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CARTOGRAFIAS DAS RESISTÊNCIAS NO FILME “ZERO DE CONDUTA”
DE JEAN VIGO: O QUE PODE O CINEMA?
Alexander de Freitas1 – FE/UNICAMP
Introdução
Cartografar resistências em “Zero de conduta” quer dizer mapear, através da
decupagem e da elaboração filosófica de cenas/planos selecionados, as transgressões, as
desordens, as irregularidades, as indisciplinas, as burlas, os complôs, as insurgências, as
reversões e as desconstruções em relação à vida escolar, inventadas pelo filme, dando
destaque para a emergência dos desvios e das escapadas, do diferencial, do inadvertido, do
clandestino e do anômalo. Inspira-se em Deleuze e Guattari, que entendem que cartografar é
inventar linhas de fuga, é desterritorializar, é fazer fugir e fazer vazar o sistema, é produzir
errâncias e clandestinidades, é abrir frestas para um devir minoritário...
A escolha do filme “Zéro de conduite: jeunes diables au collège” de Jean Vigo
(conhecido no Brasil como “Zero de conduta” ou “Zero em comportamento”) se justifica
porque esta é a primeira e, talvez, a mais subversiva representação cinematográfica da vida
escolar, impossível de ser concebida nos dias atuais.
Para proceder a uma conversação deste filme com as questões que me interessam
enfrentar, utilizo neste ensaio, como fonte principal de ideias e excertos, a sensível, fascinante
e extensa obra de Paulo Emílio Sales Gomes, organizada sob o título “Jean Vigo” por Carlos
Augusto Calil. Como disse Truffaut, será difícil escrever algo sobre Vigo (e por extensão,
sobre “Zero de conduta”) depois do que foi escrito por Paulo Emílio... Ressalto também o
artigo recém-publicado, intitulado “Jean Vigo´s Zéro de conduite and the spaces of revolt”.
“Zéro de conduite”: um filme para “um povo que ainda não existe”
Utilizando uma frase de Paul Klee – “falta o povo” – Deleuze dirá, no texto “O ato de
criação”, que a obra de arte é um ato de resistência porque faz apelo a “um povo que ainda
não existe”, o que significa dizer que a arte carrega uma força visionária e um devir
revolucionário, capaz de criar um povo que falta, um povo menor.
1 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Bolsista de pós-doutorado do CNPq, com o desenvolvimento do
Projeto de pesquisa: “Cartografias da vida escolar: o que pode o cinema?”, junto ao Laboratório de Estudos Audiovisuais
(OLHO), vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob a supervisão do Prof.
Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim. Email: [email protected]
De fato, “falta o povo” é o melhor que se pode dizer da recepção de “Zero de
conduta”, como evidenciou Paulo Emílio, em relação às críticas e aos comentários sobre a
primeira exibição do filme, ocorrida em 7 de Abril de 1933, no Cinéma Artistic:
[Descrição da sessão feita por um espectador] Os espectadores estavam chocados, em
seus sentimentos burgueses, pelo comportamento dos meninos mostrado por Vigo.
Durante a projeção, foi preciso acender a luz várias vezes, e a sessão quase terminou
em briga. (Gomes, 2009, p. 192)
[Crítica de Pierre Ogouz em “Marianne”] Uma obra excepcional, que há de ser vaiada
e discutida. É difícil entender que um grande circuito comercial tenha assumido a
distribuição desse filme. Raivoso, violento, destrutivo, rancoroso, parece inchado com
toda a amargura que seu autor deve guardar de um passado infeliz como aluno interno.
Infectado de grosserias, nocivo e cruel, estigmatiza os pedagogos viciosos e bitolados,
e canta com desespero um hino à liberdade. (Gomes, 2009, p. 195-196)
Como bem se vê, “Zero de conduta” é recebido como um filme infecto, repleto de
afetos de alta virulência e carregado de perigosos contágios... Do que se trata? Trata-se, como
sugerem os excertos, de três choques, insuportáveis à moral dos espectadores: 1) o
comportamento revoltado, anarquista e irreverente das crianças do filme de Vigo; 2) a
estigmatização e a ridicularização das autoridades pedagógico-escolares; 3) o golpe mortal à
moral pedagógica, burguesa e cristã, ao representar a instituição escolar como um lugar de
indisciplina e desordem generalizadas.
