16
Universidade Federal de Pernambuco UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas - CFCH DAS PALAFITAS AO CARANDIRU Mudanças sociais e espaciais no bairro da Torre Carolina de Toledo Braga Karla Carolina Santiago Fagundes Recife

Carolina de Toledo Braga

  • Upload
    phamnhu

  • View
    219

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Carolina de Toledo Braga

Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Centro de Filosofia e Ciências Humanas - CFCH

DAS PALAFITAS AO CARANDIRU Mudanças sociais e espaciais no bairro da Torre

Carolina de Toledo Braga Karla Carolina Santiago Fagundes

Recife

Page 2: Carolina de Toledo Braga

2015

DAS PALAFITAS AO CARANDIRU Mudanças Sociais e Espaciais no Bairro da Torre.

Page 3: Carolina de Toledo Braga

Este artigo busca desenvolver um texto explanativo sobre o processo de

formação do bairro da Torre, no Recife, capital de Pernambuco, no que diz respeito a

retirada das moradias em palafitas nas margens do Rio Capibaribe para o Conjunto

Habitacional da Torre. Visando também analisar como a especulação imobiliária

crescente no bairro atuou nessa empreitada com os seus variados conflitos e

contrapontos. Adotando como ponto de partida as técnicas de observação

participante inseridas no processo de metodologia antropológica, como sugere o

texto Reflexões de como fazer um trabalho de campo, de Carlos Brandão (2007).

Segundo o autor, é com a vivência do espaço que se faz possível identificar códigos

e símbolos entre as pessoas e o próprio/a pesquisador/a. Estas observações, por

sua vez, foram adequadas a visitas cotidianas, buscando a ambientação da vida

social dos moradores e moradoras.

Também nos apoiamos nos métodos da história oral, que permitem o registro

de testemunhas e o acesso à “história dentro da história”. Dessa forma amplia as

possibilidades de interpretação do passado, como afirma Alberti (2011). Ainda

segundo a autora, a metodologia consiste na realização de entrevistas gravadas

com indivíduos que participaram ou testemunharam acontecimentos e conjunturas

do passado e do presente.

Este trabalho foi construído por meio da sistematização de estratégias acerca

da coleta de dados, utilizando-se da observação e do exame das entrevistas semi-

estruturadas com moradores, e de conversas informais com “informadores chaves”

(moradores/as do entorno, ex-alunos/as e funcionários/as). A atividade objetiva

compreender a realidade dos conjuntos habitacionais situados no bairro da Torre,

bem como realizar uma breve reflexão da trajetória do trabalho de história oral e

história dos bairros na sala de aula da escola EREM Martins Júnior, localizada no

mesmo bairro. Entre os autores abordados para a formulação do artigo estão:

Rolnik, Pordeus, Laville, entre outros.

Segundo Pimenta (2010), o pesquisador ou a pesquisadora faz uso de uma

grande quantidade de dados descritivos: situações, pessoas, ambientes,

depoimentos, diálogos, que permitem ao observador um detalhamento do objeto

estudado. O trabalho será constituído prioritariamente em análise das observações e

Page 4: Carolina de Toledo Braga

das entrevistas engajadas ao debate teórico da bibliografia apresentada.

Ensino de história oral no Erem Martins Júnior

Localizada no oeste da região metropolitana do Recife, entre as comunidades

do Cardoso e da Vila de Santa Luzia, a escola EREM Martins Júnior, criada em 1960

na gestão do prefeito Cid Sampaio, estabelece diferentes espécies de ligações

através de alunos, professores e funcionários, formando uma rede complexa de

referências diretas e indiretas, no qual estão incumbidas a presença da comunidade

e da família que transitam na esfera colegial. A escola pública constitui-se em campo

vasto, plural e diversificado, marcado por uma série de dificuldades, ancoradas

principalmente nas precárias condições educacionais. No entanto, ao lado dessa

realidade complexa, própria de uma instituição que reúne diferentes dimensões do

campo social, observam-se práticas, soluções e respostas inesperadas que buscam

construir outro tipo de ensino, longe daquela que reproduz fracasso e descrença.

