444
CARTAS DO CáRCERE (Antologia) Antonio Gramsci

Cartas Do Carcere Gramsci Pant

Embed Size (px)

Citation preview

  • Cartas do CrCere

    (antologia)

    antonio Gramsci

  • CARTAS DO CRCERE

  • CARTAS DO CRCEREantologia

    antonio Gramsci

  • antonio Gramsci, estaleiro editora, 2011

    associaom Cultural estaleiro [email protected] www.estaleiroeditora.org

    traduom e correom: Carlos diegues

    revisom lingustica: Carlos G. Figueiras

    desenho e paginaom: Nadina B. s.

    depsito Legal: ISBN: 978-84-614-2072-8 Impresso em: Publidisa

    s livre para copiar, distribuir, exibir e executar a obra, sob as seguintes condions:Atribuiom. A utilizadora deve dar crdito autora original, da forma especificada pola autora ou licenciante.

    Partilha nos termos da mesma Licena. Se alterares, transformares ou criares outra obra com base nesta, s poders distribuir a obra resultante atravs de umha licena idntica a esta.Uso Nom-Comercial. Nom podes utilizar esta obra para fins comerciais.

  • NdICe

    Nota editorial /9Prefcio o contexto histrico das Cartas do crcere /11Cartas do crcere /43

  • 9Nota edItorIaL

    Notas como esta nom som habituais, se calhar porque as edi-ons, melhor ou pior, acabam por se apresentar a si prprias. Porm, se hoje acreditamos necessrio justificar a apariom deste livro, porque ele nasceu da vontade comum de esta-leiro editora, que queria reivindicar deste jeito nom s a im-portncia e a vigncia crtica do pensamento gramsciano, mas tambm fazer possvel a recepom da sua obra na nossa ln-gua.

    a gnese deste projeto remonta-se at 2007 quando, de-corridos 70 anos da morte de Gramsci, a sua obra ficou livre de direitos. era o momento de edit-la na Galiza. o nosso in-tuito na altura era e continua a ser bem modesto. Nom tencionvamos mais do que publicar umha escolha das Cartas do Crcere. o texto utilizado havia de ser o compilado pola editora italiana einaudi, nomeadamente a escolha realizada por Paolo spriano, na sua 7 ediom, do ano 1977, composta por 156 cartas, qual se havia de acrescentar um prlogo his-trico e mais algumhas notas de rodap que seriam responsa-bilidade do tradutor.

  • 10

    desde o ano 2007 from aparecendo alguns textos gram-scianos no espao editorial galego, facto que nom podemos deixar de celebrar. Para ns, editar as Cartas do crcere tam-bm umha boa oportunidade para reflexionarmos sobre um perodo histrico, o de entreguerras, no qual coincidrom ideologias, conflitos e protagonistas presentes nas cartas de Gramsci. o prlogo, em definitivo, fornece a quem ler este livro o pano coletivo que completa a dimensom mais indi-vidual caraterstica das cartas. Finalmente, sendo esta umha antologia forosamente breve, obrigado para ns renunciar a muitas das suas cartas, como inevitvel renunciar, e com pesar, a umha ediom galega dos Cadernos do Crcere. seja como for, nom perdemos a esperana de que mais cedo que tarde poda ver a luz a ediom galega da obra completa de an-tonio Gramsci.

    estaleiro editora Galiza, maio de 2011

  • PREFCIOo CoNteXto HIstrICo das CARTAS DO CRCERE

    ngel M. Varas Carrasco / Carlos dias diegues

  • 13

    0. Introduomas cartas de Gramsci som hoje um pretexto ou um ponto de partida para umha interpretaom da histria italiana durante o perodo de entreguerras. tal interpretaom tenciona expli-car o fascismo nom como um acidente ou umha parntese histrica, mas, antes polo contrrio, como um episdio em co-nexom com a histria italiana anterior, com umha perspetiva de histria poltica e social.

    1. A imediata ps-guerraem 1919 parecia claro que nom havia de vir de Versailles a soluom para o problema dos territrios irredentos italianos, ou que nom acordariam ali grandes indenizaons econmicas que aliviassem as finanas do estado. apesar da vitria, Itlia era umha potncia secundria na europa e no Mediterrneo, e a velha classe poltica italiana estava a demonstrar na mesa das negociaons a sua limitada visom poltica, traduzida tanto na sua negativa a abrir a participaom poltica s massas, quanto na mesma incapacidade para criar um contexto de estabilida-de econmica em volta de valores e prioridades incontestveis.

  • 14

    a vitria foi, portanto, um golpe amargo para Itlia; de-pois do armistcio chegava a crise econmica, com um au-mento da dvida estatal em 500% e umha inflaom de 300%, para alm dos efeitos econmicos devastadores, consequncia das perdas humanas, com mais de 300.000 italianos cados em combate. Perante este panorama desolador, o estado era incapaz de satisfazer as expetativas geradas ao calor do debate sobre a intervenom, de a a sensaom de vitria mutilata. a guerra nom s nom solucionava os problemas da Itlia; antes polo contrrio, criava novos problemas, como a destruiom de infraestruturas ou a desestabilizaom da economia, problemas que faziam ainda mais difcil a manuteom do poder por parte da oligarquia italiana e que forarm logo a seguir a passagem para umha poltica de massas.

    No fim da Primeira Guerra Mundial [IGM], Itlia possua um setor agrcola que dava emprego a 55% da populaom1. a descolagem industrial ainda bem nom se iniciara em 1914 e os anos de guerra traduziram-se numha forte tendncia para a concentraom financeira e industrial. J desde antes da Guer-ra, o setor siderrgico lucrara-se do protecionismo estatal e das ajudas diretas para a produom. de resto, nem a guerra nem o armistcio pugeram em questom a aposta decidida do estado na indstria do Norte e o desleixo consciente do Me-zzogiorno, que continuava a ser umha colnia econmica do Norte. No sul da Itlia, as elites latifundirias, longe de pr em andamento o desenvolvimento de umha indstria de seu, pre-feriam derivar os capitais para a reditcia indstria nortenha.

    1 Pierre Milza: De Versailles a Berlin. 1919-1945, Masson, 4 ediom (p. 180), Paris, 1980.

  • 15

    Nas primeiras eleions depois da guerra a soma dos votos obtidos polo PPI e PSI partidos antisistema superou a soma dos votos dos partidos tradicionais, incapazes de tra-varem o crescente descontentamento popular. as urnas dese-nhavam um sistema poltico italiano dividido em trs grandes grupos de poder: de umha parte, o Partido Popular Italiano (PPI), dirigido polo padre Luigi sturzo, que inclua tendncias catlicas de direita, mas tambm de esquerda. de outra parte, estava o Partido socialista, de turati e treves e, finalmente, o Bloco Constitucional, que formara todos os governos liberais anteriores. esta divisom em trs grupos irreconciliveis fazia ainda mais difcil reconduzir a situaom e recuperar o pas da grave situaom, nom apenas econmica, mas tambm moral. Giolitti, figura dominante na poltica italiana no perodo pr-blico, era o paradigma das carncias da classe poltica post-risorgimentale. Certamente, o poltico piemonts tinha dado mostras da sua vontade de integrar a esquerda moderada no sistema, em troca de pequenas concessons como, por exemplo, a implantaom do sufrgio universal (masculino) em 1912. No entanto, a aposta da burguesia na incorporaom das massas poltica chegou demasiado tarde e nunca vu acompanhada de reformas no campo econmico ou no educativo; assim, em-bora a chamada tropa de 1915 comportasse a concessom de maiores direitos polticos para as classes subalternas, os acon-tecimentos posteriores IGM demonstrariam que a burguesia tinha pouca disposiom para ceder o protagonismo poltico e para abrir o leque da participaom poltica. o reformismo de um Giolitti revelava a incapacidade de umha classe polti-ca fundamentalmente oportunista e egosta, que via a inter-venom na guerra como umha maneira fcil de solucionar os problemas de poltica interna. Nom admira, enfim, que os partidrios da intervenom estivessem no bloco liberal, en-

  • 16

    quanto a esquerda (facto em que a Itlia difere da Frana ou da alemanha) era fundamentalmente nom intervencionista, em coerncia com os ditados da II Internacional.

    desde 1918 at a chegada do fascismo em 1922, o estado liberal defendera-se do seu inimigo mais perigoso, o movi-mento obreiro. assustada pola vaga de greves e ocupaom de terras, a burguesia ir de maos dadas com o fascismo, que aproveitar esta crise estrutural para se candidatar progressi-vamente como a nica fora com a capacidade para travar o pulo imparvel do movimento obreiro, somando os consensos das classes mdias.

    2. A gnese do fascismo.Contra o afirmado polo filsofo idealista Benedetto Croce, que entendia que o fascismo fora um acidente na histria italiana, antonio Gramsci explicava o fascismo como umha prosecuom do estado liberal fundado em 1860. nessa linha interpretativa que se insere este prlogo.

    Nas origens do regime fascista italiano tivrom enorme peso determinados assuntos que constiturom parte essencial da evoluom poltica do pas2: o seu particular processo de unificaom, que excluiu as capas populares, conforme de-monstrou sobejamente Gramsci3, a difcil transiom do li-beralismo para a democracia, a tensa relaom com a Igreja Catlica at a assinatura dos Pactos Lateranenses em 1929, aos quais haveria que acrescentar os derivados das consequncias da I Guerra Mundial, nomeadamente o irredentismo, ao nom cumprir-se plenamente o estipulado no tratado secreto de

    2 Pierre Milza, Les Fascismes. Imprimerie Nationale. Pars, 1985.3 a. Gramsci, Sobre el Fascismo. edit. era. Madrid, 1980.

  • 17

    Londres de 1915 (de a o papel jogado por orlando na Con-ferncia de Versailles durante a redaom do articulado defi-nitivo).

    Com efeito, o estado italiano enfrentava desde a Unifi-caom umha importante frustraom nacional, derivada nom apenas da questione romana, mas tambm e principalmente do problema do irredentismo e da provada incapacidade co-lonial. acabada a Primeira Guerra Mundial, Itlia verificava que ter estado do lado dos pases vencedores nom ajudara em absoluto para solucionar estes problemas que, antes polo con-trrio, se incrementrom. o fascismo foi, nesse sentido, umha resposta crise da democracia liberal, em chave autoritria e de incorporaom das massas, que serm mobilizadas por meio de um intenso nacionalismo herdeiro do nacionalismo da pr-guerra, nomeadamente do nacionalismo da corrente florentina de Corradini e Papini, para alm da influncia clara de d'annunzio e Marinetti. alis, o fascismo tem razes na filosofia de Nietzsche (superhomem), Bergson (lan vital) e em sorel (violncia revolucionria). Por ltimo, os fasci di combattimento relembram (principalmente polo nome) os fasci sicilianos de 1893, bem como as bandas garibaldinas, polo seu carter intrpido e paramilitar. e, antes de mais, o fascis-mo, filho da crise ps-blica, tambm filho da frustraom nacional; com efeito, o nacionalismo fascista assumir como objetivo fulcral o acabamento do labor de construom nacio-nal, atravs de um estado totalitario onde estado e Naom se confundissem de forma definitiva. Nesse crisol de doutrina nacionalista (que se remonta aos tempos de Mazzini) e no mito revolucionrio do fascismo, o conceito de naom pro-letria desempenha o papel de fulcro. Mussolini aprender dos erros de d'annunzio, ao compreender a necessidade de um partido forte que utilize o nacionalismo populista para dar

  • 18

    coesom e atenuar os conflitos de classe. a ideologia fascista incorpora muita da simbologia do Imprio romano e fai de roma capitale umha palavra de ordem com umha funciona-lidade semelhante ao da violncia revolucionria. os objeti-vos da regeneraom fascista resumem-se pois em fazer nova-mente de roma a capital do mundo, o centro de umha europa fascista e de um Imprio neocolonial em frica. este um discurso que atrai e engaiola as massas, especialmente aquelas camadas sociais que temem perder na crise o estatus ganhado com a Unificaom de Itlia, feita custo do proletariado in-dustrial e do campesinhado.

    todavia, o fascismo nos incios um movimento mais de ex-combatentes e as suas ideias nom tenhem nada de original. se os fasci pudrom consolidar a sua presena no Norte da Itlia foi graas sua vontade de se definir fundamentalmen-te como um grupo de arditi que se opunha violentamente s greves obreiras e s ocupaons de terra, por meio das queimas das ss do PSI, dos espancamentos a afiliados socialistas, etc. desde 1919, o fascismo oferece-se ao estado para fazer o tra-balho sujo e por isso mesmo o fascismo encontra no campo e na cidade o apoio decidido das classes acomodadas, assus-tadas pola vaga revolucionria do Bienio Rosso (1919-1920). o apoio maior, contudo, vu da pequena burguesia, aquela que formara a oficialidade na I Guerra Mundial e que agora via com temor como o devir econmico do pas ameaava com depauper-la, reduzindo-a pobreza das classes subalternas.

