Carta Battisti ao STF

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    Braslia, 25 de fevereiro de 2009 (16h)

    Excelentssimos Senhores Ministros do Supremo Tribunal Federal

    Gilmar Mendes - presidenteCesar Peluso - vice-presidenteCelso de MelloMarco AurlioEllen GracieCarlos BrittoJoaquim BarbosaEros GrauRicardo LevandowskiCarmen LciaMenezes Direito

    Senhores Ministros,

    Tomo a permisso de dirigir-me a Vossas Excelncias com a convico deque, pela primeira vez, terei oportunidade de ser ouvido plenamente pela altacorte deste pas, inclusive para expor porque fui impedido, de exercer minhadefesa de maneira adequada nas ocasies anteriores em que fui julgado.

    Quero dizer a verdade da minha histria e esclarecer os episdios relacionadoss terrveis acusaes lanadas contra mim. Nunca tive a possibilidade naItlia, de defender-me. Nunca um juiz, ou um policial me fez uma s perguntasobre os homicdios cometidos pelo grupo ao qual pertencia, os ProletriosArmados pelo Comunismo, PAC. Nunca a justia italiana ouviu meutestemunho. Nunca um juiz interrogou-me: "voc matou?". Hoje, trinta anosdepois pela primeira vez na minha vida, tenho a ocasio de explicar-meperante uma justia, a justia do Brasil. E creio sinceramente na seriedade econscincia desta justia. Agradeo muito Vossas Excelncias pela disposio,Senhores Ministros, de ouvir minha palavra.

    Cresci numa famlia comunista muito militante. O meu pai e os meus irmos

    arrastaram-me, muito jovem, para a ao poltica. Aos dez anos, meu pai j melevava para gritar slogans de revolta, na rua. Mas, aos 17 anos compreendi queo homem cujo retrato era afixado na nossa casa era Stalim, e lancei-o pelajanela. Aquilo, abriu uma crise poltica com o meu pai, e deixei a minha famlia,para juntar-me rua, com as centenas de milhares de pessoas que serevoltavam desde 1968 contra o binmio da poltica italiana: "DemocraziaCristiana - Partido Comunista Italiano, DC-PCI". Pertencia, ento, a um grupode jovens "autnomos" que vivia em uma comunidade. Eram militantes noarmados. mesmo verdade que para financiar nossa atividade militante,folhetos e etc., levantvamos recursos atravs de roubos. Para embelezarestes delitos, que foram extremamente numerosos nessa poca na Itlia, todos

    os jovens chamavam estas aes no de "roubos", mas de "reapropriaesproletrias". E devo confessar que detestava estas aes simplesmente porque

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    tinha medo. Este medo persistiu durante toda a minha ao militante, tema aoqual voltarei.

    Foi devido a uma destas "reapropriaes proletrias" que fui encarcerado pelaprimeira vez, mas que realmente devia-se nossa vida de militantes sem

    dinheiro. Na priso encontrei um homem mais idoso, Arrigo Cavallina, quepertencia a um grupo de luta armada, os PAC. No gostava de suapersonalidade, ao mesmo tempo fria e febril, mas impressionavam-me suacultura e suas teorias revolucionrias - mesmo se no compreendia tudo o queele dizia. Quando fui libertado em 1976, voltei minha comunidade: havia setornado um deserto. Certos companheiros tinham morrido, mortos pelospoliciais nas manifestaes. Os outros estavam devastados pela droga. Nessapoca, grandes quantidades de droga barata foram distribudas maciamenteem todas as grandes cidades para quebrar o movimento de revolta. Emseguida as entregas foram suspensas, e todos os jovens que tinham cado naarmadilha da "herona" tinham-se tornado fantasmas em estado de

    "necessidade", pensando apenas em encontrar droga, e no na ao poltica.Amedrontado por este espetculo, fiz o grande erro da minha vida: tomei umcomboio para Milo e entrei no grupo armado dos PAC. Sem compreendernessa poca, que, l tambm, caia numa armadilha fatal.

