanto percebido,

    significando, em ltima anlise, a captura do real, e que seria representado na

    forma de teoria. Para que o conhecimento da realidade represente o real,

    necessria a disciplina do mtodo, que faz uma ascese, expurgando tudo o que

    impede o contato direto, atingindo um modo de funcionar transcendental,

    submetido a uma lgica rigorosa que privilegia a linguagem neutra, a

    eliminao dos afetos e o aumento da razo. Em relao ao sujeito do

    conhecimento, essa atitude teria, como conseqncia, o sujeito epistmico, que

    deveria estar desligado do seu ser-no-mundo, no qual o sujeito empric