    Portanto, as classes mdias e altas beneficiam da doutri-na nacionalista como beneficiam tambm do fascismo, por-quanto ele serve a um estado de classe com umha estrutura burocrtica promotora de polticas protecionistas e monet-rias favorveis ao capital transpadano. o fascismo nom ser umha ideologia superadora da democracia liberal, mas sim a

  • 19

    sua versom autoritria, que visa o fim da construom nacio-nal atravs de um estado italiano mais forte, isto , totalitrio e portanto com maior capacidade para impor polticas eco-nmicas queles sectores crticos com a repartiom dos pa-pis na sociedade italiana. a burguesia usar o fascismo para saldar contas com as foras que colocavam em risco a cons-truom nacional italiana, o socialismo e a Igreja. o fascismo nom vai romper com as tradions polticas da burguesia; a poltica de aom no Mediterrneo e na frica fascista ser umha continuaom das metas coloniais de Crispi, com as suas aventuras africanas finisseculares de infausta lembrana. alis, a presena de rocco nos primeiros governos de Mussolini altamente significativa, porquanto d f da continuidade do nacionalismo italiano da pr-guerra no nacionalismo fascista. ser rocco quem desenhe as primeiras leis fascistas, aquelas que porm em p o estado fascista, essas leis fascistssimas, que fortalecem o poder executivo e limitam o pluralismo de interesses. em definitivo, a criaom do partido fascista com-portou a assunom do mito nacionalista da romanidade, na medida em que o fascismo tencionava ser a semente de um estado Novo capaz de pr fim decadncia nacional italiana.

    3. Fases do fascismo.a cronologia da histria italiana na etapa de entreguerras4 deve ser estruturada atendendo para as teorias sugestivas, mesmo se controvertidas, de renzo de Felice5, se bem que em aspectos biogrficos de Mussolini possvel utilizar tam-

    4 G. Candeloro, Storia dellItalia Moderna. Vol IX. edit. Feltrinelli. Milano, 1986.5 renzo de Felice, Breve Storia del Fascismo. edit. Mondadori. Milano, 2000.

  • 20

    bm o apontado por Pierre Milza6, Max Gallo7, emil Ludwig8 e richard Bosworth9, respetivamente, para alm dos seus prprios escritos, publicados na editora Il Mulino em vrios volumes10.

    1918-22: etapa de fascizaomem 1919 o sistema poltico italiano, num contexto de desle-gitimaom moral, registava a oposiom nom s do partido socialista, mas tambm do Partido Popular Italiano, fundado por Luigi sturzo. Como vimos, o nacionalismo apresentava a vitria italiana como umha vitria mutilata e a escassa rele-vncia internacional da Itlia nom facilitava o cumprimento das promessas do tratado de Londres, numha altura em que o direito de autodeterminaom favorecia o nacionalismo iugos-lavo e nom o italiano.

    Foi esta umha etapa caraterizada pola enorme tensom social gerada pola finalizaom da guerra11. Nela surgiu o que Norling chamou12 de fascismo revolucionrio que, pos-teriormente, tivo a sua continuidade na repblica de sal. Mussolini, que procedia de umha famlia humilde e de ten-dncias esquerdistas, fundou o primeiro Fascio di Combatti-mento em Milm, em 1919, aps a sua rutura definitiva com o PSI. Foi no dia 23 de maro quando o movimento fijo o

    6 Pierre Milza, Mussolini. edit. Fayard. Pars, 1999.7 Max Gallo, LItalie de Mussolini. edit. Marabout. Pars, 1966.8 emil Ludwig, Conversaciones con Mussolini. edit. Zero. Barcelona, 1981.9 richard Bosworth, Mussolini. edit. Pennsula. Barcelona, 2003.10 Benito Mussolini, Scritti e Discorsi. edit. La Fenice. Venezia-roma, 1983.11 angelo tasca, El nacimiento del fascismo. edit. ariel. Barcelona, 1981.12 erik Norling, Fascismo Revolucionario. Nueva repblica ediciones. Bar-celona, 1999.

  • 21

    seu ato de apresentaom na Piazza san sepolcro (119 presen-tes), utilizando para isso um local cedido polos empresrios da zona.

    em 1919, o PSI obtivo um grande sucesso nas eleions ge-rais, ficando em segundo lugar o partido demo-cristao de don sturzo. a burguesia italiana comeava a sentir a necessidade de se agrupar em volta de aqueles setores da sociedade dis-postos a enfrentar o pulo do movimento obreiro. os fascistas conseguem 4.795 votos em Milm, o nico lugar onde se can-didataram, enquanto os socialistas consegurom nessa cidade 170.000 e os populares 74.000.

    No dia 13 de junho de 1920 caiu o governo Nitti devido sua impotncia no affaire de Fiume. Nitti sucedido polo velho Giolitti, que volta por ensima vez chefia do governo. Para muita gente, Giolitti era a ltima esperana de salvar a situaom de crise institucional. Na prtica, a crise aguava-se: durante 1920 o clima pr-revolucionrio pareceu estender-se por toda a Pennsula, principalmente quando em agosto os operrios lanrom a sua campanha de ocupaom de fbricas. Neste clima pr-revolucionrio, os partidos burgueses pactu-avam com os fascistas a participaom conjunta nas eleions municipais, mas o fascismo seria derrotado novamente nas urnas. No entanto, a vaga de greves e ocupaons de fbricas e de terras do Binio Vermelho nom resultou na revoluom porque os socialistas estavam divididos: a direom do PSI nom estava convencida da legitimaom democrtica da tomada di-reta do poder, se bem que os escrpulos legalistas eram maio-res no PSI do que no bloco liberal e em geral na burguesia industrial. assim foi como a desuniom e a falta de decisom por parte da direom do PSI fijo possvel a neutralizaom da ameaa revolucionaria, apesar de que a CGL contasse em 1920 com 2.000.000 de afiliados.

  • 22

    os fascistas beneficiam dessa indecisom e da ingenuidade socialista na hora decisiva dos conselhos de fbrica quando a direom do PSI est a aceitar compromissos com o mesmo estado que apoiava e armava as milcias fascistas. a direom do PSI confiou na integridade e na moralidade do estado li-beral, quando na realidade este s buscava umha trgua, um apaziguamento da insurreiom operria do Binio Vermelho, que ia a caminho de superar os resultados dos soviets da ale-manha e da Hungria. o PSI nom questionou at o fundo as instituions liberais nem foi capaz de unir as diferentes frentes de oposiom, artelhando umha frente unitria de trabalhado-res urbanos e rurais, que conectasse e desse umha expressom poltica ao rejeitamento das instituions liberais, que eram precisamente as responsveis pola opressom econmica do campesinhado do Mezzogiorno e do proletariado do Norte. o resultado: s em 1921, h 38 assassinatos registrados de so-cialistas, por 2 de fascistas, e 212 militantes socialistas presos por 2 fascistas. Nos comcios de 1921, o PSI obtm 122 deputa-dos, sendo a fora mais votada por trs do bloco liberal e por diante do PPI, com 107 deputados. o fascistas obtivrom 32 de-putados e os comunistas 16 (um deles era antonio Gramsci).

    Nom houvo solidariedade entre as classes trabalhadoras e a insurreiom operarria de 1919-1920 puido ser controlada polos fascistas, a polcia e o exrcito. as classes mdias lan-rom-se nos braos do fascismo. 1920 seria pois um ano de refluxo geral da mar revolucionria, como escreve Milza13: no ms de setembro, Itlia assiste ao fracasso do movimento de ocupaom das fbricas. Comea a vingana da Cofindustria, amparada na violncia fascista e na indiferena, quando nom

    13 Pierre Milza: De Versailles a Berlin. 1919-1945, Masson, 4 ediom (p. 186). Paris, 1980.

  • 23

    a colaboraom da polcia e o exrcito, que desmonta e anula as fortalezas operrias do Norte e do vale do Po. tal como es-creve Gramsci no peridico LOrdine Nuovo, na sua ediom de 2 de janeiro de 1921, o fascismo a ideologia da pequena burguesia que substitui a autoridade da lei pola violncia pri-vada.

    1921 um ano fundamental para a oligarquia financeira, nom s porque o movimento das fbricas parece controlado, mas tambm porque dous dos principais grupos da econo-mia italiana da pr-guerra, a ILVA e ansaldo, se declaram na falncia. tambm quebra a Banca di Sconto, umha das prin-cipais instituions financeiras. estas entidades culpam o esta-do italiano e culpam da sua falncia a Bonomi, o presidente do governo, por nom ter apoiado estas empresas com fundos pblicos. Isto fai com que aumente o ressentimento da alta burguesia financeira, que responsabiliza o estado polos seus problemas econmicos, como antes o figera polas greves ope-rrias, apesar de estas empresas terem sido as maiores benefi-cirias do conflito blico, tendo-se aproveitado, como noutros pases, de mao-de-obra disciplinada, mal remunerada e de um grande mercado, isto , um estado que tudo comprava e tudo pagava com fundos pblicos. este ressentimento da burguesia nutrir a sua vontade autoritria e a tentaom de impor me-didas econmicas mais favorveis ao Capital. o medo e o res-sentimento dos industriais do Norte e dos proprietrios terra-tenentes do sul far, finalmente, com que o pequeno grupo de arditi aumente progressivamente a sua presena e a sua rede de apoios.

    alis, os grandes proprietrios latifundirios apoiam o fascismo porque a maneira mais eficaz de parar o crescente poder municipal dos socialistas e as cmaras agrrias, que pa-reciam conduzir a um reparto da terra ou, por outras palavras,

  • 24

    a umha reforma agrria. era este um campo abonado para o fascismo, que abandona rapidamente a vocaom inicial de ser um antipartido para se converter no Partido Nacional Fascista, cujo fulcro de uniom ser a violncia anti-esquerdis-ta, apoiada por umha elite terratenente desejosa de impedir mudanas sociais de carter progressista. Certamente, este oportunismo (responsabilidade, em boa medida, de Benito Mussolini) choca com o radicalismo dos ras locais, os chefes locais do partido, aos quais Mussolini conceder autonomia de aom desde que se respeite a autoridade nacional do chefe, isto , ele prprio.