Como filme maldito, infecto e contagioso, a censura não tardou a proibir a exibição de
“Zéro de conduite” na França. Como explica Paulo Emílio, o processo de suspensão da
exibição do filme foi deflagrado por reações enérgicas dos círculos católicos, como pode ser
verificado em um número do semanário Choisir, de 2 de julho de 1933:
A obra de um maníaco obcecado que expressa sem nenhuma arte seus pensamentos
confusos. Erotismo ainda vá lá, mas escatologia... Falta a delicadeza de expressão, a
poesia das imagens. É improvável que a censura deixe circular essa fita, que
absolutamente não é para crianças nem vai divertir os adultos. (...) Mas para isso
precisaria existir uma censura; uma verdadeira censura. (Gomes, 2009, p. 196)
Paulo Emílio vai perscrutar hipóteses para esta ação severa da censura, que, pouco
depois da publicação do pedido enfático do redator de Choisir, proibiu “Zero de conduta”.
Para além desta reação da imprensa católica, que não deve ter tido, segundo o autor,
uma influência tão decisiva sobre a censura, Paulo Emílio vai aventar outras possibilidades
para explicar a severidade do crivo sensor que proibiu o filme: 1) os Ministérios do Interior e
das Relações Exteriores, sob a alegação de que o filme poderia causar confusão e prejudicar a
manutenção da ordem; 2) a veiculação de determinadas imagens que ofendiam o pudor e o
patriotismo, como, por exemplo, a exibição da genitália de um adolescente e a substituição da
bandeira francesa pela bandeira dos líderes amotinados; 3) a própria assinatura do filme por
Jean Vigo, filho do cognominado Miguel Almereyda, líder anarquista assassinado na prisão
em 1917. De qualquer forma, a censura francesa só vai liberar o filme em 1945...
Defenderei neste ensaio uma hipótese que não chegou a ser formulada diretamente por
Paulo Emílio: o caráter intensamente contestador de “Zero de conduta” se deve ao modo
como se constroem as representações da vida escolar no filme.
Passo, então, nas seções seguintes, a evidenciar as representações anômalas,
irregulares, esquisitas, subversivas e transgressoras do modo como o filme de Vigo vai
construir a instituição escolar, seus espaços, as autoridades pedagógica, os atores escolares... a
vida escolar, enfim.
A força do agenciamento maquínico “vitalidade-rebeldia” nas crianças de Vigo
Para apresentar o filme de “Zero de conduta” em Bruxelas, em 17 de Outubro de 1933,
escreveu Vigo:
De que serviria fazer a caricatura de tal ou tal governo, de tal ou tal nação? A exceção
de um só, todos se equivalem. (...) Infelizmente, para mim, o problema é mais sério.
Minha preocupação, mais vasta e mais casta. A infância. (...) Garotos abandonados
numa bela tarde de outubro, no início do ano letivo, num pátio de honra, em algum
lugar da província, sob qualquer bandeira que seja, mas sempre longe de casa, onde se
espera o afeto de uma mãe, o companheirismo de um pai, se ele já não estiver morto.
(Gomes, 2009, p. 206)
Também para Paulo Emílio o tema de “Zero de conduta” é a infância oprimida, a
fragilidade da criança frente ao mundo dos adultos, ao que eu acrescentaria, porque isso é
muito presente no filme, a pressão coercitiva (física, moral e psicológica) dos tutores e das
autoridades pedagógicas sobre os internos da escola.
Influenciado pela morte do pai na prisão e pela passagem pelo internato, a escola de
Vigo tem um “ar” de prisão, de instituição de contenção e confinamento, de lugar de
disciplinamento e correção moral, que visa produzir a obediência e a docilização dos corpos
insubordinados e rebeldes das crianças.
As crianças são vigiadas e punidas intermitentemente e o título do filme se refere à
ação punitiva, várias vezes repetida, que incide sobre três das personagens principais: Caussat,
Bruel e Colin. Não importam se são culpados ou inocentes, não é preciso procurar os
culpados: tudo o que acontece na escola é atribuído às ações destas três crianças, que recebem
repetidos “zeros de conduta” e impedimento de sair aos domingos.
A estes três excluídos e discriminados, juntava-se Tabard, o alter ego de Vigo. Em sua
primeira aparição, o close-up no rosto de Tabard reforça sua aparência frágil, quase de
menina, o que confere uma transferência imediata e uma adesão incondicional ao seu drama.
