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Largo Prof. Abel Salazar, 2. 4099-003 Porto Telefone: +351 22 206 22 00 Faz: +351 22 206 22 32 E-mail: [email protected]
ARTIGO TIPO “CASE REPORT”
Castigo vs Abuso na Criança.
A propósito de três casos.
ORIENTADORES:
Prof. Doutora. Teresa Maria Salgado de Magalhães
Dra. Cristina Silveira Ribeiro
ALUNO:
Wilson Filipe da Silva Malta
Wilson Malta 2
“Quem bem ama bem castiga”? (Ditado popular Português)
Ao excelente trabalho por parte da Prof. Doutora Teresa
Magalhães, minha orientadora de tese, que me deu todas as
indicações necessárias para a realização e conclusão deste
trabalho;
À Dra. Cristina Silveira Ribeiro, minha co-orientadora, que me
encaminhou e tanto me ajudou nesta caminhada, com quem
muito aprendi;
Aos meus familiares por todo o apoio pois sem eles esta batalha
tornar-se-ia ainda mais complicada.
Wilson Malta 3
ÍNDICE
Resumo…………………………………………………………………………... 4
Palavras-Chave………………………………………………………………….. 4
I. Introdução……………………………………………………………………….. 6
II. Desenvolvimento………………………………………………………………… 8
A. Questões históricas, sociais, culturais, religiosas e da ciência……………. 8
B. Actualidade social e legal…………………………………………………… 12
III. Apresentação de Casos Clínicos…………………….........…………...………... 14
1. Caso I…….....………………………………………………………..…………... 14
1.1 Da Perícia Médico-Legal……………………………………………. 14
1.2 Da Decisão do Tribunal Singular…………………………………... 15
2. Caso II…………….……………………………………………………………… 15
2.1 Da Perícia Médico-Legal……………………………………………. 15
2.2 Da Decisão do Ministério Público…………………………………... 16
3. Caso III..………………………………………………………………................. 17
3.1 Da Perícia Médico-Legal……………………………………………. 17
3.2 Da Decisão do Ministério Público…………………………………... 17
IV. Discussão…………………………………………………………………………. 18
V. Conclusões......…………………………………………………..……………….. 19
Wilson Malta 4
RESUMO
Objectivo: Fazer uma reflexão sobre o castigo físico (CF) como forma de disciplina aplicada
a crianças e jovens em contexto educacional no espaço da família. Para tal são discutidos três
casos práticos relacionados com suspeita de abuso físico (AF) infantil, sujeitos a perícia médico-legal,
fazendo uma abordagem dos mesmos de acordo com o suporte legal em vigor à data de cada uma das
ocorrências.
Desenvolvimento: É feita revisão bibliográfica sobre a representação social e legal do CF ao
longo dos tempos em várias sociedades, incluindo a forma como a ciência e as religiões olharam
para o mesmo tema, e como ainda, na actualidade, continuam a fazê-lo. Um castigo tem
usualmente como objectivo promover a correcção, punir ou reprimir uma conduta que se
considera incorrecta. Pode acontecer no âmbito de um sistema legal ou a nível institucional ou
familiar. Nestes dois últimos contextos, tendo em conta o tipo de relacionamento interpessoal
“cuidador versus menor de idade”, facilmente se pode transformar em comportamentos física e
psicologicamente violentos ou até de coacção que se sabe deixarem para o futuro um conjunto
de sequelas a nível emocional e até, eventualmente, a nível físico, além do risco de reprodução
transgeracional, conforme é corroborado por vários estudos científicos citados. Apresenta-se
uma reflexão sobre a actualidade social e legal do CF na sociedade actual em vários países.
Conclusões: Mesmo com intenção de educar, os gestos de natureza violenta põem em causa
os direitos das vítimas. O entendimento do CF não está relacionado com a descrição do gesto
aplicado, mas com a gravidade da lesão resultante. As definições médicas concentram-se mais
sobre o efeito que a lesão tem sobre a criança do que sobre a intenção demonstrada por parte do
cuidador. A OMS, assim como a UNICEF, consideram que “o castigo físico deve ser entendido
como uma forma de abuso”.
PALAVRAS-CHAVE
Castigo físico; educação; abuso; violência; crianças e jovens; contexto cultural e social.
Wilson Malta 5
ABSTRACT
Purpose: To discuss physical punishment (PP) as a mean of discipline applied to children
and teenagers in an educational context in a family environment. Three cases related to
suspected child physical abuse, and submitted to mandatory medico-legal expertise, are
discussed and their approach is made in accordance with the criminal law legal in evidence at
the date of each of traumatic event.
Development: A bibliographic research is made on social and legal representation of PP in
various societies throughout time including the perspective of science and religion on this topic,
focusing the current outlook on this subject. Punishment is usually used as a means of correction,
to punish or reprimand certain behavior which is considered incorrect. This can happen in a
scope of a legal system or at institutional or family level. In the last two contexts, taking into
account the type of interpersonal relationship “caregiver versus minor”, it could be easily
transformed into violent physical and psychological behavior or even coercion which is known
to leave a number of after-effects at emotional level or even, eventually, at a physical level,
surely existing the risk of generational reproduction, as is corroborated by various quoted
scientific studies. A research of bibliography about current social and legal point a view over PP
in present society in various countries is presented.
Conclusions: Even with the purpose of education, the gestures of offensive nature may put
victim’s rights at stake. The understanding of PP is not so closely tied to the type of the gesture
applied, but more with the seriousness of the resulting injury. The medical definitions
concentrate nowadays more on the effect which the injury has on the child than on the intention
demonstrated by the caregiver. The OMS as well as UNICEF consider that “physical
punishment must be understood as a form of abuse.”