    O chefe militar deste grupo era Pietro Mutti. Tambm era importante ArrigoCavallina. Descrevi longamente a estranha personalidade de Pietro Mutti nolivro que escrevi no Brasil durante a minha fuga: "Minha fuga sem fim". Estetrabalhador tinha tido graves problemas com droga, e tinha sado disso graas ao poltica. Isto fazia dele um fantico, uma verdadeira mquina de guerra.Apesar de seu carter muito contido, tornamo-nos amigos. Mas Pietro Mutti

    supervisionava-me incessantemente, para ver se eu estava a "altura", e eutentava s-lo. Os PAC eram especializados sobre a ao social e a melhoriadas condies prisionais. O grupo cometia regularmente aes de apropriaesaos bancos, para assegurar o seu financiamento e tambm aes aos locais de"lavoro nero", trabalho sem carteira. Aquilo sim, eu fiz. Todo esse ativismomilitante nunca o neguei. Pietro Mutti tinha sentido perfeitamente o meu medo,durante estas "aes obrigatrias", que eu sempre detestei. Estvamosarmados - embora uma boa parte das armas no funcionasse. Temia sempreque um dos companheiros atirasse sobre o vigia do banco, se este vigialevantasse a mo com a sua arma. Havia desenvolvido uma tcnica para evitaraquilo: lanava-me com as mos nuas sobre o vigia e punha-o no solo desurpresa. Porque sabia que uma vez por terra, ningum atiraria nele. Fiz aquilonumerosas vezes. Conto esta pequena histria que pode parecer anedtica,para assegurar-lhes, Senhores Ministros, que no sou de maneira alguma "umhomem sanguinrio", como tem sido escrito incessantemente, mas aocontrrio. Vossas Excelncias podem tambm pedir a informao aos meusirmos, Vicenzo e Domenico, como eu reagia quando era jovem e matavam umanimal em nossa pequena explorao agrcola, mesmo que fosse um frango.Essa averso ao sangue nunca diminui na vida de um homem. Pelo contrrio,aumenta. E nunca matei e nem quis matar qualquer pessoa.

    Quero deixar claro Vossas Excelncias o que sei sobre os quatro homicdiospelos quais fui acusado na minha ausncia, sob alegaes diversas. As

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    acusaes foram de que eu teria cometido os assassinatos de Santoro eCampagna, que eu teria sido cmplice sobre o lugar no caso da morte deSabbadin, e que teria organizado a ao que matou Torregiani, morto nomesmo dia de Sabbadin. Sabem, Senhores Ministros, que fui preso em 1979com outros militantes clandestinos e que fui julgado na Itlia durante o primeiro

    processo dos PAC, onde estava presente. Houve numerosos casos de torturadurante este processo, com suplcio da gua, mas eu mesmo no fui torturado.Nenhuma vez durante este processo fizeram-me uma s pergunta sobre oshomicdios. Os policiais sabiam perfeitamente que no os tinha cometido. Porconseguinte, fui condenado em 1981 por "subverso contra a ordem doestado", o que era verdade e o que eu no negava no processo. Fuicondenado a 13 anos e seis meses de priso, porque naquela poca aspenalidades, de acordo com as novas leis de urgncia, eram multiplicadas portrs para os ativistas. Esse tempo foi depois reduzido para 12 anos.

    O meu processo, nico e verdadeiro processo ao qual tive direito na Itlia, foi

    concludo. Estava numa das "prises especiais" que tinham sido construdaspara ns, chamados de "terroristas". Como prova de que a justia italianareconhecia aquela poca a minha inocncia quanto s acusaes dehomicdio, fui transferido para uma priso para "aqueles cujos atos nocausaram a morte". Mas o procurador Armando Spataro, que chefiava oesquema de torturas pela regio de Milo, continuava a se incomodar comigo ebloqueou a minha correspondncia com a minha famlia. Soube com trsmeses de atraso por uma visita da minha irm, que o meu irmo Giorgio tinhamorrido, num acidente de trabalho. O choque para mim foi imenso. Aquilo, e ofato de que, a cada dia, no passeio, prisioneiros desapareciam sem razo, paraseguidamente retornar meses aps embrutecidos e mudos, ou no retornavam,fez-me tomar conscincia de que as leis no seriam nunca normais para ns.

    Por causa disso, e apenas por isso, tomei a deciso de fugir. E no para "fugirda justia" dado que o meu processo estava terminado. Evadi-me em quatro deoutubro de 1981, e deixei folhas em branco assinadas, aos meus antigoscompanheiros, para o caso de processo por minha evaso. Fui para a Frana.Antes de ir, em 1982, ao Mxico. E porque ignorava completamente que ajustia italiana movia um novo processo contra os PAC, este famoso processona minha ausncia onde fui condenado priso perptua sem luz solar. Fiqueisabendo disso com estupefao, quando retornei Frana, mesma data em

    que soube do falecimento de meu pai h dois anos atrs. Tal fato, a perda demeu pai, foi mais relevante que qualquer deciso da justia, pois pensei quenenhum juiz consciencioso poderia considerar com seriedade um processocomo esse.