O drama de Tabard é mais acentuado do que o das outras três crianças: ele é exposto e
humilhado pelas desconfianças das autoridades da escola, que veem uma maliciosa atração
dele por Bruel. Como disse Vigo, na apresentação do seu filme, a direção do colégio
espionava e torturava Tabard, “quando o que ele precisava era de um irmão mais velho, já
que sua mãe não o amava” (Gomes, 2009, p. 145).
Paulo Emílio usa um termo muito preciso para definir a singularidade desta relação de
intimidade entre Tabard e Bruel, conforme desenvolvida no filme. Ele diz: “amizade amorosa
entre escolares”. Este me parece um conceito muito profícuo para as cartografias da vida
escolar com o uso do cinema, porque vamos encontrar contextos e desenrolares distintos para
este tipo de relação entre escolares, em vários outros filmes.
Apesar de sofrerem punição e humilhação intermitentes, apesar da vigilância, do
controle e do disciplinamento, estas quatro crianças encarnam vitalismos, potências e
resistências intermináveis. Elas possuem uma energia e uma vitalidade que as fazem resistir
sem cessar. O que prepondera, então, no filme, são cenas protagonizadas pelas crianças,
carregadas de ativismo, desobediência, insubordinação, desacato, rebeldia e desordem. As
crianças de Vigo são intermitentemente vitalizadas e indisciplinadas.
A pergunta é: como Vigo conseguiu produzir estes estados de revolta ativa e contínua
em seu filme, trabalhando com atores nãoprofissionais? É a proveniência dos meninos que dá
corpo à ação insubordinada e rebelde pretendida por Vigo, como explica Paulo Emílio:
Quase todos os meninos da figuração eram do 19º Arrondissement, o bairro popular
mais característico de Paris. Ou então vinham da rua Letort ou da rua Lepic, de modo
que não havia quebra na unidade social do mundo dos garotos. Onde mais poderiam se
encontrar melhores viveiros de meninos pobres, cheios de vida e rebeldes? (Gomes,
2009, p, 151)
Este agenciamento entre vitalidade e rebeldia, corporificado pelos recrutamento de
atores nãoprofissionais e socialmente excluídos, é o que produz os altos riscos de contágio de
“Zero de conduta” durante as filmagens externas, realizadas no pátio do colégio de rapazes de
Saint-Cloud. É que o diretor da escola de Saint-Cloud, que havia autorizado as filmagens,
passou a ficar preocupado com a má-influência das crianças de Vigo para os alunos da escola,
como nos informa Paulo Emílio:
“Ora”, dizia [o diretor da escola] para Vigo, “o senhor trouxe aí um bando de
delinquentes”. De fato, depois de três semanas de cinema, os meninos estavam
enlouquecidos. O roteiro contribuía um pouco para isso. Mandavam que dissessem
“merda” para o professor, que se revoltassem, cantassem no dormitório quebrando
tudo, bombardeassem as autoridades durante uma festa, corressem em disparada pelas
ruas e expressassem sentimentos que animam uma multidão num dia de revolta.
(Gomes, 2009, p. 160)
E aqui pode se ver bem que Vigo cria, com as filmagens de “Zero de conduta”, uma
potente máquina de guerra que vai contaminar os “bons” modos e os “bons” costumes – a
moral disciplinar da escola – com doses de delinquência e enlouquecimento infantis, o que
causa preocupação ao diretor de Saint-Cloud.
Não seria este risco de contágio das infectantes crianças de Vigo, tornadas
personagens pelo agenciamento rebeldia-vitalismo, o maior perigo de “Zero de conduta”?
Entre o abominável, o patético, o satírico e o nojento: as autoridades escolares
De todas as autoridades escolares representadas no filme, o inspetor-chefe, vulgo Bec-
de-Gaz, é o mais abominável. Com jeito de espião, ele é quem vigia e inspeciona; ele é quem
procura as evidências, as provas e as pistas que vão incriminar as crianças. Ele não diz nunca
nada, é silencioso e lépido como um fantasma que ronda: “para representá-lo, Vigo recorreu
a alguns tiques dos guardas da Petite Roquette nos tempos de Almereyda, como por exemplo
o hábito de simular uma saída e voltar de repetente, flagrando o prisioneiro ou escolar”
(Gomes, 2009, p. 146).