KEYWORDS
Physical punishment; education; abuse; violence; children and teenagers; cultural and social
context
Wilson Malta 6
I. INTRODUÇÃO
Um castigo tem usualmente como objectivo promover a correcção, punindo ou reprimindo uma
conduta que se considera incorrecta no sentido de induzir a mudança desse comportamento. Pode
acontecer no âmbito de um sistema legal (e.g., a um trabalhador, a um delinquente, de acordo com
normativo legal, seja ele disciplinar ou penal) ou a nível institucional ou familiar (e.g., a uma
criança na escola ou em casa). Os perfis destas condutas estão de acordo com a cultura social,
podendo haver, ou não, restrições legais face a estas práticas1. Genericamente pode classificar-se o
castigo como impositivo [sujeição da pessoa a algo de penoso ou oneroso/pecuniário (e.g., multa)],
restritivo [aquele que restringe a realização de uma determinada actividade por uma pessoa ou
corporal (e.g., prender, suspender, impedir a pessoa de sair de casa, de sair da sala de aulas no
intervalo, de ver televisão ou de jogar)]; destes, a maior parte têm carácter educativo e não põe em
causa os direitos das pessoas. O castigo pode ser também do tipo corporal ou físico constituindo
este uma forma violenta de repressão ou coacção, traduzindo-se na produção intencional de dor
física a alguém (e.g., açoite, palmada, bofetada)2.
Apesar da crescente preocupação global sobre a prevalência dos castigos físicos no espaço
família - perpetuado pela permissividade e até aprovação social deste gesto - tem sido fomentado
um interesse amplo em compreender a sua prevalência bem como as suas diferentes apresentações.
A maioria dos castigos físicos dirigidos a crianças envolve o bater com a mão (“de raspão”,
“estalos”, “surras”) ou com um objecto (chicote, bastão, cinto, sapato, colher de pau, etc.); mas
também pode envolver, por exemplo, o pontapé, o agitar ou empurrar as crianças, arranhar, beliscar,
morder, puxar os cabelos ou as orelhas, forçar a permanecer em posições desconfortáveis, queimar,
forçar a ingestão de algo (e.g., forçar a aceitação do biberão, obrigar a engolir alimentos ou
objectos). Ainda que se assumam com finalidade educativa, encerram comportamentos que podem
resultar em danos importantes para a saúde, segurança e normal desenvolvimento físico e
psicológico daqueles que a eles estão sujeitos, nomeadamente nas crianças e jovens, pondo em
causa os direitos e garantias que a lei confere a cada indivíduo. Além da modalidade de CF no
contexto de educação existem outras modalidades de castigo que são igualmente, ou até mais cruéis
e degradantes. Estas incluem, por exemplo, a punição que menospreza, humilha, denigre, ameaça,
assusta ou ridiculariza a criança. Todos os castigos físicos são invariavelmente degradantes3.
Em 1996 O Third National Incidence Study (NIS-3)4 apresenta pela primeira vez uma definição
de “castigo físico em crianças” como sendo “uma forma de maus-tratos em que uma lesão é
infligida à criança por um cuidador através de diversos meios e de forma não acidental, de forma a
provocar-lhe dor ou mau estar físico, incluindo bater com a mão, com um pau, correia ou outros
objectos, socos, pontapés, abanões, empurrões, queimaduras, etc”.
Wilson Malta 7
Em 2006, o CF de crianças é definido pelo Comité dos Direitos da Criança3 como "qualquer
punição em que a força física é usada com a intenção de causar um certo grau de dor ou
desconforto, no entanto ligeiro" Segundo a OMS e a UNICEF, o CF deve ser entendido como uma
forma de abuso. Aliás, neste sentido vai também o actual Código Penal português (CP)5, que nos
crimes de “Violência doméstica” e de “Maus tratos” faz referência aos castigos corporais (Arts.
152º e 152º-A) relacionados com os casos que acontecem na família ou estruturas equiparadas e
com os que acontecem em contexto institucional ou de dever de cuidado, respectivamente.
Entende-se assim que há vantagem em construir uma definição objectiva e abrangente sobre o
que é ou não é considerado como sendo CF e ainda qual é o limite - se é possível distingui-lo - que
separa o abuso físico (AF) do CF infantil.
Desde há largos anos e em vários países têm vindo a ser implementadas medidas educacionais,
sociais e legais no sentido de limitar e reprimir o uso do CF em contexto educacional, chegando até
à punição legal, sendo este último o caso de Portugal desde 2007.
Neste contexto de pesquisa e de reflexão é necessário fazer uma revisão sobre a evolução social
e legal que o tema do CF, como forma de disciplina aplicada a crianças e jovens, foi evidenciando
ao longo dos tempos em várias sociedades, incluindo a forma como a ciência e as religiões olharam
para o mesmo tema, e como ainda continua a fazê-lo.
Para melhor contextualização e cumprida a pesquisa e reflexão atrás referidas, este estudo
evolui para o olhar sobre três situações reais relacionadas com suspeita de AF infantil e, por isso,
obrigatoriamente sujeitos a perícia médico-legal, fazendo a leitura dos mesmos de acordo com o suporte
legal em vigor na data de cada uma das ocorrências.
Wilson Malta 8
II. DESENVOLVIMENTO
A) Questões históricas, sociais, culturais, religiosas e da ciência
O CF tem sido uma prática secular em muitas sociedades e épocas até à actualidade inclusive no
contexto da educação religiosa6. A história do CF em contexto educacional em crianças e jovens
não é muito clara e a sua menção não é regular ao longo dos tempos. As referências a este tipo de
prática aparecem ora contextualizadas socialmente, outras vezes culturalmente, sendo encontradas
também algumas referências de cariz religioso.
