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O trabalho nasce da inquietação pessoal em estudar novas formas de ressignificar o centro de São Paulo e reconstruí-lo como espaço habitado. O recorte para o ensaio de um novo edifício está na colina entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, o “triângulo histórico”, por entendê-lo como identidade de todo o centro e por ver um grande potencial de ressignificação em seu espaço. Do litoral e do interior, meu primeiro contato com São Paulo se deu pela faculdade de arquitetura, quando já nas primeiras semanas de aula, fomos lançados ao centro histórico da cidade. Nessa jornada final, teoria e prática caminharam juntas e todas as segundas-feiras foram preenchidas pelas conversas sobre o centro, a cidade, o habitar. A cidade contemporânea, marcada pelo fluxo rápido e pelas distâncias, transforma a nossa forma de ver, sentir e vivenciar o espaço urbano. O centro, com suas potencialidades e contradições, sempre me instiga a pensar arquitetura, a pensar a cidade. Não cabendo dentro do meu trabalho final pensar um plano global para o centro em escala metropolitana, foco meu olhar na escala da quadra, pensando em sua microacessibilidade, e na do edifício. Penso o programa, o desenho, a materialidade, imagino seu retrato ao lado dos vizinhos. Diante de tantas tensões entre significados e percepções, o edifício se projeta em uma única quadra, mas nasce como um convite a uma futura e nova apropriação cotidiana de todo o centro. O centro de São Paulo é aqui entendido como espaço de representação da metrópole e da sociedade que nela habita. Reconstruído duas vezes no decorrer do século XIX, a esquecida cidade de taipa deu lugar à metrópole do café, renovando seus significados e sua relação com o habitante que a vivencia. Durante o século XX, a área central sofreu uma intensa desvalorização simbólica pelas novas políticas de intervenção. A estagnação imobiliária, degradação de suas condições ambientais e aceleração dos fluxos são consequências de políticas que privilegiam interesses privados e transformam o centro de São Paulo em um não-lugar. Hoje sentimos os efeitos dessas políticas ao ver que o centro se esvaziou, ainda que os dados do último censo do IBGE indiquem reversão neste processo. A vida habitual que a identificava como metrópole do café já não existe. A imagem do centro como espaço degradado e sem valor de uso dificulta sua relação com o habitante. Por outro lado, São Paulo tem mostrado um crescente interesse em discutir o centro velho e propor mudanças que tragam novos significados, seja por parte do poder público com políticas de intervenção e requalificação de seus espaços, seja por parte do próprio habitante em si, com intervenções pontuais e manifestações. casa do estudante um projeto de habitação no centro histórico de São Paulo o que me motiva o centro de são paulo 1/8

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O trabalho nasce da inquietação pessoal em estudar novas formas de ressignificar o centro de São Paulo e reconstruí-lo como espaço habitado. O recorte para o ensaio de um novo edifício está na colina entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, o “triângulo histórico”, por entendê-lo como identidade de todo o centro e por ver um grande potencial de ressignificação em seu espaço.

Do litoral e do interior, meu primeiro contato com São Paulo se deu pela faculdade de arquitetura, quando já nas primeiras semanas de aula, fomos lançados ao centro histórico da cidade.

Nessa jornada final, teoria e prática caminharam juntas e todas as segundas-feiras foram preenchidas pelas conversas sobre o centro, a cidade, o habitar.

A cidade contemporânea, marcada pelo fluxo rápido e pelas distâncias, transforma a nossa forma de ver, sentir e vivenciar o espaço urbano. O centro, com suas potencialidades e contradições, sempre me instiga a pensar arquitetura, a pensar a cidade.

Não cabendo dentro do meu trabalho final pensar um plano global para o centro em escala metropolitana, foco meu olhar na escala da quadra, pensando em sua microacessibilidade, e na do edifício. Penso o programa, o desenho, a materialidade, imagino seu retrato ao lado dos vizinhos.

Diante de tantas tensões entre significados e percepções, o edifício se projeta em uma única quadra, mas nasce como um convite a uma futura e nova apropriação cotidiana de todo o centro.

