Cartilha Rede San Parte5

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    PARTE II

    Textos de Apoio

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    15. A segurana alimentar e nutricionalno contexto dos movimentos sociaisEste texto apresenta, de forma sinttica, as mltiplas dimenses do conceitode Segurana Alimentar e Nutricional (SAN), construdo no processo daslutas sociais envolvendo diversos segmentos e atores da sociedade civil.A inteno deste texto demonstrar a complexidade deste conceito, consi-derando os aspectos psicolgicos, sociais, polticos, econmicos, culturais

    e ambientais.

    15.1 A construo do conceito de SAN

    O conceito de SAN um conceito em construo. Para entender quais so os cami-nhos que esto sendo tomados para enfrentar a insegurana alimentar e nutricional, importante entender como tem sido a elaborao e apropriao deste conceito porparte da sociedade civil.

    Durante muitos anos, o debate sobre segurana alimentar e nutricional no mundoficou restrito ao argumento de que o aumento na produo de alimentos poderiacombater a fome da populao mundial, que no parava de crescer. No Brasil, na d-cada de 1980, a preocupao no era diferente: ser que a produo de alimentos noPas ser suficiente para matar a fome da populao? Como conseqncia, as discus-ses sobre segurana alimentar ficaram restritas preocupao com a capacidadeque o Pas tinha para abastecer a populao e dar resposta ao problema da fome.

    Ao longo dos anos, o aumento das doenas carenciais e crnicas no-transmissveis36

    na populao brasileira levou os movimentos e organizaes da sociedade civil a dis-cutirem as causas dessas doenas e incorporarem outras questes ao conceito de SAN,

    como acesso aos alimentos, condies de preparo, aspectos nutricionais, culturais esocioambientais.

    Neste processo de ampliao do conceito de SAN, o que ficou claro que no sepode reduzir o movimento em prol da segurana alimentar e nutricional luta paramatar a fome da populao brasileira, pois existem muitas dimenses a serem explo-radas. Percebe-se ainda que a definio de segurana alimentar e nutricional no se

    35 Artigo elaborado por Edmar Gadelha e Rodica Weitzman.36 Doenas carenciais (anemia, desnutrio etc.) so causadas pela deficincia de nutrientes necessrios sade, geral-mente devido quantidade insuficiente e/ou m qualidade da comida. Doenas crnicas no-transmissveis (hiperten-so, diabetes, obesidade etc.) so decorrentes das mudanas no estilo de vida e da alimentao da populao nos

    ltimos anos.

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    restringe a uma alimentao nutricionalmente balanceada, mas visa tambm criao de condies ade-quadas para que os seres humanos exeram seus direitos e deveres e mantenham uma relao de co-res-ponsabilidade com o meio ambiente.

    15.2 Histria dos movimentos sociais brasileiros em relao SAN

    A mobilizao em torno da segurana alimentar e nutricional no Brasil foi influenciada por vrios aconteci-mentos ligados ao contexto social, econmico e poltico do Pas. Pode-se dizer que o primeiro estudo signi-ficativo em relao ao tema foi o livro Geografia da Fome, de Josu de Castro, publicado em 1946. ParaCastro (1946), a fome no um fenmeno natural nem divino, mas tem como causa as estruturas econ-micas e polticas. A partir deste pressuposto, a luta da sociedade se consolidou e avanou no sentido de ga-rantir a erradicao da fome, implementando aes importantes para a conquista da cidadania como, por

    exemplo, a luta pela reforma agrria.

    Em 1964, o golpe militar reprimiu as organizaes democrticas da sociedade, impedindo o avano dasconquistas sociais. Com o fim da ditadura, na dcada de 1980, os movimentos sociais se reorganizaram econquistaram significativos direitos sociais com a promulgao da Constituio Federal de 1988. Na dcadade 1990, movimentos sociais, sindicais e organizaes no-governamentais desencadearam um grande mo-vimento para garantir o direito humano alimentao: a Ao da Cidadania Contra a Fome, a Misria epela Vida, liderada pelo socilogo Herbert de Souza, o Betinho.

    A partir da Ao da Cidadania, em 1991, foi criado o Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutri-cional (CONSEA), presidido por Dom Mauro Morelli. O CONSEA um espao de articulao entre governo

    e sociedade civil na proposio de diretrizes para as aes na rea da alimentao e nutrio. O Conselhotem carter consultivo e assessora o Presidente da Repblica na formulao de polticas e na definio deorientaes para que o Pas garanta o direito humano alimentao37.

    Em 1994, o CONSEA convocou e realizou a I Conferncia Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional.A conferncia contou com a participao de 1.800 delegados e delegadas que aprovaram recomendaesde diretrizes e prioridades para uma poltica nacional de SAN. No ano seguinte, mediante publicao de de-creto, o presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu o CONSEA e criou em seu lugar o Programa Co-munidade Solidria.

    Em 1996, a Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO) realizou em Roma a C-pula Mundial da Alimentao, com o objetivo de reunir chefes de Estado para debaterem a situao da ali-mentao no mundo e proporem um plano de ao. Uma significativa delegao brasileira, composta porrepresentantes de movimentos sociais, sindicais, pastorais, ONGs e membros da Ao da Cidadania, parti-cipou da Conferncia Paralela, organizada pelo Frum Global.

    Ao voltar ao Brasil, os membros da delegao se propuseram criao do Frum Brasileiro de SeguranaAlimentar e Nutricional (FBSAN). O Frum foi criado em 1998, em So Paulo, dando incio a um processode mobilizao da sociedade civil com o objetivo de retomar as aes de construo da poltica nacional desegurana alimentar e nutricional.

    37 http://www.planalto.gov.br/consea

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    Com a eleio do presidente Lula em 2002, apoiada por ampla parcela dos movimentos sociais, a questoda fome voltou a ser destacada como prioridade de governo. Foi lanado o Programa Fome Zero, contendoaes emergenciais e estruturais voltadas para o atendimento dos segmentos vulnerveis da populao, e,na mesma perspectiva, foi recriado o CONSEA Nacional. Em 2004, o CONSEA realizou, em Olinda (PE), a IIConferncia Nacional de SAN, que aprovou a seguinte declarao:

    Segurana Alimentar e Nutricional (SAN) a realizao do direito de todos ao acesso regular e permanente a

    alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais,

    tendo como base prticas alimentares promotoras de sade, que respeitem a diversidade cultural e que sejam

    social, econmica e ambientalmente sustentveis.

    Descrevemos a seguir onze dimenses relacionadas a este conceito de segurana alimentar e nutricional:

    Dimenso 1: Direito humano alimentao

    Os Direitos Humanos so aqueles que todo ser humano tem nica e exclusivamente por ter nascido ser hu-mano. Todos os seres humanos, independentemente de idade, sexo, raa, etnia, ideologia, opo religiosa,orientao sexual, ou qualquer outra caracterstica pessoal ou social, so portadores de direitos humanos.Est previsto na Declarao de Direitos Humanos um conjunto de direitos civis, culturais, econmicos, po-lticos e sociais que, de forma articulada, devem garantir que todas as pessoas possam desenvolver plena-mente seu potencial humano.

    Em 1966, a Organizao das Naes Unidas (ONU) adotou o Pacto Internacional de Direitos Econmicos,

    Sociais e Culturais (PIDESC), que cria obrigaes legais s naes visando responsabilizao internacionalem caso de violao dos direitos por ele consagrados. O Brasil aderiu ao PIDESC em 12 de dezembro de1991. Em 1996, o direito humano alimentao adequada foi objeto de discusso do Comit de DireitosEconmicos, Sociais e Culturais da ONU que, em seu Comentrio Geral n 12, assim definiu:

    O direito alimentao adequada alcanado quando todos os homens e crianas, sozinhos, ou em comunidade

    com outros, tm acesso fsico e econmico, em todos os momentos alimentao adequada, ou meios para sua

    obteno. O direito alimentao adequada no deve ser interpretado como um pacote mnimo de calorias,

    protenas e outros nutrientes especficos. A adequao refere-se tambm s condies sociais, econmicas,

    culturais, climticas e ecolgicas.

    O direito humano alimentao constitui um pacto social de toda a humanidade, sendo que o Estado tempor obrigao respeitar, proteger, promover e prover os direitos humanos. Por este motivo, a sociedadedeve manifestar sua revolta quando este acordo internacional e universal for violado.

    Constitui uma violao deste direito a falta de proteo ativa do Estado contra aes de empresas ou outrosatores sociais que impeam a realizao do direito, ou quando o Estado no promove mecanismos alterna-tivos para a sua garantia.

    Outros exemplos de violaes do direto humano alimentao so:a) a expulso de pequenos produtores familiares das terras onde produzem seu sustento (por exemplo, a

    construo de barragens para hidreltricas);

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    b) a propaganda mentirosa sobre valor nutricional de alimentos; ec) a comercializao e consumo de alimentos que podem ser prejudicais sade humana (por exemplo, ostransgnicos).

    Para garantir a realizao do direito, tem que existir mecanismos de exigibilidade. Por este motivo, impor-tante estabelecer um marco legal que garanta o acesso alimentao por parte da populao.

    Uma das lutas dos movimentos sociais relacionados SAN tem sido a criao de uma Lei Orgnica de Se-gurana Alimentar e Nutricional (LOSAN) que possa ser implementada em todos os estados brasileiros, per-mitindo uma unidade nas concepes e normas relacionadas a este tema. A LOSAN ser fundamental parareforar o direito humano alimentao, pois exigir do poder pblico uma postura ativa no sentido derespeitar, proteger, promover e garantir a realizao do direito humano alimentao adequada38 .

    As organizaes sociais tambm podem contribuir para que o direito humano alimentao seja cumprido,difundindo e divulgando este direito populao e realizando aes participativas para enfrentar os proble-mas causados pela insegurana alimentar em qualquer um de seus aspectos.

    Dimenso 2: Disponibilidade dos alimentos

    Durante muitos anos, o debate no mundo sobre a fome e a desnutrio tinha como causa principal a baixaproduo de alimentos. Com este argumento, em 1945, aps a Segunda Guerra Mundial, organismos in-ternacionais e empresas do setor sediadas nos pases de clima temperado intensificaram a pesquisa e o de-senvolvimento tecnolgico voltado exclusivamente para o aumento da produtividade agropecuria. Comoconseqncia dessas pesquisas, um conjunto de tecnologias que combinava a qumica, a mecnica e o me-lhoramento gentico conformaram um padro tecnolgico que ficou conhecido como Revoluo Verde e foiadotado para modernizar a agricultura. Este padro tecnolgico acabou sendo difundido na maior partedo mundo e adaptado para os pases de clima tropical.