    Devo recomear a minha histria em 1978 quando era ainda membro dos PAC.Desculpe-me, por favor, por me prolongar Senhores Ministros, mas a primeiravez, repito-o, que posso explicar-me na frente de uma justia digna deste nomee desejo dizer Vossas Excelncias tudo o que sei. Em maio de 1978, eusoube, como todos os italianos e o mundo inteiro do sequestro e assassinatode Aldo Moro pelas brigadas vermelhas. Olhava horrorizado esta imagem da

    mala do automvel, um KL - na televiso, e posso dizer que esse dia tornou-meoutro homem. H na minha vida "antes de Aldo Moro" e "aps Aldo Moro".

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    Nesse dia eu senti duas coisas: o horror que me inspirava aquele ato, a nuseana frente de todo aquele sangue vertido por todos os lados. Compreenditambm que o uso das armas era uma armadilha, na qual a extrema esquerdatinha cado. Decidi nesse dia romper com a luta armada, definitivamente. Emtoda a Itlia, a morte de Aldo Moro suscitou enormes discusses em todos os

    grupos armados. No que respeita aos PAC, decidimos por uma nova palavrade ordem, segundo a qual estaramos armados para defender-nos, mas nuncapara atacar pessoas. Estupidamente fiquei tranquilizado por esta deciso,votada pela maioria. Mas um ms depois, em junho de 1978, um grupoautnomo dos PAC, dirigido por Arrigo Cavallina e chefiado por Pietro Mutti,sem consultar a totalidade dos membros responsveis, matou o chefe dosagentes penitencirios, Santoro. Houve imediatamente uma reunio, muitoagitada. Pietro Mutti e Arrigo Cavallina defenderam esse homicdio com grandevigor. Nesse mesmo dia deixei o grupo, como uma boa parte dos membrosantigos que se opunham a todo ataque contra pessoas. Pietro Mutti ficoufurioso contra mim, considerava que o trai.

    Juntei-me, ento, ao que era chamado "um coletivo de grupos territoriais".Tambm armados mas no ofensivos. Vivia com muitos outros clandestinosnum velho prdio de Milo. Sabiamos quase tudo o que se passava e se diziana cidade e assim que, no inicio do ano de 1979, soubemos que os PACpreparavam ao contra homens de extrema direita que praticavamautodefesa, que andavam sempre armados (espcie de milicianos). Eu nosabia quem era a pessoa visada, e no sabia que, realmente, os PAC tinhamdecidido matar dois desses justiceiros de extrema direita, Torregiani em Milo eSabbadin na regio de Veneza. Eu quis impedir esses atos, sangrentos,estpidos e contraproducentes para a resistncia. Um verdadeiro suicdiopoltico, posto que indefensvel. Pedi autorizao, em nome do "grupoterritorial", para participar de uma reunio dos PAC, na casa de Pietro Mutti.

    Cheguei com dois outros companheiros. Havia l muitos membros novos queeu no conhecia, e que tinham substitudo as nossas partidas do anoprocedente. Expliquei a Pietro Mutti e aos outros a estupidez e a loucura doseu projeto. Muito rapidamente a reunio caminhou mal, e o tom se tornoumuito elevado. Os membros dos PAC disseram-me que eu no tinha maisdireito de dar o meu parecer dado que no pertencia mais ao grupo e a reunioterminou sob forte tenso. Eu no sabia quem devia ser morto. Cerca de um

    ms depois, ou menos, soube pelos jornais que Torregiani tinha sidoassassinado e que durante o ataque uma bala do revlver de Torregiani tinhaatingido o seu prprio jovem filho Alberto. Recordo que fiquei gelado nacalada ao ver o jornal. Soube tambm que um outro membro da milcia haviasido morto no mesmo dia na regio de Veneza, Sabbadin. Fiquei chocado etambm envergonhado, muito perturbado, porque eu tinha pertencido a essegrupo, que se tornou assassino.