Ensinar a pensar historicamente significa desenvolver a capacidade de

transitar, argumentar e relacionar sobre os fatos de modo temporal, descobrindo

suas linhas de continuidade e rupturas. Para Laville (1999), da mesma forma que a

história se interessa pelos grupos humanos e pelas relações entre eles e o meio

ambiente, o ensino de história precisa se relacionar com os sujeitos que aprendem,

começando pela tarefa de ensinar aos alunos/as história e o papel deles/as quanto

sujeitos históricos. Diante desta premissa, a equipe do Pibid de História do EREM

Martins Júnior buscou conhecer e aprofundar sobre a história do bairro, produzindo

materiais que não constam nos livros didáticos, mas que são de suma importância

na construção da identidade dos/as educandos/as enquanto cidadãos e cidadãs -

fazendo da escola um instrumento inclusivo e competente em sua ação educativa,

comungando novas práticas de saberes, promovendo o desempenho da cidadania e

a manutenção da unidade escolar. Segundo Alberti (2011), a memória é essencial a

um grupo porque está atrelada a construção da própria identidade. Ela [a memória] é

resultado de um trabalho de organização, seleção do que é importante para o

sentimento de unidade, continuidade e de coerência, isto é, de identidade.

O projeto visa redimensionar e sincronizar as produções acadêmicas teóricas

e torná-las aplicáveis na prática escolar, dinamizando as práticas educativas. Além

de não deixar as pesquisas realizadas restritas apenas a esfera do/a professor/a,

Page 5: Carolina de Toledo Braga

mas compartilhando com os/as estudantes. Traduzir tais conhecimentos se faz

relevante na busca da expansão do senso critico da turma. A atividade constitui-se

num trabalho coletivo com os alunos do 2º ano A e C. Sob intermédio dos/as

educadores/as, os/as estudantes assumiram a postura de protagonistas das

atividades realizadas, dividida em quatro momentos. Para Vygotsky (1984), a

posição de intermediário, do/a professor/a entre o/a aluno/a e o saber, situa o/a

educando/a em uma categoria de liberdade e autonomia em relação ao docente no

percurso de aprendizagem. O/A educador/a, por sua vez, possui o dever de

estimular curiosos críticos em seu ambiente de trabalho.

No primeiro momento produzimos um mapa afetivo diferenciado, resultado da

junção de lugares elegidos pelos estudantes como importantes afetivamente,

somados aos lugares selecionados pelos profissionais como ponto histórico. O

objetivo do mapa voltava-se para elaboração de uma trilha posterior, no qual os

espaços debatidos e escolhidos pelo grupo seriam compartilhados, vivenciados e

analisados por toda turma. No outro momento concretizamos o passeio,

relacionando-o por um outro prisma, efetivando a importância de cada espaço

definido para trilha e assim como as narrativas evidenciadas durante seu

planejamento. Buscamos dessa maneira exercitar a identidade social do estudante,

na qual segundo Neves (1997), pode-se entender reconhecimento de si próprio

como sujeito da história (processo). Na medida que o sujeito da história é realizador

de ações, ele é também objeto da história (ciência). A relação de parceria entre

educadores/as e estudantes intensifica e favorece o processo de ensino

aprendizagem, como também estimula a confiança entre ambos. Durante a trilha foi

possível explorar a convergência dos lugares decididos, proporcionando descobertas

mútuas entre estudantes e educadores/as. Esse estágio corporifica e torna palpável

o sentido da história, ao passo que o passado é conectado com o presente, assim

como é necessário contextualizar o lugar com sua a totalidade.

Nunca é demais lembrar que o local não se contrapõe ao macro, não se isola

do geral, mas, o compõe com suas especificidades. O local retém o passado

presente no ambiente. E esse ambiente é acessível ao aluno/a quando se estuda o

local. O lugar materializa as contradições das relações de poder que o extrapolam,

mas são nele visíveis - desde que sob tratamento da investigação, Ribeiro (2011).