    No Brasil, as polticas agrcolas impostas a partir dos anos 1960 priorizaram a adoo dos pacotes tecnol-gicos da Revoluo Verde, que foram difundidos pela implementao de medidas como o Crdito Rural sub-sidiado; ampliao da assistncia tcnica e extenso rural; e programas de garantia de preo mnimo e de

    seguro agrcola. Estes instrumentos de poltica agrcola, no entanto, atingiram regies e agricultores deforma diferenciada.

    A tabela 1, a seguir, mostra a evoluo dos valores de crditos agrcolas no Brasil, destacando a concentraodos recursos aplicados durante a implementao da poltica de modernizao da agricultura.

    O processo de modernizao da agricultura brasileira priorizou a monocultura das grandes empresas agro-pecurias que produzem visando ao mercado externo em detrimento da agricultura familiar, que seorienta pela produo de alimentos bsicos para o mercado interno.

    38 Mais informaes sobre a Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional (LOSAN ) na dimenso 11 deste texto (p. 188).

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    Algodo 34,410,1 33,8 14,6 7,2

    Amendoim 39,836,5 23,7 - -

    Arroz 21,27,9 40,1 26,1 4,7

    Batata 51,811,4 29,2 7,6 -

    Cacau 47,78,2 41,5 2,4 0,2

    Caf 45,09,3 40,9 4,7 0,1

    Cana 11,01,0 38,2 40,0 9,8

    Cebola 19,074,5 6,5 - -

    Feijo 44,626,4 20,4 7,7 0,9

    Fumo 60,338,1 1,6 - -Laranja 32,94,6 43,3 16,8 2,4

    Mandioca 50,035,0 12,8 2,1 0,1

    Milho 35,98,5 35,8 17,9 1,8

    Soja 23,41,7 39,9 30,9 4,2

    Sisal 53,528,5 18,0 - -

    Tomate 37,130,2 25,2 7,3 0,2

    Trigo 42,92,5 43,7 10,9 -

    Uva 60,829,9 6,3 3,1 -

    Bovinos 19,93,6 39,7 31,3 5,6Sunos 59,421,8 15,9 2,6 0,3

    Frangos 56,923,8 17,7 1,5 0,1

    Leite 47,67,8 39,3 5,1 0,2

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    Contudo, mesmo com a falta de apoio por meio de polticas pblicas, a agricultura familiar responsvelpela maior parte da produo dos alimentos bsicos consumidos no mercado interno. Como mostram osdados do Censo Agropecurio de 1995/96, na tabela 2, grande parte desses alimentos so produzidos empequenas propriedades.

    39 Tabela retirada do livro Comrcio internacional, segurana alimentar e agricultura familiar, ActionAid Brasil, 2001, p. 26.40 Tabela retirada do livro Comrcio internacional, segurana alimentar e agricultura familiar, ActionAid Brasil, 2001, p. 16.

    EVOLUO DOS VALORES DECRDITOS AGRCOLA (SNCR)NO BRASIL (R$ MILHES DE 1999)

    PERODOS/ANOS MILHES DE REAIS

    1969/73 19.487

    1974/78 50.199

    1979/83 53.585

    1984/88 35.059

    1989 25.547

    1990 14.594}

    1991 15.056} 15.4481992 16.694}

    1993 14.337

    1994 20.713

    1995 8.986}

    1996 7.854}

    1997 11.379} 10.101

    1998 12.394}

    Fonte: Jos Garcia Gasques IPEA.

    1999 9.892

    DISTRIBUIO DA PRODUO AGROPECURIAPOR GRUPOS DE REA TOTAL, 1995/96 (EM %)

    PRODUTOS 10.000

    Fonte: Censo Agropecurio de 1995/96; elaborao do autor.

    TABELA 139 TABELA 240

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    A modernizao agrcola trouxe impactos sociais, econmicos, ambientais e culturais que modificaram deforma drstica a realidade brasileira no campo e nas cidades. Este processo acelerou a migrao para os cen-tros urbanos, o que diminuiu consideravelmente a populao rural. Atualmente, podemos constatar queapenas 17% da populao brasileira se encontram nas reas rurais (HEREDIA, et al., 2002). Outra constataoimportante que este processo de migrao foi mais expressivo para as mulheres, que j aparecem comomaioria nas cidades desde o Censo de 1950.

    Outro impacto do processo de modernizao agrcola foi o surgimento do bia-fria trabalhador rural quese ocupa em trabalhos temporrios, quase sempre sem garantia dos direitos trabalhistas. Este deslocamentodos homens para a realizao de trabalhos temporrios em colheitas nas regies de monocultura ocasionou,por sua vez, mudanas nas relaes sociais de gnero. Alm de todas as tarefas de administrao domstica

    educao dos(as) filhos(as), sade, alimentao , as mulheres passaram a ser as nicas responsveis pelapropriedade, tendo que responder, sozinhas, pela produo agrcola e gesto dos recursos financeiros. Aomesmo tempo, a monocultura, ao impor um modelo de produo ligado ao mercado externo, tambmcontribuiu para a perda dos quintais enquanto um espao de produo para autoconsumo e manutenoda biodiversidade.

    Segundo Miriam Nobre (2004), este processo de homogeneizao e massificao das prticas agrcolastem como conseqncia a desvalorizao do quintal, geralmente regido pelas mulheres, enquanto um es-pao de produo. A idia de ordenamento e homogeneidade da agricultura industrial o avesso das pr-ticas das agricultoras como se percebe no discriminatrio dito popular mais bagunado que horta de

    mulher' (NOBRE, 2004).

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    Como consequncia de no serem vistas como produtoras, as atividades de extenso rural raramente en-xergaram as mulheres como sujeitas das polticas agrcolas e acabaram reforando seus papis tradicionais,

    como mes e esposas, responsveis pelas tarefas do lar.Em relao ao meio ambiente, a expanso da agropecuria nos modos da Revoluo Verde intensificou adegradao ambiental, pois avanou sobre as florestas para ampliar as reas de pastagem e monoculturas.No estado da Bahia, no incio da dcada de 70, havia registrado 11 mil km (1,1 milho de hectares) deflorestas intactas. A ao de 230 serrarias junto com as plantaes de cacau fizeram com que em 1980 res-tassem apenas 2 mil km. A utilizao da mecanizao pesada, adubao qumica, agrotxicos e tcnicasde irrigao contriburam para a destruio dos solos, a poluio das guas e o desequilbrio ecolgico(SILVA, 2001).

    Entre 1964 e 1991, o consumo de agrotxicos no Brasil aumentou em 276,2%, frente a um aumento de

    76% da rea plantada. Em 1990, as vendas eram de um bilho de dlares passando para 2,18 bilhes dedlares em 1997. Importante ressaltar que a soja absorve 35% dos gastos totais dos agricultores brasileiroscom agrotxicos, vindo em seguida a cana (SILVA, 2001).

    A partir da Revoluo Verde, adaptar-se s regras de produo e comercializao do mercado externo se tor-nou a prioridade da poltica agrcola brasileira. Como conseqncia desta postura, a agricultura brasileiraatinge hoje patamares de produo e produtividade comparvel com as melhores do mundo, segundo oscritrios estabelecidos internacionalmente. A safra agrcola de gros (feijo, arroz, soja, milho e trigo) atingeo volume de 136 milhes de toneladas, sendo que aproximadamente a metade produo de soja que sedestina ao mercado externo (ACTION AID e REBRIP, 2001).

    A cincia moderna passou a ser utilizada para o melhoramento gentico das plantas e animais, perseguindoo aumento substancial da produtividade. A difuso massiva das sementes modificadas (processo de hibri-dizao e mais recentemente de transgenia) se sobreps aos cultivos e criaes dos(as) agricultores(as)tradicionais. As sementes hbridas so produzidas pelas empresas a partir de sementes conseguidas comos(as) agricultores(as) de vrias partes do mundo. Essas indstrias escolhem sementes com qualidades dife-rentes, realizam cruzamentos entre elas e o resultado so as sementes com forte vigor hbrido. Porm as se-mentes perdem seu vigor medida que so replantadas, obrigando os(as) agricultores(as) a adquiriremsementes novas todos os anos. O fato que estas sementes e matrizes melhoradas geneticamente acabaramsendo patenteadas, deixando os(as) agricultores(as) merc das corporaes que controlam sua produoe distribuio e definem os preos e as condies das safras.

    Dentro do paradigma de modernizao da agricultura, a cultura rural tradicional tem sido tratada comoalgo atrasado que deveria ser superado com a introduo de novas tecnologias. Este paradigma de agricul-tura tem contribudo para a eroso dos valores e das prticas culturais comunitrias relacionadas conser-vao da biodiversidade.

    Em contraposio a este modelo agroalimentar, as comunidades tm utilizado vrias estratgias criativas einovadoras, como a conservao das sementes crioulas. A identificao, o resgate e a reproduo das se-mentes crioulas ao longo das geraes tm garantido a soberania e a segurana alimentar de vrias comu-nidades. Na maioria das vezes, so atividades atribudas s mulheres, consideradas as portadoras de um

    saber sobre a biodiversidade local, pelo papel social e poltico que desempenham no mbito comunitrio.

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    A Revoluo Verde, preconizada como a tbua da salvao para aumento da produo de alimentos econsequentemente a erradicao da fome e da desnutrio, na verdade, acabou acentuando a concentraoda renda, da terra e do poder nas mos de poucos, contribuindo para a ampliao das desigualdades sociais.O modelo baseado na modernizao da agricultura aumentou a excluso social e apresenta hoje um quadrono qual 54 milhes de brasileiros e brasileiras vivem abaixo da linha da pobreza, ou seja, com renda inferiora um dlar por dia (IBGE/PNAD 2004).

    Pesquisas de universidades e de organizaes sociais vm demonstrando que a causa da insegurana alimen-tar e nutricional no Brasil no a produo de alimentos. O problema est nas condies de acesso da po-pulao aos alimentos necessrios para a dieta. Embora o volume de produo e da produtividade daagropecuria tenham aumentado consideravelmente, a forma como se produz, quem produz, onde se pro-duz e para quem se produz colocam em cheque o modelo de desenvolvimento do ponto de vista da segu-rana alimentar. Portanto, alm de considerar o modelo vigente para a produo dos alimentos, necessrio

    analisar as condies do acesso da populao brasileira aos alimentos.

    Dimenso 3: Acesso alimentao

    A primeira forma de acesso alimentao se deu por meio da caa e da coleta de frutas, folhas e razes en-contradas na natureza. No Brasil, na poca da invaso portuguesa, a populao indgena obtinha seus ali-mentos diretamente da natureza e j praticava a agricultura. Tambm j existia uma diferenciao dos papisassumidos por homens e mulheres em relao s prticas para garantir a sobrevivncia da espcie. Os ho-mens saam e circulavam para caar os animais, enquanto as mulheres ficavam fixadas num territrio querepresentava o espao domstico , envolvendo-se na coleta e no preparo dos alimentos.