A violência na infância sempre esteve ligada ao papel que na sociedade e na família foi sendo
atribuído à criança nas diversas culturas e sociedades, até à actualidade. Este papel, longe de
conferir à criança um estatuto próprio enquanto pessoa titular dos seus direitos foi, antes,
potenciador de uma longa e negra história de abuso perante estes seres frágeis e desprotegidos.1
Encontram-se relatos da prática de CF no século X a.C. (Míshle Shlomoh, Provérbios de
Salomão) e referencias também nas civilizações clássicas sendo usado na Grécia, Roma e no Egipto
como disciplina judicial e educacional7. Bater em crianças era um comportamento normativo e não
ilegal, dentro do que na actualidade entendemos como legal. Também no Talmud há indicação de
que o pai podia bater nos seus filhos, e um professor nos seus alunos, mas apenas com um
determinado modelo de sapato de uso comum na época (em pele)8.
No final do século VII a.C., Senaqueribe, um sábio assírio (mencionado na Tobit), escreveu: "O
filho que é treinado e ensinado e [cujos] pés em obstáculos colocado [prosperará]”9. E ainda, "não
retires o teu filho do castigo, senão tu não serás capaz de o salvar [da] maldade. Se eu te ferir, meu
filho, tu não queres morrer, mas se eu te deixar entregue a ti próprio e ao teu coração tu [não
queres viver] "10
.
No século IV a.C., na Grécia, Menandro afirma que "quem não é açoitado não é educado"11
.
Cerca de 2000 a.C., existem referências que em escolas da Suméria os alunos eram castigados se
fossem os primeiros a sair, se falassem sem permissão, se não soubessem falar sumeriano ou se não
tivessem uma caligrafia cuidada queixando-se ainda de terem medo de entrar na escola quando
estavam atrasados12
. Um expoente de moderação aparece no primeiro século a.C. com Alexandrino
Pseudo-Phocylides clamando que "não se usa a mão violentamente em crianças (...) não se pode
ser severo com os filhos, mas sim gentil."13
. E ainda, "se um pai, estiver excessivamente irritado, e
por isso punir ou matar um filho, não é, como no direito romano, imune às consequências dos seus
actos: deverá ser assassinado"11
.
Em épocas mais recentes já se encontra extensa literatura sobre a sua utilização do CF como
auxiliar educativo como, por exemplo, nas escolas britânicas14
. A partir de 1860, na Grã-Bretanha, a
Wilson Malta 9
lei autorizava a castigar corporalmente a criança "para corrigir o que está mal ", podendo os pais
"causar razoável a moderada punição corporal."14
Nos E.U.A, em 1867, em mais 27 Estados, estava já proibido o CF nas escolas. No entanto, em
1977, o Supremo Tribunal dos E.U.A. rejeitou a moção de que a punição corporal de crianças era
cruel15
.
Nenhuma publicação médica anterior a 1910 faz referência específica à questão do CF na
criança, talvez por falta de uniformidade de opinião, considerando-se esse gesto como aceitável e
até da responsabilidade dos progenitores - especificamente os do sexo masculino - que detinham o
dever de punir fisicamente as crianças nas situações de transgressão.
Em 1920, a Psicologia desenvolve a área de estudo do desenvolvimento infantil descrevendo
diferentes estadios de desenvolvimento nesta fase da vida associados ao benefício de diferentes
formas de disciplinar. Em 1940, psicólogos e psiquiatras registam em múltiplas publicações
conselhos sobre formas de educar as crianças – questionando o “castigo físico” mas não o fazendo
de forma sistemática. Na década 1940 – 1950, as Teorias Psicanalíticas de Freud (já afloradas nos
anos 1910 e 1920), são retomadas, considerando que o CF no contexto educacional podia provocar
dano psíquico a longo prazo, levando assim à avaliação da motivação dos progenitores para a
aplicação de castigos corporais nas crianças e sendo aflorados e identificados os riscos relacionados
com a utilização do CF. São estabelecidos os padrões de comportamento para os diversos estadios
de desenvolvimento da criança sendo sugerido e considerado que muitas das “alterações de
comportamento” que tinham “motivado” o CF como método educativo num passado recente
correspondiam então a estadios normais do desenvolvimento infantil. Pediatras e psicólogos do
desenvolvimento começam então a examinar de perto a importância do relacionamento pais/filhos
assim como as forças que o promoviam ou enfraqueciam. Surge então o debate objectivo sobre a
distinção entre CF e AF da criança e, também, sobre o impacto futuro destes comportamentos
traumáticos sobre a criança. Estudos relacionados com sequelas resultantes da utilização regular de
CF educativo mostram os efeitos muito negativos sobre o desenvolvimento afectivo, social e
cognitivo da criança, com graves repercussões na vida adulta16
.
Desta forma, o CF começa a deixar de ser visto como uma resposta normativa à “maldade” da
criança para passar a ser interpretado como uma resposta desviante do adulto a comportamentos
infantis normais.
Quando o CF não conduz aos resultados desejados pelo educador, a tendência é o aumento da
intensidade e da frequência levando a um círculo vicioso que pode terminar em situações trágicas.
Zagury17
postula que em algumas situações, mesmo apanhando e com medo, a criança identifica
esse acto como humilhante, encontrando forças para enfrentar os pais quando dizem “nem doeu!”.
Wilson Malta 10
Essa é uma forma de defesa que pode redundar em mais agressões, devido a um possível
descontrolo por parte dos progenitores/cuidadores.