A cena que revela o seu poder sobre os internos da escola acontece no dormitório,
quando o inspetor Parrain, vulgo Pèt-Sec, tenta, em vão, fazê-los levantar da cama. Quando
Bec-de-Gaz abre a porta e atravessa o dormitório, as crianças se põem imediatamente de pé,
uma seguida da outra, em posição de continência para o inspetor que passa. A reversão é
imediata, porque assim que Bec-de-Gaz fecha a porta, as crianças voltam a se deitar.
Mas Bec-de-Gaz retorna e pune, como é habitual, Colin, Caussat e Bruel. Este estilo
sorrateiro, entre o ladrão e o espião, é muito curioso em Bec-de-Gaz.
Paulo Emílio considera uma evolução significativa desta personagem ao longo do
filme. Ele diz que, primeiro, sua aparição é ridícula, para depois se tornar detestável, quando
Bec-de-Gaz passa a espionar os meninos, roubar seus chocolates, e, claro, desconfiar
maliciosamente de Tabard-Bruel.
Duas cenas que revelam o caráter detestável do inspetor-chefe: 1) quando ele separa
Bruel e Tabard, na fila, antes da saída com Huguet; 2) quando ele aproveita o recreio para
revistar as carteiras à procura de algo proibido. Frustrado por não encontrar nada suspeito em
sua ronda, Bec-de-Gaz rouba alguns doces dos alunos. A revanche ao roubo é protagonizada
por Caussat: ele pede os vidros de cola aos meninos e os esvazia atrás das estantes, onde o
inspetor passaria em revista, para que Bec-de-Gaz suje as mãos.
A autoridade escolar mais satirizada na representação de Vigo é, sem dúvida, o diretor
da escola: o anão Delphin, que aparece vestido de preto, com uma barba enorme e um chapéu.
Ele discursa e ordena como um pastor da moral, mas tem a voz muito fina.
O patético e o satírico que compõem a representação do diretor do internato está no
paradoxo, muito bem explorado por Vigo, entre o chefe e o anão, isto é, entre o mais alto grau
da hierarquia escolar, representada por aquele que é o mais baixo de todos, porque Delphin é
ainda menor do que algumas crianças.
Pèt-Sec, o inspetor que dorme no dormitório, quase não tem autoridade sobre os
internos. A cena que Colin está de castigo em frente à cabine do inspetor, com dor de barriga,
marca o patético de ter que pedir autorização para ir ao banheiro nestas condições... O diretor
dorme e não ouve a súplica de Colin, ao que persuade Caussat, em tom de autoridade: “Vá!
Não dê bola para este imbecil!”.
O ponto mais alto do destino de Pèt-Sec é sua crucificação na sua própria cama, pelos
líderes da rebelião: Caussat, Tabard, Bruel e Colin. Os meninos amarram o inspetor
adormecido com um cachecol e colocam sua cama na vertical, de modo que dê a impressão de
que Pèt-Sec está crucificado.
Por fim, a representação do único professor da escola, o professor de química, é
nojenta e repulsiva. Deixo a descrição desta personagem com Paulo Emílio:
É uma criatura gorda e repulsiva. Ele troca o paletó por um jaleco de trabalho mais
sujo ainda. Sentado à sua mesa, começa a toalete. Primeiro, enche as narinas com uma
pomada e acaba abrindo cuidadosamente o lenço, seu único objeto limpo, cuja função
é receber seu catarro. Este já se faz ouvir na sua garganta, mas somos poupados do
desenvolvimento visual, só o som horroroso nos persegue (...). (Gomes, 2009, p. 180)
O plano final do filme é a festa anual do internato, no dia de Santa Bárbara, com a
disposição das autoridades (policiais, bombeiros, padre, diretor e inspetores) acomodadas na
primeira fila, à frente dos bonecos de pimpampum (jeu de massacre é um jogo que consiste
em derrubar bonecos com bolas de borracha). Paulo Emílio vê neste conjunto coeso, de
autoridades na fila de honra, com bonecos de pimpampum logo atrás, um deslizamento da
representação da autoridade para o fantoche, que dá um tom anarquista ao filme de Vigo.
O bedel Huguet: devir-criança
Uma figura dissonante dentre as sisudas e austeras autoridades escolares é o bedel
Huguet. Sua primeira aparição já é bastante esquisita: ele chega à escola viajando na mesma
cabine de terceira classe, junto com Caussat e Bruel e, como uma criança, se finge de morto.
Os meninos o chamam de “morto” do trem.
