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Catálogo Claudio Pazienza 2014

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  • ClaudioPazienzao encontro que nos move

    apresenta

  • ClaudioPazienzao encontro que nos move

  • A CAIXA uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhes de seu oramento para patrocnio a projetos culturais em seus espaos, com o foco atualmente voltado para exposies de artes visuais, peas de teatro, espetculos de dana, shows musicais, festivais de teatro e dana em todo o territrio nacional, e artesanato brasileiro.

    Os eventos patrocinados so selecionados via Progra-ma Seleo Pblica de Projetos, uma opo da CAIXA para tornar mais democrtica e acessvel, a participao de pro-dutores e artistas de todas as unidades da federao e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da empresa em patrocnio.

    A Mostra Cludio Pazienza, um encontro que nos move, apresentar, ao longo de uma semana, oito filmes inditos do premiado diretor talo-belga. Durante o even-to, o pblico ter a oportunidade de conhecer melhor a obra do cineasta atravs de uma master class gratuita onde o diretor falar sobre o seu trabalho.

    Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e di-fundir a cultura nacional e retribui sociedade brasileira a confiana e o apoio recebidos ao longo de seus 152 anos de atuao no pas e a efetiva parceria no desenvolvimento das nossas cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participao efetiva no presen-te, compromisso com o futuro do pas, e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro.

    CAIXA ECONMICA FEDERAL

  • Sumrio

    Apresentao 9

    Claudio Pazienza 12

    Ensaios 17

    Experimentos e indagaes 19Csar Guimares

    Das ilhas ao mundo 39Carla Maia e Lus Felipe Flores

    Pazienza, o problema e a exterioridade 55Luiz Augusto Rezende

    Dilogo entre Claudio Pazienza e Jean-Louis Comolli 65

    Paisagem com cineasta 113Frdric Sabouraud

    O desaparecimento das imagens 123Jacques Sojcher

    Filmes 127

    Crditos e Agradecimentos 137

    Sobre as organizadoras 141

  • Eduardo Coutinho

  • 9Apresentao

    Em geral, eu sei dizer muito facilmente porque eu no gos-to de um filme. Para explicar porque eu gosto, j muito mais complicado. No caso de Claudio Pazienza, se torna extremamente difcil encontrar palavras para descrever o que sinto frente ao seu cinema.

    O meu primeiro contato com o cinema de Pazienza foi quando vi Tableau avec chutes (Quadro com quedas) no fes-tival Les tats gnraux du documentaire, em Lussas, no Sul da Frana, pas onde vivi mais de 20 anos de minha vida. Gostei muito do filme e ali me encantei pelo seu cinema.

    Em 2010, trabalhei no festival Fid (Festival internatio-nal du documentaire tudiant), criado pela brasileira radi-cada em Paris, Flvia Tavares. Ns havamos convidado Claudio Pazienza para a abertura do festival, onde ele mos-trou um de seus primeiros filmes, quando era ainda estu-dante. Ali o conheci pessoalmente. Alm de ach-lo muito simptico (ele cozinhou para o pblico uma massa italiana chamada orechiette), percebi que suas falas se parecem com seus filmes: so ricas, profundas e confusas. Eu fazia a me-diao entre ele e o pblico, na conversa que ocorreu de-pois da projeo. O questionei sobre uma frase que ele ha-via dito noutra ocasio, no festival Cinma du rel: Fazer um filme tentar traduzir da melhor forma possvel os encontros que nos transformam. Depois de um longo mo-

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    nlogo onde a sala lotada estava extremamente atenta, ele me perguntou: Entende o que estou dizendo? eu ousei dizer: no tudo, mas assim mesmo interessante. De fato no entendo tudo at hoje, nem em sua obra nem em seus escritos, e o fato de no conseguir compreender completa-mente seu pensamento, me interessa ainda mais, pois ins-tigante e sempre estimulante.

    O cinema de Claudio Pazienza engraado, as imagens so lindas; o humor dele, inspirador. Ao mesmo tempo que se abre e se expe com uma extrema generosidade, ele reservado e cauteloso. Pazienza tem uma escrita muito sin-gular. Seus filmes parecem se construir no limite do que j conhecido, do que j se sabe, mas no caem no informa-tivo, eles permanecem na fronteira dos gneros, so inclas-sificveis. Entre fico, ensaio, e cinma du rel, tragdia e comdia, entre palavras e imagens, entre uma busca do conhecimento e a construo de imagens sonhadas, entre Itlia e Blgica, entre as lembranas e o presente. sincero, cmico e grave ao mesmo tempo. Seus filmes nos do vontade de pensar, de questionar. Ele no se preocupa com os gneros, vai juntando muitas formas diversas e essa li-berdade, transgredindo as convenes, um presente para quem esta assistindo.

    Quando vim morar no Brasil, um de meus desejos era apresentar ao pblico brasileiro os cineastas de quem gosto tanto. No que diz respeito mostra do cineasta aqui esco-lhido, quem deu o impulso essencial para que se tornasse realidade foi minha parceira de trabalho Tatiana Devos

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    Gentile, sem a qual, tal Mostra no poderia acontecer.Embora seja conhecido na Europa, o realizador ainda e

    totalmente desconhecido no Brasil. A mostra Claudio Pa-zienza, o encontro que nos move rene 8 filmes de sua obra indita no pas, assim como uma masterclass do di-retor que est vindo pela primeira vez ao Brasil, e uma mesa redonda com 4 brasileiros que se debruaram pela primeira vez sob sua obra.

    Graas coragem da Caixa Cultural por ter escolhido um diretor to desconhecido ainda entre os brasileiros, fico muito feliz em saber que o pblico carioca poder descobrir esse cineasta e curiosa em saber como iro receber sua obra.

    Jeanne Dossecuradora

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    On madresse souvent la questions suivante: Pour toi cest quoi le documentaire de cration?. Je rponds: Faire un film ou un documentaire, cest donner corps une percep-tion, cest inventer une manire, un dtour, un langage pour rendre compte de ce quon a vu. Dans le mot vu il ny a pas que le perceptible, le visible. Rolland Barthes disait: le rel nest pas le peru et je partage cette ide. Ce que jappelle le rel ne se limite pas a, ce qui se manifeste moi par une forme claire et reconnaissable. Non, faire un documentaire cest aussi donner une forme ce qui nest pas ncessairement visible, ce quise niche dans ce qui est l devant moi, devant nous et syagite de manire parfois incomprhensible ou pas encore nommable. Cest ncessai-rement faire lexprience dune rencontre avec lautre, cest ncessairement couter ce qui surgit parfois de manire inattendue et imprvisible. En ce sens tout documentaire est de cration. En ce sens, faire un film cest ncessairement sexposer aussi ce qui nous chappe.

    Claudio Pazienza, dcembre 2013.

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    Com freqncia me perguntam O que o documentrio de criao para voc?. Eu respondo: Fazer um filme ou um documentrio, dar corpo a uma percepo, inventar uma matria, um desvio, uma linguagem que d conta do que a gente viu. Na palavra viu, no tem s o percept-vel, o visvel. Rolland Barthes dizia: o real no o que per-cebemos, e eu compartilho esta idia. O que eu chamo de real no se limita a isto, ao que se manifesta na minha frente de forma clara e reconhecvel. No, fazer um docu-mentrio tambm dar forma ao que no necessaria-mente visvel, ao que se esconde no que est aqui na mi-nha frente, na nossa frente e que se agita de maneira s vezes incompreensvel ou no ainda nomevel. necessa-riamente fazer a experincia de um encontro com o outro, necessariamente escutar o que surge s vezes de maneira inesperada e imprevisvel. Neste sentido, todo document-rio de criao. Neste sentido, fazer um filme necessaria-mente se expor tambm ao que nos escapa.

    Claudio Pazienza, Dezembro de 2013.

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    Biografia

    Claudio Pazienza nasceu na Roccaslegna (Itlia) em 1962. Chega na Limbourg belga um ano depois e estuda ini-cialmente em escolas talo-flamengas de Eisden e depois na Escola Europia de Mol. Em 1985, obtm o diploma de etnologia europia na Universidade Livre de Bruxelas. Ini-cia em fotografia e em cinema freqentando assiduamente a Cinemateca Real da Blgica. Realiza seus filmes desde 1986. Pazienza d aulas nas seguintes instituies: HEAD Genebra, FEMIS Paris, LA CAMBRE Bruxelas, Esco-la do Doc Lussas (Frana), Louis Lumire (Paris) dentre outras escolas de cinema. Ele tem a nacionalidade italiana, poliglota e mora em Bruxelas.

    Pazienza marca a histria do cinema documentrio atual. Ganhou inmeros prmios nos principais festivais de documentrio na Europa: Prix Scam dcouvertes, Scam, Paris com Tableau avec chutes, prmio no Festival Vi-sions du rel, de Nyon, na Suia, com Scne de chasses, e com seu ultimo filme Exercices de disparition, ele pre-miado no Festival du Cinema Du Rel, Paris.

    Filmografia

    1985 Larteriosclerosi, 3min, super 8, Blgica

    1988 Oggi primavera, 4min, 16 mm, Blgica

    1991 Un p di febbre, 15min, 35 mm, Blgica/Frana

    1993 Sottovoce, 105 min, 35 mm, Blgica/Frana

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    1995 De Bouche Oreille, 3x 5min, Bta SP, Blgica/ Frana

    1997 La complainte du Progrs, 5 min, 35mm, Blgica/ Frana

    1997 Tableau avec chutes, 103 min, Beta Digital, Blgica

    1997 Panamerenko, 27 min, Beta Digital, Blgica/ Frana

    2000 Esprit de bire, 52 min, 35mm, Blgica/Frana

    2000 Oedipus Rex, 40 min, Bta Digit, Blgica

    2000 Ya Rayah, 7 min, 35 mm, Frana/Luxemburgo

    2002 Largent, 53 min, Beta Digital, Blgica/Frana

    2004 Les les Aran, 26 min, Beta Digit, Blgica/Frana

    2007 Scnes de chasse aux sanglier, 46min, Beta Digital, Blgica/Frana

    2009 Archipels Nitrate, 62min, Beta Digital, Blgica/ Frana

    2011 Exercices de disparition, 50min, Beta Digital, Blgica/Frana

    Para saber mais sobre o cineasta: www.claudiopazienza.com

  • Ensaios

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    Experimentos e indagaesCsar Guimares

    Quanto mais feroz a presso do pensamen-to, mais resistente a linguagem em que ele est encaixado. A linguagem, por assim dizer, inimiga do ideal monocromtico da verdade. Ela saturada de ambiguidade, com simultaneidades polifnicas. George Steiner

    I. Provar e por prova o real

    Inmeras vezes, e por diversas razes, o cinema foi com-parado s artes que o precederam (teatro, literatura, pin-tura, fotografia), tanto sob o ponto de vista dos criadores quanto dos crticos e tericos. Dentre esses ltimos, John Berger, em afinidade com o pensamento de Andr Bazin, afirma que, estando mais perto do real em virtude das propriedades indiciais da imagem fotogrfica o filme nos puxa para o mundo em que nos vemos atirados ao nascer e que todos compartilhamos, ao passo que a pintura in-terroga o visvel.1 Essa diferena nada tem de dogmtica

    1 Com a liberdade prpria do ensaio, sem se ater estritamente s di-ferenas semiticas ou tcnicas entre as diferentes artes da imagem, John Berger compara a pintura e o cinema a partir dos afrescos pin-tados por Giotto e seus discpulos na capela Scrovegni, em Pdua. Cf. BERGER, John. Evry time we say goodbye. Serrote n. 4, maro de 2010. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, p. 98.