Em 1946 a Pediatria assume nos E.U.A. a liderança na área do aconselhamento sobre disciplina
no contexto do desenvolvimento infantil. Benjamin Spock publica “Baby and Child Care” (em
1968, já com 179 edições), advogando que o CF poderia ser útil em determinadas circunstâncias -
“(...) não sou a favor do castigo físico mas penso que por vezes ele se torna menos venenoso do que
outro castigo, porque clarifica a atmosfera entre progenitor e filho (...)”. No entanto, se em 1963 a
disciplina, com a sua tonalidade positiva, era vista como apresentando vantagens em termos de
desenvolvimento relativamente à negatividade do CF, já em 1977, na obra “Introduction to Clinical
Pediatrics” se defendia o CF como método de condicionamento em certos estadios de
desenvolvimento infantil18
.
Em 1962, com a definição de Kempe sobre “Síndrome da criança batida”19
, é introduzida a
preocupação sobre a pouca distância existente entre CF e AF. Surgem as primeiras guidelines para
orientação diagnóstica - “O castigo físico que causa equimoses ou outro tipo de lesão que exija
tratamento médico considera-se como estando fora do campo do castigo aceitável. A presença de
equimoses implica traumatismo intenso” e, ainda, “para minimizar o risco de abuso físico é
necessário minimizar o uso de castigo físico educativo”, reforçando-se assim a natureza contínua
deste constructo de violência, ou seja, o continuum entre o CF e o comportamento abusivo.
O termo disciplina reporta-nos a Durkheim (início do século XX) e Foucault (década de 60/70),
cujos estudos, produzidos em tempos e contextos diversos e alvos de diferentes significados,
apresentam um carácter sempre actual, na medida em que abordam a questão da disciplina a partir
da noção moral (Durkheim) e de normalização (Foucault)20,21
- "(...) Provavelmente nenhum outro
sociólogo de educação terá, melhor do que Durkheim, posto em evidência a função do controlo
social inerente à disciplina escolar, ao relacioná-la, simultaneamente, com a necessidade da
educação moral e de ordem social". Durkheim21
afirma que “a família constitui um ambiente que,
pelo seu calor natural, se apresenta particularmente apto a fazer despontar as primeiras
inclinações altruístas, os primeiros sentimentos de solidariedade, mas a moral que ali se pratica é
sobretudo afectiva. É na escola que a criança deve adquirir o necessário respeito pela regra e
aprender a cumprir o seu dever. Assim, a escola desempenha o importante papel de guarda
avançada da moral e é através da escola que a coesão social é assegurada”.
Baumrind (1973)22
sugere que os efeitos do CF na criança devem ser considerados tendo em
conta o contexto social vigente de “controlo parental”, estando este directamente relacionado com o
nível de aceitação de violência física que existe na sociedade tal como acontece na actualidade.
Graziano23
(1994) descreve o conceito de “violência sub-abusiva” contra crianças, sendo este termo
usado para descrever aquele tipo de violência socialmente aceitável dirigida a crianças com a
Wilson Malta 11
finalidade de disciplinar, desferindo estalos, palmadas ou provocando traumatismos usando
objectos.
Simmons et al24
refere a situação de “parentalidade insuportável” e relaciona-a com a
convivência com gritos, palmadas, empurrões e agressão com objectos, misturando-se esta com a
definição de AF, saindo reforçada a ideia da necessidade de focar a atenção na natureza contínua e
não dicotómica destes constructos25
.
Mesmo com intenção disciplinar educativa, o acto de bater facilmente ultrapassa os limites
colocados pelo próprio educador. Segundo Bessa et al.26
, a punição física muitas vezes é utilizada
de maneira descontrolada, mais como alívio para quem bate do que como meio disciplinar.
Definem-se assim as dimensões mais comummente associadas às definições de disciplina física:
(a) tipo de comportamentos dos progenitores/cuidadores; (b) níveis de severidade de punição; (c)
intenção do progenitor/cuidador; e (d) a antecipação de efeitos na criança. Estas dimensões podem
ser agravadas por: (a) fontes e nível de stress na família associados ao temperamento da criança; (b)
antecedentes dos progenitores/cuidadores e características das suas personalidades; c) os valores
culturais e religiosos; e (c) normas sociais. Existem também factores de stress específicos
associados a famílias em maior risco para ocorrência de CF: (a) maternidade precoce; (b) alta
mobilidade geográfica; (c) família numerosa; (d) pobreza; (e) situação étnica minoritária; (f) baixo
nível educacional; e (g) desemprego. Os limites tolerados de intensidade, frequência e formas do CF
educativo culturalmente aceites são muito variáveis entre grupos sociais e familiares27
.
Surgem assim várias definições de CF:
a) “Castigo físico constitui o acto de violência legalmente permissível adoptado no contexto
de papel parental incluindo a forma de violência severa como por exemplo agressão
utilizando objectos”28
;
b) “Castigo físico é qualquer acção utilizando força física com a intenção de provocar
algum grau de dor ou desconforto ainda que leve”29
;
c) “Castigo físico” definido com base em critérios médicos mais recentes que preferem
focar-se mais concretamente sobre “o efeito que a lesão tem na criança e menos na
intenção que se depreende entender por parte do cuidador”, definido com “base na
gravidade das lesões as quais podem ir desde o eritema que desaparece em algumas
horas até lesões graves que terminam na morte - uma vez que a criança apresenta lesões
que necessitam de cuidados médicos.”30
.
Wilson Malta 12
B) Actualidade social e legal
A nível mundial, apenas uma muito ínfima percentagem das crianças está legalmente protegida
relativamente ao CF, quer na família, quer nas instituições, designadamente nas escolas e lares.
Alguns países, presentemente 29 (Tabela 1), beneficiam de leis que proíbem o CF em crianças, em
contextos familiar e educacional, por estes serem considerados como uma violação dos direitos
humanos31,32,33,34,35
.