O centro de São Paulo é aqui entendido como espaço de representação da metrópole e da sociedade que nela habita. Reconstruído duas vezes no decorrer do século XIX, a esquecida cidade de taipa deu lugar à metrópole do café, renovando seus significados e sua relação com o habitante que a vivencia.

Durante o século XX, a área central sofreu uma intensa desvalorização simbólica pelas novas políticas de intervenção. A estagnação imobiliária, degradação de suas condições ambientais e aceleração dos fluxos são consequências de políticas que privilegiam interesses privados e transformam o centro de São Paulo em um não-lugar.

Hoje sentimos os efeitos dessas políticas ao ver que o centro se esvaziou, ainda que os dados do último censo do IBGE indiquem reversão neste processo. A vida habitual que a identificava como metrópole do café já não existe. A imagem do centro como espaço degradado e sem valor de uso dificulta sua relação com o habitante.

Por outro lado, São Paulo tem mostrado um crescente interesse em discutir o centro velho e propor mudanças que tragam novos significados, seja por parte do poder público com políticas de intervenção e requalificação de seus espaços, seja por parte do próprio habitante em si, com intervenções pontuais e manifestações.

casa do estudante um projeto de habitação no centro histórico de São Paulo

o que me motiva o centro de são paulo

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O centro de São Paulo funcionou como elemento vital de distribuição dos fluxos e como imagem da própria cidade durante décadas e por isso foi palco de mudanças simbólicas, como quando Prestes Maia propõe o perímetro de irradiação e eleva o centro à escala metropolitana. Embora a estrutura radiocêntrica continue a ser o mais importante entrecruzamento de fluxos da cidade, o processo de descentralização das atividades do centro velho para centros secundários marcou uma nova etapa na organização metropolitana, em que a autossuficiência das novas centralidades é a nova marca valorativa de cidade. Por um lado, esse processo, aliado ao grande fluxo de carros e a ocupação das massas, subtrai do centro algumas atividades que enfraquecem sua força econômica e a ressignificam como região “decadente”, por outro, reforça suas singularidades e a distingue dos novos centros sendo, até hoje, uma área de atração de viagens, empregos e atividades econômicas, turísticas e culturais.

Pensando o centro como um meio que sugere relações à quem o vê e marcado por contradições e

potencialidades, em um primeiro momento, reflito sobre sua microacessibilidade, ainda que o objetivodeste trabalho não seja o de detalhar uma proposta concreta para a área.

Os calçadões do centro de São Paulo têm mais de 7 quilômetros de vias pedestrianizadas e mais de 400.000 m2 de área, com uma densidade durante o dia 400% maior do que sua densidade demográfica à noite.

A microacessibilidade ao centro histórico enfrenta dificuldades tanto pela sua topografia acentuada como por sua estrutura viária planejada na época de Prestes Maia. Após a criação dos calçadões, as distâncias percorridas pelo pedestre de um ponto acessível por veículo a pontos dentro de seu limite passam dos 200 m.

O fechamento das vias do centro para veículos motorizados, apesar de ter sido uma grande conquista do habitante à apropriação do espaço público, precisa ser pensada de forma democrática, atendendo a todos os modais ativos de transportes. Por isso, em um primeiro momento, procuro pensar as primeiras diretrizes de um projeto de microacessibilidade.

Nas últimas décadas do século XIX, as primeiras linhas de bonde da cidade já haviam sido construídas interligando o triângulo histórico à estação da Luz. Pensando o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) como um modal de transporte eficiente e sustentável, tento recuperar a antiga linha de bonde, comunicando as várzeas e a colina central, através de duas linhas circulares que interligam as principais estações de metrô, trem e terminais de ônibus da área central passando pelas suas principais localidades e equipamentos culturais.