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    ou peremptria, pois Berger afirma, na direo contrria, que o cinema tambm nos transporta para o desconhecido, enquanto a pintura recolhe o mundo e o traz para casa.2 Se a pintura pode interrogar o visvel porque, ao trazer o mundo para casa, ela o retira da circunscrio do que nos familiar: o mundo chega at ns, mas como um estranho, quase irreconhecvel (e, s vezes, at mesmo desfigurado). E se o cinema nos oferece o real bem de perto, apenas para instalar um cu ou firmamento cinematogrfico que nos evoca um desejo ou uma prece, escreve Berger. Uma dialtica oscilante desequilibra as oposies entre a imagem fixa e a em movimento, e faz do cinema uma arte paradoxal: ele nos desloca para um alhures, muito longe do recinto no qual o filme projetado, mas fazendo valer a presena do que se pe diante dos nossos olhos. Como no anel de Moebius, basta percorrer um pouco mais a dobra, e passamos do real ao sonho:

    As vises mais familiares uma criana que dorme, um homem que sobe uma escada tornam-se misteriosas quando filmadas. O mistrio deriva da nossa proximida-de do evento, e o fato de que o acontecimento filmado ainda conserva uma multiplicidade de significados poss-veis. O que nos mostrado exibe, a um s tempo, alguma coisa da intencionalidade da arte, do seu foco, e a impre-visibilidade do real. 3

    2 BERGER. Evry time we say goodbye, p. 91.3 BERGER. Evry time we say goodbye, p. 94.

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    Tableau avec chutes (1997), documentrio de Cludio Pa-zienza que traz o subttulo Voyage dans un tableau de Pieter Brueghel, desloca habilmente essas conhecidas oposies entre cinema e pintura, comeando, logo de sada, por atrair para a vida de todos os dias esse cu cinematogrfico diante do qual o espectador na perspectiva de Berger se extasia. Ao tomar como ponto de partida um quadro do pintor fla-mengo Paisagem com queda de caro (pintado por volta de 1555, em algum lugar da Blgica) o cineasta faz do filme um meio de interrogar o visvel, questionando os saberes que dele podemos extrair ou as crenas que nele deposi-tamos. Intrigado tanto pelo que o quadro d a ver quanto por aquilo que os espectadores nele no reconhecem nem identificam, o cineasta inventa procedimentos cinemato-grficos que, guiados por uma lgica associativa, religam a imagem de Brueghel ao real histrico (o do passado e o de hoje). Inicialmente isso se d de maneira simples e direta: o cineasta imprime a imagem do pintor em sua camiseta e a exibe aos outros, perguntando pelo que vem.

    Em Quaregnon, regio francfona do sul da Blgica por onde o cineasta comea a sua jornada, uma senhora reco-nhece logo a beleza dos traos de Brueghel e identifica os elementos do quadro. Outra, indaga se a paisagem no bonita demais para um trabalhador (!). Uma terceira iden-tifica um homem que nada. (Talvez ele se afogue, sugere o cineasta). Do outro lado da fronteira, crianas turcas que vivem na Alemanha no hesitam: trata-se da paisagem do seu pas natal, pois l que existem tantos carneiros assim.

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    Mais frente, a pergunta dirigida aos especialistas: um filsofo, um historiador da arte, uma diretora de museu. Porm, tanto em um caso como noutro, seja na reao in-gnua ou desprevenida das pessoas comuns diante do qua-dro, seja no comentrio avalizado dos especialistas, ver uma obra , de algum modo, propor uma teoria sobre o assunto de que ela trata.4

    Quase ningum enxerga caro, o afogado. Se assim, como vincular o quadro vida daqueles que sequer o com-preendem? (A despeito disso, a obra diz algo acerca da vida deles e daquele que os filma). No por acaso, o filme dedi-cado aos pais, que tomam o quadro como algo que nada tem a ver com a realidade a que esto habituados. Como traar ento o fio que colocaria em contato a vida dos pais com o labirinto de onde caro escapou para se afogar no mar? Ser preciso buscar o traado que religa a vida caseira e familiar vida com os outros, isto , existncia partilhada com to-dos aqueles que vivem para alm dos limites do quarteiro onde moram os pais. Em sua lgica livremente associativa, o filme aproxima as estrelas h muito desaparecidas e os vizinhos estrangeiros do quarteiro: ambos invisveis.

    Como explicar que a luz das estrelas mortas viaja pelo universo e chega at ns? Como ligar Andrmeda cozi-nha onde a me trabalha? E de que maneira explicar aos pais o seu interesse por caro? Eis algumas das questes

    4 DANTO, Arthur C. A transfigurao do lugar comum, So Paulo: Co-sac Naify, 2010, p. 183.

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    que movem Pazienza. Feito do vai-e-vem entre o escrit-rio do cineasta (onde os livros lhe ofereciam fragmentos perfeitos do mundo) e o curso aleatrio dos acontecimen-tos reais (experimentados em sua incurso pelas ruas e na conversa com os outros), o filme progride de indagao em indagao, sem temer algo de burlesco (como na cena em que o cineasta afunda literalmente a cara num livro, pgi-nas abertas no gramado).

    Tableau avec chutes oferece muito mais do que um con-junto de interpretaes em torno da Paisagem com a que-da de caro: ele compe uma trama de associaes entre o quadro e o mundo que o circunda, promovendo passagens insuspeitadas entre um e outro. Quais so, afinal, as rela-es da imagem (pictrica, cinematogrfica, fotogrfica e televisiva) seja com o real (quando ele irrompe e desarma nossos olhos), ou ento com a realidade mais banal, reco-nhecida tacitamente? Estamos certos de que os sujeitos que aparecem no noticirio so reais? E de que os personagens do quadro, ao contrrio, so inteiramente obra da imagi-nao? Aos poucos o filme instaura a dvida em torno do visvel e daquilo que os olhos crem enxergar: as imagens da TV, acabam por parecer irreais (a despeito do choque ou da indiferena que provocam em ns), e as figuras pictri-cas parecem ter, enigmaticamente, algo a ver com o real.

    Tendo descoberto a obra de Brueghel em uma visita ao Museu Real de Belas Artes, em Bruxelas, o cineasta atrado primeiro pela blusa vermelha do lavrador, e s em seguida pela figura de caro. Um dia, observando a tela

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    mais atentamente, ela lhe suscita uma estranha litania que ressoa pela tarde inteira: Um homem ara o seu campo/um pastor observa o cu/um navio entra lentamente no porto/o mar est calmo/um homem se afoga. No fosse pelo afogamento, essa breve descrio do quadro poderia ganhar uma equivalncia com a abertura do filme. Nela, com o recurso do comentrio, o cineasta se pe a anotar visualmente os acontecimentos cotidianos, apanhados pela experincia direta ou recortados do discurso miditico (dos jornais e da TV). A seqncia inicial traz uma srie de imagens comentadas, maneira de breves quadros: plano prximo das mos do pai, carregadas de cereja e o comen-trio de que seu preo caiu; Jean-Luc Dehane ainda o Primeiro Ministro, seguida da imagem (em preto-e-bran-co) de uma porta trancada a cadeado (aluso aos segredos de Estado? Aos cofres pblicos?); primeiro plano da cabea de um boi, acompanhado do comentrio (retirado dos jor-nais) de que o Parlamento quer absolver a pena de morte; 14% da populao est desempregada (acompanhado da imagem de uma cdula de franco).

    Essas anotaes visuais em torno das atualidades pros-seguem, reunindo coisas variadas (o amor entre a rainha Paola e o rei Albert II, a ausncia de pistas sobre o desapa-recimento das meninas Julie e Mlissa, o dficit da Euro-pa), at alcanarem o universo do cineasta. Em um plano que mostra os ps do pai no piso da casa, o cineasta afirma: Voc est a. No plano seguinte, que mostra os pais no carro (h um buqu de flores no cap), ele diz novamen-

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    te: Como seus pais. Voc est aqui. H trinta e trs anos. Surge ento uma figura recortada de outro quadro de Brueghel: a Virgem de O recenseamento em Belm, monta-da em seu burrico. A referncia ao quadro alude histria familiar do cineasta: h trinta e trs anos, os pais, italianos, chegaram Blgica. A me queria voltar; o pai, mais tei-moso, decidiu ficar. O plano seguinte mostra o pai (antigo mineiro) com mos carregadas de pequenos pedaos de carvo. Os dois primeiros planos seguintes aproximam pai e filho: o primeiro, com ps descalos na grama; o segun-do, na areia da praia. Nesse breve conjunto de associaes, ainda no sabemos o que vincula esses ps molhados pelas ondas ao desastre de caro.

    Em contraste com quadro de Brueghel, no qual convi-vem dois tempos o da vida cotidiana e o do mito, o da ro-tina e o do acidente os dias que transcorrem em meados de junho se impem com a evidncia das coisas definitivas, sem lacunas ou incoerncias. Mas, se no pintor flamengo o mito aproximado do cotidiano, to somente para in-dicar o quanto os acontecimentos trgicos (e o sofrimento que eles carregam) passam despercebidos aos olhos daque-les que seguem imersos em seus afazeres, como nos dizem os versos de Auden:

    No caro de Brueghel, por exemplo, como tudo volta s costasPachorrentamente ao desastre: o arador pode bem ter ouvidoA pancada ngua, o grito interrompido,Mas para ele no era importante o malogro: o sol brilhavaComo cumpria sobre as alvas pernas a sumir-se nas guas

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    Esverdeadas; e o delicado barco de luxo que devia ter vistoAlgo surpreendente, um rapaz despencado do cu,Precisava ir a alguma parte e continuou calmamente a velejar.5

    Em meados de junho, nessa Blgica livre da neblina que poderia enganar o olhar, a realidade surge lmpida, orde-nada, sem perturbaes. O sofrimento parece ter sido ba-nido, e sequer a infelicidade ronda a vida pacata dos habi-tantes. No entanto, basta recuar um pouco diante do que aparece, desconfiar daquilo que visto natural e imediata-mente, opor-lhe uma resistncia obtusa ou uma pergunta que parece incongruente, para que ento algo se descorti-ne. A sociedade belga atual no enxerga aqueles a quem ela condena ao desastre silencioso e invisvel: na fila do seguro social, o cineasta mostra o quadro de Brueghel aos desem-pregados. A tela nada lhes diz; e eles no querem expor seu rosto, com exceo de um jovem holands que fala (sem temer a vergonha) do fracasso no qual foi jogado.

    Diante do quadro de Brueghel, tanto o Primeiro Mi-nistro quanto o presidente do Partido Socialista sacam dos jarges e palavras de ordem, extrados de seus respectivos programas polticos. O primeiro elogia o fato dos belgas, laboriosos como o homem que ara a terra, terem sempre os ps no cho, em contraste com os holandeses, aventureiros, que tm diante de si o horizonte e o cu aberto. J o segun-

    5 AUDEN, H. A. Poemas. So Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 87. A traduo de Muse des Beaux Arts de Jos Paulo Paes.

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    do, fazendo o papel de opositor, defende a necessidade de dar lugar ao sonho e a utopia, e critica o modelo do homem que trabalha a terra, preso s normas, guiado pela besta que puxa o arado. (O programa dele convincente, concorda o cineasta, no fosse a permanncia dos corruptos no Partido Socialista). Em troca pelos depoimentos, o cineasta d de presente ao Primeiro Ministro um prato feito pela me (em forma de galo) e, ao presidente do Partido Socialista, um potinho de gelia real. Ambos ignoram a queda de caro.