    Ainda hoje parte significativa da populao brasileira tem acesso aos alimentos mediante atividades de ex-trativismo e principalmente da pesca. Entretanto, a devastao das florestas e a degradao do meio am-biente, sobretudo dos rios e lagos, vm reduzindo de forma drstica as condies de acesso aos alimentospor parte destas comunidades.

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    A autoproduo caracteriza a segunda forma de ter acesso aos alimentos, por meio da prtica agrcola e dacriao de animais. Nesta categoria, a agricultura familiar merece uma ateno especial. Segundo dados doCenso Agropecurio 1995/96, no Brasil, a agricultura familiar corresponde a 85,2% (4.139 mil) do total deestabelecimentos (ACTION AID e REBRIP, 2001).

    O certo que a agricultura familiar produz grande parte dos alimentos consumidos pela prpria famlia,pois a diversificao da produo na propriedade uma estratgia adotada para garantir a segurana ali-mentar e nutricional. Os recursos provenientes da comercializao da produo excedente geralmente sodestinados aquisio de outros produtos necessrios para a sobrevivncia da famlia, sendo que o principalobjetivo garantir a auto-sustentao do ncleo familiar e comunitrio, sem depender do mercado.

    Mesmo sendo muito importante para garantir a segurana alimentar e nutricional da famlia, esta forma deacesso alimentao vem sendo historicamente desprezada pelo modelo agroexportador, que expulsa os(as) tra-balhadores(as) de suas terras na tentativa de expandir a prtica da monocultura e a produo de tipo industrial.

    O contexto atual de autoproduo de alimentos registra ainda um nmero crescente de moradores urbanos quese dedicam s atividades agrcolas, especialmente nos pases menos desenvolvidos. A agricultura praticada dentroou na periferia de diferentes povoados e cidades do mundo uma atividade antiga que envolve o cultivo de plan-tas e a criao de animais; a reciclagem de resduos e gua com fins produtivos; e o processamento e a distri-buio de produtos alimentares e no alimentares. A produo pode ser destinada para o consumo domsticoou pode ser comercializada, gerando renda extra para as famlias e contribuindo na economia domstica.

    No Brasil, apesar das diferenas regionais significativas no grau de urbanizao, existem registros de expe-rincias de agricultura urbana em diferentes cidades, promovidas por ONGs, pelo poder pblico local, almde inmeros grupos comunitrios e famlias que se dedicam agricultura urbana como uma atividade in-formal. Entretanto, estas experincias no esto articuladas entre si e, muitas vezes, no esto caracterizadascomo atividades de agricultura urbana, encontrando-se em projetos temticos especficos, como hortas co-

    munitrias, gerao de trabalho e renda, sade comunitria, reaproveitamento do lixo, dentre outros.

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    A terceira forma de ter acesso ao alimento mediante a atividade de trabalho e, conseqentemente, a ge-rao de renda. As transformaes ocorridas na relao trabalho/capital nos ltimos anos tiveram um im-pacto na gerao e ocupao de trabalho, sobretudo nas condies legais, pois houve um aumento naflexibilizao e precarizao dos empregos.

    41 O valor oficial do salrio mnimo em dezembro de 2005 era de R$ 300,00.

    Analisando estes fatos com o olhar de gnero, podemos ob-servar vrias contradies. Na poca da globalizao, a liberali-zao do comrcio e a intensificao da concorrncia internacionalteve como conseqncia o aumento da participao das mu-lheres no mercado de trabalho. Porm, ao mesmo tempo, vemse ampliando a insero das mulheres no setor informal, sem

    mnimas condies trabalhistas que possam garantir uma segu-rana na atividade e sem modificaes significativas na divisodo trabalho domstico (HIRATA,2003).

    Mesmo no caso dos empregos formais, a remunerao de umsalrio mnimo 41 recebida por grande parte da populao bra-sileira insuficiente para garantir o acesso aos alimentos e ou-tras necessidades bsicas do(a) trabalhador(a) e sua famlia.

    O modelo de agricultura para exportao chamado de agro-

    negcio vem contribuindo para a precariedade das condiesde trabalho e renda das(dos) trabalhadoras(es) rurais. Asgrandes empresas controlam tanto a cadeia produtiva quanto acomercializao dos produtos, reforando um ciclo de depen-dncia no qual as empresas ficam com o lucro e as(os) peque-nas(os) agricultoras(es) tm que se responsabilizar por qualquerperda nas safras. Enquanto o agronegcio no valoriza a mo-de-obra e refora as desigualdades na distribuio de renda , aagricultura familiar e camponesa d valor ao esforo das pessoasenvolvidas nas prticas agrcolas e no agrcolas. A monocul-tura de soja emprega pouca mo-de-obra: 10 trabalhadores(4 fixos e 6 temporrios) para cada 1.000 hectares. A agriculturacamponesa e familiar emprega 10 pessoas a cada 50-100 hectares(HIRATA, 2003).

    Impossibilitadas de terem acesso alimentao mediante as formas anteriormente apresentadas, as pessoaspodem ter garantido o direito alimentao por meio do apoio da rede de proteo social estruturada pelaspolticas pblicas governamentais e pelas aes pblicas da sociedade civil.

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    Os motivos que levam instituies e organizaes do governo e da sociedade civil a viabilizarem a alimentaode pessoas e grupos populacionais vulnerveis so os mais diversos possveis. Estas organizaes podem sermotivadas pelas aes de solidariedade, fraternidade, caridade e humanismo, como tambm por determi-nao de uma norma legal que obriga o Estado a garantir o acesso aos alimentos da populao necessitada.

    Em 1993, a luta dos movimentos sociais garantiu a promulgao da Lei Orgnica de Assistncia Social (LOAS)que possui mecanismos que garantem a realizao do direito assistncia social. A LOAS vem contribuindosignificativamente para a reduo da distribuio de benefcios de forma assistencialista e clientelista porparte de polticos que, muitas vezes, utilizam recursos pblicos para esta finalidade.

    Governos, nos diferentes nveis, implementam diversos programas e aes que procuram garantir populaoo acesso alimentao. Estes programas, no entanto, atendem separadamente aos segmentos mais vulnerveisda populao, sem contemplar, na maioria das vezes, a integrao entre as aes. Outra limitao destes pro-

    gramas est relacionada s particularidades culturais dos grupos atendidos. Muitas vezes, os alimentos sodistribudos de forma generalizada sem considerar os hbitos e as tradies de cada comunidade ou grupo.

    Quando no consideram os processos organizativos nos quais as pessoas esto inseridas em suas comuni-dades, estes programas e aes podem levar ao ciclo vicioso do assistencialismo. Um dilogo com as comu-nidades antes de implementar os programas permitiria construir alternativas duradouras para garantir asegurana alimentar e nutricional e especficas para cada realidade. Desta forma, os programas governamen-tais no seriam apresentados como a soluo dos problemas sociais das comunidades e evitariam a relaode dependncia que s vezes criada entre as populaes carentes e o Governo.

    Dimenso 4: Abastecimento alimentar

    Tendo em vista que hoje a maior parte da populao vive nas cidades, muitas delas consideradas metr-poles, necessrio criar uma rede de distribuio de alimentos que possa garantir o abastecimento urbano.Neste sentido, fundamental definir uma estratgia que viabilize o acesso aos alimentos por parte da po-

    pulao em vrios mbitos: na comunidade, no municpio, no estado ou no pas.

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    Por meio da realizao de um planejamento, preciso controlar a produo, o estoque e a distribuio, vi-sando regulao dos preos dos alimentos no mercado. O Brasil, nas dcadas de 1970 e 80, teve uma po-ltica nacional, chamada Poltica de Garantia de Preos Mnimos (PGPM), que conseguia, de certa forma,garantir estabilidade no abastecimento do mercado interno. Com a poltica neoliberal de privatizao e des-monte do Estado iniciada na Era Collor, os programas de abastecimento alimentar praticamente deixaramde existir. Os estoques reguladores de alimentos existentes nos armazns oficiais praticamente se reduzirama zero. Com isto, a regulao de preos no mercado ficou extremamente vulnervel a qualquer quebra ve-rificada na produo. A variao nos preos dos produtos agroalimentcios oscilava significativamente, in-viabilizando sua aquisio por parte da populao, que ficou merc da falta de alimentos nas prateleirasdos mercados e das feiras. Muitas vezes, por ficar refm ao fluxo do mercado externo, o governo no en-contra outra soluo seno importar alimentos da cesta bsica para garantir o abastecimento interno, comoaconteceu com a importao de arroz do Vietn.

    A construo de uma Poltica Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAA) fundamental para garantir o abas-tecimento regular de alimentos para toda a populao. Estratgias de abastecimento alimentar no mbito localtambm devem ser desenvolvidas, com o objetivo de garantir que as comunidades tenham acesso aos alimentosde forma permanente. Portanto necessrio apoiar a criao de feiras livres e outras formas de distribuio dealimentos que democratizem o acesso, evitando o monoplio de poucas empresas do setor de comrcio.

    Dimenso 5: Relaes sociais de gnero

    Vivemos em uma sociedade em que existe historicamente uma distribuio desigual de recursos e poderentre homens e mulheres. Segundo dados da II Conferncia da ONU sobre a Mulher, realizada em Copenhagenem 1980, no mundo, as mulheres so responsveis por 2/3 do trabalho realizado pela humanidade, rece-bem 1/3 dos salrios e so proprietrias de 1% dos bens imveis. Dos quase 1,3 bilhes de miserveis domundo, 70% so mulheres (LUZ, 2002, p. 62).

    Se as mulheres detm menos renda e propriedades, podemos inferir que estaro mais sujeitas insegurana ali-mentar do que os homens. Estudos mostram que, em grande parte dos pases, as mulheres e as crianas so asmais afetadas pela insegurana alimentar e por problemas nutricionais, tais como m nutrio e obesidade. Emcasos de escassez de alimentos, a comida vai primeiro para os homens e filhos(as), porque as mulheres apren-deram que devem sempre cuidar dos outros e assegurar, em primeiro lugar, a sobrevivncia do ncleo familiar.