    os desacertos na estratgia esquerdista from valorizados polo PSI no Congresso de Livorno, onde umha pequena parte do partido se cindiu para fundar o PCI (Bordiga, togliatti, o prprio Gramsci, quer dizer, os ordinuovistas). a partir deste momento, o PCI ser a ponta de lana de oposiom a um bloco constitucional em decadncia, mas sobretudo de oposiom ao fascismo nascente, que chegar ao poder s um ano depois. Para um dos fundadores do PCI, antonio Gramsci, o fracasso do PSI deveu-se a que o essencial nom devia ser a ocupaom das fbricas, mas a refundaom inteira do estado italiano des-de os seus alicerces. Para faz-lo teria sido preciso um pacto, um contrato social assente em novos valores ou, por diz-lo maneira de Gramsci, um pacto assente numha nova cultura hegemnica. Para Gramsci, era o Partido quem devia encarnar essa hegemonia. sem ela, era impossvel fundar um estado italiano moderno superador da luita de classes.

    o sentido da oportunidade de Mussolini levar a pactar a inclusom dos fascistas numha lista unitria junto aos partidos liberais, como j vimos. desde os primeiros debates parlamen-tares, Mussolini joga a carta de lder da renovaom poltica e por isso ataca Giolitti, o velho lder liberal. ao mesmo tempo,

  • 25

    oferece s esquerdas um acordo para diminuir as reticncias de umha oligarquia temerosa do esquadrismo. Na verdade, boa parte da velha classe poltica estava convencida de que seria possvel utilizar o fascismo para dar cabo do socialismo; pensava-se que era s questom de tempo domestic-lo, fa-zendo dele um partido convencional. Porm, o fascismo ir-se apoderando das estruturas do estado, demonstrando s elites que o fascismo era algo mais do que um movimento anti-par-tidrio de ex-combatentes e desempregados.

    No dia 1 de julho cai o governo de Giolitti. Ivanoe Bono-mi converte-se em novo chefe do governo. No dia 3 de agosto assina-se o Pacto Zaniboni acerbo, que significa umha tr-gua nos enfrentamentos entre fascistas e socialistas. Mussolini interpreta o papel de lder moderador de um partido nacional fascista criado nos primeiros dias de novembro de 1921. o PNF contava com 320.000 filiados, dos quais 40% eram operrios e 10% estudantes. de maneira progressiva, o fascio di combat-timento, depois o PNF, ir convertendo-se num partido inter-classista e populista, que funcionar como um mecanismo de integraom social. esse foi o maior sucesso de Mussolini, tal como Gramsci descrevia j em 1921.

    Pouco depois de fundar-se o PNF, o fascismo rompe o pac-to Zaniboni acerbo. o governo liberal nem consegue esta-bilizar o pas nem est disposto a parar a violncia fascista. No dia 25 de fevereiro de 1922 cai tambm o governo Bonomi e el-rei chama a Luigi Facta. No ms de julho, depois do fracas-so da greve de protesto em defesa da legalidade, dirigida pola Alleanza del lavoro e rota violentamente polos fascistas, umha vaga esquadrista abate-se sobre todo o pas. o governo Facta tambm nom consegue controlar a violncia das esquadras fascistas, cada vez mais toleradas e amparadas polo exrcito. a Marcha sobre roma tem lugar em outubro de 1922, contando

  • 26

    com o apoio de todos os sectores dominantes da sociedade ita-liana (desde o exrcito at a Igreja ou a Banca, passando pola Monarquia). No dia 31 de outubro, Mussolini apresenta a el-rei a listagem dos ministros. este governo apoiado incluso polas foras moderadas e at consegue a aprovaom de Giolitti, o velho raposo liberal que pensava que poderia utilizar Musso-lini e o seu partido para esmagar a esquerda e desembaraar-se depois dele.

    1922-24: fachada liberal.Vitor Manuel III e a elite adoravam a imagem de fora poltica que exibia Mussolini, em boa medida porque devolvia a ima-gem que o prprio regime j nom podia oferecer e tambm porque se pensava preconceituosamente que o mestre abru-zzs, assim que fosse controlada a ameaa vermelha, se sen-tiria coibido nas altas esferas, vendo-se obrigado a respeitar as regras do jogo parlamentar, apesar do seu discurso radical. o certo que Mussolini fortalece rapidamente o seu poder pessoal e fai-no utilizando as regras do jogo.

    aps a sua chegada ao poder, Benito Mussolini formou um governo no qual se reserva a presidncia e trs ministrios. tratou-se de um executivo de coligaom com a participaom de todos os partidos burgueses. o apoio internacional foi geral (desde o rei da Inglaterra at o Papa ou o prprio Gandhi elo-girom o novo primeiro ministro). Pio XI sacrificou a sturzo, lder dos demo-cristaos, em benefcio do prprio Mussolini.

    ao longo do ms de janeiro de 1923, as camisas pretas transformam-se na Milcia voluntria para a segurana na-cional, com o intuito de salvar a aparncia de ordem do PNF. o governo Mussolini derroga o Primeiro de Maio como fe-riado do trabalho. desde o governo, os fascistas elaborrom o texto de modificaom da lei eleitoral (reforma acerbo),

  • 27

    assegurando-se assim o pleno sucesso nas eleions. No dia 6 de abril de 1924 h eleions num clima de violncia. a lista fascista (ou lista nacional) obtm com a denominada legge truffa (lei fraude) 64 % dos sufrgios e 374 representantes no Parlamento. o fascismo obtm assim a maioria absoluta. aps a denncia de tal manipulaom, o deputado socialista inde-pendente Matteotti assassinado em maio de 1924, provocan-do a retirada da oposiom (o famoso episdio do aventino). em finais do mesmo ano, Mussolini assumiu plenas responsa-bilidades, pondo fim etapa liberal.

    1925-36: Consenso fascista. Institucionalizaom.a ditadura que comea em 1925 pom em p um estado fascis-ta sem umha ideologia prvia, com princpios improvisados segundo as necessidades polticas de Mussolini. apela-se ao pragmatismo e ao enquadramento da sociedade de massas em instituions como a famlia e as corporaons, mesmo se afinal estas nom from mais do que instrumentos de dominaom que visavam a desarticulaom das estruturas polticas das clas-ses subalternas. assim, com a institucionalizaom do fascis-mo, na segunda metade da dcada de 1920, Mussolini apresen-ta Itlia como um estado-Partido, culminaom do processo de unificaom. Finalmente, afirmavam os fascistas, o estado era a expressom poltica da Naom italiana. Porm, o sucesso fascista era s aparente, j que nom era que a Itlia se figesse fascista, mas sim que o PNF o que se convertia rapidamente em parte da estrutura do estado. o PNF domesticava-se, devi-nha burocracia, o que supunha trair os principios antiliberais e antimonrquicos do fascio di combattimento; no fundo, esse era o preo que era preciso pagar s elites se se queria governar e dirigir o estado. as elites, de resto, mantivrom o controlo das rdeas da economia. este equilbrio entre PNF e estado

  • 28

    italiano desequilibrar-se s nos anos seguintes, e por causa da evoluom internacional e as decisons em poltica exterior, resultando na revoluom cultural fascista e num giro totalit-rio. Porm, nesta altura o partido fascista aproveita o consenso liberal para consolidar o seu controlo sobre as instituions, ficando adiado o enfrentamento com a oligarquia at 1935.

    a feroz repressom de 1925-1926 inaugura, de maneira para-doxal, o perodo de maior consenso social do fascismo, que durar at 1935. aproveitando tanto o acontecimento anterior quanto os atentados que tivrom lugar em 1925-26 (Zanibo-ni, Gibson, Zamboni) Mussolini deu cabo do regime liberal e deu passo ditadura fascista. em 1925, o Dopolavoro iniciou a planificaom do cio dos italianos. No dia 24 de dezembro desse ano promulga-se umha lei pola qual a figura do chefe do governo deixa de ser responsvel perante o Parlamento, con-centrando todos os poderes executivos. doravante, os poderes de Mussolini s poderm ser revogados por el-rei. a burgue-sia italiana aceita a supressom dos sindicatos e dos partidos polticos, com o pretexto da manutenom da ordem. assim que o fascismo se apodera do estado: em 1926 ponhem-se as bases do corporativismo e cria-se a polcia secreta (OVRA), encarregada de perseguir os dissidentes (fundamentalmente comunistas). o fascismo detenta o poder poltico, mas nunca ser um poder absoluto capaz de impor umha visom totalit-ria, apesar da viragem totalitarista do Dopolavoro, do Littorio ou mesmo da OVRA. de facto, todo este aparelho poltico nom pom em risco os negcios econmicos da burguesia; antes polo contrrio, a sua condiom.

    desde o 31 de janeiro de 1926, o Duce podia legislar sem ter em conta o Parlamento. em julho de 1926 cria-se o Minis-trio das Corporaons e em finais de novembro promulga-se a

  • 29

    Lei para a defesa do estado, que significava a dissoluom de todos os partidos com a exceom do fascista, assim como dos sindicatos, criando-se um tribunal especial (que condenar Gramsci e o resto da direom do PCI dous anos mais tarde), que reservar o desterro para os presos polticos. estabeleceu-se tambm a pena de morte.

    de resto, tambm a partir de 1926 quando se inicia a despolitizaom do partido e a sua burocratizaom. devido sua vocaom de inclusom, isto , pola sua vontade totalitria, o projeto fascista provocava a entrada no partido e na sua esfe-ra de muitos elementos conservadores, pouco ou nada interes-sados numha poltica social contrria aos interesses oligarcas. o fascismo, que se oferecera como projeto superador das ideo-logias risorgimentali bem como do liberalismo e o socialismo, ver adiada as reformas legislativas que nom redundavam no Capital, ou para sermos exatos, no Grande Capital. s desta maneira obtivo o fascismo a anuncia de grande parte da po-pulaom, atravs de umha poltica de mao dura e principal-mente pola cessom da economia burguesia, preocupando-se s polo poder mais visvel e afinal menos decisrio. o melhor exemplo disto foi o que aconteceu com o iderio corporativis-ta, que ficou sendo s conversa, sem se ter concretizado nun-ca na prtica, por muito que em 1928 o fascismo chegasse a prescindir definitivamente do Parlamento, substituindo-o por umha Cmara das Corporaons. Na realidade, as corporaons nom tivrom representaom real no setor produtivo e a polti-ca estatal foi sempre favorvel burguesia. em definitivo, nom houvo umha superaom da luita de classes, mas sim umha nova vitria da burguesia. Na prtica, o partido subordinou-se ao estado italiano e as prioridades econmicas from as dos grandes monoplios do setor industrial, isto , o protecionis-mo econmico no campo da indstria do ao, o apoio cria-

  • 30

    om de grandes monoplios (que ficavam margem do con-trolo estatal) e a disciplina militar para a massa trabalhadora. em fim das contas, Mussolini preferiu ser chefe do governo do que chefe do Partido (prova do seu aventurismo poltico); por isso que, Mussolini foi incapaz de impor a estrutura fas-cista ao estado e se encontrou indefenso quando no dia 25 de julho de 1943 foi deposto polo Grande Conselho Fascista.

    em 1927 foi publicada a Carta del Lavoro, base do orde-namento corporativo fascista. em 1928 o Grande Conselho Fascista ficava englobado no aparelho do estado e em 1929 o regime recebia o reconhecimento definitivo, aps a assinatura dos Pactos Lateranenses com Po XI, que punham fim ques-tione romana. Nasce assim o estado da Cidade do Vaticano e declara-se obrigatrio nas escolas o estudo da religiom ca-tlica. assim, mesmo a pesar de a ditadura fascista condenar oficialmente o pluralismo de valores prprio de umha socie-dade liberal e dizer combater a luita de classes, a concordata representava mais umha vez o triunfo histrico da burguesia italiana e a rendiom do estado frente Igreja Catlica, que conseguia o monoplio do ensino e um subsdio estatal mi-lionrio. depois da assinatura da Concordata, no dia 24 de maro o regime fascista convocar um plebiscito. Votou 90% do censo, com 8 milhons de sufrgios favorveis ao fascismo e 136.000 votos contrrios. o regime consolidava-se assim, em boa medida, polos acordos com a Igreja, para alm do lon-go trabalho de repressom e procura do consenso atravs das grandes polticas pblicas.