Em Portugal, o CF está proibido nas escolas, a nível institucional em geral e no espaço da
família. No entanto, neste último caso, e apesar da lei penal (crime público desde 15.09.2007),
continua a ser socialmente tolerado. Tal facto resulta de circunstâncias socioculturais (sobretudo a
tradição e a transmissão geracional desses comportamentos), o que legitima e incentiva os castigos,
à luz daquilo que é ainda considerado como sendo o “poder de correcção” ou o “poder-dever de
educar”. Este poder confunde-se ainda com o poder de agredir, de abusar, mesmo que se trate
“apenas” de um beliscão, de uma palmada, bofetada ou puxão de orelhas. Além do dano
psicológico, tais práticas podem provocar danos físicos significativos e, em alguns casos, mesmo
fatais1.
O CF é usado por aproximadamente 94% dos progenitores em muitos países36
mas apesar disso
um grande número de países baniu o seu uso37
. Alguns pediatras norte americanos opõem-se
terminantemente ao uso de qualquer tipo de CF, enquanto outros pensam existirem situações em
que o CF não abusivo deve continuar a ser uma opção de disciplina38
. Gershoff 39,40
, autor de uma
das maiores revisões bibliográficas realizada sobre este tema, manifesta a sua total oposição a
qualquer tipo de CF, enquanto outras três revisões bibliográficas levam a conclusões menos
absolutas41,42
.
Em Inglaterra a “bengalada” foi abolida das escolas públicas só em 1986 (Education Act),
continuando a ser aceite e tolerado o CF na família e nas escolas privadas, desde que os
progenitores concordem com o código disciplinar da escola43
. Na Nova Zelândia44
, um estudo onde
foram inquiridos indivíduos com 25 anos de idade com filhos (aplicando a Parent-Child Conflict
Tactics Scale), identificou-se que 75% daqueles reportaram ter sido fisicamente castigados
enquanto crianças e quase 12% dos mesmos, reportaram ter castigado fisicamente, de forma severa,
um filho durante o ano anterior ao do estudo.
A Lei Canadiana proíbe o CF mas o Supremo Tribunal Canadiano, em Janeiro de 2004, passou
a permitir aos progenitores a possibilidade de dar palmadas nas crianças com idades compreendidas
entre os 2 e os 12 anos, desde que com limitação na força usada na palmada45
.
Na Suécia o CF por progenitores foi banido em termos de lei em 1979, sendo este gesto
considerado como medida social e política necessária para reduzir a questão do AF de crianças. Em
Wilson Malta 13
estudo realizado em 1999 naquele país, os números encontrados revelam que a proibição do CF
pouco adiantou46
, havendo evidências, não publicadas, que sugerem que a frequência de AF na
criança na Suécia continuou a manter-se elevada, apesar de a taxa de mortalidade associada ter
diminuído.
Há muitas variações em termos de contexto cultural e popular sobre a forma e a eficácia do CF,
de acordo com vários estudos disponíveis. Num estudo Canadiano47
, 59% das pessoas inquiridas
entenderam que o CF era altamente desaconselhado. Investigações efectuadas nos E.U.A.
identificaram que 84% dos inquiridos concordaram que “por vezes é necessário disciplinar uma
criança com um bom estalo”48,49
. Estudos efectuados na República da Coreia revelaram que 90%
dos progenitores entendiam o CF como necessário50
. Em relatório de inquérito efectuado a crianças,
proveniente do Yemen, cerca de 90% das crianças descreveram que o CF e a humilhação eram as
principais formas de disciplina na família, sendo a mais comum a agressão física51
.
Tabela 1 - Países e ano de abolição do CF em crianças (espaço escola e família)52
ANO PAÌS
1979 Suécia
1983 Finlândia
1987 Noruega
1989 Áustria
1994 Chipre
1997 Dinamarca
1998 Letónia
1999 Croácia
2000 Alemanha; Bulgária; Israel
2003 Islândia
2004 Hungria ; Ucrânia; Roménia
2007 Espanha; Grécia; Holanda; Nova Zelândia; Portugal; Uruguai; Venezuela
2008 Costa Rica; Luxemburgo; Liechtenstein
2009 Moldávia
2010 Kenia; Tunisia; Polónia
Wilson Malta 14
III. APRESENTAÇÃO DE CASOS
São analisados 3 casos avaliados em perícia médico-legal por suspeita de AF infantil
seleccionados a partir de estudo realizado na Delegação do Norte do INML, I.P., que incluiu 1130
casos de suspeita de abuso físico de crianças avaliadas entre 2004 e 2008, e relativamente aos quais
foi possível obter a decisão judicial. A selecção dos casos foi feita de acordo com os seguintes
critérios: (a) ano em que aconteceu o traumatismo; (b) idade da vítima (verificando-se no estudo
referido anteriormente ter sido esta a faixa etária na qual se identificou maior número de vítimas); c)
relacionamento com o suposto agressor (cuidador directo); (d) decisão judiciária (nível do
Ministério Público) e judicial (Tribunal Singular).
Nestas situações, e no que se refere à decisão judiciária em fase de inquérito (ao nível do
Ministério Público), faz-se específica referência e discussão sobre a questão abuso físico vs castigo
físico de crianças. Os casos são relativos a 2004, 2007 e 2008 e ilustram os diferentes olhares sobre
a ocorrência do CF educacional de crianças à luz das molduras penais vigentes nos anos referidas. É
de notar que em 15.09.2007 ocorreu uma alteração no Código Penal Português com a introdução da
renomeação e renovação do conteúdo dos crimes de “Violência doméstica” e de “Maus tratos”, nos
quais passaram a ser integrados os castigos físicos.
CASO 1.
a) Da perícia médico-legal
Sexo feminino, 13 anos de idade na data da perícia médico-legal, estudante, relata em
29.11.2004 ter sido vítima de agressão por parte de seu pai, com bofetadas, pontapés e utilização de
chicote em ambas as coxas. Assistida em SU hospitalar no mesmo dia do traumatismo
(29/11/2004), não tendo sido efectuados exames complementares de diagnóstico, tendo tido alta
sem prescrição medicamentosa e sem recomendações específicas. No registo de admissão no SU
consta: “(…) doente do sexo feminino, com 13 anos de idade, vem ao SU por ter sido agredida.