    Apesar de as mulheres do campo produzirem entre 60% e 80% dos alimentos em pases em desenvolvimento,elas so proprietrias de menos de 2% da terra (FAO, 2004). O acesso terra condicionado aos membros mas-culinos da famlia, o que dificulta o acesso das mulheres a outros direitos, como o direito ao crdito e assistnciatcnica. De acordo com o Primeiro Censo de Reforma Agrria, de 1996, somente 19.905 mulheres foram be-neficiadas diretamente pela reforma agrria, representando 12,6% do total nacional de 157.757. Apesar dareforma constitucional de 1988 e, posteriormente, da Portaria n 981/2003 do Instituto Nacional de Coloni-zao e Reforma Agrria (INCRA), representando um instrumento legal para a titulao conjunta da terra, osavanos ainda so poucos. Percebe-se que o INCRA, como instituio pblica, continua a mostrar prefernciapela titulao de um filho (mesmo que legalmente seja menor de idade) do que a titulao de uma mulher chefede famlia. Em casos de separao, na prtica, a maior parte das mulheres ficam somente com a casa, pri-

    vando-as assim do seu acesso terra e da continuidade do seu trabalho como agricultoras (DEERE, 2004).

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    No contexto da globalizao, que demonstra uma aposta cada vez maior no mercado em detrimento dasquestes sociais, as mulheres tm sido extremamente afetadas pelos acordos comerciais em vigncia. Estesacordos, promovidos por organismos internacionais como a OMC, tm tido como conseqncias negativasa eroso das prticas da agricultura familiar, visando ao apoio indiscriminado agricultura comercial e venda massiva de alimentos pelos grandes supermercados. Atualmente, os 10 maiores supermercadoscontrolam 24% do mercado mundial. Estes supermercados, que hoje se tornaram transnacionais, geralmentereforam um padro de diviso internacional do trabalho no qual aos pases do sul cabe a produo que de-pende do uso intensivo de recursos naturais e aproveita de uma fora de trabalho representada principal-mente pelas mulheres.

    No mbito das polticas neoliberais que cada vez mais do prioridade aos interesses econmicos , o fatode a mulher ser responsabilizada pela reproduo social das comunidades e pelo bem-estar coletivo repre-senta uma forma de suprir as lacunas existentes nos programas e polticas sociais.

    As tarefas desempenhadas pelas mulheres para promoo da SAN no entram nos clculos da economia for-mal pelo fato de no serem remuneradas e serem consideradas uma mera extenso do papel social dasmulheres. Podemos considerar estas tarefas como peas que fazem parte de outro sistema de economia, cha-mado por algumas feministas de economia de cuidado, no qual se relega ao plano da invisibilidade os tra-balhos que no tm valor monetrio. Portanto preciso reconhecer os outros valores alm do valormonetrio das contribuies das mulheres, dando visibilidade a seus aportes na manuteno da biodi-versidade, na preservao das tradies culturais, nas prticas agroecolgicas e assim por diante.

    Nos ltimos anos no Brasil, temos visto a ampliao do acesso das mulheres a vrias formas de crdito go-

    vernamental, dando valor ao seu envolvimento tanto em atividades agrcolas quanto em atividades consi-deradas no agrcolas. O PRONAF Mulher, por exemplo, uma linha de crdito especial para as trabalhadorasrurais criada pelo Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, foi uma conquista dos movimentos de mulheres,mas, na prtica, apresenta vrias limitaes. Dentre estas limitaes, podemos citar as dificuldades que osgrupos de mulheres experimentam ao transformar seus desejos e interesses na linguagem exigida pelos pro-jetos e na necessidade de se adaptarem ao conjunto de critrios e regras impostos pelos bancos. As mulheresso consideradas boas pagadoras pelas instituies financeiras, mas so os homens (maridos ou filhos) quemgeralmente contraem as dvidas no mbito familiar. Na maior parte dos casos, as mulheres no tomamconhecimento das dvidas nem exercem controle sobre o endividamento da famlia, um fato que acaba di-ficultando seu acesso ao crdito.

    Um dos desafios dos movimentos sociais dar visibilidade ao papel da mulher sem cristaliz-lo como funoexclusivamente feminina. Devemos proporcionar uma reflexo crtica sobre a crena enraizada socialmentee apresentada como verdade absoluta que coloca a mulher como responsvel por suprir as necessidadesalimentares e nutricionais de sua famlia e comunidade. Precisamos buscar estratgias para que as tarefasentre as pessoas de ambos os sexos se complementem e para que a carga maior no recaia sobre a mulher,demonstrando assim que a melhoria da sade e da segurana alimentar nos mbitos familiar e comunitriodepende dos dois.

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    O primeiro passo neste sentido explicitar os papis desempenhados por homens e mulheres no campo dasegurana alimentar e nutricional, mostrando o nvel de envolvimento de cada pessoa e as dinmicas depoder existentes entre ambos os sexos. Enquanto os homens lidam mais com o transporte, o armazenamentoe a comercializao dos alimentos, as mulheres participam mais da compra, busca da gua e da lenha, pre-paro dos alimentos, criao de pequenos animais e cuidado com o lixo. Por um lado, as mulheres possuemum grande conhecimento sobre os diversos usos das plantas para a nutrio e a sade e se responsabilizampela troca de sementes, preparo de receitas culinrias e remdios caseiros. Por outro lado, so os homensque geralmente se encarregam de coletar algumas plantas e alimentos na periferia dos centros urbanos ouno campo e, por isso, eles detm bastante conhecimento sobre esse ambiente externo e as diferentes pai-sagens que o compe.

    Mesmo sendo vista como uma tarefa masculina, a produo de alimentos um terreno no qual tanto os ho-mens quanto as mulheres assumem tarefas significativas, cada um com sua especificidade. No campo da pro-

    duo, existe uma crena de que as mulheres tm mais habilidade para tarefas consideradas leves porexerc-las com mais gentileza, cuidado e delicadeza. No processo de produo de caf, por exemplo, asmulheres se envolvem mais na coleta e na secagem tarefas consideradas leves , enquanto os homens seenvolvem mais nas etapas de beneficiamento e comercializao. Esta dicotomia entre trabalhos pesadose trabalhos leves uma conseqncia da diviso sexual de trabalho, o que, de fato, refora as relaes so-ciais desiguais.

    Atividades como a secagem de caf, geralmente, acontecem no mbito domstico e so extremamente im-portantes para garantir uma boa qualidade do caf. Entretanto as aes de capacitao em torno da pro-duo de caf promovidas por organizaes sociais, muitas vezes, no incentivam a participao das

    mulheres e, como conseqncia, contribuem para uma maior invisibilidade das mulheres nos sistemasprodutivos.

    Nas comunidades urbanas, as mulheres desempenham um papel bem ativo na produo dos alimentos,pois, na maior parte das vezes, dentro do mbito familiar e comunitrio, so elas que assumem a maior res-ponsabilidade nas hortas e quintais. comum os homens comearem a se envolver neste trabalho de agri-cultura urbana no momento em que os produtos vo para o plano da comercializao e h lucros a partirda venda dos mesmos em feiras e armazns. Muitas vezes, acontece uma diviso de tarefas nesta hora quepode reforar as desigualdades sociais de gnero, pois quem cuida da plantao e da colheita, geralmente,so as mulheres, mas quem cuida da venda dos produtos so principalmente os homens. Esta diviso podereforar a centralizao dos recursos na mo dos homens e a invisibilidade da contribuio que as mulheres

    do no dia-a-dia para sustentar a prtica de agricultura urbana, de forma voluntria.

    Percebe-se, ento, que ambos os sexos aportam contribuies no campo da segurana alimentar e nutricional,mas as contribuies das mulheres, muitas vezes, so subestimadas ou ficam no plano da invisibilidade. Nocontexto das organizaes sociais, devemos evitar cair na armadilha de acreditar que a transformao real dasrelaes sociais de gnero se dar simplesmente por uma medida simples, como o atendimento das necessidadesprticas e imediatas das mulheres. Nossa misso, de fato, incentivar uma anlise coletiva sobre o processo deescolha destas determinaes (trabalhos de mulheres x trabalhos de homens) e construir projetos e pro-gramas de segurana alimentar e nutricional que considerem os interesses e habilidades de homens e mulherese busquem formas de viabilizar transformaes estratgicas e duradouras nas relaes sociais de gnero.

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    Dimenso 6: Qualidade dos alimentos e nutrio

    De acordo com o Prof. Camilo Silva (2005), estamos passando por um processo de transio alimentar, o quesignifica modificaes ocorridas principalmente no mbito da disponibilidade de alimentos e na dieta daspopulaes (SILVA, C. A., 2005, p. 21). Segundo a Pesquisa de Oramento Familiar (2002-2003),

    a tendncia de evoluo dos padres de consumo alimentar nas ltimas trs dcadas, passvel de estudo apenas

    nas reas metropolitanas do Pas, indica persistncia de um teor excessivo de acar na dieta e aumento no aporte

    relativo de gorduras em geral e de gorduras saturadas, no evidenciando qualquer tendncia de superao dos

    nveis insuficientes de consumo de frutas e hortalias. Nota-se ainda que alimentos tradicionais na dieta do brasi-

    leiro, como o arroz e o feijo, perdem importncia no perodo, enquanto o consumo de produtos industrializados,

    como biscoitos e refrigerantes, aumenta em 400% (SILVA, C. A., 2005, p. 22).

    Estudos demonstram que a m nutrio traz conseqncias negativas para a sade, como problemas car-diovasculares, diabetes, obesidade e presso alta. Nas ltimas trs dcadas, houve um aumento significativono ndice de doenas crnicas no transmissveis na populao brasileira doenas que antes eram comunssomente nos pases mais industrializados. Para ter sade, necessrio, portanto, uma alimentao saudvele adequada.

    O alimento, para ser saudvel, tem que ser trabalhado em suas vrias dimenses. Durante a produo, por

    exemplo, deve-se evitar tcnicas que utilizam substncias txicas e deve-se observar os padres tecnolgicosusados no preparo do solo, na seleo das sementes, nos tratos culturais, na colheita, no armazenamento,no beneficiamento e no preparo dos alimentos. Segundo Joseley Dures (2002), os agrotxicos e os aditivosalimentares, usados de forma indiscriminada, e, mais recentemente os alimentos transgnicos, podem afetaro valor nutricional do alimento e prejudicar o seu potencial de promoo da sade.

    Um princpio a ser seguido para praticar uma alimentao saudvel manter o consumo equilibrado dos v-rios grupos de alimentos. Os alimentos so agrupados segundo os nutrientes que possuem e cada grupo dealimentos tem nutrientes que o corpo precisa. Para evitar problemas, importante no exagerar no consumode um grupo em detrimento dos outros e incentivar, com trabalhos de reeducao alimentar, a valorizao

    da biodiversidade alimentar.