Algumas questões ficaram em evidência entre os pontos percorridos, como a

Page 6: Carolina de Toledo Braga

especulação imobiliária, os conjuntos habitacionais e a problemática de moradia do

espaço; temas presentes no cotidiano e na vida dos estudantes, e que, a partir de

suas exposições, foram fundamentais na construção do tópico seguinte. No terceiro

momento trabalhamos em uma aula expositiva interativa sobre os conceitos básicos

da metodologia de história oral, orientando os/as estudantes para a última etapa do

projeto: entrevistas com moradores ou moradoras do bairro da Torre. Ao fim desta

atividade realizamos um exercício em forma de gincana no qual os grupos

respondiam questões abordadas na aula e nas ações anteriores. No último

momento, nos reunimos para selecionar moradores/as do bairro para a entrevista.

Nesta parte final do projeto, os estudantes participaram e mediaram o processo do

contato com os/as entrevistados/as.

As entrevistas são como formas capazes de fazer com que os

estudos de história local escapem das falhas dos documentos, uma

vez que a fonte oral é capaz de ampliar a compreensão do contexto,

de revelar os silêncios e as omissões da documentação escrita, além

de produzir outras evidências, captar, registrar e preservar a memória

viva. A incorporação das fontes orais possibilita despertar a

curiosidade do/a aluno/a e do/a professor/a, acrescentar perspectivas

diferentes, trazer à tona o “pulso da vida cotidiana”, registrar os

tremores mais raros dos eventos, acompanhar o ciclo das estações e

mapear as rotinas semanais. (SAMUEL, 1989, P.233)

Os estudantes receberam bem o projeto, tomando diversas iniciativas de

discussões na escola sobre as temáticas envolvidas e compartilhando os saberes. O

que reforçou o interesse pela disciplina. Conclui-se, portanto que as disciplinas de

humanas são relevantes no fortalecimento e na participação mais efetiva da

comunidade no cotidiano escolar e dos/as alunos/as. O EREM Martins Júnior se

encontra entre comunidades carentes do bairro da Torre, que buscam fomentar cada

vez mais o dialogo entre tais âmbitos, afim de que os estudantes se reconheçam

como protagonistas e reflexos da história entre estes espaços.

O Bairro da Torre

Às margens do Rio Capibaribe, na Zona Oeste da cidade do Recife, capital de

Page 7: Carolina de Toledo Braga

Pernambuco, está localizado o bairro da Torre. A história do nome remete a origem

do lugar, que distribuído em sesmarias, só foi povoado no final do século XVI com a

construção do Engenho de Marcos André. Não se sabe ao certo se a denominação

da Torre veio por conta do moinho de cana-de-açúcar do engenho ou da antiga

capela de invocação a Nossa Senhora do Rosário, que atualmente, depois de

restaurada, é conhecida como Igreja da Torre ou Igreja de Santa Luzia. Esta Torre

tornou-se conhecida por ter sido construída ao lado da casa grande (onde hoje se

encontra a Escola Maciel Pinheiro) em formato unilateral, diferente das outras igrejas

das redondezas de estilo colonial-tabique. Porém, outra versão mais recente da

história, atribui o nome às torres das fábricas implementadas no bairro no final do

século XIX, causando uma crescente industrialização da área.

O Engenho de Marcos André ficava cercado em sua totalidade pelo Rio

Capibaribe, fazendo fronteira com o Engenho de Dona Magdalena e com o Engenho

Casa Forte. Foi ocupado pelos holandeses no século XVII para facilitar o ataque ao

Arraial Velho do Bom Jesus – onde hoje se localiza o Sítio da Trindade, no bairro de

Casa Amarela, na Zona Norte do Recife – no que em suas instalações foi construída

uma fortaleza. Já sob domínio do filho de Marcos André, Antônio Borges Uchôa, os

descentes portugueses retiraram os flamengos da propriedade, que permaneceu

sob domínio da família até 1781, quando foi comprada por Rodrigues Campelo. No

início do século XX, a maioria das terras onde hoje se encontra a praça da Torre

foram doadas ao munício e a capela a Arquidiocese de Olinda e Recife pela então

proprietária, Laura Barreto Campelo.