    Ser preciso que as multides saiam s ruas para exibir aos dirigentes o que eles teimam em no enxergar (como vemos nas imagens de passeatas, manifestaes e greves que surgem na seqncia final do filme). Se queremos ver algo necessrio eleger um ponto de vista, o que impe, necessariamente, uma limitao e uma seleo ao campo do visvel: preciso eliminar o suprfluo, ensina o profes-sor Boehm. Logo aps essa pequena lio, Pazienza exibe imagens da greve dos professores secundrios. S o gover-no no enxerga as reivindicaes deles. impossvel ter um ponto de vista sem ser violento, conclui o narrador.

    Aquele que filma se desdobra, se afasta do visvel ime-diato (mostrando-o ao espectador) para interpor uma dis-tncia entre as coisas vistas e o seu sentido, aparentemente to evidente quanto impenetrvel: Voc est aqui. Como seu pai, voc est aqui. A frase, curta e seca, repetida ao longo do dia, introduz uma separao, um hiato entre o mundo visto e aquele que o observa. Tal como o pai, aque-le que filma est ali, diante dos eventos e das coisas, mas,

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    diferentemente do pai, ele descola as representaes das coisas representadas. Os signos so desgarrados dos seus referentes. fora de perguntar (aos outros e a si mesmo) o que que se v seja no quadro de Brueghel, seja nos acon-tecimentos que povoam a cidade (disseminados pela televi-so ou quase imperceptveis, levados e esquecidos com o passar dos dias), aquele que filma e comenta desprende a imagem do real que ela revestia (como uma pele).

    Como procedimento crtico o filme promove uma srie de indagaes endereadas aos diferentes sujeitos aos quais exibida a Paisagem com queda de caro. Depois de mostr-la s pessoas comuns e aos especialistas, passa-se queles o oftalmologista e a psicanalista que talvez pudessem explicar no o que se v, mas o olhar (seu processo, seu me-canismo). Mas antes de proceder a essa nova indagao, o cineasta pergunta se a prtica do cinema no permitira ver de outro modo. Ele constri sua pequena mquina de vi-so; perfura um capacete de ciclista, nele afixa uma cmera (mas que no nos oferece imagem alguma, se que ela che-gou a filmar algo) e sai pela cidade. A confusa experincia livresca, ensimesmada, substituda pelas conversas com os outros, em torno da felicidade. Nessas conversas, a feli-cidade surge ligada ao mais prximo, existncia protegida no quarteiro, pequeno reino do conhecido e do familiar. Como outrora, os belgas prosseguem em sua existncia co-tidiana e no enxergam o desastre de caro, to prximo (como testemunha a mulher que chora ao lembrar-se da morte dos seus pais no campo de concentrao).

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    Ainda que a psicanalista caracterize o olhar como malo-gro ou armadilha, o filme faz muito mais do que subscrever essa verdade, exemplificando-a nesta ou naquela situao. Ao retomar o motivo da queda de caro, uma acentuada li-nha interpretativa desenvolvida pelo filme coincide com o poema de Auden: o curso do mundo prossegue, e o sofri-mento e a dor passam invisveis e indiferentes aos olhos de muitos. Os recursos expressivos do filme, multiplicados em diferentes direes, vo assim ao encontro das indagaes de Brueghel, ao colocar lado a lado o mtico e o contemporneo. Roy Wagner escreveu que o significado do Recenseamento em Belm (com sua paisagem estranhamente invernal), que se Maria e Jos chegassem a uma cidade flamenga, ain-da encontrariam abrigo somente em um estbulo.6 De modo semelhante, os belgas de hoje ainda no enxergam nem o desejo de liberdade de caro, nem o seu fracasso. Ser preciso ento abandonar o ponto de vista do lavrador, atravessar o mar e encontrar Ddalo e caro em seu labirinto.

    O cineasta sai de seu bairro, atravessa o canal Charle-roi e se dirige a um centro que abriga jovens empurrados para a margem da sociedade, na comuna de Molenbeek. (Esta seqncia antecedida por uma conversa com o pai, a quem Pazienza pergunta se ele e a me no vivem alheios ao que os cerca). Em um salo vazio, com algumas cadei-ras quebradas, Pazienza pergunta a dois jovens: Qual a Blgica de que vocs vm, do lugar onde esto, e que eu no

    6 WAGNER, Roy. A inveno da cultura. So Paulo: Cosac Naify, 2010, 44.

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    vejo do meu quarteiro?. Um deles se dirige ao cineasta, afirmando que o problema no se reduz unicamente ao lu-gar de onde se v as coisas, e questiona: Voc tambm no filho de imigrantes? Seus pais no so como os nossos? Em seguida ele diz algo como a diferena que voc est em melhor situao do que ns, integrado sociedade.

    O filme est s voltas com uma questo mais aguda e incmoda: ele no se contenta simplesmente em mostrar que a vida de todos os dias impermevel desapario trgica dos outros. Ele procura traar a linha que poderia ligar esses dois mundos, vizinhos, mas mantidos apartados (no sem violncia, real ou simblica). Isso se d quando o filme se distancia delicadamente j sem a conscincia reflexiva que lhe to cara das referncias que tinha to-mado como guias. Em um breve intervalo, ele adota outro ponto de vista: procura por aquilo que a me avista da sua janela ou o que o pai v quando cuida da horta. Brueghel no fazia de outro modo, ao se interessar pelas circunstn-cias que regiam as vidas de seus contemporneos.

    Ainda assim, esses dois domnios permanecero desen-contrados: os afazeres cotidianos (trincados pela infelici-dade ou pela solido, como admite a me) e o mundo de caro, que corre desabalado e sem flego pelo seu labirinto sem muros. Foi preciso ento apresentar caro aos pais, en-contrar um ator preparado (aquele que sempre quebra a cara) e lev-lo para jantar em casa. A presena dele si-lenciosa, e os dois mundos ainda no se tocam. Os pais no reconhecem caro. No entanto, h um fio tnue (traado

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    pela montagem), um fio dgua que, durante a chuva, em seu curso insignificante, escorrendo pela calha at a sarje-ta, liga o sossego da casa dos pais ao atormentador labirinto do qual caro e Ddalo tenta escapar, com os ps atolados na areia molhada, diante da vastido sem obstculos.

    Entre as variadas situaes construdas pelo documen-trio com os retalhos do real e a pequena fico (na qual atuam os pais e amigos do cineasta), montada para contar a paixo de Pasfae pelo touro do rei Minos, surge uma de-clarao que poderia passar despercebida, mas que liga o universo dos pais ao de caro. Lon, um dos amigos que se candidatara a representar caro, morrera h pouco, Pa-zienza nos conta. Ao lado da mulher, Lon confessa que j no sonha mais, que contenta-se com o que tem. Antes de desaparecer, ele j no tinha mais esperana. O filme no registra sua queda. Ele s pode filmar seu vestgio, como as penas que volteiam no ar, acima das frgeis pernas do jovem que se afoga no quadro de Brueghel. Contudo, se a existn-cia singular deste ou daquele indivduo, com suas pequenas esperanas ou tristezas, desaparece sem alarde e sem not-cia, no plano da vida coletiva Bruxelas vive uma convulso.

    De modo similar abertura, a seqncia final do filme rene um conjunto de notas sobre os acontecimentos que surgem com a chegada do outono. S que agora a calma-ria de meados de junho deu lugar acelerao da histria do pas, como vemos nas manchetes dos jornais folheados: captura-se Marc Dutroux, o serial killer que assassinou as meninas Julie e Mlissa (alm de outras); o Primeiro Mi-

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    nistro enfrenta uma crise em seu governo; trabalhadores entram em greve; um ex-ministro (Alain van der Biest) v-se envolvido no crime do ministro Andr Cools; orga-niza-se a Marcha Branca, em protesto e em solidariedade aos pais das garotas assassinadas cruelmente, e centenas de milhares tomam as ruas.

    Ddalo corre, ofegante, exasperado, respirando pela boca. Ns no o veremos alar vo. Nas imagens que fe-cham o filme, a vida cotidiana prossegue, agora desnuda-da: uma mulher lava os ps numa bacia; outras duas des-cascam batatas; um homem l o jornal, sua mulher folheia um Atlas. Todos nus e de gestos contidos. Pazienza rala um queijo sobre a reproduo da imagem de Brueghel. Os fare-los do queijo ralado cobrem aos poucos o lavrador, a terra e o arado. Junto a uma ma e uma caixa de ovos, o quadro forma uma estranha natureza morta.

    II. Acercar-se do que foge

    Logo no incio de Lesprit de la bire (2000), filme enco-mendado pelo canal de televiso europeu Arte, o narrador (em voz over) nos diz que todo bebedor o lugar de encon-tros e transformaes que ocorrem sem que ele se d conta. Desviando-se astuciosamente do tema que lhe fora enco-mendado, Pazienza sai procura desses encontros invis-veis que ligam imperceptivelmente o familiar e o ntimo ao mais longnquo e estranho (no espao e no tempo). Essa vasta rede de associaes, que poderia muito bem conectar

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    o pai do cineasta Via Lctea, no pode ser apanhada nem pela aparncia nem pelo mero registro.

    Ser preciso inventar e filmar um conjunto de peque-nos experimentos s vezes os mais fantasiosos, longe de toda pretenso cientfica nos quais o corpo, colocado em cena (inclusive o do cineasta) submetido a uma s-rie de operaes, tanto fsicas quanto especulativas, que deslindam os liames entre a vida orgnica e a experincia histrica, ambas feitas de acontecimentos que nos ultra-passam. Trata-se, portanto, de indagar o que ocorre, o que se produz por meio de qual processo, que conduz a que tipo de transformao? entre o que entra num ouvi-do e sai pelo outro, entre o que olhos vem (uma passeata transmitida pela televiso, por exemplo) e o pensamento que cr decifrar o seu sentido; entre o que entra pela boca, passa pelo estmago e sai modificado em molculas ana-lisadas no microscpio.

    No basta, no entanto apenas observar ou estudar (com a ajuda de diagramas, animaes e esquemas didticos) as transformaes qumicas que ocorrem com nosso corpo quando engolimos esse lquido amarelado de sabor amar-go. Isso no suficiente para apanhar as relaes nos quais nos enredamos, sem saber, quando tomamos o primeiro gole de cerveja. Ser necessrio investigar processos mais lentos e de longa durao, que envolvem outros protagonis-tas e que nos permitem compreender como o orgnico e a memria, o biolgico e o subjetivo se vem, afinal, associa-dos ao mundo do trabalho e da histria.

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    Observada em filigrana, toda cerveja contm uma mul-tido de gestos e narrativas, como uma pea arqueolgica, sublinha o narrador. Para adentrar nesses outros universos que cercam o gesto corriqueiro de tomar uma cerveja, o filme, animado inicialmente por uma vontade analtica, se distribui em diferentes sees, maneira de um relatrio que descreve os passos de um experimento engolir: de-compor; liquefazer; recompor at o momento em que se descobre que algo resta e resiste anlise, e que ser ne-cessrio reescrever tudo (quando ento o documentrio rev sua escritura e se entrega ao fluxo indeterminado das coisas e dos eventos, sem se preocupar com associaes ou com relaes de causalidade).