    Para proteger a sade dos(as) consumidores(as), a sociedade dispe de normas e regulamentos. Cabe aosrgos pblicos fiscalizar todo o processo de beneficiamento, transporte e comercializao dos alimentos.Para tanto, estes rgos devem realizar a inspeo sanitria para garantir que os alimentos esto sendo pro-duzidos segundo as boas prticas de fabricao e que no venham a causar doenas nos(as) consumidores (as).Aliado ao servio de vigilncia sanitria, fundamental investir na educao sanitria, porque a maior partedos casos de intoxicao alimentar possuem origem no prprio domiclio.

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    Dimenso 7: Educao alimentar

    A educao alimentar comea em casa. No ambiente familiar, inicia-se o processo educativo relacionado alimentao, no qual as mulheres so as protagonistas, uma vez que elas herdaram a tarefa de cuidar tantoda alimentao da famlia quanto da orientao e educao das crianas. Quando pensamos em realizar umtrabalho de educao alimentar, um dos primeiros passos analisar o fluxo dos alimentos no mbito familiare os papis exercidos pelos homens e pelas mulheres neste processo.

    A educao alimentar continua na escola. A alimentao esco-lar, definida pelo Programa Nacional de Alimentao Escolar(PNAE), procura, pelo fornecimento de refeies dirias, suprir

    parte das necessidades alimentares dos estudantes, ao mesmotempo em que procura educ-los para a construo de hbitosalimentares saudveis.

    No entanto contradies a este processo educativo so encontra-das em grande parte das escolas, quando estas oferecem, em suascantinas, alimentos considerados pouco saudveis, como refrige-rantes, salgados fritos, cachorro-quente etc. Esta atitude estimulao consumo sem maior controle, o que pode trazer problemas deobesidade ou outras doenas ligadas alimentao.

    A educao alimentar tambm acontece em trabalhos de or-ganizao comunitria realizados nos espaos informais porgrupos de base, pastorais e ONGs. Nestes trabalhos, estas orga-nizaes utilizam mtodos de educao popular para trocar in-formaes sobre prticas alimentares, buscando complementaro conhecimento popular com o conhecimento terico.

    Quando as organizaes constroem um processo educativo no campo da alimentao, precisam consideraralguns aspectos sociais e culturais que interferem nos hbitos alimentares das pessoas e na construo dossignificados do alimento para cada comunidade. A aquisio dos alimentos dentro e fora de casa, sua conser-vao, seu preparo e o consumo dos mesmos so influenciados por fatores que vo desde o saber passado

    e preservado de gerao para gerao at as mensagens transmitidas pelos meios de comunicao. A faltade controle e regulamentao da propaganda de alimentos industrializados por meio da mdia dificultamuito o sucesso de processos educativos para uma alimentao saudvel e adequada.

    Em qualquer projeto no campo da alimentao, importante evitar a imposio de regras sobre a nutrio hu-mana e buscar um maior conhecimento da realidade local e das tradies alimentares da comunidade. Muitasvezes, um prato pode ser considerado saudvel, ou seja, pode encaixar nos critrios nutricionais, fornecendotodos os carboidratos, protenas, vitaminas e sais minerais necessrios ao desenvolvimento pleno do corpo eda mente. Porm, esta alimentao pode ser inadequada para um determinado grupo devido sua cultura ali-mentar, fruto de um processo de construo histrica. As escolhas alimentares no so feitas simplesmenteporque tal alimento mais nutritivo ou mais acessvel por causa da produo massificada. A cultura, em um

    sentido mais amplo, determina as escolhas feitas sobre o alimento, delimitando o que se deve comer.

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    Dimenso 8: Cultura alimentar

    A alimentao, como uma necessidade bsica e vital, necessariamente modelada pela cultura e pela orga-nizao da sociedade, sendo, portanto, indispensvel uma abordagem multidisciplinar quando se trata destetema. H muito tempo, os(as) antroplogos(as) afirmam que o comer envolve seleo, escolhas, ocasiese rituais, imbrica-se com a sociabilidade, com idias e significados, com as interpretaes de experincias esituaes (CANESQUI e GARCIA, 2005, p. 9). Portanto importante levar em conta, quando discutimos acultura alimentar, os condicionantes relativos aos hbitos, tradies, costumes e dinmicas da vida e do tra-balho de cada grupo social.

    O gosto do ser humano pelas substncias no inato, pois alimentos se inserem no sistema cultural comoportadores de significados. Ao olharmos para um alimento, sentirmos o seu cheiro ou o seu sabor, pode serdesencadeada uma sensao no nosso corpo que nos faz apegar ou rejeitar o alimento, podendo atingir o

    nvel orgnico do nosso ser.

    O gosto ou o cheiro de um alimento, por exemplo, pode nos remeter a momentos importantes de nossa vida,preservados em nossa memria, como festas, datas comemorativas, experincias vividas em nossa infncia etc.Quando comemos um alimento que nos faz lembrar de bons momentos que vivemos, como se estivssemos,de certa forma, retornando ao passado, o que demonstra a estreita relao que h entre comida e tempo.

    Os hbitos alimentares so construdos na trama das relaes sociais. Neste sentido, pode-se observar queas relaes de amizade na sociedade brasileira so permeadas por trocas de alimentos, assim como as rela-es de vizinhana, que quase sempre se caracterizaram por troca de comidas e novas receitas.

    Os hbitos alimentares tambm so considerados importantes marcadores das diferenas entre os pobres eos ricos. Na culinria brasileira, a importncia da fartura muito disseminada. Toda famlia deseja umamesa com grande diversidade de alimentos. Porm no se pode negar a influncia dos padres alimentaresimpostos pelos pases industrializados, que vm disseminando, principalmente nas cidades, uma idia de quecomida leve e natural mais chique e um privilgio das classes com mais recursos financeiros. Por outrolado, as classes mais pobres, pelas condies de trabalho, exigem uma alimentao mais pesada, rica emcarboidratos.

    Para as classes menos favorecidas, existe uma estreita ligao no imaginrio entre o trabalho e a qualidadeda comida consumida. A comida ganha valor medida que ela d sustento ao corpo, permitindo trabalhar

    de forma mais produtiva. Portanto, mesmo que a idia da mesa farta e da alimentao diversificada seja umprincpio da culinria brasileira, sobre esta mesa, as comidas mais pesadas contm maior relevncia. As ver-duras, os legumes e as frutas aparecem sempre como alimentos que servem para tapear e, freqente-mente, vm na forma diminutiva saladinhas, verdurinhas, coisinhas que no d ou no satisfaz.

    No contexto de muitas comunidades tradicionais existe uma estreita ligao entre alimentao e sade. Ossistemas classificatrios alimentares comportam um conjunto de princpios ordenados que conduzem sconcepes particulares de sade e doena nos diferentes grupos sociais e relao entre a alimentao eo organismo humano (CANESQUI e GARCIA, 2005, p. 18). A educao sanitria etnocntrica, apoiada naracionalidade do modelo mdico-sanitrio dominante, historicamente tem desconsiderado os saberes e pro-cedimentos tradicionais de cura e tem tido a tendncia de impor normas consideradas benficas para a po-

    pulao, dentro do guarda-chuva da alimentao saudvel como se fosse uma receita universal.

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    As corporaes sediadas em pases desenvolvidos construram estratgias de comercializao no mercadointernacional com o objetivo de impor suas mercadorias em detrimento ao consumo dos alimentos produ-zidos internamente nos pases em desenvolvimento.

    O processo que vivenciamos hoje, na poca da globalizao, de massificao de alimentos industrializados,produzidos e disseminados por empresas e corporaes, tem tido uma interferncia negativa na preservaoda cultura alimentar dos povos. Nos anos que sucederam Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os Es-tados Unidos implementaram um plano de ao buscando ampliar seu mercado. Com este objetivo, foramexecutados programas de distribuio de alimentos em vrios pases do mundo, procurando criar novos h-bitos alimentares nas populaes. O trigo, em especial, foi um dos alimentos distribudo massivamente nospases pobres, substituindo alimentos locais e tradicionais, como mandioca e milho.

    O crescente sucesso das cadeias alimentares de fast foodest extremamente ligado estratgia de publici-

    dade alimentar utilizada por estas empresas, que, via imagens, transmitiram novas representaes sobre avida moderna. A mdia, sem dvida, consegue interferir na construo de nossa conscincia de tal forma que,inconscientemente, faz-nos sentirmos cmplices com as sutis manifestaes do poder poltico, econmicoe cultural.

    Um exemplo o poder que a Coca-Cola exerce sobre o inconsciente coletivo, como um smbolo de status,sucesso e popularidade. A mdia foi to eficiente financiada logicamente pelas grandes transnacionais que conseguiu transmitir a idia de que Coca-Cola nosso bilhete para chegar at a terra prometida ouo cu. O fato de a Coca-Cola j estar presente no mundo inteiro parte do seu sucesso, pois traz com elea idia da abertura s diferentes nacionalidades, demonstrando uma habilidade mgica de atravessar fron-teiras culturais na poca da globalizao. Desta forma, o produto disfara bem a sua prpria origem e sua

    ligao com o processo de imperialismo ou colonizao cultural. A Coca-Cola est to enraizada no hbitoalimentar que, para muitos, j se tornou um vcio, como podemos perceber na frase frequentemente ditapelas pessoas: eu largo tudo, menos a Coca-Cola.

    No livro O Nome da Marca, a autora Isleide Arruda Fontenelle analisa o fenmeno que ela chama de capi-talismo de imagens a partir de um estudo sobre a cadeia de restaurantes McDonalds. Segundo Fontenelle(2002), as imagens que hoje se mostram pretendem ser consumidas, no sendo mais, portanto, objetosde contemplao e reflexo (FONTENELLE, 2002, p. 20). No seu ponto de vista, preciso inserir o impriodas imagens no interior de um amplo questionamento crtico sobre a mercantilizao da cultura nos diasatuais. As imagens e as marcas, sinais gritantes de um consumismo alienante, refletem um capitalismo

    emergente, centrado na produo e no consumo em massa, e que nos faz questionar: por que a sociedadecontempornea precisa tanto desta iluso de forma?

    Dimenso 9: Soberania Alimentar

    O controle do sistema agroalimentar por parte das corporaes transnacionais vem se intensificando nas l-timas dcadas com o processo de globalizao da economia. Este controle ocorre em toda a cadeia do sis-tema, desde a produo de sementes at a comercializao dos alimentos pelas grandes cadeias de

    supermercados.

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    Os organismos geneticamente modificados, como os transgnicos, vm sendo utilizados na nova es-tratgia tecnolgica das corporaes transnacionais para manterem o domnio e controle da produode alimentos e remdios no mundo.