Já em 1884 é instalada a Fábrica da Torre, primeira da então crescente

indústria algodoeira de Pernambuco, fazendo com que a área sofra um grande

impulso de ocupação urbanização causado pela influência da indústria têxtil. Na

segunda metade do século XIX ocorre o desenvolvimento do processo de

industrialização no estado de Pernambuco que se deu a partir do setor de bens de

consumo não duráveis, principalmente das indústrias alimentícia e têxtil, de acordo

com o historiador Luís Manuel Domingues. A capital tornou-se um polo de

concentração do capital industrial por conta do porto, do mercado de consumo em

relativa expansão, uma rede de transportes cujo centro era o Recife e pela grande

quantidade de mão de obra, ampliado pela abolição da escravidão e pelo êxodo

rural. Devido a tal desenvolvimento das indústrias têxteis, o cultivo de algodão foi

Page 8: Carolina de Toledo Braga

ampliado no estado.

Sob a razão de Pernambuco Barroca Ltda, as atividades da fábrica iniciaram

ainda em 1885. Anos depois, passou a atender pelo nome de Companhia Fiação e

Tecidos de Pernambuco, quando já empregava mais de 1,4 mil pessoas atuando

desde o tratamento do algodão até o enfardamento de tecidos, ocupando o segundo

lugar na produção econômica do estado. Criando elementos para o desenvolvimento

da paisagem do bairro, a indústria também desencadeou o surgimento das vilas

operárias, pequenos comércios e até mesmo sítios suburbanos. Pereira da Costa,

no livro “Arredores do Recife” descreve a vizinhança do bairro da Torre no início do

século XX.

Toda cortada de extensas e largas ruas, muito bem alinhadas, de boa casaria em geral, com elegantes prédios e grandes sítios, e não pequena população, notando-se ainda os seus estabelecimentos industriais, como fábricas de tecidos e de fósforos,usina de açúcar e destilação de álcool, olarias mecânicas e outras que ainda seguem o sistema da antiga rotina. É iluminada a gás, tem boa viação pública, tanto terrestre como fluvial, e uma linha de bondes elétricos. (PEREIRA DA COSTA, 2001, p. 156-161)

O crescimento das residências e vilas operárias no entorno do Cotonifício da

Torre deu-se em detrimento da própria direção da Companhia Fiação e Tecidos, a

fim de evitar que os/as trabalhadores e trabalhadoras perdessem tempo no

deslocamento entre entre o local de residência e de trabalho, além da proximidade

entre os dois possibilitar um maior controle sobre a própria mão de obra.

Trabalhadora da fábrica nos últimos anos antes do fechamento, Ana Maria Alves dos

Santos, 54 anos, ficava na parte do corte e costura. Moradora do Alto José do Pinho,

no bairro de Casa Amarela, Ana Maria era uma das funcionárias que não morava na

vila operária e pegava um ônibus da empresa no centro do bairro onde residia. O

horário de trabalho dela era das 6h às 18h numa rotina intensa, mas que ela

identifica como “época maravilhosa”.

Eu trabalhava na parte do corte, ai eu era limpadora de linha, trabalhava no aviamento de calças, numerando as calças. A gente ficava, eram doze moças, cada uma em uma mesa, uma atrás da outra, de vês em quando tinha uns encarregados tirando o tempo da gente, pra saber a

Page 9: Carolina de Toledo Braga

produção como era. A gente pegava doze horas de serviço, em pé, tinha que ficar em pé sem conversar com ninguém, uma hora de almoço era distante do refeitório. Tinha que sair correndo pra poder descansar um pouquinho, que a gente trabalhava em pé ai a hora que a gente tinha pra sentar era a hora do almoço, mas era uma fila pra pegar bandeja uma fila pra pegar comida, e quando tinha dia que o comer eu não gostava, ai eu tinha que pedir ao encarregado uma senha pra ir comer lá fora, por que pra poder sair tinha que pedir uma saída, a baixa. (SANTOS, 2015)