    E dois meses aps, em abril - mas no recordo da data - um policial de Digos,Campagna, foi morto tambm. O senador Suplicy interrogou-me para saber setinha libis s datas destes homicdios. Mas penso que podem compreender,

    Senhores Ministros, que, at mesmo por no os ter cometido, sou incapaz derecordar das datas desses crimes. Alm disso, vivamos escondidos nos

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    apartamentos, e os dias eram vazios, interminveis e muito semelhantes. -meimpossvel recordar 30 anos depois, onde estava naquelas datas, certamenteno apartamento, que praticamente nunca deixvamos.

    Seguidamente no vero houve uma grande operao no norte da Itlia e fui

    preso com todos os ocupantes do prdio. Sim, exato que havia armas nolugar, mas a prpria justia italiana estabeleceu, por uma avaliao debalstica, que eram virgens, que nenhuma delas nunca tinha sido usada paradar um nico tiro.

    Muitos dos fatos que conto agora no os vivi, dado que estava no Mxico.Soube deles, em 1990, na Frana, quando fui informado do contedo dosegundo processo que comeou com a deteno de Pietro Mutti em 1982.Soube, na Frana, que Pietro Mutti tinha sido torturado e tinha se constitudo"arrependido", que aceitava colaborar com a justia italiana em troca de sualiberdade e uma nova identidade. Soube de que ele estava sendo acusado,

    com base em inquritos policiais, de ser o atirador sobre Santoro e queacusou-me no seu lugar. Durante esse longo processo, Pietro Mutti fez tantasacusaes que muito frequentemente ficou atrapalhado em suas declaraesimpossveis ou contraditrias. Por exemplo, para salvar a sua namorada,acusou outra mulher, Spina, de ser cmplice no atentado contra Santoro. Masem 1993, a justia foi obrigada a reconhecer a inocncia da Spina, e libert-la.No tenho os documentos comigo, e devo dizer que a escritora e pesquisadorafrancesa Fred Vargas conhece muito melhor o meu processo do que eumesmo. Mas sei que, em 1993, segundo creio, a prpria justia percebeu, porseus atos e suas palavras, que Pietro Mutti era "habituado aos jogos deprestidigitao" e que, frequentemente, dava o nome de uma pessoa em lugarde outra. A parte a tortura, a nica desculpa que se pode dar a Pietro Mutti, porter-se sujeitado a fazer as suas terrveis e falsas acusaes que seguia umaregra: proteger os acusados presentes, lanando a culpa sobre os ombros dosausentes. Como quando acusou Spina at que se reconheceu a sua inocnciaem 1993.

    Mutti no foi o nico arrependido acusador. Quero explicar aos SenhoresMinistros que, nessa poca, durante os processos nos anos de chumbo, osistema das torturas e dos "arrependidos" foi utilizado correntemente (verrelatrio de Anistia Internacional e da Comisso Europia) e com uma

    intensidade especfica pelo procurador Spataro. Sabamos todos que eraterrvel a ver Spataro como procurador. O sistema dos "arrependidos" nofuncionava sobre o nico testemunho de um s homem. Era necessrio obteroutros "testemunhos" de arrependidos de modo que a acusao fosse"confirmada" e parecesse slida. Houve por conseguinte outros membros dosPAC que me acusaram, juntamente com Pietro Mutti, como Memeo, Masala,Barbetta, etc.. Todos eram arrependidos ou "dissociados", e todos ganharamredues de pena ou liberdade imediata, ou evitaram a priso perptua. Assim,por exemplo, Memeo, o que matou Torregiani e Campagna, Cavallina o"idelogo" dos grupos dos duros, Fatone, Grimaldi, Masala, que fizeram partedo comando contra Torregiani, Diego Giacomini que executou Sabbadin. Todos

    estes obtiveram sua liberdade em troca da confirmao de Pietro Mutti,

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    No que respeita morte de Santoro, j contei da reunio que se seguiu e quedecidiu a minha sada do grupo. Sei apenas que Arrigo Cavallina e Pietro Muttidefenderam ardentemente esse crime durante aquela reunio e que a polciaos acusava de t-lo cometido.