    Para entendermos os transgnicos, devemos conhecer um pouco mais sobre a engenharia gentica,uma biotecnologia (tecnologia aplicada biologia) que manipula os genes. Por sua vez, os genes sopedaos de uma molcula chamada DNA que fica no interior das clulas. no DNA, mais precisa-

    mente nos genes, que est guardado o segredo da vida das plantas, dos animais e dos seres humanos.O conjunto de genes de cada ser vivo chamado de genoma.

    Quando vamos fazer um bolo seguimos uma receita. Para cada tipo de bolo existe uma receita diferente,com ingredientes diferentes. Se mudamos um ingrediente na receita, todas as vezes que a gente seguiressa receita o bolo vai sair diferente. O mesmo acontece com os seres vivos. Cada espcie possui umareceita nica, que o seu genoma. Quando acrescentamos nessa receita um novo ingrediente (que cor-responde ao novo gene), estamos mudando a receita de uma espcie. E todos os organismos que nas-cerem depois dessa mudana sero diferentes.

    Os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) so criados pela manipulao gentica, ou seja,quando mexemos na receita de uma espcie. Isso pode ser feito de vrias formas: adicionando, des-truindo, substituindo ou desativando alguns genes.

    Os transgnicos so OGMs que resultam da adio de um gene estrangeiro (animal ou vegetal) ao ge-noma de outro ser vivo. O objetivo fazer com que o organismo manifeste uma caracterstica nova oudiferente por causa desse gene que ele recebeu.

    Por exemplo, a adio de um gene da bactria Agrobacterium ao genoma da soja fez com que essaplanta ficasse resistente ao herbicida RoundUp Ready.

    Segundo dados da Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO), entre 1980 e2001, as cinco maiores cadeias de supermercado do mundo todas sediadas na Europa e nos EstadosUnidos expandiram o nmero de pases nos quais tinham operaes em pelo menos 270%. Este cresci-mento e esta concentrao dos supermercados no mundo impactam tanto as(os) agricultoras(es) que tmque se adaptar s exigncias do mercado quanto as(os) consumidoras(es), que se vem obrigadas(os) aconsumirem alimentos industrializados e padronizados.

    Os acordos tratados na Organizao Mundial do Comrcio (OMC), controlada pelos pases mais industriali-zados, impem regras sempre desfavorveis aos agricultores e agricultoras dos pases em desenvolvimento.Os subsdios concedidos aos(s) agricultores(as) dos pases ricos os(as) favorecem no processo de comercia-lizao internacional, trazendo grandes prejuzos aos(s) agricultores(as) dos pases pobres. A ao das cor-poraes transnacionais e sua influncia nos organismos internacionais multilaterais vm subordinando osinteresses das populaes dos pases em desenvolvimento, alm de impor aos pases legislaes no sentido

    de controlar todo o processo produtivo. Exemplos dessa imposio aconteceram no Brasil com a aprovaoda Lei de Patentes (em 1992), da Lei de Cultivares (em 1994) e da Lei dos Transgnicos (em 2005).

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    Movimentos de camponeses(as) e consumidores(as) de vrios pases vm se mobilizando para lutar de formaarticulada contra o abuso das corporaes transnacionais. O alvo desta luta tem sido os tratados e convenesaprovados pela Organizao Mundial de Comrcio (OMC). Para estes movimentos, alimento no deve ser vistocomo mercadoria; portanto a palavra de ordem alimento fora da OMC.

    Outra questo que ameaa a soberania alimentar e a prpria vida do planeta se refere ao uso da gua. A guase tornou um recurso cada vez mais ameaado pelo domnio das corporaes, que monopolizam sua extrao,envasamento e comercializao, inviabilizando, assim, o acesso da populao a este alimento fundamental

    para a sobrevivncia. Neste sentido, os movimentos sociais tm lutado cada vez mais para mostrar que a gua um bem pblico e no uma mercadoria. Estes movimentos consideram que a soberania alimentar o direitoque cada nao possui de manter e desenvolver sua prpria capacidade para produzir os alimentos bsicosdos povos, respeitando a diversidade produtiva e cultural.

    Alm de contrapor ao modelo agroalimentar dominante, movimentos como a Via Campesina tambm estoapresentando alternativas viveis na construo de um novo padro de desenvolvimento que visa a susten-tabilidade social, econmica e ambiental. Estas alternativas pretendem dar visibilidade ao modelo de agri-cultura sustentvel, baseada nos princpios agroecolgicos e praticada por pequenas(os) produtoras(es) nomundo inteiro que defendem os direitos de propriedade intelectual de comunidades agrcolas tradicionais

    sobre seus produtos.

    Qual a novidade dos transgnicos?

    Podemos dizer que, h milnios, a humanidade vem utilizando a biotecnologia para garantir a sua so-brevivncia. As civilizaes mais antigas inventaram a agricultura, aprenderam a selecionar animais eplantas e a fabricar po, vinho, cerveja etc. Isso aconteceu a partir de um processo paciente de obser-vao, experimentao, erros e acertos e seleo dos que eram considerados melhores. At ento, amanipulao ocorria entre organismos de uma mesma espcie.

    A novidade (e o perigo) dos transgnicos que eles promovem a quebra das fronteiras entre as espcies,da qual no conhecemos as conseqncias. A nova caracterstica de um organismo, conferida pela adi-o de um gene de outro ser vivo, ser transmitida aos seus descendentes. Atravs da transferncia degenes entre espcies diferentes, qualquer ser vivo pode adquirir novas caractersticas de vegetais, de ani-mais ou de humanos.

    A engenharia gentica gera coisas novas e desconhecidas pela humanidade. Por isso so necessriaspesquisas que comprovem se esses produtos podem fazer algum mal para o ser humano, pois noexistem estudos que mostram qual ser o verdadeiro impacto dos transgnicos no meio ambiente e nasade humana.

    Para se ter uma idia, os prprios cientistas se dividem em contra e a favor dos transgnicos. Como diza Dra. Ftima Oliveira (2001): Se h cientistas pr e contra os transgnicos, devemos, no mnimo, termedo. Como ter segurana sobre algo que nem os cientistas sabem?

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    Dimenso 10: Sustentabilidade do sistema agroalimentar

    As vrias dimenses do conceito de segurana alimentar e nutricional formam a base do sistema agroalimen-tar de um povo ou de uma nao. A realizao das propostas contempladas em cada dimenso, no entanto,deve apresentar indicadores para a sustentabilidade social, econmica e ambiental das geraes futuras.

    Entende-se por sustentabilidade os vrios valores que sustentam uma sociedade. Estes valores se referem aosseguintes aspectos (SILVA, C. E., 2005):

    a) Social: valores da eqidade (classes, raas/etnias, gneros), da justia, da solidariedade;b) Econmico: valores do trabalho, da distribuio, da cooperao, da incluso;c) Ambiental: valores do pertencimento natureza, da integrao com os ecossistemas, do respeito aoslimites naturais;

    d) Cultural: valores da diferena, da diversidade, da troca, do dilogo de saberes; ee) Poltico: valores da democracia participativa, da autonomia, da autogesto.

    Dimenso 11: Polticas pblicas de SAN

    A realizao do direito alimentao e nutrio se faz mediante a adoo e implementao de polticas p-blicas. Para tanto, indispensvel a aprovao de uma lei que institua um sistema de segurana alimentare nutricional nos trs nveis de governo (municipal, estadual e federal). O sistema de SAN deve definir dire-trizes e prioridades da poltica, bem como garantir sua implementao mediante condies efetivas de infra-estrutura, recursos humanos e oramento que permitam a exigibilidade do direito.

    No Brasil, a II Conferncia Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional, realizada em maro de 2004 nacidade de Olinda (PE), recomendou a elaborao e aprovao de uma Lei Orgnica de Segurana Alimentare Nutricional (LOSAN) que garanta a implementao do direito segurana alimentar e nutricional paratoda a populao. Minas Gerais foi o primeiro estado a aprovar uma lei orgnica, instituindo um sistemacomposto por vrios instrumentos, como:

    a) Conferncia Estadual de Segurana Alimentar e Nutricional;b) Plano Estadual de Segurana Alimentar e Nutricional;c) Conselho Estadual de Segurana Alimentar e Nutricional (CONSEA); e

    d) Coordenadoria Geral de Segurana Alimentar e Nutricional.

    Compete Conferncia, com ampla participao de representantes da sociedade civil, aprovar as diretrizese as prioridades para o Plano Estadual de SAN.

    O Plano Estadual de SAN dever conter estratgias, aes e metas a serem implementadas; indicar fontesoramentrias e recursos administrativos a serem alocados; criar condies efetivas de infra-estrutura e re-cursos humanos; definir e estabelecer formas de monitoramento mediante a identificao e o acompanha-mento de indicadores de vigilncia alimentar e nutricional.

    O CONSEA-MG um rgo colegiado de interao do Governo do Estado com a Sociedade, composto por 13

    Secretarias de Estado, um representante da Assemblia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 26 representantes

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    ObjetivoDeliberar, propor e monitorar aes e polticas de segurana alimentar e nutricional sustentvel nombito do Estado de Minas Gerais.

    Atribuies Aprovar o Plano Estadual de Segurana Alimentar e Nutricional Sustentvel; Aprovar e monitorar planos, programas e aes da poltica de segurana alimentar e nutricional,

    no mbito estadual; Incentivar parcerias que garantam a mobilizao e a racionalizao dos recursos disponveis; Promover a criao dos Conselhos Municipais de Segurana Alimentar Nutricional Sustentvel, com

    os quais manter relaes de cooperao na consecuo dos objetivos da Poltica Estadual de Segu-rana Alimentar e Nutricional Sustentvel;

    Coordenar e promover campanhas de educao alimentar e de formao da opinio pblica sobreo direito humano alimentao adequada;

    Apoiar a atuao integrada dos rgos governamentais e das organizaes da sociedade civil envolvidosnas aes de promoo da alimentao saudvel e de combate fome e desnutrio.

    Legislao

    Decreto de criao n 40.324 1999. Lei Estadual n 15.982 2006 Decreto de Regulamentao n 44.355 2006 Regimento Interno - 2006

    Estrutura Plenrio Diretoria Comisses Temticas e Grupos de Trabalho Secretaria Executiva Comisses Regionais de Segurana Alimentar e Nutricional Sustentvel CRSANS.

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    da sociedade civil organizada e Diretoria. Compete ao Conselho aprovar e monitorar o Plano Estadual de SAN.

    Coordenadoria Geral de SAN compete a coordenao do Plano Estadual. A Coordenadoria composta porpessoal tcnico das diversas secretarias do Estado, procurando garantir a intersetoralidade da SAN.

