Carta de Domingos Montenegro à Provincia

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  • 7/24/2019 Carta de Domingos Montenegro Provincia

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    Senhores redatores da Provncia Tenho 74 annos de idade, nuncative em folha publica polmica alguma, e pretendia morrer firme nesteproposito, se um degenerado brazileiro, que escreveu para a columnaconservadora do Diario de Pernambucon. 195 e 197 deste anno sobre o tirodado em Luiz do Rego em 1821, no me chamasse a terreno para defender os

    brios nacionais, to atrozmente menoscabados nas cinzas do illustre e imortalpernambucano Joo de Souto Maior, meu sempre chorado cunhado, primo eamigo.

    Como temos retrogradado, Srs. Redatores, para os tempos idos doservilismo!? Depois de 52 annos de independncia, ainda temos corcundas emPerrnambuco, que defendam a causa perdida de Luiz do Rego, o maioracelerado, tyranno e immoral do seculo atual!?!

    E essa triste misso ficou reservada para esse miseravel retrogrado, quesente prazer em denegrir factos gloriosos do seu paiz...

    Joo de Souto, um assassino, um malvado?!! certamente audaciosasemelhante assero propalada em Pernambuco; quando todos sabem que

    Joo de Souto que se deve a gloria de ser resgatado Pernambuco daoppresso, pelo reclamo, que ento fizeram os deputados brazileiros nascrtes de Lisboa, onde o tiro dado em Luiz do Rego foi plenamente justificadocomo consequencia duma tyrannia sem limites, e immoralidade sem exemplo.

    Ah! Se o defensor de Luiz do Rego soubesse o que eu sei,emmudeceria! Nem os conventos das freiras foram respeitados, seno o deGoianna, por defesa de Joo de Souto!!...

    Luiz do Rego no veio para Pernambuco para governal-o; no, por queno tinha capacidade para isso; veio, sim, para devastal-o e acabar com toda aideia de liberdade e de independencia; ideia nobre, que sempre ocupou ocorao deste povo, smepre activo na defeza dos seus direitos polticos.

    Se ha em Pernambuco quem ignore os pormenores do tiro dado em Luizdo Rego, eu os vou relatar aqui sem buscar ornamentos para as minhaspalavras.

    Joo de Souto Maior, pela gloriosa tentativa de independencia do Brazilencetada em Pernambuco no anno de 1817 foi preso e conduzido em ferroscom mais tres de seus irmos para as prises da Bahia, onde pereceram dous,o padre Souto, e Jos Roberto da Cunha Souto Maior; voltando paraPernambuco Joo de Souto e Manoel Auto da Cunha Souto Maior depois dodecreto damnistia geral.

    Chegados meus ditos cunhados nesta provncia barabaramente

    arruinados de fortuna, no tiveram outro recurso sino applicar-se a trabalhosagricolas na propriedade que seus pais haviam deixado no lugar Tejucupapo;mas ainda assim continuaram elles a ser perseguidos pelos malevoloscorcundas de um modo insaciavel, sendo chefe dessa faco o vigario ManuelAlves Calheiros, mui dedicado a Luiz do Rego, e que por seu natural servilismolhe adivinha o pensamento para tel-o sempre em sua graa.

    Em um dia, tendo aquelles meus cunhados isso missa conventual namatriz de S. Loureno de Tejucupapo, esqueceram-se de tirar as esporas dasbotinas, por terem chegado justamente ao toque dentrada da missa, e por toinnocente motivo o vigario Calheiros declarou ao povo que deixava de dizermissa naquelle dia, por que os PATRIOTAS JOO E MANOEL DE SOUTO

    MAIOR ESTAVAM DE ESPORAS DENTRO DA IGREJA, E QUE TODO OPATRIOTA ERA JUDEU, ETC.