    Portanto, a ditadura fascista consolida umha monarquia autoritria e um governo com umha poltica econmica libe-ral. Com a chegada Itlia da crise de 1929, aumenta certa-mente o intervencionismo estatal na economia, mas este serve afinal somente aos interesses das elites, porquanto o estado

  • 31

    corre ao resgate das grandes empresas em risco de falncia. Para o estado fascista, era umha questom de prestgio nacio-nal e de interesse de estado, mas este residia sempre nos mes-mos setores econmicos e sempre nos mesmos territrios, a Norte do reino. de outra parte, a poltica econmica fascista foi um sucesso enquanto houvo um contexto internacional ala, mas virou um fracasso quando se descobriu que as su-cessivas Batalhas (do trigo, da Lira) de Mussolini empo-breceram mais o pas, ao ter debilitado a indstria alimentar e sacrificado o crescimento equilibrado da economia, enrique-cendo de passagem a burguesia monopolista, que beneficiou do fortalecimento do estado e das grandes polticas de estado.

    No dia 7 de novembro de 1931 inicia-se o abonado do agro Pontino; o perodo das grandes obras fascistas. o IMI (Istituto Mobiliare Italiano), fundado em 1931, fornecer di-nheiro s empresas sem fluidez. a autarquia econmica recebe um impulso definitivo com a fundaom do IRI. estas novas instituions econmicas continurom a ser geridas nom por fascistas da primeira hora, mas por oligarcas de sempre, que utilizrom o estado fascista para decretarem medidas eco-nmicas que de outra maneira nom poderiam ter imposto, devido ao grande custo social que comportavam. a tensom social que provocava o estado liberal era afogada nom s pola repressom de um estado policial mas tambm polo entu-siasmo nacionalista cultivado polo fascismo. as grandes obras pblicas, orgulho do Vintnio fascista, eram s umha msca-ra para ocultar o aumento das distncias entre classes. at a chegada da crise e a autarquia, a oligarquia lucrou-se com a poltica liberal que significava umha descida continuada dos salrios dos operrios e umha misria crescente no rural. o campesinhado foi o principal prejudicado pola poltica social e econmica do fascismo, j que a acumulaom de capital ne-

  • 32

    cessria para a descolagem econmica se fijo custa dos e das trabalhadoras agrcolas, esmagadas por impostos estatais e a quem se impedia a tradicional sada migratria.

    todavia, o maior interesse de Mussolini nom estava na poltica interna, mas na poltica internacional: era a onde jul-gava que se decidiam os destinos imperiais da Itlia. assim que assentou o seu poder, Mussolini iniciou umha srie de movimentos diplomticos encaminhados a situar a Itlia em p de igualdade com as potncias da entente (Frana e Gran Bretaa) e isso s podia conduzir defesa de umha polti-ca imperial e colonialista na frica, retomando os trilhos de Crispi. em 8 de abril de 1932 falava-se por primeira vez na etipia no Grande Conselho. em finais de julho, Mussolini assumia diretamente o ministrio dos Negcios estrangeiros. afinal, a poltica exterior ser o caminho utilizado por Musso-lini para compensar as cessons em matria econmica.

    em 1933, Mussolini inicia a exportaom da sua ideologia atravs do CAUR de Coselschi. roma tinha de ser novamente a capital de europa, mas nom de umha europa crist ou burgue-sa, mas umha europa de movimentos fascistas, especialmente em 1933, quando Hitler chegava chancelaria. a formaom de um governo com ministros nazistas na alemanha era umha confirmaom para Mussolini de que o fascismo ganhava peso na europa.

    entre os dias 14-15 de junho de 1934 produzia-se o primei-ro encontro entre Mussolini e Hitler. Mussolini nom sentia grande apreo por Hitler e, alm de mais, entendia que a pol-tica pangermanista dos nazis punha em risco o apoio italiano ao cancheler austraco dolfuss. No dia 25 de julho de 1934, os nazis austracos assasinrom o chanceler dollfuss, mas o golpe de estado fracassou. Na Itlia houve umha campanha da imprensa contra a alemanha e Mussolini decidiu enviar

  • 33

    tropas italianas fronteira com a ustria. No entanto, ape-sar do perigo que significava em poltica exterior a alemanha nazista, o ano de 1935 significou umha revoluom cultural an-tiburguesa, traduzida na poltica internacional numha rutura de equilbrios e de pactos com a Inglaterra e com a Frana, apostando na aliana diplomtica com a alemanha hitleriana, que apoiaria sem hesitaons a nova poltica agressiva da Itlia, decidida a invadir e conquistar a etipia.

    o 6 de maro de 1936 marcou o incio da poltica filoger-mana. esta aproximaom italo-germana ter as suas conse-quncias no plano interno, e a defesa do corporativismo cedeu espao a um capitalismo de estado, imitaom do estado nazis-ta, que pretendia a autarquia; contudo, o isolamento econmi-co italiano nom alterar a continuidade da poltica econmica anterior, porquanto continuar a beneficiar as elites e prejudi-cando a maior parte da populaom. em 1936, Italia embarcar-se numha poltica agressiva e imperialista, remedo da alem e eco da teoria da naom proletria de princpios de sculo. a Itlia fascista d um passo mais numha poltica de gestos de fora e rompe vnculos com a Inglaterra e a Frana. assim, no dia 24 de outubro de 1936 assina-se o tratado de colaboraom italo-germano: nasce o eixo roma-Berlim.

    1936-40: salto totalitrio.Conforme de Felice14, Mussolini nom teria conseguido assen-tar o regime fascista, em boa medida como consequncia do seu achegamento ao III reich, motivado mais por questons geo-estrategicas que por afinidade ideolgica com o nazismo. tal salto totalitrio foi protagonizado polo prprio Mussolini,

    14 renzo de Felice, Rojo y Negro. edit. ariel. Barcelona, 1996.

  • 34

    que a partir de 1936 acumula ainda mais poder, e polo secre-trio do partido fascista, starace, que converteu o partido nu-mha poderosa mquina burocrtica ao servio da ditadura.

    eis o resumo da poltica exterior fascista na sua fase to-talitria: em 1935, Itlia lanava-se aventura da etipia; em 1936, iniciava a sua participaom na guerra civil espanhola; em 1937 assinava o Pacto anti-Komintern com a alemanha e dous anos mais tarde selava com Hitler a sua aliana estratgica por meio do Pacto de ao. a partir de 1936, toda a mocidade foi enquadrada no GIL (Giovent Italiana del Littorio, equivalen-te das Mocidades Hitlerianas). em 1938 publicou-se o Ma-nifesto da raa e, finalmente, em 1939 o virtual Parlamento foi substitudo pola Cmara dos Fascios e Corporaons. em junho de 1940 Itlia entrava em guerra contra a Frana e a Inglaterra ao p da alemanha.

    1940-3: II Guerra Mundial.No dia 10 de junho de 1940 a Itlia declara a guerra Frana e Inglaterra. dadas as caratersticas da participaom italiana na guerra, tal evento significou o fim do regime de Mussoli-ni, devido sua deslegitimaom interna. assim, em julho de 1943, Mussolini foi destitudo polo Grande Conselho Fascista e foi mesmo encarcerado por ordens de el-rei, que via como as quedas de Mussolini e do fascismo comprometiam a continui-dade do reino sabaudo. Mussolini ser libertado polos aviado-res alemns (skorzeny) e encarregado polo prprio Hitler do estabelecimento de um regime ttere no Norte da Pennsula.

    1943-5: repblica de sal.em tal binio Mussolini pretendeu recuperar as essncias do fascismo, submetendo os italianos do Norte a umha cruel di-tadura. em novembro de 1943 refundou o seu partido com

  • 35

    o nome de Partido Fascista republicano. em janeiro de 1944 tivo lugar o processo de Verona por meio do qual o ditador se desfijo dos seus antigos colaboradores (entre eles o seu prprio genro Ciano). Finalmente, o regime foi derrubado graas ao pulo partisano, sendo afuzilado o seu mximo dirigente no dia 28 de abril de 1945 por Walter aduisio (coronel Valerio), aps receber a ordem de sandro Pertini15.

    4. O regime fascista e o PCIa repressom do regime fascista atingiu com extrema dureza o Partido Comunista da Itlia. apesar da sua condiom de deputado, antonio Gramsci foi detido no dia 8 de novembro de 1926 e encerrado no crcere de regina Coeli em regime de isolamento absoluto e rigoroso16. No dia 28 de maio de 1928 comeava perante o tribunal especial o chamado processone contra o grupo dirigente do PCI (terracini, roveda, scocci-marro, etc.). referindo-se a Gramsci, o fiscal Michele Isgr afirmou: Devemos impedir que este crebro funcione durante vinte anos17. o dia 4 de junho seguinte foi efetivamente con-denado a 20 anos, 4 messes e 5 dias de reclusom. Porm, e aps umha dura pugna legal, obtivo a liberdade condicional em 1934 e a liberdade plena em abril de 1937, poucos dias antes de morrer18.

    15 Giovanni de Luna, Mussolini. edit. salvat. Barcelona, 1986.16 Valentino Gerratana, Cuadernos de la crcel. edic. era. Mxico, 1981. Pg. 58.17 Ibid. Pg. 60.18 Ibid. Pg. 67.

  • 36

    ante o fenmeno da ditadura fascista, o PCI nom s par-ticipou ativamente nas luitas da oposiom clandestina19 e do exlio, mas gerou tambm um amplo debate intelectual inter-no, a fim de o analisar em toda a sua complexidade20.

    No ms de janeiro de 1926 celebrava-se na cidade fran-cesa de Lyon o III Congresso do PCI. Gramsci apresentava o relatrio de poltica geral. a tese nmero XV examinava o fas-cismo concluindo, na linha do afirmado pola Internacional Comunista21:

    o fascismo, como movimento de reaom armada que se pro-pom o objetivo de disgregar e desorganizar a classe trabalha-dora para a imobilizar, entra no quadro da poltica tradicio-nal das classes dirigentes italianas, e na luita do capitalismo contra a classe operria.

    No entanto, renzo de Felice encarregou-se de sublinhar o fito que na evoluom das interpretaons do fenmeno fascista su-punha a afirmaom de Gramsci, segundo a qual o fascismo nom devia ser tam s considerado um rgao de combate da burguesia mas antes um

    movimento social sendo necessrio examinar as estratifica-ons do fascismo mesmo porque, dado o sistema totalitrio que o fascismo tende a instaurar, ser no seio mesmo do fas-cismo que tenderm a ressurgir os conflitos que nom podem manifestar-se por outras vias22.

    Na linha do anterior, em 1928 Palmiro togliatti publicou na revista da Internacional Comunista um clebre ensaio sobre o

    19 Giorgio Candeloro, op. Cit.20 renzo de Felice, Le interpretazioni del fascismo. editori Laterza. roma, 1995.21 Jorge dimitrov, Escritos sobre el fascismo. edit. akal. Madrid, 1976.22 renzo de Felice, op. Cit. Pg.211.