    No pertencia mais ao grupo quando foram cometidos os trs outrosassassinatos, por conseguinte os meus conhecimentos precisos estolimitados. Mas a mdia que me acusa incessantemente de, voluntariamente, ter"atirado sobre Torregiani" e, mesmo, de ter "atirado sobre o seu filho", sabeefetivamente que isso totalmente falso. A justia italiana reconheceu que osquatro homens do comando eram Grimaldi, Fatone, Masala e Memeo, queatirou sobre o joalheiro. E foi tambm a justia que confirmou que a bala queferiu o filho Alberto vinha do revlver de seu pai. Creio que no inicio Muttiacusou-me desse crime. Mas como acusava-me tambm do homicdio deSabbadin, cometido no mesmo dia a centenas de quilmetros, disse que eu erao "organizador". Expus j o que se passou na reunio quando tentei impedir

    esta ao. Quanto a Sabbadin, Giacomini "sub-chefe para a regio de Veneza"confessou ter atirado sobre ele. Como Mutti primeiro tinha dado o meu nomecomo "atirador" transformou-me, aps as confisses de Giacomini, emmotorista, do lado de fora. S que nem assim funcionou, pois resultouposteriormente que o "motorista" era uma mulher. Senhores Ministros nemmesmo sei onde esta aldeia onde foi morto Sabbadin.

    Por ltimo, sei que Mutti acusou-me ainda de ter atirado sobre Campagna. poca, nada soube sobre a preparao desse crime, no mais que sobre o deSabbadin. O que sei que uma testemunha ocular descreveu o agressor comoum homem muito grande, de 1,90 metros, enquanto em meo 20 centmetrosmenos. O resto a escritora e pesquisadora Fred Vargas explicou-me: a balsticaprovou que a bala vinha da arma de Memeo, o que atirou sobre Torregiani. Eque uma testemunha diz que tinha acreditado entender, pelas palavras deMemeo, que ele que tinha atirado. Mas esta testemunha talvez umarrependido e no tenho certeza sobre o responsvel pela morte deCampagna.

    No sou responsvel por nenhum dos homicdios de que sou acusado,Senhores Ministros. Constantemente fui utilizado no processo como um bodeespiatrio, por arrependidos. A melhor prova de que digo a verdade que

    falsos mandatos foram fabricados, como a percia grafotcnica comprovou, demodo que os advogados Gabrieli Fuga e Giuseppe Pelazza "representaram-me" no processo na minha ausncia. Por qu? Certamente no para defender-me, certamente no para o meu bem, dado que fui condenado prisoperptua com privao de luz solar. Mas certamente para tornar a acusaocontra mim mais aceitvel e criar cenrio favorvel para uma pena maisrigorosa. At muito tempo depois da simulao de julgamento eu no sabia queexistiam falsas procuraes. Esta descoberta devo-a Fred Vargas e minhaadvogada francesa Elisabeth Maisondieu Camus. Foi Fred Vargas que me deua informao, quando foi visitar-me na priso em 2007, em Braslia. Um antigocompanheiro (quem? Pietro Mutti?, Bergamini?) deu aos advogados as folhas

    brancas que tinha assinado em 1981, antes de minha fuga. Duas destas folhasforam preenchidas depois em 1982, com "minha letra aparentemente". Fred

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    Vargas, explicou-me que o mesmo texto o do verdadeiro mandato que assineiem 1979 foi copiado duas vezes, e que os dois textos esto sobrepostos portransparncia, enquanto que foram escritos com dois meses de intervalo,"datados" de maio e julho de 1982. Uma pericia francesa provou, em janeiro de2005, que as trs assinaturas, dos trs mandatos foram efetuadas no mesmo

    momento e que, por exemplo, o texto do mandato de 1990, supostamenteenviado do Mxico (mas o envelope no existe). Foi datilografado acima daminha assinatura de nove anos atrs. A percia provou tambm que as datasno foram escritas por minha mo, assim como tambm o escrito nosenvelopes dos dois primeiros "mandatos".