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    Joo de Souto, homem ardente e decidido, no podia soffrer de sanguefrio uma injuria to positiva em uma ephoca em que j tinha comeado oalvorecer da liberdade para o Brazil, e os direitos do povo vantajosamentedisputavam-se at mesmo no reino de Portugal. Joo de Souto, pois, declarouao povo, que a missa se diria, e dirigindo-se ao vigario fallou lhe com a devida

    energia obrigando-o a dizer a missa, que era devida aos fieis, depois deexplicar-lhes os motivos pelos quaes entrara de esporas na Matriz.O vigario Calheiros, homem de maus instintos e vingativo, protestou

    acabar com a vida dos dous irmos Soutos, somente pelo facto de serconstrangido a dizer missa, estando presentes dous patriotas de 1817!!!

    Nem o vigario Calheiros podia tolerar que sendo elle um consummadorealista e protegido por Luiz do Rego, que os meus cunhados Soutos lhefizessem sombra em sua freguezia, onde elle tinha a va pretenso de dar osanto e a senha, mesmo em politica; e ento deu suas ordens para que meusditos cunhados fossem assassinados.

    Em um dia em que meu cunhado Manoel Antonio tinha chegado do

    roado, foi ao meio dia tomar o banho do costume no rio Tejucupapo. Dousassassinos, ali o esperavam, aggrediram-no, dando-lhe a morte com um tiro debacamarte sobre a cabea do qual morrey estantaneamente; depois do quesubiram os dous malvados em uma arvore copada espera de Joo de Souto,que elles sabiam havia de ir at ali para conduzir o cadaver de seu irmo, paratambm ser assassinado, conforme as ordens do vigario Calheiros.

    Sendo por ns ouvido o tiro, seguimos immediatamente para o lugar dodesastre, prevenidos com a gente da fabrica, e armados como o caso exigia.Mesmo de longe pudemos descobrir os dous assassinos, que se occultaramentre as folhagens da arvore onde tinham subido, e pondo-lhes cerco, foramagarrados, e confessaram que tinham vindo com effeito por mando do vigarioCalheiros, para matarem os meus dous cunhados Joo e Manoel; e depois deto ingenua confisso, soffreram o castigo que mereciam os assassinos, quematam por uma paga.

    Joo de Souto, tendo perdido seus tres irmos por serem patriotas, edeffenderem a causa sacrossanta da liberdade de seu paiz, deliberou-se amorrer tambem, depois de livrar Pernambuco de seus mais temidosoppressores.

    O sangue derramado de tantos martyres estava reclamando oapparecimento dum outro Guilherme Tell, o here da Suissa, que em seu paiztem um nome immorredoro, fazendo contraste com o do miseravel ente, que se

    occupa em denegrir no Diario de Pernambucoas paginas douradas da historiado Brazil.Joo de Souto, tendo assistido as cerimonias da visita de cova de seu

    irmo, despedio-se de todos os seus parentes, assim como foi despedir-se deseus correligionarios que estavam na Matriz fazendo uma eleio, e ahiencontrando o vigario Calheiros, que elle procurava, puxou-o para fora daigreja, e deu a morte, que tanto elle merecia, e afim de dar-se alento edesenvolvimento a ideia liberal, que to tenazmente se oppunha aquellehomem degenerado, abusando de seu ministerio sacerdotal, e prendendo opovo com as palavras do Evangelho para que no fosse se reunir com osconstitucionaes de Goianna; o que effectivamente fizeram depois da morte do

    vigario.

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    Joo de Souto, tendo sahido de Tejucupapo, dirigio se para o Recife,onde uma outra misso o chamava, e ahi chegando, teve de assistir uma scenade horror e canibalismo, sendo della autor o general Luiz do Rego Barreto...Nesse mesmo dia houve noute um grande alarma na cidade, tocando-se arebate; sabendo no outro dia Joo de Souto, que fora um rebate falso, para que

    um pernambucano, official de milicia, sahisse para reunir-se ao seu batalho,em quanto Luiz do Rego occupava sua casa. O official era casado esuspeitando dalguma traio voltou a casa e foi morto...