    Para se desviar do que ele denomina documentrio na-turalista (que se rende s aparncias e doxa7), Pazienza se vale da seguinte estratgia: pequenas situaes ligadas ao universo da cerveja, construdas e registradas nos es-paos cotidianos (a casa dos pais, as ruas do quarteiro onde moram, os cafs freqentados pelos amigos e vizi-nhos), so acompanhadas de comentrios (em voz over)

    7 Em uma esclarecedora conversa com Jean-Louis Comolli, Claudio Pa-zienza critica o documentrio rebaixado a instrumento de consolao, em face de um mundo imutvel, diante do qual ele s pode se resignar, impotente. Para o cineasta, o documentrio deve se lanar na inven-o de mundos possveis, servindo-se dos artifcios da linguagem que introduzem a opacidade onde o real se daria a ver, pretensamente, de modo imediatamente visvel e reconhecvel. Cf. Images documentaires n. 67/68, 2010.

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    que ora descrevem os diferentes efeitos do experimento (o que acontece no e ao corpo daquele que bebe), ora fazem associaes mais amplas, que vinculam os atos rotineiros dos indivduos experincia histrica e coletiva, desvelan-do os liames entre o habitus e o socius. O essencial que o corpo sobretudo o do pai esteja no centro desses expe-rimentos (controlados fragilmente), e que eles constituam, finalmente, a razo do filme.

    Ao passar de um experimento a outro, parodiando ora os tratados de cincia natural, ora o discurso dos documen-trios cientficos produzidos pela televiso, o filme toma-do por um delrio analtico (como bem notou Jean-Louis Comolli).8 Exemplar dessa vontade de tudo saber que parte da cincia para, ao final, alcanar a poesia, a seo deno-minada liquefazer. Depois de estabelecer algumas equi-valncias (do ponto de vista nutricional) entre as calorias de uma garrafa de cerveja e outros alimentos (duas coxas de coelho, meia dzia de ovos, um cacho de uvas), o filme afirma, de maneira desconcertante, que o liquido contido em um antebrao suficiente para produzir uma garrafa de cerveja. De maneira propositadamente absurda, o ante-brao do pai levado ao forno micro-ondas e, em seguida, cortado e congelado. Deixado ao ar livre, o brao derrete, e suas molculas se misturam a milhares de outras debaixo da terra. Em seguida, a gua retirada do solo pelas plantas

    8 Cf. Images documentaires n. 67/68, dedicada ao cinema de Pazienza.

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    se evapora e as molculas originadas dos braos que um dia realizaram gestos violentos ou gentis, militantes ou resigna-dos, se misturam em um imenso cemitrio aqutico flutu-ante, no qual convivem o resduo vaporoso das pessoas co-muns e o dos grandes pensadores; so mostradas imagens de Marx e Lnin, de uma multido (trata-se de uma mani-festao?) e das nuvens. (Lembremos que o filme comeara com a imagem do pai dormindo na grama, acompanhada do barulho de pssaros, e logo seguida por um plano das nuvens). Como mais uma etapa desse ciclo fantstico, o va-por se transforma em chuva e o imenso cemitrio aqutico libera seus ancestrais, gota a gota, recolhidas pelo pai, que as utilizar para fabricar uma cerveja artesanal.

    O documentrio organiza uma cadeia de experimen-tos encenados, que decompem e recompem analitica-mente uma gama de transformaes cujo leque abrange os processos qumicos, biolgicos e neurolgicos que afetam aquele que experimenta a cerveja, os seus componentes e seu processo de fabricao, venda e consumo, at alcanar os aspectos daquela experincia histrica que, ao contr-rio dos fenmenos qumicos, no derrete nem evapora: este o caso das reivindicaes polticas sustentadas pe-las manifestaes nos espaos pblicos, como mostram as imagens documentais de passeatas e protestos, alguns de-les reprimidos duramente pela polcia. A mo que levanta o corpo de cerveja (despercebida e habitualmente) encon-tra assim o punho cerrado da resistncia poltica, ato de vontade consciente e determinado.

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    A despeito dessas surpreendentes associaes em torno da cerveja, h coisas que resistem explicao e que levam o filme a abandonar a vontade de saber, tomado pela neces-sidade de reescrever tudo. O cineasta e o pai entram num pequeno lago, com a gua pela cintura. Pazienza l um tex-to no qual menciona os experimentos a que submetera o pai, que escuta silenciosamente, brincando com a gua. Ao final da leitura, o cineasta mergulha o papel no lago (com a esperana da gua borrar a tinta e desfazer a escrita, quem sabe). Em seguida, em off, Pazienza afirma que o seu proje-to o de acercar-se de uma coisa com mil questes, com o intuito de saber quem este homem, o que este lquido (a cerveja). J na cozinha da casa, na companhia da esposa, o pai confessa ao filho que no entendera quase nada do que tinha escutado no lago. Pazienza insiste que tratava-se de um encontro, para o qual ele esperava que algo se transfor-masse nos sujeitos que o experimentaram. O pai ainda no compreende (encontro com o qu e com quem?). Os trs iniciam uma conversa sobre a natureza dos encontros. Pa-zienza insiste que aquele que passa pelo encontro tem sua substncia alterada, ainda que no se d conta disso. No era este o leitmotiv do filme? (Afinal, aquele quem bebe no v, no percebe nem compreende os encontros que nele ocorrem, em uma cadeia invisvel que liga molculas e clulas aos afetos e aos fenmenos histricos coletivos).

    Apesar do esforo das imagens e das palavras (combi-nadas de diferentes maneiras) em recuperar esses encon-tros, que transformam os seres e as coisas, alguma coisa

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    resta inexplicvel e sem nome. Em busca, talvez, desse ou-tro encontro, o filho cineasta se veste, com ajuda dos pais, e parte. A me olha pela janela. O que vem a seguir uma longa deriva pelas ruas da cidade, uma procura sem des-tino, indeterminada e errante. Desprendida das situaes preparadas e da voz explicativa (em over), a cmera se pe a errar: por um terreno baldio (onde encontra um co e um grupo de crianas); pelas ruas noite, quando se avizinha, pela janela, do caf onde o pai joga cartas, ou dos bares onde os homens bebem cerveja. Embora j no se trate mais de explicar fenmeno algum, tarefa ainda do cine-ma transmitir uma experincia singular, mesmo que o seu sentido permanea inabordvel. J de noite, na vizinhana da casa dos pais, o cineasta aproxima lentamente sua boca do ouvido do pai (seus lbios no se movem, talvez ele este-ja prestes a dizer algo que no ouviremos). Como no incio do filme, trata-se, outra vez, de saber o que passa de um lado a outro, o que entra e o que sai; o que se passa com um e com outro quando algo se passa entre dois: entre o pai e o filho, entre o filme e o espectador.

    Csar Guimares Doutor em Literatura Comparada; profes-sor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da UFMG; pesquisador do CNPq e editor da revista Devires: Cine-ma e Humanidades.

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    Das ilhas ao mundoCarla Maia e Lus Felipe Flores

    Claudio Pazienza se posiciona na margem oposta ao docu-mentrio naturalista. Avesso a mtodos convencionais, ele investe na heterogeneidade de formas de representao para reinjetar no mundo a opacidade, utilizando recursos como materiais de arquivo, efeitos de vdeo, animaes e entrevis-tas. Seu modus operandi, em boa parte de seus filmes, con-siste em eleger um objeto do qual se acercar, e mover uma cadeia de associaes para expandir a questo inicial, filo-sofando com as imagens. assim que, em Tableu avec chu-tes (1997), o quadro de Brueghel motiva indagaes sobre o que vemos, como vemos e como somos vistos. Em Lesprit de bire (2000), a anlise das substncias qumicas que com-pem a cerveja so pretexto e analogia para as transforma-es provocadas pelos encontros entre pessoas. Em Largent racont aux enfants et leurs parents (2002) a ateno ini-cial moeda se volta para o valor das coisas e nossas dvidas uns aos outros. No caminho, ele cria relaes insuspeitadas um desempregado torna-se caro (tambm sei cair), o brao congelado matria-prima da cerveja, a moeda se metamorfoseia numa ovelha em miniatura.

    At esse ponto de sua carreira, seu pai e sua me so protagonistas e espectadores de seus experimentos. nti-ma e estranha, a relao do diretor com os pais torna seus

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    filmes ainda mais complexos. O modo como so filmados a frontalidade, a distncia, a artificialidade dos gestos e poses faz com que suas imagens se afastem bastante do gnero filmes de famlia (home movies). Pazienza faz fil-mes em casa, mas no caseiros, transformando o espao domstico num laboratrio de experincias bem humora-das e nada ordinrias ou, no mnimo, pouco usuais: pre-parar, com ajuda da me, um po em forma de galo para presentear o primeiro-ministro; representar a funo p-tica com barbantes e um globo terrestre; acoplar uma c-mera ao capacete e sair com ela pela vizinhana. O diretor est frequentemente em cena, oferecendo sua prpria ima-gem ao olhar do outro. Ele faz isso sem ares de mestre ou maestro. Ao contrrio, assume o lugar de quem est em busca, algum que cai e se perde, que no teme o ridculo ou o riso ao fazer de si prprio um campo, ou seria melhor dizer, um corpo de experincia (estampar o quadro na ca-misa e exibi-lo junto ao peito ou atar a rvore ao dorso seriam alguns exemplos). Apesar da preciso com que conduz a narrativa, a impresso que o diretor no est no controle, mas a servio da situao.

    A partir de Scenes de chasse au sanglier (2007), h uma sensvel mudana no rumo de sua obra. Aos 11 minutos de filme, a cmera inicia uma deriva pela relva. Vemos uma sequncia de planos nos quais o cineasta toca uma srie de objetos (o mirtilo, a cortina, um pedao de tecido branco), imbricando mo e viso, como quem cria um cinema tc-til, enquanto a voz off pronuncia:

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    Voc diz, o que veio fazer aqui? Voc diz... No previs-vel. No. No visvel. Voc diz... No. Voc diz, o silncio que sussurra e assobia, nenhuma imagem para isso. Voc diz... No h imagens, o real no tem imagens. Toque tuas imagens. Voc diz toque... Toque tuas imagens e invente uma imagem. Estrangule-as, v. Estrangule aquelas que te atormentam, v. Invente... Nomeie tudo isso. Uma pa-lavra para cada coisa nica.

    Enquanto escutamos as ltimas frases, o cineasta acende o fogo e aquece as mos. No plano seguinte, ele percorre o corpo do pai com a mo direita, num plano-sequncia des-concertante: o pai est morto. Quero estar, mais uma vez, na mesma imagem que voc, diz o filho, sentado ao lado do caixo, segurando um microfone. Se, a partir daquele instante, o real no permitiria que ambos compartilhas-sem novamente o mesmo espao-tempo, o cinema opera um pequeno milagre, conserva os dois ainda juntos, faz com que a morte do pai no passe de um episdio de sua sobrevivncia1.

    No trabalho do diretor, h uma constante tenso entre real e representao, objeto e imagem, palavra e coisa. Uma vez rfo, ela se intensifica, pois preciso lidar no apenas com o real, mas com sua sombra, seu espectro: a presena fantasmagrica de seus pais, tanto em memria quanto nos filmes de outrora. Nada desaparece por completo, quando

    1 COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder - a inocncia perdida. Belo Hori-zonte: Editora UFMG, 2008, p. 211.

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    se vive com as imagens. Restam rastros, sussurros, asso-bios no silncio, fragmentos pelos quais recomear. Depois de perder pai, me e seus personagens principais seus filmes manifestaro a necessidade de estrangular as pa-lavras e imagens que o atormentam, e encontrar outras que venham no substituir as antigas, mas, junto a elas, criar uma existncia possvel.