    Em outubro de 2005, na Semana Mundial da Alimentao, o CONSEA Nacional entregou a proposta daLOSAN ao Presidente da Repblica, que, por sua vez, encaminhou-a ao Congresso Nacional. A lei foi apro-vada no dia 5 de setembro de 2006 e sancionada pelo Presidente da Repblica em 15 de setembro domesmo ano. O CONSEA Nacional convocou a III Conferncia de Segurana Alimentar e Nutricional para osdias 03 a 06 de julho de 2007, em Fortaleza (CE), com o objetivo de debater e apresentar proposies paraa construo do Sistema Nacional de SAN. Espera-se que a LOSAN, como qualquer outra lei ou poltica nocampo da segurana alimentar e nutricional, seja fiel amplitude do conceito de SAN que vem sendoconstrudo de forma participativa por diversos atores sociais.

    Conselho de Segurana Alimentar e Nutricional Sustentvel de Minas Gerais(CONSEA-MG)

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    Referncias Bibliogrficas

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    HEREDIA, Beatriz; LEITE, Srgio; MEDEIROS, Leonilde; PALMEIRA, Moacir; CINTRO, Rosngela.Os impactosregionais da reforma agrria Um estudo sobre reas selecionadas. Resumo Executivo. Rio de Janeiro, 2002.

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    de Textos, Belo Horizonte, 2005. p. 21-23.

    SILVA, Carlos Eduardo Mazzeto. Democracia e sustentabilidade na agricultura: subsdios para a construode um novo modelo de desenvolvimento rural. Caderno Temtico 4. Rio de Janeiro: FASE, 2001.

    SILVA, Carlos Eduardo Mazzeto. Sustentabilidade e Segurana Alimentar. In: CONFERNCIA ESTADUAL DESEGURANA ALIMENTAR E NUTRICIONAL DE MINAS GERAIS, 3., 2005, Belo Horizonte. Caderno de Textos,Belo Horizonte, 2005. p. 15-16.

    SEMPREVIVA ORGANIZAO FEMINISTA. Agricultura na sociedade de mercado: as mulheres dizem no tirania do livre comrcio. So Paulo, 2006.

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    16.Enfoque de gnero na construo demetodologias participativas deeducao popular e politicas publicas

    Quando iniciamos um processo de formao, importante termos a cons-cincia de que s alcanaremos a segurana alimentar e nutricional nosmbitos familiar e comunitrio se houver uma transformao nas rela-

    es sociais de gnero, raa, etnia, classe e gerao. No entanto, namaioria das organizaes que trabalham com as temticas seguranaalimentar e nutricional e agroecologia, ainda existe uma concepo deque nossa interferncia, enquanto assessoras(es) ou educadores(as)populares, deveria ser somente no plano tcnico, pois trabalhar com asquestes sociais implica trazer tona conflitos que deveriam ser contidosna esfera domstica.

    difcil limitarmos o nosso olhar sobre determinada realidade quando

    nos propomos a atuar nela. Ao mesmo tempo em que precisamos re-educar nosso olhar, aprendendo a desenvolver uma maior sensibilidadeno que se refere s relaes de gnero, precisamos reconhecer que ne-nhuma organizao capaz de resolver todas as questes subjetivasdos seres humanos.

    Neste texto, nossa inteno destacar as relaes sociais de gnero comouma temtica de extrema importncia para os processos educativos e or-ganizativos. Neste sentido, iremos discutir os seguintes pontos:

    a) as interfaces entre gnero, agroecologia e segurana alimentar e nu-tricional no mbito das comunidades rurais e urbanas;b) as estratgias necessrias para transformar as relaes sociais de g-nero nos processos educativos e organizativos e nas polticas pblicas,por meio da adoo de um tratamento transversal; ec) a criao de metodologias participativas de educao popular com en-foque de gnero que possam ser incorporadas nos processos educativos

    e organizativos.

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    16.1 O que gnero?

    Gnero um conceito utilizado para explicar as relaes entre homens e mulheres e os papis assumidospor cada pessoa, determinado pelo contexto cultural e social em que vivemos. Enquanto o sexo biolgicode uma pessoa determinado pelas diferenas no corpo humano, os papis de cada um(a) e as relaesentre as pessoas so construdas continuamente durante a vida.

    Desde criana, aprendemos que existem coisas de homens e coisas de mulheres. Por exemplo, as meninasrecebem mensagens transmitidas por intermdio dos pais, mes, professoras e professores e pelos meiosde comunicao de que elas devem cuidar das tarefas de casa, sendo sempre obedientes, submissas e mei-gas. Os meninos crescem ouvindo que homem no chora e que no podem exercer tarefas domsticas.

    Estas mensagens so assimiladas pelas pessoas, as quais acabam assumindo determinados papis e se tor-

    nando aquilo que a sociedade acha que elas devem ser. Como j disse Simone De Beauvoir, a mulher nonasceu mulher. Se tornou mulher.

    Este processo, que chamado de socializao, acontece tanto nos meninos como nas meninas. E assim nostornamos homens e mulheres, manifestando alguns sentimentos e comportamentos, ao mesmo tempoem que negamos outros. O que precisamos entender que, quando se afirma que tal comportamento masculino ou feminino, a referncia so os papis sociais e no algo que da essncia do indivduo.

    O problema que freqentemente esta aprendizagem acaba reforando desigualdades entre as pessoas.Para as sociedades, masculino e feminino tm valores diferentes, sendo que, na maioria das vezes, o que considerado masculino tem mais valor. Assim, as relaes de gnero produzem uma distribuio desigual

    de autoridade, de poder e de prestgio entre as pessoas de acordo com o seu sexo.

    Pode-se dizer que esta desigualdade entre os homens e as mulheres se d pela diviso sexual de trabalho,que supe uma separao entre o trabalho produtivo (associado aos homens) e o trabalho reprodutivo (as-sociado s mulheres). Dentro desta lgica, o trabalho produtivo realizado no espao pblico(mercado/propriedade) e est ligado ao capital, enquanto o trabalho reprodutivo realizado no espao pri-vado (casa/quintal) sem nenhuma remunerao.

    Ainda que se constate que as mulheres agricultoras trabalhem no conjunto de atividades que fazem parte doque se considera agricultura familiar, como preparo de solo, plantio, colheita, criao de pequenos animais,entre outras, o desempenho das mulheres no campo produtivo quase invisvel. Por outro lado, o trabalho re-

    produtivo, que diz respeito basicamente quelas atividades voltadas para a criao dos filhos, o cuidado com acasa e os arredores, associado s mulheres, e os homens apenas ajudam na realizao destas tarefas.

    Esta separao entre produo x reproduo e pblico x privado estabelece uma hierarquia entreambos os sexos, sendo que os trabalhos assumidos pelos homens so mais valorizados socialmente que ostrabalhos assumidos pelas mulheres. Tambm importante destacar que, numa sociedade capitalista, as re-laes sociais de gnero so entrelaadas com as relaes de classe, de raa e de etnia.

    At a nossa fala reflete a desigualdade entre homens e mulheres. Quando falamos O HOMEM, geral-mente estamos pensando em todos os seres humanos, tanto os homens quanto as mulheres. Por que,ento, no dizemos PESSOAS?

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    Quando pensamos em realizar um trabalho educativo que aborda a questo de gnero, estamos questio-nando estes papis pr-determinados tanto para os homens quanto para as mulheres. Estamos tentandoconstruir um mundo que no seja regido simplesmente pelos deveres sociais num contexto de relaes dedominao e submisso, mas tambm pelos nossos quereres e vontades enquanto seres humanos. Queremosromper com essa falsa dicotomia entre produo/ espao pblico e reproduo/ espao privado,mostrando que mulheres e homens esto presentes em ambos os espaos. Nossa inteno incentivar a ex-presso plena das potencialidades dos homens e das mulheres nos projetos sociais a partir de um conheci-mento mais profundo dos seus interesses e desejos, tendo como princpio uma maior eqidade nas relaessociais de gnero nas comunidades e nas organizaes.

    16.2 As relaes sociais de gnero nas comunidades rurais e urbanas

    Para explorar as interfaces entre gnero, segurana alimentar e agroecologia, importante entender melhor

    a situao das mulheres no campo e na cidade e identificar os papis que elas exercem no mbito domsticoe comunitrio.

    Como foi dito anteriormente, as mulheres agricultoras trabalham em um conjunto de atividades que fazemparte do que consideramos ser a "agricultura familiar". Porm, apesar das diversas tarefas que as mulheres exer-cem, elas so vistas apenas como ajudantes dos seus maridos e no recebem crdito pelo trabalho produ-tivo. Mesmo considerando a produo dos alimentos um terreno no qual tanto os homens quanto asmulheres do sua contribuio, a autonomia feminina em relao s tomadas de deciso sobre a renda fa-miliar muito pequena. Na maior parte das famlias que praticam a agricultura familiar, o marido o porta-voz da propriedade, com poder de deciso sobre a ocupao do espao e sobre os recursos econmicos, sejadinheiro, uso da terra ou horas de trabalho. As mulheres rurais, na maior parte das vezes, no recebem renda

    prpria e, nos censos oficiais, aparecem como membros no remunerados da famlia.

    Geralmente, o dinheiro da famlia fica numa caixa nica e as prioridades das mulheres no so consideradasna hora de fazer os gastos. A invisibilidade das mulheres, enquanto produtoras rurais, percebida clara-mente no momento da comercializao. Assim explicou uma liderana da regio da Zona da Mata de MinasGerais: Se voc pergunta para uma mulher como que produz, ela sabe responder. Mas se voc perguntacomo que vende ou quanto custa a saca de feijo ou arroz, esta parte est com os homens. A mulher noest includa na comercializao, embora ela esteja dentro do processo.

    Nos assentamentos rurais, tambm freqente as mulheres serem discriminadas nos processos de produo,porque no so cadastradas como assentadas. Os lotes esto em nome do chefe da famlia que, na maioria

    das vezes, so homens, impossibilitando as mulheres fazerem negociaes por meio de projetos de finan-ciamento. Apesar de ter conquistado o direito titulao conjunta na Portaria n 981/2003 do Instituto Na-cional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), ainda existe uma grande dificuldade de efetivar esta polticana prtica. As mulheres em relacionamentos estveis ainda experimentam dificuldades de acessar a terra porcausa da questo da herana, e as mulheres solteiras so consideradas incapazes de trabalhar a terra sozinha.

    Nas comunidades urbanas e periurbanas, temos visto que so as mulheres que mais se envolvem com aprtica da agricultura urbana. Elas desempenham um papel ativo no cultivo dos alimentos nos quintais e nosespaos pblicos e na execuo de empreendimentos relacionados com o processamento e comercializaode produtos alimentares. Mas isto no significa necessariamente que as mulheres detm o poder sobre agesto dos recursos no momento de implementar projetos comunitrios voltados para a agricultura urbana.