  • 37

    movimento fascista italiano em que aprofundou com agude-za sobre os seus complexos origens sociais e a sua evoluom poltica posterior umha vez constitudo em regime poltico:

    o partido fascista tende assim para a perda do carter de mo-vimento autnomo de certos estratos sociais intermdios que tinha na sua origem, solda-se intimamente, com a sua mesma organizaom, estrutura econmica e poltica das classes di-rigentes23.

    sete anos mais tarde, o mesmo togliatti impartiu umhas mui sugestivas lions sobre o fascismo em Moscovo: nelas pro-pujo umha acertada cronologia do movimento e alertou sobre as interpretaons excessivamente esquemticas do fenmeno que o consideravam umha fatal consequncia do desenvolvi-mento capitalista, para afirmar com determinaom:

    um grave erro crer que o fascismo partisse de 1920, ou da Marcha sobre roma, com um plano pr-estabelecido, fixa-do com antecedncia, num regime de ditadura, como este regime se organizou mais tarde no curso de 10 anos e como ns o vemos hoje. Isto seria um grave erro. todos os feitos histricos do desenvolvimento do fascismo contradim umha conceom assim. Mas nom s: partindo desta conceom cai-se inevitavelmente na ideologia fascista a esta conceom errada ns devemos contrapor a verdadeira, a justa conce-om da ditadura fascista. a ditadura fascista foi empurrada a assumir as formas atuais por fatores objetivos, por fatores reais: pola situaom econmica e polos movimentos das mas-sas que por esta situaom som determinados24.

    23 Ibid. Pg. 212.24 Ibid. Pg. 210

  • 38

    os trs exemplos anteriores, glosados alargadamente por ren-zo de Felice, ponhem de manifesto o acertado do seu veredito, conforme o qual o PCI levou a cabo o esforo interpretativo mais articulado e convincente feito neste perodo polo antifas-cismo italiano25.

    Neste esforo interpretativo do perodo fascista, como ve-mos, a anlise de um togliatti ou do prprio Gramsci som fundamentais. de facto, a nossa tentativa de explicaom do fascismo bebe em grande medida da sua anlise. Por isso, sempre pertinente falarmos do PCI, reconhendo a sua cen-tralidade na oposiom ditadura fascista. Para autores como Gramsci, ou como tasca e togliatti, o fascismo deve ser en-tendido como a consequncia nom s das especiais condions econmicas e morais existentes aps a I Guerra Mundial, mas tambm como mais um chano, como umha heran-a da poltica risorgimentale e dos fracassos do processo de unificaom italiana. Cumpre nom esquecer que duas tercei-ras partes da militncia fascista nos seus incios se encontra-vam na pequena burguesia e nos desempregados do Norte. ali onde se iniciara a revoluom industrial italiana e ali foi onde a oligarquia piemontesa e lombarda decidiu o sacrif-cio do sul, em favor de um desenvolvimento industrial dese-quilibrado e gerador de desigualdades no interior do estado.

    a estrutura dual da economia italiana justifica a enorme desigualdade entre classes que aumentou polo impacto b-lico e a irrupom da sociedade de massas. as elites liberais levrom o pas guerra e gerrom uns problemas que seriam incapazes de resolver. Por isso, em contra do afirmado polo

    25 Ibid. Pg. 216.

  • 39

    filsofo idealista Benedetto Croce, que entendia que o fascis-mo fora um acidente na histria italiana antonio Grams-ci entendia o fascismo como umha continuaom do estado liberal fundado em 1860. Nessa mesma linha interpretativa, achamos que umha figura como Giolitti ilustra as carncias da classe poltica ps-risorgimentale. o seu fracasso o fracasso da democracia de notveis, que ao ser incapaz de cooptar novas camadas sociais, utiliza o fascismo para frear a insurrei-om obreira do Binio Vermelho. em 1922, o partido fascista oferecia-se para acabar com a greve e a ocupaom de fbricas, ligando o seu papel institucional ao de guarda da alta burgue-sia, ganhando espaos fora das cidades e aproveitando-se da incapacidade da esquerda para tecer alianas com o movimen-to agrarista.

    desse fracasso das esquerdas, antonio Gramsci tirar li-ons, promovendo umha linha mais combativa e ambiciosa a partir do Congresso de Livorno. Gramsci, como tambm um Levi ou um silone, relacionou fascismo e questiom meridio-nal, julgando que nom se podia explicar um fenmeno sem o outro. de facto, o acerto do pensamento gramsciano radica em que explica o fascismo nom como umha forma concreta de ditadura que visava a finalizaom do processo de Unificaom italiana mas tambm, e principalmente, como o reforamento do estado burgus, que utilizava o fascismo para bloquear a conquista do poder por umha nova maioria social capaz de colocar em risco o desenho institucional vigorante desde 1860.

    antonio Gramsci foi dos poucos tericos comunistas (sem dvida, ajudou para isto a sua origem) em ser consciente da necessidade de que o movimento operrio italiano conectasse com a massa, a fim de construrem juntos umha massa social crtica, com capacidade para enfrentar eficazmente a repres-som caciquil primeiro e fascista depois. Para Gramsci, o fascis-

  • 40

    mo nom combatia nem combateria o atraso no Mezzogiorno, precisamente porque no subdesenvolvimento colonial do sul da Itlia estava a base do poder econmico das classes mdias que apoirom e que se servrom do fascismo. altamente sig-nificativo que a acusaom feita contra Gramsci (fomento do dio de classe) polo tribunal especial em 1926 fosse a mesma que utilizara o estado italiano liberal finissecular contra os mineiros sardos, que tentavam na altura a organizaom dos primeiros sindicatos. em definitivo, nem o estado italiano liberal nem o estado fascista tentaram resolver a Questom Meridional; antes pelo contrrio, esta iria-se agravando-a cada vez mais, ao continuar subordinando o desenvolvi-mento econmico do Norte ao subdesenvolvimento do sul.

    5 A modo de conclusom.Pierra Milza, um dos melhores conhecedores do fascismo, es-creveu que o fascismo italiano nom s cumulou de honras a antiga classe dirigente, mas tambm a reforou economica-mente. ora bem, o corporativismo fascista serviu paradoxal-mente como um mecanismo de ascensom social para as classes mdias e mesmo para certa parte do proletariado industrial. o socialismo nom soubo conquistar a pequena burguesia, que porm se deixou seduzir polo fascismo, como umha ideologia triunfadora e renovadora. as grandes perdedoras do perodo fascista from as classes subalternas, e principalmente o cam-pesinhado, na medida em que nom se viu favorecido como o proletariado polo aumento do tecido industrial no Norte e pola legislaom social do fascismo26 (Milza, 194).

    26 Pierre Milza: De Versailles a Berlin. 1919-1945, Masson, 4 ediom (p. 194), Paris, 1980.

  • 41

    o Partido socialista aprendeu tarde de mais que nom chegava com controlar o governo municipal sem facer par-tcipe o campesinhado da necessidade de reformas de fundo. o fascismo assanhou-se nos primeiros anos no rural primeiro e depois nas cidades. Num e noutro lugar o fascismo poderia ter sido esmagado polo prprio partido socialista, talvez, se nom se tivesse enganado sobre a integridade do regime libe-ral e nom tivesse ficado espera de que a polcia e o exrcito figessem o seu trabalho. assim como o estado liberal restrin-gia a participaom poltica e impedia que as foras populares mudassem este estado das cousas, a poltica econmica con-solidava a opressom das massas trabalhadoras italianas, inca-pazes de apresentar umha defesa conjunta frente violncia esquadrista. esta violncia deu passo a umha violncia estatal apoiada polos quadros do exrcito e da polcia que reprimir qualquer protesto organizado, facilitando a chegada de umha ditadura de tipo autoritrio onde apesar do discurso radi-cal, na prtica houvo um compromisso entre o PNF e as elites burguesas.

    assim, se quigermos entender o perodo 1919-1945, e no-meadamente o Vintnio fascista, fundamental repararmos nom s no apoio das altas instncias estatais, mas tambm do apoio da pequena burguesia, que aderiu ao PNF polo medo a perder privilgios ganhos desde a unificaom. os empregados pblicos, os escritores, os jornalistas, os advogados, sentiam que a IGM pugera em risco a sociedade em que prosperaram e culpavam da instabilidade e da crise nom ao estado que mo-vera intervenom mas a um movimento operrio que nom foi capaz de mobilizar a pequena burguesia a fim de construir umha democracia moderna, nem de tomar o poder para dar as soluons que os governos da monarquia eram incapazes de encontrar.

  • 42

    Mussolini era o lder autoritrio que agradava oligar-quia porque parecia capaz de fazer o trabalho sujo do estado liberal, isto , colocar a esquerda em condions de inatividade e inofensividade e devolver a tranquilidade burguesia, livre para fazer os seus negcios. Portanto, a fortuna do fascis-mo ligou-se em grande medida de Benito Mussolini, que conseguiu agrupar o consenso das foras conservadoras, um consenso que Giolitti procurara infrutuosamente durante os primeiros quinze anos do sculo e mal conseguira. a inteli-gncia de Mussolini consistia em apresentar-se como o lder de umha forza poltica inovadora, nova e dinmica, com ca-pacidade para acabar com o principal problema do regime a olhos da alta burguesia e a Monarquia. apesar da retrica an-tiburguesa tam tpica do fascismo, este conviveu perfeitamente com a burguesia e o capitalismo at o salto totalitrio de 1936. a viragem de 1935-36, esporeada polo exemplo da alemanha Hitleriana, foi umha volta de parafuso e ao mesmo tempo um ajuste de contas com a alta burguesia, que impedira nos 20 o triunfo de um iderio puramente fascista. seja como for, o giro totalitrio de Mussolini nom alterou o panorama geral do fracasso do projeto fascista, que ficou sendo, j desde o com-promisso de 1924, um totalitarismo incompleto, que caiu ao ligar a sorte do estado fascista de umha poltica imperialista que colocava em risco os negcios da oligarquia exportadora. a economia italiana nom estava preparada para seguir a po-ltica belicista da alemanha e, desde a entrada em guerra, o fascismo s podia perder o consenso ganhado na dcada de 1920. a repblica de sal de 1943-1945 representou a derra-deira tentativa de realizar a revoluom fascista, com a supera-om do liberalismo e do socialismo predicada desde 1919, mas Mussolini, livre do compromisso com a monarquia, j nom era mais do que um ttere em maos alems.

  • Cartas do CrCere

  • 45

    (Carta 1)

    Crcere de roma, 20 de novembro de 1926

    Minha queridssima Iulca,lembras umha das tuas ltimas cartas? (era ao menos a ltima carta que recebim e lim). escrevias que ns os dous somos ainda demasiado jovens para podermos aspirar a ver crescer juntos os nossos filhos. preciso que tu, agora, lembres isto intensamente, que tu penses nisto intensamente cada vez que pensas em mim e que me associes aos nossos filhos. estou certo de que sers umha mae forte e corajosa, como sempre o foche. ters de s-lo ainda mais do que no passado, para que as crianas cresam bem e sejam completamente dignas de ti. Pensei muito, muito nestes dias. Procurei imaginar como ser toda a vossa vida no futuro, porque vou ficar, com certeza, sem notcias vossas durante muito tempo; e voltei pensar no passado, tirando dele razons para ter umha fora e umha f infinitas. eu som e serei forte; quero-te e quero chegar a ver as nossas criaturinhas.