    Um facto desta ordem acabou de decidir Joo de Souto a tentar contra avida do tyranno, deliberando-se a ir, no outro dia, armado de pistollas, atirar emLuiz do Rego em seu proprio palacio.

    O padre Rezende (Venancio) seu especial amigo, oppoz-se a isso,mostrando lhe os pergigos de tal empresa; mas como Joo de Souto a nasacedesse, o padre Rezende noite lanou vinagre nas pistollas, sem duvidatemendo uma conflagrao geral, em que s os pernambucanos tivessem deperder.

    Indo Joo de Souto a palacio, desfeichou a pistolla em Luiz do Rego;mas esta no disparou: houve grande confuso na secretaria, tentando-seprender Souto, que poude escapar-se, por no haver grande numero desoldados, para o fazer.

    O facto do tiro foi depois desmentido pelos proprios corcundas, porconveniencias politicas, de accordo com Luiz do Rego, para que no chegassesemelhante noticia nas Crtes de Lisboa; trantado-se apenas dum louco quetinha ido a palacio, etc., etc,.

    Demonstrada assim a coragem e disposio de Joo de Souto, muitoshomens de alta cathegoria o coadjuvaram para levar Joo de Souto ao cabo deseus designios, sendo que algumas dessas pessoas entraram na emboscadapor no se confiarem em pessoas de baixa esphera, que podiam vender osegredo; e s l no esteve na emboscada o Calabar descendente de Luiz doRego, que se occupa, no Diario de Pernambuco, em disvirtuar factos gloriososda historia desta provincia.

    Algumas dessas pessoas, que estiveram na emboscada contra Luiz doRego, occuparam depois cargos de bem alta importancia, at derepresentantes da nao; snedo bem de crr que o nosso triste Calabar esses devia ter rendido vassallagem e feito as suas zumbaias, proprias detodos os Calabares, cujo patriotismo est na barriga.

    A noite do dia 20 de Julhod e 1821 foia a designada pelos conjurados

    para se dar fim ao tyranno, autor de tantos crimes e de tantas vergonhas paraos pernambucanos.Por toda a parte se haviam postado agentes protectores para

    coadjuvarem os fugitivos, que por ventura fossem perseguidos pelos guardasdo general; por quanto Luiz do Rego, tendo j certesa que se tentava contrasua existencia, se havia prevenido, postando piquetes e rondas pelas ruas degente de sua confiana, do batalho de Algares, o [...], e avesou-se ento aandar, ao mais das vezes, a p, para melhor confundir se com o povo e com ossoldados, e assim no ser to de prompto conhecido.

    Como Luiz do rego passava pela ponte da Boa Vista todos os dias, ahipostaram-se joo de Souto e seus companheiros.

    Joo de Souto foi o primeiro que desfeixou o bacamarte no tyranno; noquis que essa gloria coubesse a outro.

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    Em um dos trechos da columna do Diario a que respondemos, diz oafilhado de Luiz do Rego, que este depois de ferido se precipitara para oassassino de espada desembanhada, sendo que este facto, elle da columna, oconsidera verdadeiro por que delle trataram os historiadores.

    Saibam agora, Srs. Redactores, que essa historia da carocha de ter Luiz

    do Rego, o heroe das sette batalhas, investido seu aggressor de esoada empunho, foi cantada em prosa e verso pelos corcundas em homenagem a seuiolo; mas no porque assim tivesse succedido. Eu o affirmo, porque estivepresente, e sempre junto ao meu cunhado Joo de Souto, no com ro, e simpara dissuadi-lo de sua tenaz resoluo.

    Se o arrojado fraticida da columna conservadora tivesse um coraomais verdadeiramente brazileiro, iria beber os factos na historia patria, antesque na historia lusitana, que os adulterou. Se pelo dedo se conhece o gigante,o detractor de Joo de Souto no mais do que um thuriferario do despotismo.