Em paralelo à proposta de duas linhas de VLT, dentro do triângulo, traço vias locais, abertas das 20h às 08h, para veículos particulares, preservando o perímetro central entre a rua Direita, Quinze de novembro e São bento. As vias locais noturnas, abertas ao veículo público e particular, de mão única e com leito carroçável, aliadas ao VLT, diminuiriam as distâncias percorridas pelo pedestre. Também auxiliariam os comerciantes locais com suas necessidades de carga e descarga e reacenderiam o interesse no comércio noturno, aumentando a densidade demográfica do calçadão fora do período comercial.

intenção: a microacessibilidade

0 200 1000

vazio escolhidoedifícios notáveis

VLT - linha circular 1VLT - linha circular 2

vias locais 12 hrs20h as 08h

estação de metrôterminal de ônibus

LIBERDADE

SÃO BENTO

LUZ

SÃO BENTO

ANHANGABAÚ

DOM PEDRO IIBANDEIRA

DOM PEDRO II

PEDRO LESSA

AMARAL GURGEL

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Em paralelo a essa iniciativa de requalificar as áreas abertas do centro de São Paulo, acredito que pensar um novo edifício é criar um convite a uma nova forma de manifestação concreta de um espaço habitável e cotidiano, numa cidade em que o cidadão-comum, habituado a tantas informações e transformações, tem como primeiro estímulo de percepção a imagem física. A recente desapropriação do terreno anexo ao Edifício Sampaio Moreira, localizado na rua Líbero Badaró, me revela um vazio estratégico com grande potencial para receber um edifício de uso misto anexo à Secretaria Municipal de Cultura. O edifício Sampaio Moreira, pensado por Cristiano Stockler e Samuel das Neves para compor o Parque do Anhangabaú, em construção na época, foi inaugurado em 1924. Com 12 andares e 50 metros de altura foi considerado o primeiro arranha-céu da cidade de São Paulo, perdendo seu posto para o edifício Martinelli cinco anos mais tarde.

O edifício foi tombado em 1992 e até hoje abriga a Mercearia Godinho em seu térreo. Teve sua primeira recuperação de fachada em 1980 e em 2010, foi desapropriado pelo Prefeitura de São Paulo para receber a Secretaria Municipal de Cultura. Sua restauração e recuperação da fachada se iniciaram em 2012 e a primeira etapa foi entregue em 2018.

O terreno vizinho, que abrigava um estabelecimento comercial térreo foi desapropriado para receber uma praça anexa à Secretaria. Esse vazio tem uma localização estratégica entre os gigantes arranha-céus do outro lado da rua, que criam um recorte de paisagem para quem está no outro lado do vale ou passa pelo Viaduto do Chá. O vazio tem 300 m2 e 11, 6 m de fachada e ao pensar em um programa que explodisse o tamanho desse terreno e analisar o mapa de tombamentos da região, vi a possibilidade de desapropriar os dois terrenos traseiros, para a rua São Bento, que também são vizinhos de um importante e histórico edifício do centro, o Cine São Bento.

Na busca de ressignificar a imagem do centro como espaço habitável, uno as funções do público e do privado em um só edifício. Espaços habituais e de apropriação cotidiana, a morada e suas extensões criam uma pausa em meio ao percurso histórico, constituindo cidade. O edifício nasce então, como a casa do estudante, pensada para abrigar estudantes de qualquer instituição que necessite de subsídio para se manter sozinho na cidade de São Paulo. O centro tem acesso fácil e direto a dezenas de faculdades e instituições, dispersas não só em suas proximidades imediatas, mas também em bairros próximo como Barra funda, Vergueiro e Mooca, tornando a morada na colina histórica atrativa e funcional para esse público. Além de pensar o centro como uma localidade rica em infraestrutura e equipamentos para abrigar a moradia estudantil, penso o estudante como um jovem aberto a acreditar num centro habitável, com ruas seguras e cheias de vida.