Esta personagem, descrita por Paulo Emílio como “educado, extravagante,
empoeirado, carregando a bagagem no colo e arrastando o casaco pelo chão” (Gomes, 2009,
p. 167), é um tipo muito estranho de autoridade escolar. Ele deseja jogar bola com os
meninos, acoberta seus planos e conspirações, cobre suas retiradas, os inocenta, ajuda eles a
se livrarem de Bec-de-Gaz, zela pelas forças infantis, incita e combate junto com eles...
O devir-criança de Huguet emerge intensamente no agenciamento entre Huguet e
Carlitos, que ocorre em uma cena no pátio do colégio, como explica Paulo Emílio:
Huguet está entediado. Gostaria de brincar um pouco com a bola, mas se sente,
também, vigiado por Pète-Sec e Bec-de-Gaz. Para se distrair, caminha pelo pátio ao
modo de Carlitos e diverte os meninos escondidos atrás de um muro. (...) Não demora,
a imitação de Carlitos de Huguet e o movimento de esconde-esconde dos meninos se
completam e o pátio inteiro reconstitui a “respeitosa paródia” de uma cena da obra do
período Mutual de Chaplin: Easy Street [1917, Rua da Paz]. (Gomes, 2009, p. 172)
Outros dois planos retratam bem a atitude subversiva de Huguet. O primeiro é na sala
de estudos sob sua supervisão, onde os alunos fumam, jogam baralho, leem jornal... um deles
dorme, um grupo brinca de formar uma pirâmide humana. Huguet, ele próprio, faz
demonstrações aplaudidas de acrobacias e desenha, de ponta cabeça, com a caneta na boca,
uma caricatura de Bec-de-Gaz trajando um maiô.
Outro plano que evidencia o devir-criança de Huguet, que vai desconstruindo a
representação convencional de autoridade escolar, é o passeio com as crianças pelas ruas do
bairro. O bedel caminha despreocupadamente, esquecendo-se das crianças, que tomam seu
próprio rumo no passeio. Aqui, a suspensão proposital da autoridade mostra que as crianças
têm desejos e movimentos próprios, que são inibidos pela condução do adulto.
Huguet, andando sozinho, encontra uma moça e torna-se enamorado. Depois de se
juntar novamente às crianças, intervém um fato cômico porque Huguet confunde-se ao avistar
um rabo de saia: era um padre! E, então, a análise precisa de Paulo Emílio: “para
desconsiderá-lo, haverá melhor maneira do que mostrá-lo fugindo num movimento
acelerado?” (Gomes, 2009, p. 176). Só quem faz isso são as crianças...
É por mediação deste devir-criança que Huguet vai desconstruindo os papéis
esperados, legitimados e normalmente atribuídos às autoridades pedagógico-escolares.
Tabard: “eu digo: merda!”
São variados os complôs, as insurreições e as reversões que acontecem em “Zero de
conduta”. Os planos que se passam no pátio e no dormitório dos internos são carregados
destas reviravoltas. De modo geral, os planos do filme de Vigo expõem, com intensidade e
singularidade, a agonística entre o poder repressivo dos tutores e das autoridades escolares
versus a vitalidade e o poder de resistência das crianças. Deste modo, o que sobressai ao filme
é uma guerrilha entre os internos e os inspetores, que nunca termina.
A singularidade de “Zero de conduta” está justamente em trazer à tona a vida escolar
em um estado de perpétua reversão de poderes e valores. É que Vigo vai saturar seus planos
com a emergência de contrapotências e de contragolpes que limitam e dispersam o alcance do
poder disciplinar e pastoral, praticados sem crítica pelas autoridades escolares.
O ponto mais alto deste estilo agonístico de reversão de poderes, utilizado por Vigo,
pode ser visualizado nos planos envolvendo a vergonha de Tabard por sua proximidade de
Bruel, situação que acabará por catalisar a inclusão de Tabard no motim das crianças.
Para que se perceba este estilo agonístico, é preciso, primeiramente, recorrer ao plano
em que o diretor do internato chama Tabard para lhe falhar da indecência de sua proximidade
com Bruel. Diz o diretor-anão, um tanto sem jeito, carregando seu discurso de omissões e
subentendidos, que não tem outro efeito senão o de constranger o garoto:
Meu garoto eu sou um pouco o seu pai... Na sua idade, existem coisas, não é... Bruel é
mais velho que você. A sua natureza, sua sensibilidade, a dele, não é... [A voz do
diretor vai ficando nervosa]... de psicopata, de neuropata... Vá saber!