    Se antes o espao flmico era predominantemente bem delimitado e conhecido o lar e sua vizinhana em Scnes de chasse o cineasta parece vagar, com mais frequncia, por espaos imprecisos, como a noite, os cmodos vazios, a flo-resta, os negativos da imagem. A morte assombra cada cena e inspira vrias sequncias. Assim como as imagens, ela tem seus rituais, dos quais so exemplos a caa, o velrio e o empalhamento. Tem incio, neste filme, um trabalho de luto que ir continuar em Archipels Nitrate (2009) e Exerci-ces de disparition (2012), seus trabalhos mais recentes.

    No primeiro, ele cria um arquiplago de nitrato, com-posto por fragmentos de filmes do acervo da Cinemateca Belga, num tributo aos 70 anos da instituio. A ideia de arquiplago sugere a necessidade de refgio, de isolamen-to. Face ao desaparecimento inevitvel das imagens, coisas e corpos, ele se afasta de sua prpria produo para investir num acurado trabalho de montagem, no qual utiliza, pre-dominantemente, material de arquivo, inclusive de seu ar-quivo pessoal. Pazienza trabalha com o que foi salvo (ao tempo, histria, memria) para conjug-los aqui e ago-ra, como dizem as ltimas palavras do narrador.

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    O segundo filme tambm se passa hoje, primeira pa-lavra pronunciada, e repetida vrias vezes no decorrer da narrativa. Neste, porm, a solido da sala de cinema e da ilha de edio cede lugar companhia do amigo e filsofo Jacques Sojcher, apreciador de Nietzsche e de sapateado, com quem o diretor ir partilhar ideias e experincias. Pa-zienza assume que faz filmes para no estar sozinho, para estar com2. Em Archipels, seus acompanhantes so os fil-mes. Agora, ele segue o amigo e pede para que este o siga, numa relao que no deixa de guardar semelhanas com a que tinha com o pai. H, em Jacques, certo modo de estar distrado e, ao mesmo tempo, engajado no filme, executan-do as aes que lhe so designadas seja barbear-se, sapa-tear ou entrar num caixo em formato de peixe em plena frica que aproxima o filsofo da figura paterna dos fil-mes de outrora. Diferente do pai, contudo, Jacques partici-pa do filme propositivamente, numa relao de amizade que salva a obra da melancolia.

    2 Em resposta pergunta, Para que serve o cinema?, o cineasta res-ponde: Para mim, uma experincia coletiva. Eu diria, de maneira simples, que para no estar sozinho. para um milho de coisas, mas acho que o fato de saber que eu poderia ter uma experincia quase mstica, prxima dos outros, que essa proximidade quase corporal me liga, por sua vez, s coisas e ao mundo, de certa maneira. No fundo, um pretexto magnfico para estar com os outros. Posso dizer que para mim isso, simplesmente. para pensar, para viver, para amar, para tudo, mas, fundamentalmente, em primeiro lugar, estar com En-trevista disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=Ff4dtUSJ-0SE. ltimo acesso: 3 de fevereiro de 2014. Traduo nossa.

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    Desse modo, a perda, que repousa sub-reptcia nas duas obras, no gera um olhar nostlgico ou resignado, tampouco um desespero ou descrena diante do porvir. Ela se torna, antes, motor e motivo de um processo de elaborao e inven-o no presente. preciso continuar a criar, a viver ape-sar e a partir das perdas, do que desaparece pelo caminho. Buscar a amizade, deixar de lado a solido, migrar das ilhas para o mundo, encontrar imagens que possam ser descritas. Transformada, metamorfoseada como a lagarta que vemos fazer um casulo e virar borboleta, em Archipels Nitrate a perda poder finalmente resultar numa alegria inexplic-vel, sobre a qual escreve Jacques na carta para o amigo Claudio, na sequncia final de Exercices de Disparition.

    Fugir para as ilhas

    O que as quatro imagens presentes na sequncia inicial de Archipels nitrate tm em comum? O beijo incessante, os chapus voadores, a queda da bandeja em cmera lenta, a reverso da demolio do muro, so seguidas de um letrei-ro onde lemos: Foi criado um milagre. uma referncia inveno do cinematgrafo, aparelho que possibilita a cria-o de imagens livres da linearidade temporal ou da gravi-tao universal. Extradas de filmes do alemo Hans Rich-ter (Vormittagsspuk, 1927 e Zweigrochenzauber, 1929), e de uma obra atpica dos irmos Lumire (Demolio de um muro, 1896), essas cenas partilham princpios no-natura-listas de representao, segundo os quais as sentenas na-

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    turais podem (e devem) ser subvertidas, ou at mesmo re-vertidas pelo poder da mquina. Enquanto durar a imagem, o presente est salvo, o que foi filmado est preservado.

    O milagre, contudo, fugidio. Enquanto vemos um rolo de pelcula, o narrador pergunta: Quanto tempo ela dura? Quero dizer, essa unio entre cristais de sal, o nitra-to. E essa superfcie flexvel e perfurada: quanto tempo ela dura? A questo da durao retomada com variaes diversas ao longo da narrativa. A condio qumica da pe-lcula encadeada aos atributos mecnicos do dispositivo, ao seu funcionamento. As imagens se sucedem rapidamen-te, cada uma dura menos que um instante. Mais uma vez: o milagre efmero. Considerado o estatuto da imagem para o diretor, que a toma como elemento no apenas de repre-sentao, mas de inveno e interveno no real, bem como o contexto de produo deste filme, feito aps a morte dos pais, possvel inferir que a pergunta Quanto tempo dura uma imagem?, se desdobra em outra, mais pungente: Quanto tempo dura um mundo, uma vida?

    Por volta dos 33 minutos de projeo, ouvimos a histria do campons Kmyr, do filme A felicidade. Desiludido, ele preparava seu prprio funeral, mas foi proibido pelo mundo de morrer sozinho. Foi proibido de morrer. Kmyr refern-cia para a narrao que se ouve em seguida, sobre a imagem da me do prprio diretor: Eu te probo de morrer. No morra, eu disse. No morra, eu disse a minha me. O plano de Esprit de bire, no qual a me acena da janela recortada na parede de tijolos enquanto a cmera se afasta, carrega um

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    gesto de despedida que torna explcita a questo do luto e da perda. Mais adiante, o filme exibir cenas clebres que gi-ram ao redor desses significantes me e morte como A me (1926), de Vsevolod Pudovkin, e Roma, cidade aberta (1945), de Roberto Rossellini. E no por acaso, o pequeno Antoine Doinel, alter ego de Franois Truffaut no filme Os incompreendidos (1959), ser referncia constante no filme. Sua infncia, marcada pelo desamparo materno e pela ina-dequao social, convoca tela outros modos de orfandade.

    Em apenas alguns instantes, um mundo desmorona, diz o diretor. O tempo, engenheiro e demolidor, modifica o que vemos, o que somos e o que lembramos. O que nos resta? O que podemos contra essa fora ininterrupta? Seria melhor, talvez, abandonar essas questes, como preconiza o amigo (imaginrio?) de Pazienza no comentrio lido em voz off: Pare com seu cinema!. O diretor, porm, respon-de taxativamente: No pararei!. Ele aposta no milagre incerto que permite subtrair o tempo sua prpria corrup-o3. Se a pelcula guarda, intacto, o presente filmado, re-novado a cada projeo, possvel roubar fraes, instan-tes, agoras ao movimento temporal, como o homem que surge aos dois minutos e meio de filme, que fotografa com seu relgio de bolso o delito iminente. Numa dupla captu-ra, Pazienza rouba dos ladres, dos outros cineastas, para compor sua coleo particular.

    3 BAZIN, Andr. Ontologia da imagem cinematogrfica. In: O cine-ma: ensaios. So Paulo: Brasiliense, 1991, p. 24.

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    Estamos muito distantes dos episdios historiogrficos de Histoire(s) du cinema (1988-1998), de Jean-Luc Godard. As referncias expressionistas, formalistas, dadastas, sur-realistas, potico-realistas e neorrealistas se ligam, aqui, mais por afinidades temticas (como as lutas sociais, as fi-guras maternas, os rfos, os relgios, a morte) do que por qualquer tentativa de transmitir e analisar tradies cine-matogrficas. latente, contudo, a diversidade dos modos de representao reunidos no filme, desde o projeto surre-alista, que almeja, via de regra, abolir a distino lgica entre real e imaginrio, at os neorrealistas, com seu desejo de preservar a complexidade do real, atravs da recusa em apresentar sua verso j decifrada. Esta heterogeneidade cara ao diretor, que a acolhe em seu estilo pluriforme.

    Os excertos de Archipels parecem compor menos uma co-leo arqueolgica do que um inventrio de referncias, esco-lhidas por razes afetivas, estticas e textuais. Muito do que move o cinema de Pazienza o intuito de apanhar a rede de conexes entre as coisas, para aproximar o ntimo e o estra-nho, o particular e o universal, o pessoal e o poltico. Assim, a despedida da me, a memria do pai e os gestos do passado encontram seus pares em outras histrias. Cenas circunscri-tas ao contexto pessoal do diretor se ligam a figuras perten-centes ao imaginrio coletivo e cinematogrfico umas som-brias, como os judeus num campo de concentrao (Memory of the Camps); outras burlescas, como o vagabundo Carlitos (Charles Chaplin), que enfrenta a ordem do mundo com sua adorvel desordem, sua recusa subordinao.

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    A lgica associativa se complexifica quando o diretor insere, entre as combinaes de arquivos, imagens produ-zidas para o filme. Relacionando elementos dspares, ele cozinha um estranho crebro gelatinoso para alimentar seu gato (brincadeira com as primeiras superfcies fotogr-ficas, feitas com gelatina de base animal) e evoca o prprio processo de montagem. Como na culinria, montar exige a combinao de elementos diversos, que sero transforma-dos, respeitado um determinado tempo de preparo. Em outro momento, o diretor utiliza um computador para se-lecionar trechos de filmes. Ao explicitar o gesto do monta-dor, ele refora a ideia de arquiplago na ilha de edio, mais ainda do que na cinemateca, que o diretor se isola. A cinemateca permanece, porm, o lugar central do filme, exposta nas fotografias do acervo, dos corredores, dos am-plos sales, das poltronas, das latas de filmes, do trabalho de restaurao e de conservao. Em todas essas imagens, subsiste o esforo de trazer o discurso para lugares concre-tos. Mesmo em sua recluso, o cineasta no perde a cone-xo com o real e com o presente.

    Na sequncia final, a mo do diretor faz passar retra-tos da cinemateca em runas, registros de alguma mudana ou reforma. Perdido em meio aos escombros, ele confes-sa no conseguir encontrar a velha sala de projeo, nem seu assento preferido. O narrador volta a relatar um dilo-go com o amigo, que reage com indiferena: Assim seja. A resposta novamente uma recusa em entregar os pontos: No. Olhe. O espectador convidado a olhar. A continuar

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    olhando. Algo acontecer, a qualquer instante. Num plano derradeiro, a mo do diretor abaixa e levanta um assento vazio na fileira de poltronas da sala escura. Ele diz: Nesta cadeira de cor antracite, o aqui e agora. Sim. Vamos cham-lo assim. Continuemos olhando: h um eplogo. As ima-gens recomeam na projeo desaparecem para tornar a aparecer. Agora, elas trazem o mar, a mulher, o homem na praia. Este termina deitado, brincando com a areia, matria moldvel como a do prprio cinema, composta de gros, fragmentos, partculas com as quais fabricar as iluses.

