Carta a Bultmann

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  • 7/24/2019 Carta a Bultmann

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    Carta a Bultmann

    Rudolf Bultmann (1884 1976) foi um dos maiores estudiosos do NovoTestamento do sculo passado, e provavelmente o maior representante doliberalismo teolgico na rea dos estudos bblicos (embora ele mesmo nose considerasse um liberal). A carta, obviamente, fictcia, bem como oscomentrios jocosos que iro aparecer assinados por Bultmann...

    Meu caro Bultmann,Sei que voc no pode mais me ouvir. No quero parecer covardeescrevendo para quem j morreu. Mas, no tive a oportunidade deconhec-lo enquanto voc ainda vivia (tornei-me cristo um ano aps asua morte). Alm do mais, voc sabe que escrever dar a cara tapa,mesmo depois de morto. E o que coloco aqui baseado nas coisas quevoc escreveu e que, depois de sua morte, ainda falam.Comeo expressando minha profunda admirao pela sua cultura, seuconhecimento, domnio do grego e do latim e pela lgica de seusposicionamentos. Posso no concordar com voc em praticamente tudo

    que voc concluiu, mas seria injusto deixar de reconhecer seu valor etalento como pesquisador, erudito e escritor para os estudos no Novo

    Testamento e para a hermenutica.Reconheo tambm a sua piedade. Sei que sua religiosidade foi moldada no pietismo alemo, o qual valorizava apiedade individual e defendia uma vida crist consistente. Pelo que li, voc era membro dedicado da Igreja Luteranana Alemanha e um excelente pregador. Li recentemente que voc tambm pregava sermes natalinos e fiqueicurioso em saber como voc conseguia fazer isto, uma vez que no acreditava realmente que Jesus de Nazar era oFilho de Deus encarnado.Sabe, caro doutor, pode ser que sua inteno real, ao dizer que o Novo Testamento est cheio de mitos, lendas eestrias fabricadas pela f da Igreja, tenha sido libertar o kerygma de uma determinada viso mitolgica de mundo.Voc aparentemente intencionava alcanar o homem moderno, que tem uma viso de mundo moldada pelo

    cientificismo, que no acredita mais em milagres, e que j tem uma explicao cientfica para tudo o que acontece.Voc queria desmitologizar o Novo Testamento e apresentar a este homem racionalista um Evangelho que no oofendesse e que ele pudesse aceitar sem perder a sua respeitabilidade cientfica. Quero dizer que reconheo que suainteno era boa e seu alvo, legtimo. Devemos envidar todos os esforos para falar nossa gerao. Vejo nestepropsito seu uma inteno missionria, que aprecio e com a qual concordo.Mas, se voc pudesse ver hoje o resultado de sua estratgia, desconfio que ficaria desconsolado em ver que nofuncionou como voc queria. Seria injusto acus-lo de esvaziar as igrejas na Europa, Estados Unidos e outros locais.A secularizao geral da Europa tambm contribuiu para isto. Mas o fato que onde suas idias mais radicais foramadotadas por professores liberais de teologia e pastores, as igrejas secaram, se esvaziaram e morreram. Pode ter sidocoincidncia. Mas a verdade que este homem moderno, por mais cientfica que seja sua mentalidade, quando elevai aos domingos para a igreja, quer saber como pode alcanar paz interior, perdo para sua conscincia culpada,

    reconciliao com Deus e ter esperana da vida eterna coisas que o Jesus histrico com sua mensagemexistencialista que voc apresentou, depois de despi-lo de sua divindade, no pode oferecer.Se voc pudesse ver alguns de seus seguidores hoje entenderia melhor o que eu quero dizer. Uma parte deles noconsegue contribuir em nada para a Igreja, o que era sua inteno inicial, caro Rudolf. Eles acabam virandoacadmicos, dando aulas em escolas de teologia secularizadas ou nos seminrios das denominaes histricas etradicionais, onde nem sempre dizem o que pensam (h excees, claro). No ouvi ainda falar de algum que sejaum pastor reconhecido, plantador de igrejas, evangelista, que ame misses e que tenha feito sua igreja crescer -embora eu deva reconhecer que conheo alguns fundamentalistas que tambm so assim, secos e infrutferos. Mas,a diferena, caro doutor, que um pastor liberal ( assim que chamamos, certo ou errado, quem adota suas idias)que no planta igrejas, no evangeliza, no tem interesse em misses, est sendo coerente com aquilo que acredita;enquanto que um pastor conservador que no planta igrejas, no evangeliza nem tem interesse em misses est

    sendo inconsistente para com o Cristianismo histrico tradicional.Eu gostaria de poder lhe dizer que suas idias morreram e que hoje praticamente no tem mais ningum queseriamente as defenda. Mas, no, no posso dizer isto. Lembra do Karl Barth, que viveu na sua poca, e com quemvoc trocou correspondncias por mais de 30 anos? Vocs dois tinham muita coisa em comum, embora tambmdiferenas. Pois , acho que ele acabou levando a melhor, pois muitos de teus discpulos acabaram virando bartianos

    http://4.bp.blogspot.com/_rE4gigbpibg/Swh6y2-i9xI/AAAAAAAAASg/iHd3A4rUJQw/s1600/bultmann1.jpg
  • 7/24/2019 Carta a Bultmann

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    ou neo-ortodoxos assim que os chamamos e embora falem a lngua dos ortodoxos (da o nome neo-ortodoxia)ainda conservam em grande parte aquele seu ceticismo radical para com a veracidade e historicidade do NovoTestamento. Estes neo-ortodoxos detestam ser identificados como liberais, mas ao final, no sendo realmente umanova ortodoxia, o melhor nome para eles deveria ser neo-liberais mesmo.Por ltimo, no poderia deixar de lhe dizer que a premissa maior de seu programa de desmitologizao aquela deque o homem moderno tem uma mentalidade cientfica e no acredita mais em milagres acabou se provando falsa:o homem moderno continua cada vez mais religioso, apesar dos esforos dos ateus evangelistas (no que voc tenhasido ateu), como Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens, e do crescimento da mentalidadesecularizada no mundo ocidental.Termino aqui. Espero sinceramente no ter entendido mal as coisas que voc escreveu. Digo isto, pois mostrei oesboo desta carta a um amigo, um jovem, erudito, inteligente e capaz telogo, seu admirador, e ele me disse quediscordava totalmente de mim. No tivemos tempo de aprofundar nossa conversa e discutir os pontos dediscordncia. Mas, pelo que tenho lido das tuas obras, acredito que no fui injusto para com tuas idias.Sinceramente,Augustus