Como extensão do morar, a casa do estudante abre espaço para um anexo à nova Secretaria de Cultura da cidade. Nas alturas, seu átrio se junta à cobertura do novo edifício para receber um restaurante aberto ao público. Sobre o térreo, que se transforma em praça ao ligar os dois lados da quadra, flutuam duas plantas livres que, por uma passarela metálica, chegam ao outro bloco do edifício. Este, também planta livre para infinitos usos se conecta, por uma escada e um elevador, ao bar e restaurante, abertos à praça interna e à Rua São Bento. Já o Cine São Bento tem sua fachada e foyer recuperados e a antiga sala, que hoje deu lugar a três estabelecimentos comerciais, recebe um teatro de residência artística, envolvido pelas antigas paredes do cinema. Com duas platéias que se olham, o teatro tem grandes janelas que abrem o palco central para a praça, permitindo que o ensaio vire espetáculo.

mercearia godinolojaacesso secretariada culturaacesso habitaçãobicicletárioacesso teatrobar restaurante/espaço polivalentecozinha/almoxarifadocamarim individualpalcocamarim coletivomezaninobalcãosala técnica

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térreo inferior térreo superior primeiro pavimento

cine são bento a demolir

secretaria da cultura

vazio

teatro são bento anexo secretaria

secretaria da cultura

moradia estudantil

intervenção: o edifício o programa do edifício

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secretaria da culturaespaço polivalentehabitaçãosaída de emergênciahorta coletiva

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segundo pavimento pavimento tipo pavimento tipo + 1

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secretaria da culturasaída de emergênciasala de estudosgrêmio estudantilvivênciacozinhamiranteátrio da secretaria/ terraço barhabitaçãoterraço

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pavimento comum cobertura cobertura + 1

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CORTE BB

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corte aa

corte bb corte cc

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CAIXILHO DE VIDROVENEZIANA DE AÇO CORTÉN

FECHAMENTO EM CHAPA DEPLOYER

UNIDADE FAMILIAR 55 m2

ESTÚDIO35 m2

ESTÚDIO38 m2

CAIXILHO DE VIDROVENEZIANA DE AÇO CORTÉN

FECHAMENTOEM POLICARBONATO

QUATRO DORMITÓRIOS - ACESSÍVEL80 m2

QUATRO DORMITÓRIOS80 m2

TRÊS DORMITÓRIOS60 m2

ESTÚDIO 20 m2

FECHAMENTOEM CHAPA DEPLOYER

PORTA DE CORREREM POLICARBONATO

CAIXILHO DE VIDROVENEZIANA DE POLICARBONATO

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Ao longo dessa jornada final da graduação, em busca de estudar novas formas de ressignificar o centro de São Paulo e reconstruí-lo como espaço habitado, foi inevitável refletir sobre meu papel como arquiteta e urbanista e a atuação na preexistência arquitetônica. A faculdade de arquitetura nos faz entrar em contato cotidiano com o espaço que habitamos e ao longo da minha formação acredito ter construído um olhar atento à cidade.

Pensar arquitetura e pensar a cidade contemporânea é um exercício que venho fazendo desde meu ingresso na universidade e para sua finalização, volto meu olhar ao centro histórico, onde tudo começou, não em busca de recriar o espaço já existente, mas de entender aquelas relações invisíveis, na escala do indivíduo. Intervir com o ensaio de um edifício que não se encerra dentro do recorte abordado, mas se apresenta como um convite à uma nova apropriação de todo o centro.

Ao lado do belíssimo Sampaio Moreira, a materialidade do novo edifício aparece. Venezianas em aço cortén, criam um novo retrato da arquitetura em três tempos. O térreo vira praça e encontra os dois lados da quadra. Concreto, aço, policarbonato, água e jardim, todos juntos. A circulação vira varanda, o quintal da casa. Casa de residência artística, no antigo Cine São Bento, o teatro abre suas janelas e o ensaio vira espetáculo aberto e em constante movimento.

Acredito que o edifício aqui ensaiado, a casa do estudante, intimamente ligado a um órgão público, a Secretaria de Cultura, se insere no centro com função social. O funcionário público estará ali presente todos os dias, dinamizando o espaço em horário comercial e o estudante, inserindo, ainda que aos poucos, a imagem do centro como morada, um cenário íntimo e acolhedor. Ao abrir a quadra conectando as duas ruas com bar e restaurante, teatro e jardim, a intervenção também faz um paralelo às galerias das décadas de 40 e 50, em que se concentrava a vida cultural e artística da cidade. No térreo e na altura, o novo edifício não só sugere a apropriação cotidiana, mas também situações transformadoras do espaço habitado.

desdobramentos

8/8