Apresenta: hematoma na região externa da coxa direita (10 cm por 4 cm) e escoriação (6 cm por 1
cm); hematoma (12 cm por 4 cm) na região externa da coxa esquerda e três escoriações com 4 cm, 3
cm e 3 cm de extensão por 1 cm de largura. Interrompeu a sua actividade de formação por um
período de 4 dias. Na data da perícia médico-legal (39 dias após o traumatismo) não referia
qualquer tipo de queixa subjectiva relacionada com a ocorrência traumática e ao exame físico
apresentava bom estado geral, sem qualquer tipo de lesão e/ou sequela relacionável ou não
relacionável com o traumatismo sofrido. A conclusão da perícia indica que as lesões sofridas terão
Wilson Malta 15
resultado de traumatismo de natureza contundente o que é compatível com a informação veiculada
pela menor e que não resultaram quaisquer consequências permanentes a nível anatómico.
b) Da decisão do Tribunal Singular (Processo comum)
Inquirido o pai da criança, este referiu no dia da agressão ter sido chamado pela direcção da
escola frequentada pela ofendida, devido ao recorrente comportamento desadequado da mesma. Por
isso ficou emocionalmente alterado. Assim, mal entrou em casa, dirigiu-se à sua filha e desferiu-lhe
vários estalos na cara, perseguindo-a até ao quarto dela, onde a atingiu em várias partes do corpo
com pancadas desferidas com as mãos. Seguidamente, muniu-se de um chicote de fios eléctricos,
com o qual desferiu duas chicotadas nas pernas da filha. O pai manifestou arrependimento.
O Tribunal considerou que decorre da factualidade supra descrita que a conduta do arguido não
se pautou por qualquer relação do padrão de comportamento agressivo ou manifestamente cruel,
pelo que não se encontravam preenchidos os pressupostos do crime de maus-tratos na sua
totalidade, verificando-se porém um excesso no exercício do poder parental o que se enquadrava
num comportamento criminal por parte do arguido. Foi considerado que o arguido, de forma livre,
voluntária e consciente, quis molestar a ofendida, sua filha, na sua integridade física, o que
concretizou e conseguiu. E, ainda, que agiu o arguido bem sabendo que agia contra uma sua
descendente e que sua conduta era punida por lei. Face ao disposto, imputou-se ao arguido a
prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada pelo art.º 143 n.º1, 146 n.º1 e 2
todos do Código Penal.
Decisão: Absolvo o arguido, como autor material de um crime de maus tratos p. e p. no art.º
152 n.º1 a) do C. Penal de 1995. Condeno o mesmo arguido como autor de um crime de ofensas à
integridade física qualificada p. e p. pelo art.º 143 n.º1, 146 n.º1 e 2, todos do Código Penal na pena
de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à razão diária de 2 (dois) euros.
CASO 2.
a) Da perícia médico-legal
Sexo feminino, 14 anos de idade na data da perícia médico-legal, estudante do 6º de
escolaridade, vítima de agressão em 27.05.2007 por parte da sua madrasta, com murros e puxão de
cabelos. Não recorreu a assistência médica. Na data da realização da perícia médico-legal (1 dia
após o traumatismo), a examinada não referia qualquer tipo de queixa subjectiva relacionada com a
Wilson Malta 16
ocorrência. No exame objectivo observou-se um bom estado geral e ausência de qualquer tipo de
lesão e/ou sequela relacionável com o alegado traumatismo, não tendo sido efectuados exames
complementares de diagnóstico. As conclusões da perícia foram no sentido de que, na ausência de
lesões, não existiam elementos para suficientes para emissão de parecer médico-legal sobre as
consequências da eventual ofensa à integridade física.
b) Da decisão do Ministério Público
A ofendida vivia com o pai e com a companheira do pai, arguida no Processo. Inquirido o pai da
criança este referiu que vivia maritalmente com a companheira há 6 anos, reconhecendo que desde
há cerca de 3 anos esta maltrata as filhas do depoente sendo que, por este motivo, uma das suas
filhas saiu de casa indo coabitar com o namorado. O depoente também relatou que presenciou as
agressões na pessoa das suas filhas e que estas nunca recorreram a tratamento hospitalar,
acrescentando que há injúrias em relação às mesmas por parte da companheira eram constantes. O
depoente disse que nunca apresentou denúncia policial até esta data mas participou as ocorrências à
Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ). Na data desta inquirição referiu que não
desejava procedimento criminal contra a denunciada mas pretendia que ela saísse de sua casa.
Interrogada a denunciada (constituída arguida) a mesma admitiu ter dado algumas bofetadas o que
enquadrou no modo, enviesado, de “dar educação”, admitindo ainda, perante a irreverência das
filhas do seu companheiro, as ter tratado por “filhas da p…”, mas invocando que não com a
“intenção de atentar de alguma forma” contra a honra, consideração e respeito devidos. Porém,
considerou o Ministério Público que, no que ao crime de maus-tratos diz respeito, importa concluir
pelo arquivamento dos autos dada a inexistência de indícios, designadamente elementos de prova,
que permitam sustentar uma acusação pelo aludido crime. Determinou-se, assim, pelo arquivamento
dos autos de inquérito, por mera cautela, nos termos do artigo 277, nº2, do C.P.P, quanto aos factos
denunciados relativos ao crime de maus-tratos, sem prejuízo de acompanhamento que ressalta
ocorrer, da parte da CPCJ.