    Minha querida, nom quereria incomodar-te de nengu-mha maneira; estou um pouco canso, porque durmo pouqus-simo e por isso nom consigo escrever tudo o quanto gostaria e como gostaria. Quero fazer que sintas bem forte todo o meu amor e a minha confiana. abraa toda a gente da tua casa; abrao-te a ti e mae s crianas com a maior tenrura.

    antonio

  • 46

    (Carta 2)

    roma, 20 de novembro de 1926

    Queridssima mamae:tenho andado a pensar muito em ti nestes dias. tenho pen-sado nos novos desgostos que vou causar-te, tua idade, e depois de todos os sofrimentos que ts passado. preciso que sejas forte, apesar de todo, como eu som forte, e que me per-does com toda a tenrura do teu imenso amor e da tua bonda-de. saber-te forte e paciente no sofrimento ser um motivo para que eu tambm seja forte: pensa-o, e quando me escrevas ao endereo que che mandarei, tranquiliza-me.

    eu estou tranquilo e sereno. Moralmente estava prepara-do para tudo. tentarei superar tambm fisicamente as dificul-dades que podam esperar-me e restar em equilbrio. Conheces o meu carcter e sabes que h sempre umha ponta de bom humor no seu fundo: isso vai-me ajudar a viver.

    Nom che tinha escrito ainda que me nasceu um outro fi-lho: chama-se Giuliano, e escrevem-me que forte e cresce bem. No entanto, nestas ltimas semanas delio tivo a escar-latina, embora nom fosse grave; contudo, nom conheo neste momento o seu estado de sade: sei que superou a fase crtica e que se est a repor. Nom deves preocupar-te muito polos teus netinhos: sua mae mui forte e com o seu trabalho edu-car-os mui bem.

    Queridssima mae: nom tenho mais foras para continuar. escrevim outras cartas, pensei em muitas cousas e cansou-me um pouco nom dormir. tranquiliza toda a gente: di-lhes que nom devem ter vergonha de mim e que devem ser superiores estreita e mesquinha moralidade do rural. di para o Car-lo que ele, nomeadamente agora, tem o dever de pensar em vs, de ser srio e trabalhador. Grazietta e teresina devem ser

  • 47

    fortes e manter-se serenas, nomeadamente teresina, se estiver esperando mais um filho, como me escreveche. tambm meu pai deve ser forte. Queridssimos todos, neste momento tenho umha mgoa no coraom, principalmente quando penso que nom fum sempre afetuoso e bom convosco, como deveria ter sido e como merecades. Querede-me sempre, seja como for, e lembrade-me.

    Um beijo para todos. e para ti, querida mae, um abrao e um feixe de beijos.

    P.S. Um abrao para Paolo1, e que queira sempre bem e seja sempre bom com a sua querida teresina.

    e um beijo para edmea e Franco. Nino

    (Carta 3)

    Ustica, 9 de dezembro de 1926

    Queridssima tatiana, cheguei a Ustica2 o 7 e o dia 8 recebim a tua carta do 3. Hei-che descrever noutras cartas todas as impressons da minha viagem, na medida em que as lembranas e as diferentes emo-ons se vaiam ordenando no crebro e me tenha recuperado

    1 Paolo Paulesu, marido de teresina. edmea e Franco, nomeados mais adian-te, som sobrinhos de G.; a primeira, filha do irmao Gennaro, o segundo, filho da irm teresina. Grazietta e Carlo som outros dous irmaos de G. Grazietta a segunda filha por ordem de nascimento, Carlo o ltimo.2 Lugar de desterro para presos comuns e polticos. Gramsci deixara o crcere de regina Coeli no dia 25 de novembro de 1926.

  • 48

    do cansao e das insnias. Para alm das circunstncias es-peciais em que a viagem se tem desenvolvido (como pode-rs compreender, nom mui confortvel, mesmo para um homem forte, passar horas e horas num comboio-correio e num barco com as algemas nos pulsos e sujeito por umha ca-deia que te amarra aos pulsos dos companheiros de viagem); a viagem foi interessantssima e cheia de diferentes detalhes, dos shakespearianos at os cmicos: nom sei se serei capaz, por exemplo, de reconstruir umha cena nocturna na passa-gem por Npoles, num local imenso, mui rico em exemplares zoolgicos fantasmagricos; acho que s pode igual-la a cena do coveiro no Hamlet. o trecho mais difcil da viagem foi a travessia de Palermo at Ustica; tentmos quatro vezes a via-gem e trs vezes tivemos de voltar ao porto de Palermo, pois o barco nom resistia o temporal. Contudo, sabes que engordei durante este ms? eu prprio estou surpreendido de me sentir tam bem e de ter tanta fome: acho que em quinze dias, depois de ter repousado e dormido suficientemente, estarei comple-tamente livre de qualquer rasto da hemicrnia e iniciarei um perodo totalmente novo da minha existncia molecular.

    a minha impressom de Ustica tima de todos os pon-tos de vista. a ilha tem oito quilmetros e alberga umha po-pulaom aproximada de 1.300 habitantes, dos quais 600 som presos comuns, isto , delinquentes vrias vezes reincidentes. a populaom mui amvel. ainda nom estamos todos insta-lados: dormim duas noites num grande quarto comum junto com os outros amigos; hoje encontro-me j num quartinho de hotel e se calhar amanh ou depois de amanh irei morar para umha casinha que estm a mobilar para ns: somos tratados por todos com grande correom.

    estamos completamente separados dos presos comuns, cuja vida nom saberia descrever-che em poucas palavras: lem-

  • 49

    bras o conto de Kipling intitulado a estranha cavalgada, no volume francs O homem que queria ser rei? Vu-me de re-pente memria e tam vivamente que me parecia estar a viv-lo. Por enquanto somos quinze amigos. a nossa vida bem tranquila: estamos ocupados em explorar a ilha, o qual me permite dar passeios bastante compridos, por volta de nove ou dez quilmetros, com paisagens mui amenas e com vistas maravilhosas da marinha, do abrente e do sol-pr: cada dous dias vem o barco, que traz notcias, jornais e novos amigos, entre os quais o homem de ortensia, a quem tivem o gran-de prazer de encontrar3. Ustica bem mais jeitosa do que o que mostram os cartons postais que che hei mandar: umha pequena aldeia de tipo muulmano, pitoresca e cheia de cor. Nom podes imaginar o contente que estou de vagabundear de um cantinho para o outro da ilha e de respirar o ar do mar, depois deste ms de transferncias de um crcere para o ou-tro, mas especialmente aps os dezasseis dias de regina Coeli, decorridos no isolamento mais absoluto. Penso que me vou converter no campeom ustiqus de lanamento de pedra distncia, porque j vencim a todos os amigos.

    escrevo-che um bocado aos saltos, assim como me vem, porque ainda estou um pouco canso. Queridssima tatiana, nom podes imaginar a minha emoom quando no regina Coeli vim a tua caligrafia na primeira garrafa de caf recebi-da e lim o nome de Marietta4; volvim ser, literalmente, umha

    3 amadeo Bordiga (1889-1970). Foi o primeiro lder do Partido Comunista de Itlia, desde 1921 at 1924, quando Gramsci o sucedeu como secretrio Geral. Bordiga, estando na oposiom do partido, foi detido e enviado a Ustica no fim de 1926, ficando ali at outubro de 1927, quando o transferrom para Ponza, outra ilha para desterrados, at o fim de 1929. em 1930 foi expulso do P.C.I.4 Marietta Bucciareli, amiga de tatiana schucht, quem frequntava regular-mente a casa de Gramsci

  • 50

    criana. olha, neste tempo, sabendo com certeza que as mi-nhas cartas, segundo as disposions carcerrias, iam ser lidas, nasceu-me umha espcie de pudor: nom me atrevo a escre-ver sobre certos sentimentos e se trato de os atenuar para me adequar situaom, parece-me que me comporto como um sacristm. Por isso vou limitar-me a escrever-che algumhas notcias sobre a minha estadia em r.C. [regina Coeli] com respeito a tudo quanto me perguntes. recebim o casaco de l, que me foi extremamente til, assim como as meias, etc. teria passado muito frio sem elas, porque saim com o abri-go mais leve e, ao termos sado mui cedo de manh, quando tentvamos a travessia Palermo-Ustica estava mui frio. rece-bim os pratinhos que me vira obrigado a deixar com mgoa em roma, pois devia meter toda a minha bagagem na bolsa (que me prestou servios inestimveis) e estava seguro de que os partiria. Nom recebim a candeia, nem o chocolate nem a bica, que estm proibidos: vim-nos assinalados na lista, mas com a advertncia de que nom podiam passar; de maneira que nom tivem a xcara para o caf, ainda que me decidim a fazer um servio de meia dzia com cascas de ovo, monta-das extraordinariamente sobre um pedestal de miolo de pam. Vejo que ests impressionada polo facto de as comidas serem quase sempre frias: nom te preocupes, porque comim sempre, depois dos primeiros dias, no mnimo, o duplo do que comera no mesom, e nom sentim a menor molstia; todavia, soubem que todos os amigos sofrrom molstias e tivrom de abusar dos purgantes. Vou-me convencendo de que som mais forte do que nunca pudeche imaginar, porque, a diferena de to-dos, saim-me bem, com um simples cansao. asseguro-te que, com a exceom de umhas pouqussimas horas de obscuridade, umha noite em que nos tirrom a luz das celas, estivem sem-pre mui contente; o trasgo que me leva a ver sempre o lado

  • 51

    cmico e caricatural em todas as cousas estivo sempre ativo em mim e conservou-me alegre apesar de tudo. Lim sempre, ou quase, revistas ilustradas e jornais desportivos e estava a refazer umha biblioteca. aqui estabelecim este programa: 1 estar bom para estar sempre melhor de sade, 2 estudar a ln-gua alem e russa com mtodo e continuidade; 3 estudar eco-nomia e histria. entre ns havemos fazer ginstica racional, etc., etc. Cumpre que nestes primeiros dias, at acabar de me instalar, che encomende uns trabalhos. Gostaria de ter umha bolsa de viagem, mas que seja segura, com fechadura ou com cadeado: melhor que qualquer mala ou cofre, ante a possi-bilidade, que nom excluo, de posteriores movimentos meus polas ilhas ou para terra firme. depois, precisaria todas essas pequenas cousas, como a gillette com lminas de recmbio, a tesourinha para as unhas, a lima, etc., etc., que som sempre necessrias e que nom estm venda; queria algum tubo de aspirina, por se os refachos me fam sangrar os dentes. Com a roupa, o abrigo e a roupa branca que resta, acho dars fei-to. envia-me depressa, se puderes, a gramtica alem e umha gramtica russa; o dicionrio pequeno de alemm-italiano e italiano-alemm e algum livro (Max e Moritz5 e a histria da literatura italiana de Vossler, se a deres encontrado entre os livros). envia-me aquele volume grande de artigos e estudos sobre o risorgimento italiano que se intitula: Storia politica del secolo XIX e um livro intitulado: r. Ciasca, La formazione del programma dellunit nazionale, ou algo parecido. alm disso, v tu mesma e decide o que a ti che parea. Por esta vez, escre-ve tu a Giulia: nom consigo vencer esse sentido do pudor de que che falava h pouco: alegrou-me muito conhecer as boas

    5 Conto para crianas escrita por Wilhelm Busch (1865).

  • 52

    notcias sobre delio e Giulio; espero as fotografias. o endere-o usado por ti corretssimo, como viche; aqui os correios funcionam de umha maneira simples: som eu a perguntar no balcom pola posta-restante, e em Ustica s h umha oficina postal. a propsito dos telegramas enviados, o de roma, que anunciava a minha partida, sabia com certeza que iria che-gar com muita demora, mas queria dar a conhecer a notcia e nom exclua que pudesse ser til para umha conversa, caso o receptor tivesse sabido que era possvel vir at 11 da noite. de cinco que partrom unicamente Molinelli, que viajou sempre comigo, recebeu a visita da mulher s 11 justas: os outros nada.