    Muitas vezes, na hora de participar dos espaos pblicos e decidir sobre a gesto de recursos para finalidades

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    comunitrias, os homens acabam sendo os portas-vozes da comunidade e, portanto, nem sempre o tra-balho desempenhado pelas mulheres no campo da agricultura urbana levado em considerao.

    Tanto em comunidades rurais quanto urbanas, as mulheres so geralmente vistas como mes e esposas. Muitasvezes, elas definem sua atividade principal como donas de casa, mesmo quando exercem funes fora do es-pao privado (casa/quintal). No entanto, as dicotomias produo x reproduo e mbito privado x m-bito pblico quase no existem na vida das mulheres, pois elas exercem mltiplos papis em vrios espaos.

    comum perguntar a uma mulher se ela trabalha e a resposta que dada por ela no, como se o trabalhodomstico e comunitrio no fosse trabalho de verdade. Neste sentido, necessrio dar visibilidade para oconjunto de tarefas que as mulheres rurais e urbanas exercem no mbito domstico e comunitrio. So as mu-lheres que cuidam dos quintais e tm um papel fundamental na diversificao das espcies e na troca de se-mentes. O conhecimento sobre o uso e preparo dos remdios fitoteraputicos passado de gerao a geraoprincipalmente por elas, que tambm se responsabilizam pelo cultivo das plantas medicinais em suas casas.

    Nas comunidades urbanas, so as mulheres que geralmente se preocupam com o acmulo de lixo nas ruas e becose fazem a discusso sobre a necessidade de reaproveitar os alimentos, como uma forma de reduzir a quantidadede lixo e diminuir o risco de doenas. So as donas de casa que, ao longo da histria, vm se preocupando como oramento familiar; a implantao de espaos de socializao das crianas dos bairros como creches ; a via-bilizao de compras coletivas; a organizao de bancos de sementes; e a defesa da merenda escolar. Estas di-versas expresses de luta e resistncia demonstram as mltiplas inseres que as mulheres tm na sadecomunitria, nas prticas agrcolas e alimentares e no desenvolvimento sustentvel do campo e da cidade.

    16.3 Interfaces entre os conceitos de gnero, segurana alimentar e nutricional

    e agroecologia

    Conceitualmente, percebe-se que o tema gnero possui estreita relao com os temas agroecologia e segu-rana alimentar e nutricional.

    A compreenso das organizaes que atuam na perspectiva da agroecologia a de que esta no se refereapenas a prticas agrcolas, mas integra os princpios agronmicos, ecolgicos e socioeconmicos, a fim decompreender o efeito das tecnologias sobre os sistemas agrcolas e a sociedade (ALTIERI, 1998). SegundoMussoi e Pinheiro (2002), a agroecologia uma cincia: [...] baseada em princpios como a diversidade, so-lidariedade, cooperao, respeito natureza, cidadania e participao [...] com possibilidades de distribuio

    mais justa de renda, poder e responsabilidades...

    Para a agroecologia, desenvolvimento refere-se liberdade das pessoas, tanto em relao s oportunidadesde educao e sade quanto participao poltica, buscando equidade nas relaes sociais (CARDOSO etal., 2003). Uma propriedade, para ser agroecolgica, precisa ser um sistema que opere em pequena escala,onde exista uma grande diversidade de espcies e uma combinao entre todas as atividades exercidas, oque garante sua maior sustentabilidade. Ao considerar todos os componentes do sistema de produo e aodar importncia a todos os seres vivos que atuam diretamente neste sistema, o conceito de agroecologiacontribui para dar visibilidade ao trabalho desenvolvido pelas mulheres. Devido sua viso sistmica, fornececondies para a construo de relaes igualitrias de gnero, pois combina diferentes usos do espao edo tempo, buscando uma complementao entre atividades produtivas e reprodutivas.

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    Porm preciso estar atento ao risco de transportar para os fenmenos sociais a mesma lgica utilizada paraentender as prticas agrcolas, buscando formas de justificar as diferenas determinadas por uma estruturasocial e poltica como se fossem naturais e inatas. necessrio evitar a tendncia de dar visibilidade aotrabalho das mulheres sem problematizar a naturalizao da diviso sexual do trabalho baseada na idia decomplementaridade entre as tarefas desenvolvidas pelos vrios membros da famlia.

    O conceito de gnero, ao enfatizar que a construo do que masculino e feminino no um fato biolgico,mas cultural, contribui para questionar as relaes de dominao e subordinao dos homens sobre as mu-lheres, relao que encontra na famlia sua manifestao privilegiada. Enquanto a agroecologia enfatiza anaturalizao dos processos ecolgicos e sociais, no campo das relaes sociais de gnero o que se busca a desnaturalizao de atribuies conferidas ao feminino e ao masculino (GT GNERO, 2002).

    O conceito de segurana alimentar e nutricional vem se ampliando ao longo dos anos, a partir da luta e pres-so de diversos movimentos sociais, e hoje contempla vrias dimenses do processo de alimentao, comoo acesso, a qualidade, a sade, a cultura, a ecologia e as condies socioeconmicas. Nos fruns e conselhosde SAN estaduais e nacionais, a construo das polticas tem sido pautada por uma srie de princpios comoa equidade, a intersetorialidade, a soberania, a sustentabilidade, a descentralizao e a participao social.

    Quando estudamos a situao dos estados brasileiros, podemos perceber claramente como certas categoriassociais esto mais sujeitas insegurana alimentar, demonstrando assim que as desigualdades sociais degnero, classe, raa, etnia etc. precisam ser consideradas nos trabalhos de SAN.

    O conceito de segurana alimentar e nutricional d visibilidade para o leque de funes exercidas pelas mu-lheres, incluindo a produo dos alimentos, pesquisa de preo, seleo, compra, preparo, beneficiamento econsumo. So trabalhos que se encaixam no campo da reproduo social e que no seguem a lgica pu-

    ramente produtivista que ainda permanece forte na concepo de agricultura adotada por muitas entidades.

    Desta forma, segurana alimentar e nutricional um guarda-chuva que abrange com bastante facilidade asatividades consideradas no agrcolas, demonstrando claramente a ligao entre todas as atividades queintegram a cadeia alimentar, desde a produo at o consumo. Pela amplitude do conceito, possvel visua-lizar a insero das mulheres nas vrias etapas desta cadeia alimentar e romper com a falsa dicotomia entrea produo e a reproduo.

    Podemos concluir que os dois modelos tericos, tanto a agroecologia quanto a segurana alimentar e nu-tricional, esto em construo e, portanto, no representam sistemas fechados. A participao das mulheresnas prticas agrcolas e alimentares evidente, mas no podemos parar por a. preciso explorar as interfaces

    entre os conceitos que fundamentaram os movimentos feminista, agroecolgico e de segurana alimentar enutricional, buscando formas de criar coletivamente, dentro de uma viso sistmica, uma proposta revolucio-nria que vise transformao das estruturas de poder e promoo da igualdade nas relaes humanas.

    16.4 Consideraes importantes para a incorporao da perspectiva de gnero

    nos projetos, programas e polticas

    Em seguida, descrevemos algumas questes importantes referentes s relaes sociais de gnero que podemorientar tanto as aes desenvolvidas por organizaes da sociedade civil quanto a elaborao de polticas

    pblicas de segurana alimentar e nutricional e de agroecologia.

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    As mulheres aprendem que para serem mulheres exemplares devem sempre cuidar dos outros. Por isso, a

    tendncia das mulheres colocar a alimentao dos seus filhos e filhas em primeiro lugar, abrindo mo, muitasvezes, da qualidade da prpria alimentao e ficando mais vulnerveis a situaes de fome e doenas, comoanemia e desnutrio. Diante disso, quando falta alimento em casa, importante apoiar as mulheres a obterema renda necessria para garantir a segurana alimentar e nutricional da famlia e delas mesmas. Alm disso, preciso considerar a maior vulnerabilidade das mulheres quando elaboramos projetos, programas e polticas.

    Quando planejamos e executamos programas de segurana alimentar e nutricional, precisamos considerara rotina das mulheres e a relao que elas constroem com o alimento no seu dia-a-dia.

    Muitas vezes, o acmulo de trabalho dentro e fora de casa e a cobrana da sociedade para que a mulhercumpra todas estas tarefas fazem com que ela perca seu encanto pelas atividades culinrias. E quando o atode cozinhar deixa de ser uma fonte de prazer e realizao pessoal, as mulheres no se empenham com tantoentusiasmo na experimentao de novas formas de utilizar os alimentos.

    Na tentativa de aliviar a sobrecarga de trabalho e garantir a emancipao das mulheres, algumas correntesdo feminismo embarcaram no mito do progresso, acreditando que o avano tecnolgico fosse essencialem todos os campos. Neste sentido, algumas feministas tm lutado para a reduo do tempo de preparodos alimentos por meio do processo de industrializao dos alimentos (NOBRE, 2004).

    Por outro lado, algumas organizaes sociais desenvolvem projetos que buscam incentivar as prticas alimentaresalternativas. Porm, muitas vezes, estas aes acabam reforando a idia de que a mulher, como me e esposa, quem deve se responsabilizar pela criao de novas receitas. No entanto, quando se desencadeia um processo edu-cativo que promove uma alimentao mais saudvel e equilibrada, devemos analisar como que as mudanas nasprticas alimentares interferem nos papis exercidos por homens e mulheres no mbito familiar e comunitrio.

    comum escutarmos nas atividades comunitrias as mulheres dizendo que querem a ajuda dos seus maridospara realizarem as tarefas domsticas. Mas, por outro lado, s vezes, elas tm receio de envolver os homensna cozinha, justificando que eles no fazem do jeito delas.

    Na nossa sociedade, a identidade da mulher est vinculada a uma complexa rede de atividades realizadasno lar que permitem s pessoas crescerem e se desenvolverem. Ou seja, o trabalho domstico no remu-nerado um trabalho de cuidar da vida. Assim, compreensvel que ter controle sobre o universo da co-zinha pode significar um apego imagem imposta pela sociedade e que faz parte da construo de suasubjetividade e auto-estima.

    fundamental considerar o papel que a mulher exerce como consumidora. A identidade do(a) consumi-

    dor(a) tem um grande significado em um mundo cada vez mais globalizado e consumista, mas, ainda

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    assim, importante entender por que esta identidade raramente tem fora poltica no contexto dos movi-mentos organizados da sociedade civil (NOBRE, 2004).

    A luta por uma rotulagem adequada dos produtos alimentcios busca garantir o direito do(a) consumidor(a)de saber o que est co