Apesar de não saber o porquê do fechamento do Cotonifício da Torre, Ana

Maria mudou-se para o bairro do antigo emprego e hoje é uma das moradoras da

Vila de Santa Luzia. É notório que o desenvolvimento do bairro da Torre está

atrelado à dinâmica fabril. Monsenhor da Igreja da Torre, onde mora desde 1961, o

Padre Romeu viveu durante o período de mudança nas relações entre capital e

trabalho que resultou em um processo de reestruturação empresarial e no

fechamento de diversas fábricas, como ocorreu na Torre, em 1982.

A Torre era um bairro muito pobre. Aqui onde tem o bueiro era uma olaria. Junto a olaria o rio passava, para o lado de cá era o campo de futebol da arte e o povo morava na Beira Rio, nas palafitas. As palafitas que vinham da Iputinga praticamente até onde hoje é Carrefour. Não existia Carrefour. Aquela parte de lá era toda Fabrica da Torre, do lado de cá também era da fábrica da Torre. Havia a vila operária onde tinha uma capelinha que hoje não existe mais, a capela da fábrica. E o meu principal interesse era a Beira Rio, as palafitas. Era importante que eles tivessem uma lugar mais digno, mas não havia, não era possível. (ROMEU, 2015)

Com a cheia do rio Capibaribe em 1975, foi feita uma transportação das

águas, o que ocasionou a construção de palafitas sob as margens aterradas do rio.

Poucos anos depois, com o encerramento das atividades da Fábrica da Torre, as

instalações fabris foram compradas pelo Banorte. As vilas operárias passaram a ser

desocupadas ou demolidas num processo de ampliação das moradias nas palafitas,

dando início também a formação da Vila de Santa Luzia. É nesse momento, em

meio ao aumento das palafitas e da favelização do bairro que a especulação

imobiliária cresce, aumentando o número de edifícios e prédios no lugar, sem

contudo, haver qualquer preocupação dos governos locais ou federais em

salvaguardar o patrimônio industrial ali presente. Em 2013, um grupo da sociedade

civil chamado Direitos Urbanos solicitou a Secretaria de Cultura do Governo do

Page 10: Carolina de Toledo Braga

Estado de Pernambuco, na seção da Fundarpe, o tombamento em nível estadual da

vizinhança que compõe o Cotonifício da Torre. A seguir temos um trecho do ofício

enviado em 08 de Julho para a Secretaria:

O enorme crescimento do bairro da Torre ocorrido nos últimos 20 anos acelerou o processo de renovação das estruturas edificadas constituídas a partir da memória fabril, fazendo com que se perdessem algumas dessas edificações, no entanto, sem causar um comprometimento a essa memória que moldou o bairro e que foi extremamente importante para a economia pernambucana no dois últ imos séculos. Já relação ao Patrimônio Industrial de maneira geral, pouco dessa memória encontra-se salvaguardada pelo poder público estadual, onde somente está tombado o Conjunto Fabril da Tacaruna, no Recife, e encontram-se em processo de tombamento a Fábrica Caroá, em Caruaru, e a Vila Operária de Pontezinha, no Cabo de Santo Agostinho. Embora a Fábrica da Tacaruna tenham um determinado período sido também uma indústria têxtil, em nenhum desses três casos encontramos materializados os valores que existem no conjunto fabril da Fábrica da Torre. O bairro da Torre está impregnado de valores de uma memória industrial têxtil pernambucana, em sua essência, representado pelo conjunto arquitetônico selecionado que ora se busca a salvaguarda. (DIREITOS URBANOS, 2015)

Enquanto a sociedade civil se junta em prol da proteção do patrimônio da

cidade, nenhuma resposta foi dada pelo governo do estado para tal ofício de

solicitação de tombamento.