    Que Luiz do Rego no podia ter feito aco alguma, isso se deduz doproprio trecho da columna que o general soffrera horrendos estragos por 19ferimentos, dando lugar a no ser acreditadas as quixotadas dos realistas de1821, que taes cousas escreveram para atenuarem disputas.

    Todo o temor do novo corcunda da columna do Diario querecordaes gloriosas da ordem dessa, que agora se descortina, no venhamdespertar novas tentativas, e assim perder-se a semente de algum tyranno quealimenta verdadeiros malvados, zanges da sociedades.

    O escriptor da columna conservadora ainda faltou verdade, quandoasseverou que meu cunhado Joo de Souto tambem dera um tiro em um outropadre.

    Como escrever assim para o publico, Srs. Redactores, sem respeitar averdade dos factos?

    No isto ser um espadachim? Por certo que sim.Eis aqui como facto se passou:Frei Joo do Amor-Divino, estando pregando em Tejucupapo, occupou-

    se por espao de tres dias em detractar os patriotas, que ento pugnavam pelaConstituio em voga, e discutia-se nas crtes de Lisba; insinuava o frade aopovo innocente, que a Constituio era um monstro infernal, e os patriotas umapleiade de judeus e contrarios lei de Deus...

    Meu cunhado Joo de Souto, a quem nunca faltou disposio pararefrear a audacia das liberticidas, sentio-se logo com necessidade de pr termoao desparates daqulle frade, e indo ter com elle, pedio-lhe que se limitasse a

    pregar as palavras de Deus, e, que se procedesse de outro modo, commetteriaum abuso, que no podia ser tolerado. O frade, porm, no deu ouvidos aosjustos reclamos de Joo de Souto, e pelo contrario, tornou-se ainda maispositivo e audaz; e ento, Joo de Souto em um desses momentos em que ohomem no sew domina, pegou no cajado do frade e o quebrou sobre elle,conseguindo deste modo rehabilitar o povo para as crenas constitucionaes,que o frade cavilosamente procurava desconceituar por insinuao de seu Sr.Luiz do Rego, para que os habitantes de Tejucupapo no affluissem paraGoianna, e assim mais facilmente fossem batidos pela tropa de linha, que otyranno tinha a sua disposio.

    Analysem agora, Srs. Redactores, desapaixonadamente, se Joo de

    Souto, obrando assim, praticou ou no um acto de verdadeiro civismo. Osnossos patricios, reunidos em Goianna, necessitavam de auxilio para poderem

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    sustentar a causa da liberdade, e para um tal estado de cousas todos os meiosso bons, so justos, e justificaveis.

    Nada mais houve do que isto, que fica dito a respeito de Joo de Souto;fao um appello para o publico sensato, elle que julgue se Joo de Souto foium assassino, ou antes um here...

    Com relao ao tiro dado no commandante de Tejucupapo, e at ondepode chegar a perversidade deste decendente do general Luiz do Rego; poisque dito commandante era padrinho do meu cunhado Joo de Souto. Veja opublico, de quanto capaz este Calabar, que no se importa de escrevermentiras, e detractar das cinzas de quem libertou esta infeliz provincia daoppresso daquelle cruel e nefando general Luiz do Rego. Se este miseravelpernambucano, que to atrozmente desrespeitou as cinzas daquelle patriota,tivesse amor a sua patria, tivesse bons sentimentos, por certo isto no teriafeito. Rogo, Srs. Redactores da Provincia, deem publicidade a estas toscaslinhas, em seu conceituado jornal, ao que muito grato ficarei.

    Sitio Gario, 7 de setembro de 1874.Domingos de Albuquerque Mello Monte-Negro

    (texto extrado do jornal A Provncia, N. 423, p. 2-3, publicado em 23de outubro de 1874)