Tabard parece não entender direito o que diz o diretor-anão, mas vai se encolhendo na
cadeira, envergonhado e constrangido. Revela-se, neste plano, o poder de submissão moral do
diretor sobre Tabard, sugerindo, maliciosamente, uma relação homoafetiva entre eles.
No plano seguinte, de volta à sala de aula, Tabarb, claro, não se senta ao lado de Bruel.
Ele se mostra desconfortável e nervoso. É o plano que se passa durante a aula de química. O
professor vai sondar Tabard com a pergunta: “Então, meu garoto, não vamos anotar nada
hoje?”. Tabard abre seu caderno e começa a escrever, quando o professor novamente
intervém, pondo sua mão gorda sobre a mão esquerda de Tabard: “Isso mesmo, muito bem”.
Tabard, com certo nojo, se esquiva da mão do professor, que parece lhe afagar, e, com
um gesto brusco, diz: “Me larga!”. O professor, em tom aliciador, retruca: “Ah! meu garoto,
eu não disse nada!” É quando Tabard explode e grita: “Pois eu digo... digo merda!”. Não é
algo previsível que um aluno diga “merda” a um professor, num filme de 1933!
Mas a ousadia e a irreverência de Vigo não param por aí...
O diretor-anão vai interferir na condução do caso, tentando arrancar um pedido de
desculpas públicas de Tabard. Esta mise-en-scène do diretor vale a pena ser transcrita porque
evidencia um discurso performático, ardiloso e hipócrita, que tem por objetivo causar uma
coação moral em Tabard, constituindo-se como um exemplo emblemático do posicionamento
discursivo das autoridades escolares nestes casos. Diz Delphin:
Meu garoto... o conselho de disciplina consentiu, sob a forte pressão do seu professor,
demasiado bondoso... Em consideração à sua família, por bondade em relação a você,
e por ocasião da nossa querida festa que vai ser celebrada amanhã, consentiu, repito,
em perdoá-lo... Você veio, espontaneamente aliás, se ouso dizer, pedir que eu
aceitasse suas desculpas, que só poderiam ter valor se proferidas em público e diante
de todos os seus colegas. Então, estamos esperando... Diga o que você quer dizer..
Então Tabard novamente explode e repete afirmativamente, com coragem e ousadia:
“Senhor professor, eu lhe digo...merda!”.
Neste processo replicado, de ação e reação, entre o diretor e Tabard, percebe-se o
estilo agonístico, que vai marcar a guerrilha dos internos contra os poderes das autoridades
escolares. Este processo terá como consequência direta encorajar e empoderar Tabard à
proclamação do motim, que já estava sendo planejado por Caussat, Bruel e Colin.
“Zero de conduta”: máquina de anarquização da vida escolar
É preciso dizer que “Zero de conduta”, e tudo o que se refere ao seu processo de
criação – roteiro, seleção dos atores, filmagens, cortes, montagens, a sonorização de Jaubert,
etc. – é uma máquina de guerra que vai anarquizando as representações clichês dos espaços-
tempo e da vida escolar, inventando uma escola improvável e, em algum sentido, impossível
de ser pensada e concebida pelos padrões dominantes.
É que o processo criativo de Vigo, com a produção de “Zero de conduta”, vai inventar
dissensos, brechas e estranhamentos sobre os modos usuais e naturalizados de ver, perceber,
sentir e representar a escola. Esta máquina de guerra, que opera pela anarquização, pelo
aumento de entropia do sistema e pela desterritorialização, está ligada a novas distribuições de
espaços, poderes, capacidades, desejos e devires, que são gerados por “Zero de conduta”.
Por fim, dois registros deste poder de transtornar as representações da vida escolar,
pela anarquização e desorganização do naturalizado e do usual, são importantes de serem
considerados e mostrados. O primeiro, é a impressão do próprio Paulo Emílio sobre as
representações que Vigo cria para o pátio da escola e para a vida que lá se processa. O
segundo, narra a impressão da própria escola realizada por Michel Mirowitsch, um dos
melhores críticos belgas, quando da exibição de “Zero de conduta” em Bruxelas em 1933.
Vamos a estas duas impressões:
No pátio do colégio, durante o recreio... alguns meninos brincam com uma bola.
Outros fumam cigarros nas latrinas. Outros ainda se divertem perturbando aquele que
está de fato no sanitário. Caussat, Bruel e Colin estão, como sempre, conspirando.