    Voltar ao mundo

    Comparado a filmes anteriores, Exercices de Disparition mais silencioso, contido em seus comentrios. Como se a linguagem, insuficiente para lidar com a perda, lentamente se dissipasse. A narrao pausada e grave, feita de ecos, de fragmentos dispersos, de fonemas que se arrastam com di-ficuldade. H intervalos, lacunas semnticas, hesitaes, hiatos que se ligam s imagens. A sequncia de abertura apresenta uma srie de variaes sobre a cor branca a neve, a nvea tela, a mecha grisalha, as pginas desocupa-das sobre as quais as palavras ressoam.

    Ligado ao silncio, podemos supor que o branco a cor da ausncia, pois reflete todos os raios luminosos, sem absorver nenhum. A ausncia est, pois, marcada na imagem, por mais que esta nos devolva uma espcie de acmulo memrias, histrias, buscas, perguntas. O jogo do fora de campo, que

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    invoca o que est para alm dos limites do quadro, a reversi-bilidade entre o visvel e o no-visvel, interessa especialmente neste filme, em que a falta e o vazio tornam-se elementos par-ticipantes da estrutura do filme ou, qui, seu prprio princ-pio regulador. atravs daquilo que no est, ou deixa de es-tar, que o diretor desenvolver seus exerccios de desapario.

    Para evocar o que est ausente, ser preciso confrontar concretamente as coisas do mundo, em sua materialidade. Assim, Pazienza coleta as gotas de chuva em frascos etique-tados com datas. Vale recordar que esse mesmo gesto estava presente em Lesprit de bire, onde a chuva se deixava im-pregnar pelos homens liquefeitos se l, ela era armazenada para recompor o brao do pai, aqui, ela nada recompe, ape-nas atesta a passagem do tempo, o ciclo das estaes e mera suposio faz pensar nas lgrimas contidas pela morte da me. A antiga mquina de costura materna, um presente de casamento, resgatada e colocada em uso, em cena para alm de sua funo ordinria de coser, ela assume novos n-gulos e posies, compondo estranhas geometrias junto dos corpos dos personagens. A lembrana materna pode ser, en-to, ressignificada, a partir da subverso do uso do objeto, no mais domstico, mas cinematogrfico.

    O luto, palavra que o diretor investiga e desgosta, che-ga anunciado por Arthur, falso esqueleto composto por 33 peas a 6,99 euros cada, que serve de brinquedo aos filhos do diretor. Arthur encontrou seu lugar em casa, diz a narrao, como o silncio que envolve a morte de minha me. So muitas as cenas em que vemos Pazienza

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    e Sojcher sentados lado a lado, partilhando o silncio, olhar dirigido ao extracampo, a algum lugar onde a mor-te ronda. O movimento do filme, no raro, se volta ao ex-terior, ao fora, e culmina finalmente na errncia dos dois amigos por terras estrangeiras. Nenhuma paisagem de carto postal, contudo, tem lugar nestas viagens. Em seu lugar, h as descries das coisas vistas fora de quadro pela dupla, que faz com que as palavras venham nomear o que, na imagem, se ausenta.

    Desde Tableau avec chutes, Pazienza recorre estratgia descritiva. Basta lembrar a sequncia em que ele pede s pes-soas para descrever o quadro de Brueghel, ou o modo como ele relata, passo a passo, os processos de consumo e fabricao da cerveja em Esprit de la biere. Descrever diferente de defi-nir, pois conduz no essncia ou qualquer ordem universal, mas coisa singular, individualidade da coisa, quilo que a distingue das outras 4. No lugar de atributos fixos, imutveis, definitivos, a descrio trabalha com os acidentes, aquilo que incide sobre um determinado tempo e espao especficos, sem interesse por generalizaes. O homem, por exemplo, tal qual descrito por Pazienza em Exercices, um crnio que ronca e uma mo que, s vezes, escreve cartas.

    O mtodo descritivo ganha nfase na sequncia das viagens. Diante das pessoas e lugares que encontram, entre o continente asitico e o africano, ele e o amigo, de micro-

    4 ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 281.

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    fone em punho, dizem o que esto vendo. O espectador passa a ver o extracampo, atravs das palavras dos dois viajantes: um rapaz de roupa vermelha, cabelos longos, jeans um pouco gastos; um homem anda de bicicleta len-tamente; minha direita pessoas comem na varanda, algumas rvores. Se, como sugere Daney, toda forma um rosto que nos olha5, trata-se de descrever as formas do mundo para evocar um rosto que falta, o rosto materno.

    J falamos sobre como, em Scnes de chasse, Pazienza fil-ma o cadver do pai, enunciando o desejo de partilhar com ele a mesma imagem pela ltima vez. Aqui, o luto pela me no suporta nenhum corpo. Ele sequer a reconhece em seu leito de morte, como conta ao amigo. Seu rosto se perdeu, e com ele o prprio sentido da palavra luto. O dilogo entre Pazienza e o amigo Sojcher baseia-se, em larga medida, na necessidade do diretor de elaborar o luto, dar-lhe algum sig-nificado. Em determinado momento, ele pede ao filsofo que retome sua ideia de que um livro seria como um tmulo. Jacques passa, ento, a falar dos livros que escreve em home-nagem ao pai e de como um livro pode oferecer aos mortos, a um s tempo, um memorial e uma lpide:

    Penso s vezes na morte. E penso, ao mesmo tempo, nos traos, no tmulo. Meu pai no teve um tmulo. Mor-

    5 DANEY, Serge. Le travelling de Kapo. In: Revue Trafic. Outono, 1992. n 4. Diponvel em: http://www.filmfilm.be/post/35124287414/le-travelling-de-kapo-par-serge-daney-trafic-4-1992. ltimo acesso: 3 de fevereiro de 2014.

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    reu num Campo e suas cinzas se dispersaram no se sabe onde (...). Um livro oferece um tmulo a quem no teve (...). Como um imperativo: inclua-me no seu livro, d-me um tmulo, d-me um inventrio, faa de mim palavras, palavras que contagiem os outros, faa-nos vivos.

    Bem ao estilo do diretor, a questo do filme se desdobra, amplia-se, alcana horizontes mais complexos o luto da me liga-se ao luto do pai do amigo, que por sua vez remete aos mortos sem sepultura dos campos de concentrao. A sombra cresce, os fantasmas se agigantam, o silncio tem o peso da histria. O filme, como o livro, torna-se lpide, se-pultura. emblemtica a sequncia final, em que o diretor acompanha todo o processo de fabricao de um caixo, desde a escolha do modelo (em formato de peixe, risivel-mente) at o simulado enterro. Jacques quem entra no caixo, ocupando o lugar do morto. Mas, num truque, ele ressurge ao lado de Pazienza acompanhando o cortejo, como que encenando aquele milagre do cinema que traz os mortos de volta vida.

    o mesmo Jacques quem oferece, tragdia da morte, um consolo de inspirao nietzschiana, enquanto amarra seus calados de sapateado: Incipit tragoedia, incipit paro-dia. Comea a tragdia, comea a pardia: a pardia da vida, a comdia existencial, a alegria de viver apesar de tudo, diz Jacques. Seguindo com Nietzsche, Pazienza de-clara ser militante de um cinema de gaia cincia (gai sa-voir). O filsofo alemo escreve A gaia cincia num mo-mento particularmente sensvel de sua vida seu corpo

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    experimentava uma repentina melhora aps um perodo de severa convalescncia. Segundo seus estudiosos, a obra projeta um pensamento em que o riso e a alegria so essen-ciais. Pazienza aplica essa filosofia a seu cinema gaio, pontuando com graa o sofrimento do luto. Em vrios mo-mentos, assume um ar farsesco em cena ou articula seu discurso em torno de coisas risveis, como uma camiseta anti-ronco ou Arthur, o esqueleto. A comdia brota do tr-gico assim que, fora de compasso, dois amigos podem danar em praa pblica, animados pelo jbilo da fora que retorna, da renascida f num amanh e no depois de amanh 6.

    Carla Maia doutoranda do Programa de Ps Graduao em Co-municao Social da FAFICH/UFMG. Ensasta e pesquisadora de cinema, atua tambm como curadora, professora e produtora. Integra o coletivo Filmes de Quintal, que realiza o forumdoc.bh: Festival do Filme Documentrio e Etnogrfico de Belo Horizonte.

    Lus Felipe Flores mestrando do Programa de Ps Graduao em Cinema da EBA-UFMG. Crtico e pesquisador de cinema, atua tambm como curador.

    6 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia cincia. So Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.9.

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    Pazienza, o problema e a exterioridadeLuz Augusto Rezende

    Cineastas cujos trabalhos fogem s seriaes estabelecidas pela histria e pela crtica do documentrio, seja porque transgridem, renovam ou tensionam as classificaes, tm contribudo sensivelmente, por meio de seus filmes, para desfazer os ns ou simplificaes que o prprio campo do documentrio estabeleceu historicamente. Por outro lado, subverter ou confundir a ordem das sries de rela-es, influncias ou filiaes estabelecidas pode permitir criar em torno desta caracterstica uma nova srie (ou uma determinada tradio). Assim, possvel enume-rar cineastas que, como Chris Marker, Agns Varda e, no caso deste estudo, Claudio Pazienza, criaram um campo prprio de expresso, de inveno, de relao com seus objetos e questes e de inscrio da subjetividade/exterio-ridade na produo de imagens. Mas destacar esse ponto no o objetivo principal deste estudo, nem o princpio norteador segundo o qual vamos trabalhar aqui. Apesar de a identificao de uma nova srie no se constituir em si mesmo numa conquista de grande relevncia, este gesto nos aponta de fato um caminho para notar de que forma determinadas questes que se referem prtica e teoria do documentrio se constituem e se transformam. E, no

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    caso de um cineasta como Claudio Pazienza, como elas so diferentemente respondidas.

    Por que fazer um filme se ele j est perfeito quando ns o imaginamos?, diz Pazienza, citando Pasolini (em Revista Bref, 2003). E acrescenta, em todo caso, nada de colocar em imagem uma coisa que preexiste ao filme. Este parece ser um princpio esttico rigorosamente segui-do pelo realizador, que aponta um interesse e uma capaci-dade de trabalhar sobre e de fazer soar as virtualidades dos elementos que compem seus filmes, suas questes. Trata-se, neste caso, especialmente de uma valorizao das dimenses virtuais daquilo que conhecemos como real, do gesto criador que supe que este real no est (pelo menos no inteiramente) dado. Nessa ordem, o sen-tido de tomar a imagem e o cinema como instrumento, linguagem e expresso estaria em fazer ver/ouvir/pensar de uma forma especfica, como outro meio no poderia proporcionar da mesma forma. Este princpio esttico, que Pazienza parece partilhar com outros diretores, como os acima citados, a respeito das questes que podem ser suscitadas quando se pensa sobre as relaes entre a ima-gem e o real (o que ns entendemos pela palavra real? O que nos faz de acordo a respeito dela?) parece levar Pazien-za a partir dessas questes de fundo e fazer da construo de um campo problemtico especfico (um objeto, um tema, um n, uma pista, uma aposta) uma forma de mo-dul-lo luz da reflexo sobre o que chamamos real e o que se cria com o cinema.