Decisão: quanto aos factos subsumíveis ao crime de ofensa a integridade física e injúria, nos
termos participados, face à renúncia ao exercício do direito de queixa, expresso nos termos das
declarações da ofendida (…) e do legal representante da menor (…) determino o arquivamento
deste inquérito, nos termos dos artigos 51º, n.º1 e 277º, n.º1 ambos do C.P.P. por inadmissibilidade
legal de procedimento, quanto aos factos configurados em sede das referidas subsunções legais.
Wilson Malta 17
CASO 3.
a) Da perícia médico-legal
Sexo masculino, 13 anos de idade na data da perícia médico-legal, estudante do 8º ano de
escolaridade, vítima de agressão em 05.08.2008 por parte de seu pai, com bofetadas na face e no
couro cabeludo. Não recorreu a assistência médica. Na data da perícia médico-legal (1 dia após o
traumatismo), o examinado não referia qualquer tipo de queixa subjectiva relacionada com a
ocorrência traumática. Ao exame objectivo apresentava bom estado geral e não se observava
qualquer tipo de lesão e/ou sequela relacionável com o evento não tendo sido efectuados exames
complementares de diagnóstico. As conclusões do exame pericial médico-legal foram no sentido de
que, na ausência de lesões, não existiam elementos para suficientes para emissão de parecer
médico-legal sobre as consequências da eventual ofensa à integridade física.
b) Da decisão do Ministério Público
O ofendido vivia com a mãe, pois o pai, arguido no Processo, desde há cerca de 4 meses que
não residia com a denunciante (mãe). Inquirida a mãe da criança esta referiu que o arguido terá
agredido o filho inicialmente com uma bofetada na face e, depois, agrediu-o por diversas vezes na
cabeça, tendo tais factos sido denunciados à mãe do ofendido, pela vítima e por duas irmãs do
arguido. Da informação social colhida, e prestada pela denunciante, consta que esta teria sido a
segunda vez que o denunciado terá agredido o seu filho, e que quando “bate não é normal, é com
muita força”. O menor, quando inquirido, referiu que em data que não se recorda, quando estava em
casa do seu pai, estando a beber um sumo, aquele mandou-o parar, dando-lhe um estalo na face e,
por essa razão, fugiu, refugiando-se “para o meio do milho”. Mais referiu que ao voltar para dentro
da casa, foi novamente agredido pelo seu pai com várias bofetadas na cabeça, o que o fez fugir,
juntamente com as suas irmãs. Mais declarou que não entende a razão da agressividade de seu pai,
estando revoltado com ele. O arguido, quando interrogado, declarou que não foi sua intenção
agredir o filho, mas repreende-lo. Pretendeu esclarecer que os factos não se terão passado nos
termos descritos porquanto os mesmos se deveram ao facto de o seu filho estar a brincar e poder
partir uma tigela, de onde teria acabado de beber sumo. Porquanto continuasse a brincar com a
mesma, só com a boca, fez menção de lhe dar duas bofetadas, que não chegou a dar, porquanto o
menor fugiu para um campo de milho, não sem que antes batesse a porta com força. Mais declarou
que não foi atrás dele, e apesar de o ter ameaçado que lhe batia com a vassoura, quando o mesmo
voltou deu-lhe duas palmadas na coxa, e não na cabeça, e que o fez por ele ser “gozão, pelo menos
Wilson Malta 18
em sua casa”. Face aos elementos apurados, e pese embora se ter apurado a existência de uma
agressão, mesmo na ausência de lesões no exame médico-legal, não se logrou apurar que o mesmo
tenha tido uma intenção violentadora da integridade física descontextualizada e com o propósito ou
consequência de lesão física. Ainda que se tenha por contraproducente o exercício de acções físicas
no processo educativo, não se vislumbrou que os factos denunciados assumam a relevância, por
desproporção, ao limiar de intervenção penal, subjacente não só ao tipo legal em apreço, mas ainda
ao tipo de ofensa à integridade física.
Decisão: Determina-se o arquivamento dos presentes autos de inquérito, nos termos do artigo
277.º, n.º2, do C.P.P., quanto aos factos denunciados.
IV. DISCUSSÃO
Após a análise dos três casos verificamos estar perante três situações semelhantes quanto à
idade das vítimas e quanto ao seu contexto traumático - agressão da criança por parte de um
cuidador em contexto de “correcção de comportamento”, ocorrida em anos distintos - 2004, 2007 e
2008. Nos casos 1 e 2, a acusação do Ministério Público foi proposta com base no artigo 152º
(“Maus Tratos e infracção das regras de segurança” - Tabela 2) do Código Penal anterior àquele
actualmente em vigor; no caso 3 - situação que ocorre na vigência do actual Código Penal e que
considera, no seu art. 152º (Violência doméstica) a questão dos “castigos corporais” - foi proposta
acusação com base no artigo 143º (ofensas à integridade física simples). É para notar que neste
último caso, o traumatismo é provocado por parte do progenitor - bofetadas na face e no couro
cabeludo da criança – declarando inclusive o mesmo que pretendia “repreende-lo” (à criança).
Decide o Ministério Público nesta situação que “ainda que se tenha por contraproducente o
exercício de acções físicas no processo educativo não se vislumbra que os factos denunciados
assumam a relevância, por desproporção, ao limiar de intervenção penal, subjacente não só ao
tipo legal em apreço, mas ainda ao tipo de ofensa à integridade física”, arquivando os autos. O
caso 1 é alvo de proposta de absolvição pelo artigo 152º (“Maus Tratos e infracção das regras de
segurança”, Código Penal antigo) e de proposta de condenação a multa pelo artigo relacionado com
ofensa à integridade física qualificada) sendo o caso 2 também alvo de proposta de arquivamento
mas com indicação de supervisão por CPCJ (Tabela 2). Percebe-se assim uma evolução,
relativamente à letra do Código Penal, na forma como a Justiça pretende abordar estas situações.