    Queridssima tatiana, se nom che escrevim antes, nom deves crer nem por um instante que te esquecesse nem que nom pensasse em ti; a tua expressom exata, porque em cada cousa que recebia, via em destaque o sinal das tuas queridas maos; era mais do que um cumprimento, mais do que umha carcia afetuosa: teria gostado de ter o endereo da Marietta; se calhar, escrevia tambm para a Nilde6, o que achas? Lem-brar-me? Gostar dos meus cumprimentos? escrever e rece-ber cartas converteu-se para mim num dos momentos mais intensos da vida.

    Queridssima tatiana, escrevo-che de umha maneira um pouco confusa. Creio que hoje, 10, o barco nom vai dar che-gado, porque durante toda a noite houvo um vento fortssimo que nom me deixou dormir, apesar da suavidade da cama e dos coxins, aos quais j me desabituara; um vento que pene-tra por todas as fendas do terrao, pola janela e polas portas, com assobios e sons de trompetes mui pitorescos, mas mui

    6 Leonilde Perilli, companheira de estudos de eugenia schucht na academia de Belas artes de roma, e amiga dos schucht. Hospedou a tatiana na sua casa durante uns anos.

  • 53

    irritantes. escreve para a Giulia e di-lhe que estou bem de ver-dade, de todos os pontos de vista, e que a minha permanncia aqui, que por outra parte nom creio seja tam comprida como decidiu o decreto, h de tirar do meu corpo todos os velhos achaques: talvez um perodo de repouso absoluto seja incluso umha necessidade para mim.

    abrao-te com tenrura, queridssima, porque abraando-te abrao a todos aqueles a quem eu quero.

    se Nilde aprecia os meus cumprimentos, manda-me o seu endereo.

    antonio

    (Carta 4)

    Ustica, 19 XII 1926

    Queridssima tania:escrevim-che um postal o 18 para avisar de que tinha recebido a tua registada do 14: previamente, tinha escrito para ti umha comprida carta ao endereo da senhora Passarge, quem cha deveu ter entregado o 11 ou o 12. resumo os principais acon-tecimentos de todo este tempo.

    detido o 8 s 10:30, e conduzido imediatamente ao crce-re, partim de roma de manh, mui cedo, o 25 de novembro. a permanncia em regina Coeli foi o perodo mais difcil do arresto: 16 dias de isolamento absoluto na cela, com umha dis-ciplina mui rigorosa. Pudem ter um quarto pagando, mas s nos ltimos dias. decorrim os primeiros trs dias numha cela mui luminosa de dia e iluminada de noite; no entanto, a cama estava mui suja; os lenis estavam usados; formiguejavam nela os insectos mais variados; nom me foi possvel ter algo

  • 54

    para ler, nem sequer a Gazzetta dello sport, porque ainda nom a reservei: comim a sopa do crcere, que estava bem boa. Passei depois para umha nova cela, mais obscura de dia e sem iluminaom noite, a diferena da outra, esta tinha sido de-sinfectada com chama de gasolina e a cama tinha a roupa lim-pa. Comecei a comprar algumha cousa na cantina do crcere: as candeias de estearina para a noite, o leite para a manh, umha sopa com caldo de carne e um pedao de carne cozida, queijo, vinho, mas, cigarros, jornais e revistas ilustradas. Passei da cela comum para a de pagamento sem prvio aviso, polo que estivem um dia sem comer, dado que o crcere passa a comida somente aos ocupantes das celas comuns, enquanto os dos quartos de pagamento devem buscar-se as favas (ex-pressom carcerria) por si prprios. em meu caso, o quarto de pagamento consistiu em que somassem ao xergom de crina um colchom de l e um coxim dem e que a cela estivesse mo-bilada com umha bacia, umha jarra e umha cadeira. deveria ter tambm ao meu dispor um talho, um bengaleiro e um pe-queno roupeiro, mas a administraom est falta de material de intendncia (outra expressom carcerria): tivem tambm luz eltrica, mas sem interruptor; de maneira que durante toda a noite me revirava para proteger os olhos da luz. a vida transcorria assim: s 7 da manh diana e limpeza do quarto; contra as nove, o leite, que com o tempo se converteu em caf com leite, quando comecei a receber a comida da cantina. o caf chegava polo geral ainda morno; o leite, polo contrrio, estava sempre frio, mas eu fazia entom umha abundante sopa. de nove at o meio-dia tocava a hora do passeio: umha hora, de nove at dez, ou de dez at onze, ou de onze at doze; fa-ziam-nos sair separados, com a proibiom de falarmos e de saudarmos quem quer que fosse, e amos para um ptio circu-lar dividido em rdios por muros de separaom altssimos,

  • 55

    com umha grade que dava para o resto do ptio. ramos vi-giados por umha sentinela erguida sobre um terracinho que dominava os setores radiais e por umha sentinela que passea-va diante das grades; o ptio estava encaixado entre muros altssimos e estava dominado, num dos lados, pola chamin baixa de um pequeno obradoiro interno; por vezes o ar era fumo; umha vez tivemos de permanecer por volta de meia hora baixo a tormenta. Contra o meio-dia chegava o jantar; frequentemente, a sopa estava ainda morna, mas o resto estava sempre frio. s 3 havia a visita cela, para a revisom das bar-ras da grade; a visita repetia-se s dez da noite e s trs da manh. dormia um bocado entre estas duas ltimas visitas: umha vez me acordava a visita das trs j nom conseguia adormecer; porm, era obrigado ficar na cama entre 7 da tarde e o amanhecer. a distracom proporcionavam-na as di-ferentes vozes e os fragmentos das conversas que por vezes conseguia ouvir das celas do lado ou de em frente. Nunca in-corrim em nengum castigo: Maffi7, no entanto, estivo trs dias a pam e gua numha cela de castigo. Na verdade, nunca sen-tim mal-estar nengum: embora nunca desse acabado toda a comida, comim sempre com um apetite maior que o do me-som. tinha apenas umha colher de madeira; nem garfo, nem copo. Umha jarra e umha jarrinha de barro para a gua e para o vinho; um prato grande de barro para a sopa e outra como bacia, antes da concessom do quarto de pagamento. a 19 de novembro foi-me comunicada a disposiom que me condena-va a 5 anos de desterro nas colnias, sem mais explicaom. Nos dias sucessivos chegrom-me rumores de que partiria para somlia. s na tarde do 24, e indiretamente, soubem que

    7 Fabrizio Maffi (1868-1955), mdico, militante socialista e mais tarde comu-nista, deputado.

  • 56

    cumpriria a pena de desterro numha ilha italiana: o destino exato s me foi comunicado de maneira oficial em Palermo; podia ir para Ustica, mas tambm para Favignana, para Pan-telleria ou para Lampedusa; foram excludas as tremiti, por-que de outro jeito teria viajado de Caserta a Foggia. Partim de roma na manh do 25, com o primeiro comboio dos correios para Npoles, aonde cheguei por volta de umha da tarde; via-jei na companhia de Molinelli, Ferrari, Volpi e Picelli, tambm eles detidos o dia 8. Ferrari, porm, foi apartado em Caserta para as tremiti: digo apartado, porque mesmo no vagom permanecamos juntos e amarrados a umha longa cadeia. de roma em diante fiquei sempre em companhia, o qual produ-ziu umha notvel mudana no estado de nimo: era possvel conversar e rir, embora estivssemos amarrados cadeia e com os dous pulsos apertados polas algemas e se tivesse que comer e fumar com tais adornos. Porm, a gente conseguia acender os fsforos, conseguia comer e beber; os pulsos inch-rom um pouco, mas tinha-se a noom do perfeita que a ma-quina humana, quando pode adaptar-se a qualquer circuns-tncia, por anti-natural que ela for. No limite das disposions regulamentares, os guardas da escolta tratrom-nos com gran-de correom e cortesia. Ficamos em Npoles duas noites, no crcere de Il Carmine, sempre juntos, e voltamos sair por mar na tarde do 27, com um mar mui calmo. em Palermo tivemos um quartinho mui limpo e arejado, com umha vista belssima do monte Pellegrino; encontrmos outros amigos destinados s ilhas, o deputado maximalista Conca, de Verona e o advo-gado angeloni, republicano de Perugia. acrescentrom-se ou-tros a seguir, entre os quais Maffi, que fora destinado a Pantel-leria, e Bordiga, destinado a Ustica. deveria ter sado de Palermo o dia 2; porm, s conseguim partir o dia 7; trs ten-tativas de travessia fracassrom polo mar bravo. esta foi a pior

  • 57

    parte da transferncia. Pensa: diana s quatro da manh, as formalidades para a entrega do dinheiro e das diferentes cou-sas deixadas em depsito, algemas e cadeia, veculo celular at o porto, baixada lancha para chegar ao barco, subida da es-cada para subir a bordo, subida de umha escada para subir ponte, descida de umha outra escada para ir seom de ter-ceira classe; todo isso tendo os pulsos amarrados e estando amarrado com umha cadeia a outros trs. s sete o barco par-te, viaja durante umha hora e meia, danando e mexendo-se como um golfinho, depois volta para trs, porque o capitm admite que impossvel continuar a travessia. repete-se no sentido contrrio a srie das escadas, etc., volta-se para o cr-cere, somos novamente registados e voltamos para a cela; en-tretanto, j meio dia, nom deu para pedir o jantar; at 5 nom se come; na manh a seguir ainda nom se comer. Isto tudo por quatro vezes com o intervalo de um dia. a Ustica chega-ram j quatro amigos: Conca, o ex deputado de Perugia sba-raglini, e dous de aquila. durante algumhas noites dormimos num sala: agora estamos j instalados numha casa ao nosso dispor, para seis: eu, Bordiga, o Conca, os sbaraglini e os dous de aquila. a casa compom-se de um quarto no rs-do-chao onde dormem dous: no rs-do-chao est tambm a cozinha, a sanita, e um quartinho que usamos como sala comum de toi-lette. No primeiro andar, dormimos quatro em dous quartos, trs num quarto bastante grande e um no quartinho do meio; um amplo terrao est por cima do quarto maior e domina a cala. Pagamos 100 liras por ms pola casa, e duas liras por dia pola cama, a roupa branca da cama e os demais objetos do-msticos (duas liras por cabea). os primeiros dias gastamos muito nas comidas; nom menos de 20 liras por dia. agora gas-tamos 10 liras por dia da mazzetta polo jantar e a ceia; esta-mos a organizar umha cantina comum, que nos permitir, se

  • 58

    calhar, viver com as 10 liras por dia que nos adjudicou o go-verno; somos j trinta desterrados e ainda h de chegar algum mais.