Das palafitas ao Carandiru

Em 2008, a Prefeitura do Recife em parceria com o Ministério das Cidades do

Governo Federal criou o programa “Recife Sem Palafitas”, com o objetivo de retirar

as familías que moravam em situação de vulnerabilidade das palafitas colocando-as

como locatárias em apartamentos em conjuntos habitacionais. Os habitantes da

favela de Brasília Teimosa, localizada no bairro do Pina, na Zona Sul da cidade,

foram os primeiros as receberem apartamentos no Conjunto Habitacional do

Cordeiro, na Zona Oeste da cidade, que também tem moradores da Vila Vintém II,

em Casa Forte e da comunidade do Bueirão. Outras duas favelas também

receberam moradia, a José de Holanda, localizada no bairro da Torre (as

supracitadas palafitas da Torre) e Arlindo Gouveia, popularmente conhecida como

Page 11: Carolina de Toledo Braga

Benfica, localizada no bairro da Madalena. É importante esclarecer que nos

utilizaremos aqui do nome favela como forma não de estereotipar os moradores

dessas localidades, mas de maneira a afirmar a identidade deles enquanto

moradores de áreas subjugadas pelas autoridades e instituições da cidade.

Mapa 01 – Cidade do Recife

Fonte: URB/Recife.

As palafitas de ocupação espontânea da Zé de Holanda abrigavam mais de

200 família que lá residiam há cerca de 70 anos nas margens do Capibaribe,

utilizando-se do rio para tirar o próprio sustento, muitas vezes. Já as palafitas da

Arlindo Gouveia, ou Benfica, estavam instaladas há cerca de 40 anos no local. No

programa Recife Sem Palafitas, 320 unidades habitacionais foram entregues à

população, cada apartamento com 33 metros quadrados, com dois quartos, sala,

banheiro, cozinha e área de serviço. A obra foi orçada em R$ 5,5 milhões, sendo R$

3,5 milhões do programa Habitar/BID, do Governo Federal, e R$ 2 milhões de

contrapartida da Prefeitura do Recife. O Conjunto Habitacional da Torre, apelidado

pelos próprios moradores de Carandiru, conta com dez blocos de quatro pavimentos.

Já o do Cordeiro, chamado popularmente de Bangu, tem 27 blocos, com unidades

de 36 metros quadrados, com dois quartos, banheiro, cozinha, área de serviço e

Page 12: Carolina de Toledo Braga

varanda.

Figura 01 – Planta do Conjunto Habitacional da Torre

Fonte: URB/ Recife. Devido a localização das comunidades de José de Holanda e Arlindo Gouveia

em áreas não edificantes, às margens do Rio Capibaribe, o reassentamento foi visto

como a solução a ser adotada. As comunidades estavam localizadas em áreas de

proteção de mananciais, de acordo com a Lei 9.917 de 1968, o que configurava

uma ocupação ilegal. A remoção das construções foi seguida de queima ou expurgo

dos entulhos, e possibilitou a melhoria ambiental da área, com a despoluição do rio e

liberação do espaço para tratamento paisagístico. A partir de agora iremos chamar o

Conjunto Habitacional da Torre apenas de Carandiru, buscando nos aproximar da

forma como é a edificação é tratada pelos moradores, nos apropriando assim das

pautas da comunidade.

Atualmente moram 32 famílias da favela Zé de Holanda no Carandiru. Uma

dessas moradoras é Kátia Cilene da Silva, 47 anos. Foi morar em um barraco feito

de tábuas na “maré” quando completou 18 anos porque a família do marido morava

lá há gerações. A recém formada família vivia dos peixes e crustáceos pescados no

rio e da venda de alimentos e lanches na favela, onde chegaram a montar barracas

Page 13: Carolina de Toledo Braga

para comércio de gêneros alimentícios. Cilene, como é conhecida, chegou a

construir uma casa de taipa na Zé de Holanda e depois uma casa de alvenaria que

era usada também para fins comerciais. Há 12 anos, Cilene participou de entrevistas

com agentes da prefeitura para saber do interesse da família em morar no conjunto

habitacional, no que foi contemplada com um apartamento, um box no Mercado da

Torre, localizado no interior do conjunto, e uma ajuda de custo de 1,2 mil da

prefeitura. Dinheiro que, segundo ela, foi a única ajuda do governo da cidade aos

moradores.