Estão inclusive com um mapa aberto à sua frente. Tabard está sozinho. É atraído pelo
trio, mas se sente rejeitado. Um dos inspetores se aproxima, mas Huguet, sem dar a
perceber, cobre a retirada dos conspiradores que vão se refugiar na sala de estudos.
(...) O clima do colégio está criado com a imagem dos meninos fumando nas latrinas,
ou da porta aberta num puxão súbito que mostra um garoto de bundinha de fora
gritando, indignado: “seus porcos!”. (Gomes, 2009, p. 171-172)
Tédio homicida de cidadezinha do interior, ‘escola escura’ e fedida, bedéis
lamentáveis, desrespeitados, ridicularizados, classes sujas e barulhentas, refeitórios
encardidos, domingos em que o vazio e o nada se fazem palpáveis, tudo isso se
reconhece ao longo de uns poucos complôs à sombra do pátio coberto, de algumas
mágoas sem solução... (Gomes, 2009, p. 208)
Não teriam estas torções, estas anarquizações e estas subversões das representações da
vida escolar, inventadas por “Zero de conduta” de Vigo, contribuído para a própria censura do
filme e para uma recepção tão ressentida pela crítica cinematográfica? Não seria esta
contramoral de uma escola às avessas, contaminada de contrapotências, sublevações e
inversões, o motivo para o crivo sensor e para uma recepção tão negativa do filme em 1933?
“Zero de conduta” nos apresenta uma escola para “um povo que ainda não existe”,
repleta de reinvenções e contaminada de guerrilhas e desterritorializações, que não cessam de
expandir os graus de liberdade da representação escolar, para fora dos enquadramentos
costumeiros.
Os planos finais do filme são o coroamento desta ação maquínico-anarquizadora,
empreendidas por “Zero de conduta”. Vemos Caussat, Bruel, Colin e Tabard tomados de
epifania, atacarem, do alto do telhado da escola, as autoridades sentadas na tribuna de honra,
com sapatos, livros e pedras. Então, um furor toma todas as crianças, incentivadas por
Huguet. O jogo de pimpampum torna-se literal: os fantoches são as autoridades, é preciso
acertá-las!
De cima do telhado, os quatro amotinados, com ar de vencedores, substituem a
bandeira da França, anteriormente hasteada, pela bandeira do movimento e caminham felizes
em direção ao céu, renascidos e revigorados pela prática de liberdade realizada.
Eis que “Zero de conduta” vai desdizer o próprio título, porque o que dele sobressai
não é referência à punição, mas agenciamentos maquínicos de desejos revolucionários e
devires impossíveis.
Coda
A transgressão não está para o limite como o negro está para o branco, o proibido para
o permitido, o exterior para o interior, o excluído para o espaço protegido da morada.
Ela está mais ligada a ele por uma relação em espiral que nenhuma simples infração
pode extinguir. Talvez alguma coisa como o relâmpago na noite, que, desde tempos
imemoriais, oferece um ser denso e negro ao que ela nega, o ilumina por dentro e de
alto a baixo, deve-lhe entretanto sua viva claridade, sua singularidade dilacerante e
ereta, perde-se no espaço que ela assinala com sua soberania e por fim se cala, tendo
dado um nome ao escuro. (...) A transgressão não opõe nada a nada, não faz nada
deslizar no jogo da ironia, não procura abalar a solidez dos fundamentos: não faz
resplandecer o outro lado do espelho para além da linha invisível e instransponível.
(...) Ela afirma o ser limitado, afirma o ilimitado no qual ela se lança, abrindo-o pela
primeira vez à existência. (...) Seria também necessário aliviar essa palavra de tudo o
que pode lembrar o gesto do corte, ou o estabelecimento de uma separação ou a
medida de um afastamento, e lhe deixar apenas o que nela pode designar o ser da
diferença. (Foucault, 2009, p. 33)
Referências
DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v
=GYGbL5tyi-E, acessado em 11/03/2011, publicado na Folha de São Paulo em 27/06/1999.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos e escritos III).
[Organização de Manoel Barros da Motta]. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Jean Vigo. [Organização de Carlos Augusto Calil]. São Paulo:
Cosac Naify/SESC-SP, 2009.
VANOBBERGEN, Bruno; GROSVENOR, Ian; SIMON, Frank. Jean Vigo´s Zéro de conduit
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