    as nossas obrigas som variadas e complexas; a mais sa-lientvel a de nom sairmos da casa antes do amanhecer e a de voltar para a casa s 8 da tarde; nom podemos ir alm de determinados limites que, em linhas gerais estm repre-sentados polo permetro habitado. No entanto, conseguimos licenas que nos permitem passear por todo o territrio da ilha, com a obriga de voltar dentro dos limites s 5 da tar-de. a populaom em conjunto de perto de 1.600 habitantes, dos quais 600 som forados, isto , delinquentes comuns que j cumprrom outras condenas. a populaom indgena com-pom-se de sicilianos, mui amveis e hospitaleiros; podemos relacionar-nos com a populaom. os presos estm submetidos a um regime mui restritivo; a grande maioria, dado o pequeno tamanho da ilha, nom pode ter nengum ocupaom e tem que viver coas 4 liras dirias que lhes adjudica o governo. Podes imaginar o que acontece: a mazzetta ( o termo que se utiliza para indicar a pensom do governo) gasta-se principalmente em vinho; as comidas reduzem-se a um pouco de massa com ervas e a um pouco de pam; a desnutriom leva ao alcoolis-mo mais depravado num prazo mui breve. estes presos som encerrados em celas especiais s cinco da tarde e estm juntos toda a noite (entre cinco da tarde e sete da manh), fechados desde fora: jogam s cartas, em ocasions perdem a mazzetta de bastantes dias e desta maneira vem-se prisioneiros num crculo infernal que dura at o infinito. deste ponto de vista, um autntico pecado que se nos proiba ter contatos com seres reduzidos a umha vida tam excecional: acho poderiam fazer-se observaons de tipo psicolgico e de folclore com um carter nico. todo aquilo quanto de elementar sobrevive no

  • 59

    homem moderno, volta tona irremediavelmente: estas mo-lculas pulverizadas agrupam-se novamente conforme princ-pios que se correspondem com aquilo que de essencial existe ainda nos estratos populares mais profundos. existem quatro divisons fundamentais: os setentrionais, os centrais, os me-ridionais (com siclia) e os sardos. os sardos vivem absolu-tamente afastados do resto. os setentrionais possuem umha certa solidariedade entre eles, mas nengumha organizaom, polo que parece; orgulham-se porque, mesmo sendo ladrons, carteiristas, caloteiros, nom derramrom nunca sangue. entre os do Centro, os romanos som os melhor organizados; nem sequer denunciam aos confidentes os das outras regions, guar-dando para si a desconfiana. os meridionais estm mui or-ganizados, se devemos julgar polo que se di, mas entre eles h subdivisons: o estado napolitano, o estado pulhs e o estado siciliano. Para o siciliano, o motivo de orgulho consiste, nom em ter roubado, mas em ter derramado sangue. todas estas informaons obtivem-nas de um preso que se encontrava no crcere de Palermo cumprindo condena por um crime que cometera durante o perodo de desterro e que se orgulhava de ter causado conforme um plano previamente estabeleci-do, umha ferida com umha profundidade de dez centmetros (medida, di ele) ao carcereiro que o mal-tratara: planificara dez centmetros e from dez centmetros, nem um milmetro a mais. esta era a obra mestra da qual se orgulhava em extre-mo. acredita que a referncia ao romance de Kipling nom era exagero, ao menos considerando as impressons do primeiro dia. a minha situaom financeira durante este tempo foi ti-ma. Fum detido com 680 liras no bolso; em roma vim soma-das ao meu favor outras 50 liras. os gastos incrementrom-se de maneira alarmante s depois da sada de roma. em Paler-mo, principalmente, esfolrom-nos de maneira literal: o ho-

  • 60

    teleiro marcou com 30 liras um pacote com umha porom de macarrons, litro de vinho, de frango e fruta que serviam para duas comidas. Cheguei a Ustica com 250 liras que me chegrom para os primeiros 10 dias; depois tivem 100 liras de mazzetta (10 liras por dia), as tuas 500 liras e 374 liras pola imunidade parlamentar, para os dias compreendidos entre 1 e 9 de novembro.

    Portanto, estivem bem durante bastante tempo, isto , podo tomar algum caf, fumar cigarros e completar o gasto dirio para a casa e a comida, que hoje de 14 liras por dia, mas que diminuir assim que tenhamos organizada a cantina. por isso que nom deves preocupar-te por mim: nom quero de nengumha maneira que te sacrifiques pessoalmente por mim: se tiveres a hiptese, oferece a tua ajuda a Giulia, que com certeza necessitar mais cousas do que eu.

    Na anterior ocasiom nom che escrevim que, recm che-gado a Ustica, encontrei umha carta em que se me assegurava que Giulia ia receber as ajudas, e que nom devia preocupar-me nesse sentido. recorrerei a ti para ter algumhas cousas que de outra maneira nom poderia ter: porm, em geral estou decidido a fazer de maneira que poda viver com a mazzetta governamental, j que o considero possvel, depois de algum tempo de aclimataom. Queria-che dizer outra cousa impor-tantssima: o amigo sraffa escreveu-me que abriu para mim umha conta corrente ilimitada numha livraria de Milm8, na qual poderei encarregar jornais, revistas e livros; alis, ofere-ceu-me todas a ajuda que quiger. Como vs, podo olhar para o porvir com suficiente serenidade. se tiver a segurana de que Giulia e as crianas nom vam sofrer qualquer privaom,

    8 a livraria sperling & Kupfer, da qual G. se serviu sempre nos seguintes anos.

  • 61

    estarei realmente tranquilo: querida tatiana, este o nico pensamento que me atormenta nos ltimos tempos, e nom apenas depois do meu arresto; sentia vir esta tormenta, de maneira imprecisa e instintiva e por isso mais tormentosa. Lembras quando me digeche que umha amiga comum aludia minha superstiom? Voltei pensar nisso algumha vez, nom para convencer-me mais umha vez de que tinha razom e de que exagerei, nom por superstiom, mas sim por falta de de-cisom e por outros escrpulos que intelectualmente considero de carter inferior, nom obstante nom fosse nem seja capaz de me libertar deles. de facto, a anlise que fazia era exata, mes-mo se me parecia impossvel umha demonstraom objetiva e pormenorizada.

    olha que escrevim com essa abundncia que desejavas, escrevendo tambm sobre cousinhas sem a mais mnima im-portncia. ests contente? sabes que te quero muito e que la-mento muito lembrar algum pequeno episdio em que por um descuido, de algumha maneira, che figem mal.

    escreve tu a Giulia tambm em meu nome; nom tenho vontade de mandar-che os desenhos para delio: teria que explic-los e isso desagrada-me enormemente. aguardo as fotografias. entre os livros que deves enviar-me inclui os se-guintes: Hauser Les Grandes puissances, Le prospettive economiche de Mortara para 1926, os dous Berlitz alemm e russo. entre os objetos, gostava de um pouco de sabom, um pouco de gua de colnia para a barba, umha escova de den-tes com o seu vidro de protecom, um pouco de dentfrico, umhas poucas aspirinas e umha escova para a roupa.

    Queridssima tatiana, abrao-te afetuosamente.antonio

  • 62

    (Carta 5)

    21/XII/1926

    Queridssimo amigo9,recebim a tua carta do 13; no entanto, nom recebim ainda os livros que me anunciavas. agradeo-che mui cordialmente o oferecimento que me figeche; j escrevim Livraria sperling e figem umha encomenda bastante aparatosa, com a certeza de nom ser indiscreto, porque conheo toda a tua amabilidade. somos em Ustica 30 desterrados: inicimos j toda umha srie de cursos, elementares e de cultura geral, para os diferentes grupos de desterrados; comearemos tambm umha srie de palestras. Bordiga dirige a seom cientfica, eu a seom hist-rico-literria; eis a razom pola qual encomendei determinados livros. esperemos que desta maneira decorra o tempo sem nos embrutecer e sendo teis aos outros amigos, representantes de todo o tipo de partidos e de preparaom cultural. Comigo estm schiavello e Fiorio10, de Milm; dos maximalistas est tambm o ex deputado Conca de Milm. dos unitrios est o advogado sbaraglini, de Perusa e um magnfico tipo de cam-pons de Molinella. Um republicano de Massa e 6 anarquistas de composiom moral complexa; o resto comunistas, isto , a grande maioria. H 3 ou 4 analfabetas ou quase; o resto tem diversa preparaom, mas com umha mdia geral mui baixa.

    9 Piero sraffa (1898-1983), professor de economia em Cambridge. Gramsci conheceu-no em turim na poca da universidade e ali se figrom amigos. sraffa esforou-se durante os anos do crcere por ajudar a Gramsci: mantivo corres-pondncia com tatiana schucht, fijo viagens a Italia e mesmo pudo arranjar vrias conversas com Gramsci. Conseguiu interessar pola sua sorte a altas per-sonalidades inglesas.10 ernesto schiavello (n. 1899), organizador sindical de Milm, decorreu sete anos entre crcere e desterro.

  • 63

    Porm, todos estm contentes por terem umha escola, que fre-quentam com grande assiduidade e diligncia.

    a situaom financeira ainda boa: aos desterrados dam-nos 10 liras por dia; a mazzetta dos presos comuns em Ustica de 4 liras por dia, nas outras ilhas por vezes mesmo menor, se existirem possibilidades de trabalhar. Ns temos o direi-to a morar em casas particulares; seis pessoas (eu, Bordiga, Conca, sbaraglini e dous mais) moramos numha casinha pola qual pagamos 90 liras por ms cada um, com todos os ser-vios includos. Contamos organizar umha cantina, a fim de podermos satisfazer as necessidades de comida e casa com as 10 liras dirias da mazzetta. a comida, naturalmente, mui pouco variada: nom se encontram ovos, por exemplo, o qual me amola bastante, porque nom podo fazer pratos abundantes ao estilo marinheiro. o regime que devemos seguir consiste em recolher-se em casa s 8 da tarde e nom sair dela antes do amanhecer nem ir alm dos limites habitados sem umha licena especial.

    a ilha pequena (8 km.) com umha populaom de 1600 habitantes, dos quais 600, aproximadamente, som presos co-muns: existe um nico grupo de vivendas. o clima timo e at agora nom estivo frio; apesar disso, os correios chegam sem regularidade, porque o barco que fai a travessia quatro vezes por semana nem sempre pode com o vento e as ondas. Para chegar a Ustica tivem que fazer quatro tentativas de tra-vessia; isso cansou-me mais do que toda a viagem de roma a Palermo. Contudo, permanecim sempre em timas condi-ons de sade, para grande surpresa dos meus amigos, pois todos tenhem sofrido mais do que eu: imagina que at engor-dei levemente. Porm, nestes dias, quer polo cansao atrasado, quer pola comida que nom se condiz com os meus costumes e a minha constituiom, sinto-me mui dbil e esgotado. Mas

  • 64

    aguardo afazer-me rapidamente e dar cabo, de vez, de todos os males passados.

    escreverei-che amide, se quigeres, para me iludir com que me encontro ainda na tua grata companhia. saudo-te com afeto

    antonio

    (Carta 6)

    2/I/1927

    Queridssimo11,recebim os livros que me anunciavas na penltima carta e um primeiro pacote dos que encomendara. tenho portanto bas-tante para ler durante algum tempo. agradeo a tua grande amabilidade, mas nom queria abusar. Porm, tem a certeza de que sinceramente me dirigirei a ti sempre que precisar qual-quer cousa. Como podes imaginar, aqui nom h muito para comprar; antes polo contrrio, por vezes escasseia o que com-prar, mesmo se a compra for necessria.

    a vida decorre sem novidade nem surpresas; a nica pre-ocupaom a chegada do barco, que nem sempre consegue fazer os quatro trajetos semanais (segunda-feira, quarta-feira, quinta-feira e sbado) com grande pesar para cada um de ns, que aguarda sempre com nsia a correspondncia. somos j uns sessenta, dos quais 36 som amigos de diferentes lugares; predominam relativamente os romanos. J comeamos a es-cola, dividida em vrios cursos: 1 curso (1 e 2 elementar),

    11 dirige-se a Piero sraffa.

  • 65

    2 curso (3 elementar), 3 curso (4 5 elementar), curso complementar, dous cursos de francs (inferior e superior) e um curso de alemm. os cursos estabelecem-se em relaom ao nvel cultural que se tem nas matrias, que pode