Cilene hoje está lutando para sair do habitacional porque ela diz que o

ambiente não é bom para criar os filhos. Música alta, tráfico de drogas, sujeira e

atitudes violentas da polícia – invadindo a casa das pessoas – estão entre os

motivos pelos quais a moradora não deseja mais morar na unidade habitacional. Em

contraponto ao cotidiano no Carandiru, Cilene pretende fazer como várias de suas

vizinhas: voltar para a favela. Ela se utiliza de argumentos como a falta de

investimento público seja na estrutura dos prédios, seja nos equipamentos de

comércio oferecidos pela prefeitura ou até mesmo nas relações de condomínio. O

que aconteceu foi que colocaram várias pessoas acostumadas a morar em casas

em blocos de apartamentos sem fazer algum projeto de convivência pelo menos

entre as duas favelas.

Então, as pessoas saem daqui justamente por conta disso, porque querem ter uma vida melhor. Muita gente saiu pra voltar pras palafitas. Mas muita gente saiu pra ter uma vida melhor. Quem é que não quer ter uma vida melhor? Dar uma vida melhor aos seus filhos? Porque se a gente tá aí em baixo sentado, a gente não pode. Porque de repente vem tiro, vem a polícia. Eles mesmo não respeitam, sabe? Se tiver uma festa, eles mesmo ficam do lado se drogando. Meu filho mesmo, é um menino bom, o irmão dela, ela (aponta para aluna do Martins Júnior que está na sala) são meninos bons. Eu quero sair daqui porque eu não tenho lazer nem pra o meu filho jogar uma bola. Um dia desses mesmo, o camburão entrou aqui correndo e quase que derruba a parede. Por isso que eu fico brigando pra não tirarem a calçada, porque se tirarem a calçada, a polícia vai derrubar a parede. O bloco aqui tem rachaduras, isso aqui futuramente vai causar problemas... Tem cano, fossa que estoura lá em baixo e a prefeitura não quer nem saber. (SILVA, 2015)

Ao realizar o projeto mencionado anteriormente de ensino da História Oral na

Escola de Referência Martins Júnior, por meio do Pibid, nós, enquanto educadoras,

percebemos a atitude vezes indicando como um lugar de marginalidade, vezes

Page 14: Carolina de Toledo Braga

apontando com ironia os/as estudantes moradores/as dos conjuntos habitacionais.

Percebemos também a vergonha dos próprios estudantes em se afirmar enquanto

moradores do Carandiru.

E justamente, porque Carandiru? Porque você não consegue organizar as coisas, é uma prisão. A gente vive numa prisão, a gente não tem lazer. A Prefeitura não deu lazer a gente, a gente não tem vida própria. Então, Carandiru se chama uma prisão. Você acha que a gente tem vida própria? A gente não pode soltar um filho, a gente viver no meio da marginalidade. Lá era uma favela, mas aqui é uma prisão. Por isso que botaram Carandiru. Mas uma menina botou e ficou. O de lá é Bangu. Né uma prisão? O de lá ainda é pior. Uma amiga minha Viviane comprou lá, aí eu visitei, e é todo acabado. Mas ainda é melhor que aqui ambiente. O apartamento é maior, a gente chega sente assim o ambiente. O ambiente, o local é pior. É uma prisão porque só seu apartamento... É o que o povo diz. (SILVA, 2015)