Percebe-se também que, na prática, essa abordagem está ainda inquinada de permissividade que em
nada contribui para a educação dos progenitores no que diz respeito às modalidades de educar.
Wilson Malta 19
Tabela 2 – Categorização dos casos
Caso Vítima
Sexo
Vítima
Idade
Relação
vítima/agressor
Data
agressão Modo Traumatismo
Lesões
sofridas
Crime na
Acusação
Decisão
Judiciária/Judicial
1
Fem
13
Pai
29.11.04
Bofetadas (face)
Pontapés (M. Inferiores)
Chicote
Hematomas
Escoriações
152º
143º
146º
Absolvição (152º)
Pena de Multa
(143º)
2
Fem
14
Madrasta
27.05.07
Murros (face)
Puxão de cabelos
Ausência
152º
143º
Arquivamento
Supervisão por
CPCJ
3
Masc
13
Pai
05.08.08
Bofetadas (face, Couro
cabeludo)
Ausência
143º
Arquivamento
Assim, relembrando Foucault, os “castigos que têm a função de reduzir os desvios”, sendo
essencialmente actos correctivos que visam a restauração da ordem, levando à reeducação do
indivíduo, são por vezes aplicados de forma descontrolada pelos cuidadores das crianças (pai caso 1
e 3 e madrasta caso 2) e, quando levados ao olhar judicial, muitos acabam por ser “aceites” na
medida em que são aplicadas penas simbólicas.
Clarificar as circunstâncias específicas do que foi interpretado como CF na acessão disciplinar é
importante uma vez que, quando esta modalidade é utilizada como norma, não conduzirá mais à
esperada redução das reacções da criança, havendo tendência a que os métodos de punição
aumentem de intensidade e gravidade, vindo assim a resultar, se já não o era, em AF.
V. CONCLUSÕES
Poucos tópicos se revelam tão emotivos quanto o abuso de crianças e jovens. Este não é uma
actividade humana recente. DeMause em 1974 escreveu: “a história da infância é um pesadelo do
qual apenas agora estamos a começar a acordar”53
. Mas, na verdade, qual é a diferença entre
“castigo físico” e “abuso físico”?
As sociedades humanas dão muito valor à forma, riqueza e diversidade com que os progenitores
contribuem para o crescimento, desenvolvimento e educação das crianças. Hesitam quando é
necessário intervir, ou diminuir de alguma forma, a relação progenitor/cuidador – criança, a não ser
que existam evidências claras e objectivas de que algum dano está a ser infligido - este é o caso do
CF no contexto de educação.
Wilson Malta 20
É difícil estabelecer uma linha de divisão entre aquelas categorias. Ao pai (ou até ao marido),
investido de um poder quase despótico, sempre coube o direito de castigar. Estas práticas estendem-
se, genericamente, a todo o mundo, em virtude da correlação sempre existente entre a organização
social e os sistemas de educação1.
“Abuso físico” ocorre sempre no contexto de um episódio de “castigo físico” desde logo tendo
em conta a sua definição. A pequena diferença é que ao CF estará subjacente uma “razão” que será
a de “corrigir, educar”.
Procurar elucidar sobre a eventual presença de uma linha divisória entre abuso físico/castigo
físico é de grande importância. Em algumas situações, a criança sentindo-se humilhada, tende a
enfrentar o educador o que gera stress por parte deste e a uma intensificação do poder correctivo
físico, podendo chegar ao espancamento.
Actualmente o entendimento do que é um gesto relacionado com CF não está tão relacionado
com a descrição do gesto aplicado, mas sim com a caracterização da gravidade da lesão resultante.
Esta caracterização é de extrema dificuldade, uma vez que as lesões variam muito, desde leves
vermelhidões nas nádegas que desaparecem após várias horas, a lesões tão graves que podem
acarretar a morte da criança. Recentes definições médicas concentram-se mais sobre o efeito que a
lesão tem sobre a criança – tanto a nível físico como psicológico - do que sobre a intenção
demonstrada por parte do cuidador, uma vez que do ponto de vista clínico a criança apresenta uma
lesão (física ou psicológica) com necessidade de tratamento sob o ponto de vista do prestador de
cuidados de saúde54
.
Continuam a existir parâmetros, em algumas sociedades, que distinguem as formas aceitáveis e
não aceitáveis de agressão a adultos e principalmente a crianças. Do ponto de vista dos
profissionais que se ocupam com a criança, os castigos físicos são vistos como uma forma de
violência podendo essa violência não ser percebida como tal por quem o pratica, devido à difusão e
aceitação social da prática. O uso do CF é por vezes um procedimento rotineiro e normal podendo
levar a que as próprias crianças não o encarem como agressão, pois aprendem precocemente, que é
“normal” ou até desejável55
.
Acções para diminuir a violência devem considerar todos os determinantes, de entre eles as
questões culturais. Especificamente, a questão da aceitação social do CF deve ser aprofundada com
o objectivo das intervenções visando a sua “desconstrução” para dar lugar às formas educacionais
menos lesivas para as crianças.
A sociedade actual – Europeia e não só - sofre, ainda hoje, esta influência cultural mostrando-se
permissiva aos castigos físicos como forma de educação das crianças na família. “De pequenino se
torce o pepino”, “Quem dá o pão dá a educação”, “Quem bem ama bem castiga” ou “Quem não vai
Wilson Malta 21
a bem vai a mal”, são dizeres actuais e ainda partilhados por muitos, atendendo à sua experiência de
infância.1
A OMS assim como a UNICEF consideram que “o castigo físico deve ser entendido como uma
forma de abuso”.
Wilson Malta 22
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