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    O fato de seus filmes procederem sob a forma de um tipo de enquete minuciosa lhes confere uma uniformida-de e uma regularidade, de mtodo, de abordagem, de rigor, de algo que se parece com um dispositivo prprio de filma-gem. Esse dispositivo, segundo o prprio diretor, parte de uma intuio, de um problema, que pressiona e demanda uma resposta. Seu gesto seguinte se perguntar pelo cami-nho a seguir para que esse problema, essa intuio, se transforme em outra coisa com que se possa continuar tra-balhando. O cinema no tomado como uma mquina de registrar o real, mquina de representao, razo pela qual os filmes de Pazienza seriam melhor entendidos por outra chave, uma vez que, como dito pelo prprio cineasta, o ci-nema e mesmo o documentrio no produzem um retrato de alguma coisa que preexista ao prprio ato de criao. Assim, no se trata de colocar em imagem alguma coisa que j havia sido escrita, imaginada, pensada. No cinema, esse colocar em imagem trata-se na verdade de produzir algo que no poderia ser criado por meio de outro instru-mento, j que este instrumento virtualiza de forma parti-cular as questes e elementos inicialmente colocados, e os modifica em direo a outras questes que surgem aos en-contros que modulam os caminhos, que ramificam as questes, que as fazem se desdobrar. Segundo o diretor, a partir da escolhem-se quais ramificaes seguir, quais os procedimentos (encenao, filmagem, escrita, pr-monta-gem, interrupes, quebras) que iro transformar e meta-morfosear a questo inicial e, assim, uma toro do olhar

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    (do diretor, do espectador) se opera. No haveria, de fato, como afirma o cineasta, uma posio terica ou investiga-o em relao s quais o filme se coloca como um tipo de libi (COMOLLI, J-L. & PAZIENZA, C., 2007)?

    Em Scnes de chasse au sanglier e em Largent racont aux enfants et leurs parents, como em outros filmes do diretor, temos duas obras que se caracterizam evidente-mente pelo estabelecimento de uma questo, ou de um conjunto de questes, um campo problemtico que se des-dobra/desdobrou ao longo da realizao e da durao dos filmes. Por este motivo, tais obras podem ser pensadas em relao tenso que elas geram entre projeto e trajeto. O projeto , grosso modo, o conjunto de ideias, intenes e objetivos previamente estabelecidos, enquanto o trajeto o caminho pelo qual o filme efetivamente passa para se atu-alizar enquanto tal. Como projetos, os filmes de Pazienza j estabelecem virtualidades: uma questo ou problema que buscam uma resoluo. Nessa mesma condio, o pro-jeto j contm algumas atualizaes (um roteiro escrito, uma pesquisa, uma encomenda formal, um desejo de ex-presso manifesto, etc.), tal como encontramos nestes fil-mes. O projeto importante porque ele uma verso do imperativo que move o campo problemtico do filme. Ele o estado atual de uma questo que ainda no encontrou uma forma material. J o trajeto o percurso determinado (mas visvel apenas retrospectivamente) que, em meio proliferao fortuita de percursos, o filme acabou por to-mar no processo de chegar justamente sua materialidade

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    concreta de filme. em funo deste trajeto que, resolvidas positivamente as inmeras bifurcaes do campo proble-mtico estabelecido, este mesmo campo recebe uma forma determinada, nova e nica, e que um testemunho e uma memria do processo do filme podem se constituir.

    A tenso, que se estabelece entre o projeto e o trajeto, diz respeito ao duplo fato de ser tanto da natureza do pro-jeto procurar gerir, regular e submeter o trajeto, tal como uma vontade imperativa, quanto ser tambm da natureza do trajeto, escapar, modificar ou trair o projeto. Nos filmes estudados aqui, essa tenso pode ser vista sob diversas for-mas, mas em geral podemos afirmar que os dois filmes se caracterizam por uma tendncia afirmao do trajeto em detrimento do projeto. E mesmo quanto a esse fato existe uma ambivalncia desconcertante. Em Largent racont aux enfants et leurs parents, o projeto de Pazienza (no muito levado a srio, alis), o seu desejo de explicar o di-nheiro e suas relaes concretas e abstratas, revela-se de fato como uma estratgia de constituio de um percurso, de um trajeto. Neste trajeto, os fracassos aparentes (a in-capacidade de obter respostas concretas talvez), as inter-rupes, as mudanas de rumo e os retornos, a abertura de novas questes e a incorporao de novos problemas, se revertem e so aproveitados como indicaes dos desvios que o projeto/trajeto podia receber e assimilar em uma ex-perincia de improvisao, e como forma de fazer das transformaes por que o problema inicial passa ao se des-viar do rumo, uma verso mais potente dele. Sabemos

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    que muitas coisas j tinham sido pesquisadas e estavam previstas pelo diretor (a presena recorrente dos pais, por exemplo), mas a dimenso projetiva desses elementos se dissipa ao encontrar as incgnitas das perguntas ainda no suficientemente respondidas, a dimenso inesgotvel dos problemas, das questes, das camadas de real e de imagem.

    J em Scnes de chasse au sanglier, a dmarche ainda mais complexa, j que a forma mais aparentemente ensas-tica assumida pode deixar supor uma preponderncia do projeto sobre o trajeto. No entanto, o que parece negar essa concluso a permanente reviso das questes (reorienta-das pelo trajeto), como num ensaio sem objeto, ou cujo objeto, fluido, se dispersa nas prprias questes colocadas e se reformula: os paradoxos nunca de todo resolvidos en-tre tocar, ver, dizer, escutar, expressos pelas relaes entre imagens de diferentes naturezas (desenho, filme, celular, etc); o desejo de acercar-se do que no tem mais nome, de tocar as imagens tal como objetos, de enterrar uma ima-gem como se fosse um objeto. Em uma cena do filme, em que vemos um esquema animado de um javali atravessar a tela e ser abatido, num gesto magritteano, Pazienza nos diz que aquilo no a prpria coisa, mas, ao mesmo tempo, lhe confere uma positividade de ser e fazer ver a diferena (justamente essa diferena entre esboo e fotografia) entre a imagem e o objeto, ou seja, postula uma modulao deste objeto, seu outro, como elemento na busca por cama-das invisveis do real, e no como representao (imposs-vel?) deste. O mesmo pode ser dito do javali empalhado,

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    que acrescenta mais uma modulao imagem, mais uma mscara ao objeto, tal como as cerejas no prato e as cerejas no desenho infantil. Trata-se de uma questo que passa pelo questionamento da imagem, sem dvida desde o in-cio presente no projeto, mas ao final desviado pelo trajeto, pela montagem, pela materialidade da ordem em que o es-pectador v/toca as coisas/imagens.

    Por estas e outras razes, talvez tambm no fosse po-tente pensar esses filmes como gerados por uma abordagem prxima ao que se costuma chamar cinema do eu. A pre-sena fsica do diretor nestes filmes evidente, o que pode nos conduzir a identificar seus filmes com essa linha. No entanto, mais do que a expresso de um eu, de uma di-menso interna, subjetiva, de um indivduo determinado, estes filmes nos ancoram fortemente em uma exterioridade. A noo de exterioridade faz oposio ideia de um funda-mento transcendental que emana de uma subjetividade ou de uma influncia anteriores. Para Foucault, a criao no se referencia nem a um sujeito individual, nem a uma cons-cincia coletiva, nem a uma subjetividade transcendental. Ela um campo annimo cuja configurao define os lu-gares possveis dos que executam a funo da enunciao do autor dentro de um campo determinado (FOUCAULT, 2004). Essa funo externa ao sujeito que ocupa a funo autor e se relaciona ao que escapa ao projeto ou ao pensa-mento que busca a identidade do autor em regularidades determinadas que atravessam as diversas obras. Essa exte-rioridade pode estar nas contradies dos filmes e entre os

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    filmes, nas suas hesitaes, nos becos sem sada encontra-dos, nos pontos cegos. No como falhas por uma execuo ruim do projeto, que afinal fundamental, nem como fra-cassos que devem ser colocados de lado, mas como potncia de um pensamento que se abre experincia e ao movimen-to que no so seus e que lhe so inegavelmente exteriores.

    Para a teoria do cinema, pensar a exterioridade signifi-ca pensar o cinema no em referncia interioridade de uma inteno, de um pensamento ou de um sujeito, mas segundo a disperso dessa exterioridade. Em Scnes de chasse au sanglier e em Largent racont aux enfants et leurs parents, a dimenso da exterioridade se manifesta, como vimos acima, na tendncia afirmao do trajeto em detrimento do projeto. Os trajetos talvez sejam aquilo que no documentrio melhor acolhem os acontecimentos, as singularidades e os encontros, sem roteiros, como deseja-ria Comolli. Por isso que na anlise dos trajetos se possa talvez melhor ver a constituio de uma exterioridade para as obras. Ou seja, buscamos nos trajetos a disperso das idias em manifestaes singulares, em acontecimentos, como diria Foucault.

    Luz Augusto Rezende doutor em Comunicao pela UFRJ e Professor Adjunto do NUTES-UFRJ. Desenvolve pesquisas so-bre documentrio, imagens de arquivo e recepo audiovisual em contextos educativos. Tem artigos publicados nas reas de cinema, comunicao e educao.

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    Referncias Bibliogrficas

    Bref n. 58, outono de 2003, pp. 28-34.COMOLLI, J-L. & PAZIENZA, C. Dialogue entre Jean-Louis

    Comolli et Claudio Pazienza. 2007. Disponvel em . Acesso em 28 de dezembro de 2013.

    FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004.

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    Dilogo entre Claudio Pazienza e Jean-Louis ComolliSobre Esprito de cerveja, Cenas de caa ao javali e Quadro com quedas1

    Claudio Pazienza: Esprito de cerveja uma encomenda para uma noite temtica, em 1999, feita pelo canal de TV Arte. Tratava-se de conceber a totalidade de uma noite em torno da cerveja. Muitos realizadores alemes ou alsacia-nos poderiam faz-lo, mas, enfim, foi a mim italiano vi-vendo em Bruxelas que pediram uma opinio sobre essa bebida. Em seguida, em 2002, fiz um filme para a coleo que se chamava A bolsa e a vida ainda para Arte inti-tulado O dinheiro contado s crianas e aos seus pais. De-pois, de 2002 a 2006, eu parei. Estava impossibilitado. No tinha mais vontade de filmar. No tinha mais gosto pelo cinema. Mais recentemente, propus um projeto a La Lucar-ne (Arte): Cenas de caa ao Javali (2007) tendo essencial-mente como ponto de partida, uma questo relativamente abstrata, inatingvel, conceitual: o que se entende exata-

    1 Esse encontro, na Maison de lImage de Estrasburgo, a cerca dos filmes de Claudio Pazienza, aconteceu em 15 de dezembro de 2007, em uma sesso excepcional do seminrio conduzido por Jean-Louis Comolli a convite de Georges Heck e da associao Vido Les Beaus Jours. Trs filmes de Claudio Pazienza foram exibidos: Esprito de cerveja (2000), Cenas de caa ao javali (2007) e Quadro com quedas (1997). Entrevista transcrita por Anne Gigleux.

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    mente pela palavra real? Era esta a questo. O que faz com que ns, documentaristas, pareamos to de acordo acerca desse conceito? O documentrio parece ter como refm esta questo, e mesmo ter congelado um pouco cer-tas formas de linguagem em torno dessa acepo muito difundida que privilegia o percebido, o visvel. E depois nesse ltimo filme eu tambm quis questionar uma re-lao mais ntima, mais pessoal das imagens.

    (Projeo de Esprito de cerveja, Cenas de caa ao javali)

    Jean-Louis Comolli: Em um filme como no outro, me pa-rece que voc brinca com alguma coisa como um limite do representvel, daquilo que possvel representar, quero di-zer um limite para voc.