É possível observar na fala de Cilene que a falta de lazer e acompanhamento

de órgãos do governo são atribuídos a características de um presídio, e, por isso, o

apelido de Carandiru ao conjunto habitacional. Ou seja, as pessoas moradoras não

se sentem pertencentes àquele lugar, não criaram nenhum vínculo afetivo com o

imóvel ou com os vizinhos. Sentem-se presas e não veem a unidade como lugar de

moradia e sim como lugar de passagem, muitas vezes preferindo voltar para morar

em condições de vulnerabilidade sócio-econômicas como a favela, as palafitas. Não

nos cabe aqui analisar os motivos pelos quais os/as moradores/as chamam o

Conjunto Habitacional da Torre de Carandiru ou porque preferem morar em palafitas

a viver em condomínios. É importante constatarmos e documentarmos esses fatos

para dar voz a estas pessoas e as reivindicações delas. Já que, por muitas vezes,

lhes é negado o direito à comunicação em uma cidade que nega a existência delas

por uma questão de classe. Assim, é na busca por uma história do lugar onde

moramos, trabalhamos ou estudamos que poderemos nos identificar e inserir

memória em uma cidade construída por nós, cidadãos e cidadãs. E ocupá-la.

Page 15: Carolina de Toledo Braga

Referências ______. Manual de História Oral. 2 ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Editora FGV: 2004. 236 p.

ALBERTI, V. História oral: a experiência do Cpdoc. Rio de Janeiro: FGV, 1989. Pp 155-167. ALCANTÂRA, E.; MONTEIRO, C. Em que a vida na favela é melhor do que em um conjunto de apartamentos? O caso de Abençoada por Deus. Recife. V Encontro Nacional da Anppas. Florianópolis: 2010.

ANDRÉ, Marli E. Etnografia da prática escolar. São Paulo: Papirus, 1995,p. 27-64.

BRAGA, Célia. O bem viver em Recife: uma abordagem do cotidiano dos

moradores do Casarão do Cordeiro. Florianópolis. Universidade Federal de Santa

Catarina, 2014.

BRANDÃO, Carlos, Rodrigues. Reflexões de como fazer um trabalho de campo.

Sociedade e Cultura. Vol.10n,1, Jan-Jul 2007, p.11-27.

BITENCOURT, Circe Maria. Ensino de história: fundamentos e métodos. São

Paulo: Cortez, 2004.

CASTRO, Iná Elias de; GOMES; Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto

Lobato. Geografia: Conceitos e Temas. 11ª Ed, Rio de Janeiro: Bertrand, 2008.

CISNEIROS, Leonardo. Grupo Direitos Urbanos pede tombamento do Cotonifício da Torre. Blog dos Direitos Urbanos, 2013. Disponível em: https://direitosurbanos.wordpress.com/2013/07/09/grupo-direitos-urbanos-pede-tombamento-do-cotonificio-da-torre/ Acesso: 10/06/2015. DOMINGUES,Luís Manuel. O Processo de industrialização em Pernambuco(1890-1920). In: Revista SymposiuM. Recife, a. 4, n.1, p.57-76,

Page 16: Carolina de Toledo Braga

janeiro-junho, 2000. FONTE, Romeu Gusmão da . Padre Romeu (depoimento, 2015). Recife, Paróquia da Torre, p. 8. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários á

prática educativa. 15.ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. (Primeira

edição em 1996).

GUERRA, Flávio. Velhas Igrejas e Subúrbios Históricos. Edição da Fundação Guararapes: Recife, 1970. LAVILLE, Christian. A guerra das narrativas: Debates e ilusões em torno do

ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo. 1999.

MATOS, J. S.; SENNA, A. K. de. História oral como fonte: problemas e métodos. 2011. PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Arredores do Recife. 2. Ed.autônoma. Recife: FJN. Ed. Massangana, 2001. PERRUCI, Gadiel. A República das usinas. Rio de Janeiro: Ed. paz e Terra,1978. SANTOS, Ana Maria Alves dos . Ana Maria (depoimento, 2015). Recife, EREM Martins Júnior, p.8. SILVA, Kátia Cilene da. Cilene (depoimento, 2015). Recife, EREM Martins Júnior, p. 14.