    Quando os meus advogados franceses souberam disso, comunicaramimediatamente, em janeiro de 2005, ao Conselho de Estado Francs. Assimprocederam porque a Frana no tem o direito de extraditar um condenado emausncia que no foi informado de seu processo. Esses trs falsos mandatosprovavam que eu no havia sido informado (se sim, teria escrito os mandatos

    eu mesmo). Muito infelizmente, o Conselho de Estado, submetendo-se vontade do presidente Jacques Chirac, recusou-se a examinar a falsidade dosmandatos. Aceitaram a extradio afirmando que "tinha sido informado erepresentado como se os mandatos fossem verdadeiros". Em seguida os meusadvogados franceses apresentaram a comprovao dos trs falsosdocumentos Corte Europia, mas l tambm foi intil, pois, certamente porinterferncia do governo francs, como esclareo em seguida, a CorteEuropia fechou os olhos, ignorou a prova pericial e disse que os mandatoseram verdadeiros. O meu advogado francs Eric Turcon informou-me emBraslia que essa "Corte Europia" tinha sido constituda exclusivamente pormagistrados franceses, muito vinculados a Jacques Chirac. Este nico fato,Senhores Ministros, prova que meu processo italiano foi viciado, sendo esse,um dos elementos que o Ministro Tarso Genro reconheceu. E que a aprovaoda extradio pelas trs Cortes francesas, e em seguida pela Corte Europia,foi sempre fundada sobre a existncia daquelas procuraes que soabsolutamente falsas, o que fica evidente num exame a olho nu. Por que essasCortes, informadas das falsidades desses documentos, se recusaram aconsiderar este ponto da mais alta relevncia?

    O Secretrio Nacional de Justia do Brasil, Romeu Tuma Jr., por solicitao doMinistro da Justia Tarso Genro, teve a oportunidade de examinar

    detalhadamente os documentos apresentados pela historiadora e arquelogaFred Vargas, em dilogo de duas horas, em companhia do senador EduardoSuplicy, documentos nos quais se evidencia que houve a falsificao dasprocuraes, conforme a anlise tcnica com reconhecimento oficial, feita pelaresponsvel por estudos de grafologia na Frana, senhora Evelyn Marganne.Ser muito importante que Vossas Excelncias tambm possam examinar comateno estas provas, que muito contriburam para fundamentar o que foiexpresso na deciso do Ministro Tarso Genro. Por esse motivo anexo aqui osdocumentos levados pela pesquisadora Fred Vargas ao Dr. Romeu Tuma Jr. eencaminhados ao Ministro Tarso Genro pois eles mostram a evidncia dafalsificao das procuraes e apiam as explicaes detalhadas das folhas

    nas concluses da Justia italiana a meu respeito.

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    Assinalo que todas as testemunhas arroladas que contaram que eu teriaparticipado dos quatro assassinatos foram beneficiarias pela "delaopremiada" com consequente diminuio de suas penas e/ou de sua libertao.O senhor Walter Fanganiello Maierovitch afirma em seus artigos que a justiaitaliana no aceita o depoimento de um "arrependido" que use da delao

    premiada, se por ventura no falar a verdade. Entretanto, a prpria justiaitaliana no invalidou a denuncia contra mim feita por Pietro Mutti apesar dascontradies acima assinaladas. Observo tambm que na entrevista dada porPietro Mutti Revista Panorama, na qual se baseou a "Revista Veja" paraconcluir que eu era culpado dos quatro assassinatos, diferentemente do que sedeu a entender no h foto recente de Pietro Mutti. A foto l mostrada dotempo em que ns convivamos e suas palavras so exatamente as mesmasque pronunciou poca da denncia. De minha parte estou disposto aconfirmar pessoalmente, perante Vossas Excelncias, tudo o que estoudizendo. Assim como estou disposto a afirmar aos familiares das quatrovtimas, olho no olho, que no matei seus entes queridos. Sei que a justia do

    Brasil tomar em considerao todos os elementos que, postos juntos, provama minha inocncia e a maneira tremenda como fui utilizado como bodeexpiatrio durante esse processo to cheio de falhas na Itlia. A cleradesproporcionada de alguns setores da Itlia decorre, em grande parte, do fatoque no querem ou no lhe convm, reconhecer que o meu processo foitotalmente falseado, como tantos outros desse mesmo perodo (houve 4.700processos contra a extrema esquerda durante os anos de chumbo).

    Espero, Senhores Ministros, que me tenham entendido, apesar do ataqueirracional e desmedido de setores muito influentes de um pas - a Itlia - contramim. Sobre a minha vida e sobre a minha honra, posso afirmar que luteisempre contra as ofensas fsicas durante a revolta italiana, e que nunca atenteicontra a vida das pessoas. Essa a verdade, que nenhuma prova contrariou.

    Solicito Vossas Excelncias, Senhores Ministros, receber as expresses demeu respeito e da mais elevada considerao.

    Cesare Battisti