    C.P.: Em Cenas de caa ao javali, minha percepo do ci-nema aquela de uma arte necrfila, uma arte que s se pode fazer com aquilo que j no mais. E no fundo, pode-ramos prolongar essa reflexo pela ideia de que esse ritual o cinema teve (tem sempre) um papel expiatrio. Sim, provvel que o cinema tenha sutilmente, sorrateiramen-te, trabalhado nossa relao com a morte, muito alm da presena de elementos, objetos, pessoas, mortos na tela. O cinema trabalha essa questo desde seu nascimento atravs de seus extremos, seus plos: a iluso do que est vivo com aquilo que j no est mais. Viver o cinema assim foi tam-bm uma experincia muito confortvel. Contudo, nesses

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    ltimos anos, minha questo a esse respeito tornou-se mais lancinante: o que fez com que fosse to confortvel duran-te todo um tempo viver o mundo atravs desta iluso, vi-v-lo em um sentimento de proximidade, de continuidade, de cumplicidade? Uma ruptura aconteceu. No se trata do mundo, trata-se do mundo do cinema. Alguma coisa dolo-rosa se instalou deste lado. A impresso de que as imagens no se colam mais s coisas (filmadas). A impossibilidade de filmar, essa essencialmente minha relao com isso, minha relao com o cinema, minha relao com o mundo que muda. Com Cenas de caa ao javali, tratava-se prova-velmente de tornar claro, de tornar claro para mim, que mi-nha relao com as coisas no passa unicamente pelo fato de film-las, mas tambm de viv-las, toc-las, peg-las. esta a ladainha que me habitava, que ainda me habita.

    J.-L.C.: Isso que voc diz est no centro da questo. Mas eu queria destacar um ponto, que voc o diz em um filme. O cineasta interroga o cinema ao mesmo tempo em que o faz. Ele convoca duplamente aquilo que do gesto cinematogr-fico est ligado morte: a morte no mais apenas aquilo que assombra o cinema, ela o que trabalha explicitamente esse filme, quer dizer que ela negada em sua prpria afir-mao. Alm do mais, voc tem mil vezes razo: o cinema e a morte atuam juntos, vai alm mesmo do que diz Cocte-au (o cinema a morte no trabalho). Reproduzindo-o artificiosamente, o cinema visa a minar toda naturalida-de do movimento da vida. O viver, o cinema o torna como

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    maqunico. A vida como articulada ao movimento a prpria iluso produzida pelo cinema. A iluso das iluses: o movimento existe no cinema, sim, mas ns sabemos bem que ele adicionado ao filme para animar essas imagens fixas que so os fotogramas. Ao vazio do movimento da vida reproduzido pelo cinema, h a morte, o congelado, o imobilizado, o fixo. bem a forma da morte, sua impres-so, que est no corao do cinema.

    Dito isso, o teu cinema um cinema orgnico, e, por-tanto, a morte no trabalho isso quer dizer, para ficar nos slogans, que a vida continua. Isso o que nos intriga no cinema: o lao constantemente negado e constantemente reconduzido entre vida e morte. No fundo, o cinema apenas faz confessar, pr em forma, tornar perceptvel essa articulao vida/morte que ns experimentamos todos em nossas vidas reais. A presso da morte a constante (vai alm mesmo da pulso de morte) e , ao mesmo tempo, constantemente negada. O cinema realiza o modelo redu-zido dessa tenso, ele formaliza a negao como mise en abyme2 (o imvel no movimento, a rigidez no fluido, a an-lise na sntese, etc.) e, portanto, abre o acesso a uma consci-ncia dessa negao. Poderamos dizer que o cinema reali-za e autoriza ao mesmo tempo a experincia de uma passagem ou de uma fuga da morte na vida, da vida na

    2 Nota do tradutor: termo francs usado na pintura, no cinema e na literatura para se referir a narrativas que contm outras narrativas dentro de si.

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    morte. E, portanto, coloca-se a questo do resto dessa fuga. O que resta? Ns. O espectador.

    Gostaria de acrescentar que pareo perceber no teu cinema uma tenso entre o que se poderia chamar de uma preocupao de preciso clnica, por exemplo, no incio de Esprito de cerveja e aquilo que se pode chamar de a impreciso do vivo. Por um lado, estamos na anatomia, o corpo representado como conjunto de rgos, da mes-ma forma que a cerveja representada quimicamente como conjunto de molculas; e, por outro lado, na ltima parte, por exemplo, de Esprito de cerveja, v-se que a c-mera se pe a f lutuar de noite nas ruas procura de ima-gens indecisas, que entram em contradio com a preci-so tanto fotogrfica quanto clnica ou anatmica da primeira parte do filme. Mais e menos preciso: alguma coisa se revela do lado dessa fuga da qual eu falava. Eu encontro - de outra maneira, porque um filme no repete o outro, - essa tenso em Cenas de caa ao javali. Parece-me que essa mesmo a questo de que voc trata. H ao mesmo tempo um excesso de real por um lado e no mui-to pelo outro. Estamos em um salto ou uma passagem do mais ao menos, estamos entre os dois, tensos, despedaa-dos. Noto a dimenso propriamente filosfica que o teu cinema marca no cinema.

    O cinema tem uma histria que o mistura evidentemen-te ao que chamamos de o real. H um contratempo entre o sistema de iluses construdo pelo cinema e aquilo que seria, face iluso, o real. O cinema seria a mais histrica

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    de todas as artes, nisso, primeiramente, de que conhecemos mais precisamente a histria posto que dele somos contem-porneos (a algumas geraes prximas); e, em seguida, na-quilo que a prpria histria do cinema nos ter forjado, ter mudado o mundo em que vivemos. Podemos, assim, consi-derar o cinema como propondo um modelo reduzido de nossa histria, ou um manual mais ou menos fora dos eixos do mundo contemporneo. A funo do cinema seria, em suma, trazer de volta a histria em nossa relao com o mundo. Voltando aos teus dois filmes, podemos tambm os considerar como dois tempos ou duas pocas, e a relao deles como inscrita em uma histria familiar que tambm uma histria cinematogrfica. Tua relao ao mesmo tem-po de filho e de cineasta com teu pai vivo, depois morto, ao mesmo tempo pai e personagem; teu questionamento sobre a representao, a iluso, o real, etc., tudo isso passa tam-bm por a. A morte do pai tambm morte no cinema. A questo da consistncia do mundo que interroga o cinema e que diretamente trabalhada em Cenas de caa... tambm histrica no sentido em que uma cesura temporal, um bura-co de tempo, o buraco da morte, separa os dois filmes. Como no ser alertado pelo conhecimento que voc opera, mais ou menos ajustado, entre um lado pela questo da con-sistncia das representaes, e de outro a questo da trans-misso do pai para o filho (teu pai, voc, teu filho)?

    C.P.: Voc usou uma palavra, em relao a Esprito de cerve-ja que era o termo clnico e depois alguma outra coisa...

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    J.-L.C.: A impreciso, a errncia, o encontro no definido...

    C.P.: No fundo, essas duas questes esto bem a, nos meus filmes. No so premissas tericas, a partir das quais cons-truo um filme. Eu me dou conta depois. Frequentemente e cada vez mais o prazer est para mim no em filmar aquilo que compreendo, mas tambm em deixar vir a mim, em passar eventualmente a limpo posteriormente. Estes dois plos, aquilo que voc chama de a preciso cl-nica e a errncia, so tambm os plos da nitidez e da opacidade. E entre esses dois elementos que se joga aos meus olhos essa questo do real. Por mania ou por cultu-ra, uma grande parte da histria da relao do cinema com o real, tende em direo daquilo que se chama a nitidez, isto , o esgotamento do assunto, sua descorticagem, seu cerco, estar quite com ele de uma vez por todas. Quando falava do real, tal qual estimo que ele tenha sido pego como refm pelo documentrio, no fundo nessa esperana que ele tem de fragmentar e de alcanar, de uma vez por todas, o mundo, de compreend-lo. Quem somos? O que faze-mos, etc.? H alguma coisa desta ordem que o document-rio tenta esgotar em sua relao com o mundo. Mas a onde isso se choca, que se produz alguma coisa da ordem da paralisia na tentao da compreenso completa. Eu me dou conta de que o que me interessa em meus filmes, reinjetar a opacidade. Por que essa mania de domnio? A que corres-ponde essa iluso? E acredito mesmo que fundamental que alguma coisa continue a nos escapar, a nos fugir. Do-

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    min-lo, certamente primeira parte de Esprito de cerveja mas tambm injetar a possibilidade de que ele continue a nos escapar, porque nessa parte que nos escapa que h ainda jogo possvel, construo, inveno. Conceber o real ao mesmo tempo como alguma coisa incompreens-vel e que nos devemos de no pr em questo, e por outro lado o real como alguma coisa que da ordem da percep-o, da vontade, da inveno, da construo... E a partir destas duas coisas, que eu no paro de trabalhar. No fundo, uma coisa dada s visvel se, em parte, a reinventamos, a completamos. essa parte de linguagem em torno do n-cleo da verdade que torna de novo visvel aquilo que se eclipsa e/ou se subtrai do olhar pelo desgaste. Essas formas me parecem essenciais no documentrio. Certamente, pode ser que elas encubram, que elas impeam de ver, mas sem elas essas verdades murcham, se secam, perdem seu poder contagioso.

    O que me irrita na estreiteza do termo real sobretu-do na acepo que o documentrio naturalista tem desse que h uma meta-mensagem insidiosa em obra: o mun-do no fundo temos apenas que nos sujeitar a ele. Mes-mo no momento em que ele pretende explic-lo, mesmo a onde isso nos incomoda mais, o prisma naturalista nos conta o mundo como uma finitude, como um destino. assim. E que seja voc, eu ou qualquer outro que olhe, que nos conte o mundo... A nada se pode. A ainda o pris-ma naturalista parece dizer que a linguagem no existe, que a construo no est em curso, que nosso olhar abre

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    mo de uma (invisvel) premissa ideolgica, contudo bem existente. O que tenho a fazer no inventar um dispositi-vo original, mas questionar minha relao com as coisas, filmar isso, filmar essa relao. E nessa flutuao errn-cia que se produz aquilo que chamo de um mundo poss-vel, alguma coisa de possvel ao lado daquilo que imut-vel. Alguma coisa que continua a se mover.

    O que explica o sucesso inacreditvel do documentrio depois de dez, quinze anos? No por acaso, mas alguma coisa que um pouco uma obsesso da compreenso, da descorticagem do mundo, do real, etc. Uma obsesso dis-so, e eu me digo: a est, estranho... Essa sede de real, essa sede das coisas, mas com um revs que me interroga: ser que, no fundo, esse lugar que tomou o documentrio em torno de ns, nos nossos imaginrios, no preenche tam-bm um outro papel? Isso no uma concluso, uma hiptese de trabalho: o documentrio como uma ferra-menta de consolao?

    Sim, essa dimenso consoladora me questiona. Certa-mente, o documentrio denuncia aquilo que no vai bem, mostra as torpezas, mas bizarramente ele nos habitua a isso tambm, isso no tem um revs. E volto quilo que eu dizia h pouco: o documentrio parece nos consolar do mundo-destino. H alguma coisa desta ordem... Continuo a crer que mostrar um morto na televiso, um corpo reta-lhado... Isso deveria produzir uma insurreio. essa a questo: como se faz que, com tanto real diante de nossos olhos, isso no induza a alguma coisa que seria da ordem

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    ouso o termo de uma revoluo, de uma insurreio? Como se faz