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Capítulo XIV CATOLICISMO PRIMITIVO § 70. O QUE É "CATOLICISMO PRIMITIVO"? Qual é o grau dos traços característicos do cristianismo católico do (fim) do séc. II presentes no NT? Quando se tornou inevitável que o cristianismo (ocidental) se tornaria a ortodoxia católica de Cipriano de Leão? Como alguns protestantes argumentam o catolicismo seria um desenvolvimento pós-apostólico, distanciando-se da pureza primitiva e da simplicidade do séc. I? Ou foi, simplesmente, o florescimento natural do que pertencia à essência do cristianismo desde o princípio? - como muitos católicos sustentam. Ou a resposta recai em algum lugar entre essas duas possibilidades? Talvez em um desenvolvimento decisivo (ou vários) durante o séc. I; talvez no domínio de uma visão sobre as outras já para o fim do séc. I; talvez na chegada lenta concomi- tantemente de diferentes elementos a uma totalidade coerente que detinha o poder final mais do que as visões e estruturas alternativas; talvez como reação aos outros desenvolvimentos do séc. I. E se quaisquer das últimas alternativas representam melhor os fatos que as restantes, então podemos falar de um "catolicismo primitivo" dentro do NT? Há escritos do NT que, principalmente, centravam-se sobre a trajetória da ortodoxia católica emergente? A própria expressão "catolicismo primitivo" (Frühkatholizismus) parece ser cunhada próxima a virada do séc. XX. Mas os temas envolvidos nela, no mínimo, retrocedem até a metade do séc. XIX e à escola de Tübingen de F. C. Baur1, Pois Baur e, particularmente, o seu pupilo Cf. K. H. Neufeld, '"Frühkatholizismus' - Idee und Begriff", ZKT, 94,1972, pp. 1-28. Cf. também S. Schulz, Die Mitte der Schrift, Stuttgart 1976, pp. 29-84, ainda que Schulz ache o reconhecimento do catolicismo primitivo no NT prenunciado por

Catolicismo Primitivo

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Capítulo XIV CATOLICISMO PRIMITIVO

§ 70. O QUE É "CATOLICISMO PRIMITIVO"?

Qual é o grau dos traços característicos do cristianismo católico do (fim) do séc. II presentes no NT? Quando se tornou inevitável que o cristianismo (ocidental) se tornaria a ortodoxia católica de Cipriano de Leão? Como alguns protestantes argumentam o catolicismo seria um desenvolvimento pós-apostólico, distanciando-se da pureza primitiva e da simplicidade do séc. I? Ou foi, simplesmente, o florescimento natural do que pertencia à essência do cristianismo desde o princípio?

- como muitos católicos sustentam. Ou a resposta recai em algum lugar entre essas duas possibilidades? Talvez em um desenvolvimento decisivo (ou vários) durante o séc. I; talvez no domínio de uma visão sobre as outras já para o fim do séc. I; talvez na chegada lenta concomi- tantemente de diferentes elementos a uma totalidade coerente que detinha o poder final mais do que as visões e estruturas alternativas; talvez como reação aos outros desenvolvimentos do séc. I. E se quaisquer das últimas alternativas representam melhor os fatos que as restantes, então podemos falar de um "catolicismo primitivo" dentro do NT? Há escritos do NT que, principalmente, centravam-se sobre a trajetória da ortodoxia católica emergente?

A própria expressão "catolicismo primitivo" (Frühkatholizismus) parece ser cunhada próxima a virada do séc. XX. Mas os temas envolvidos nela, no mínimo, retrocedem até a metade do séc. XIX e à escola de Tübingen de F. C. Baur1, Pois Baur e, particularmente, o seu pupilo

Cf. K. H. Neufeld, '"Frühkatholizismus' - Idee und Begriff", ZKT, 94,1972, pp. 1-28. Cf. também S. Schulz, Die Mitte der Schrift, Stuttgart 1976, pp. 29-84, ainda que Schulz ache o reconhecimento do catolicismo primitivo no NT prenunciado por

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A. Schwegler argumentava, com efeito, que catolicismo, primeiramente, emergira no séc. II como um acordo mútuo entre as duas partes rivais que haviam dominado o cristianismo dos sécs. I e II - o cristianismo judaico (Petrino) e o cristianismo gentílico (paulino). Esse acordo, primeiramente apareceria em documentos conciliatórios como Atos, Filipenses,

1 Clemente (Roma) e Hebreus (Ásia Menor), que tentavam mediar entre dois partidos e descartar as discordâncias entre seus heróis representativos; e sendo consolidado, mais tarde, já nas obras do séc. II, as Pastorais e as cartas de Inácio (Roma) e o Evangelho de João (Ásia Menor).2

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O início do fim da escola de Tübingen foi marcado pela publicação da segunda edição de Die Entstehung der altkatholischen Kirche de A. Ritschl3. Nessa obra, ele demonstrou que a história do cristianismo primitivo não era simplesmente um caso de dois blocos monolíticos brigando um com o outro: Pedro (e os apóstolos originais) devia ser distinto dos cristãos judeus (judaizantes), e havia um cristianismo gentílico distinto de Paulo e pouco influenciado por ele. O mais importante para nós é que ele insistia que o catolicismo não era a conseqüência de uma reconciliação entre o cristianismo judaico e o gentílico, mas era de fato "somente um estágio do cristianismo gentílico", o desenvolvimento de um cristianismo gentílico popular independente de Paulo.

Essa tese foi tomada por seu protegido, A. Harnack, com seu entendimento da essência do catolicismo como a “helenização" do cristianismo. Como o próprio Harnack a definiu:

[Catolicismo] é a pregação cristã influenciada pelo Antigo Testamento, extraída de meio-ambiente original e mergulhada em moldes helénicos de pensamento, isto é, no sincretismo da época e na filosofia idealista.4

Em um sentido importante, então, sobre essa visão do movimento em direção ao catolicismo era inerente no cristianismo gentílico,

Lutero nos apontamentos de Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse aparte do resto do cânon (pp. 14-28).

2 A. Schwegler, Das nachapostolische Zeitalter in den Hauptomomenten seiner Entwicklung, Tübingen 1846 - resumida utilmente em Harris, Tübingen Scholl, pp. 202-7.

3 A. Ritschl, Die Entstehung der altkatholischen Kirche, Bonn, 2a ed., 1857.

4 A. Harnack, The Constitution and Law ofthe Church in the First Two Centuries, 1910, ET Williams & Norgate 1910, p. 254.

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...para o espírito grego, o elemento que era mais operante no gnosticismo, já estava escondido no próprio cristianismo gentílico primitivo... O grande Apóstolo aos gentios, em sua epístola aos Romanos e àquelas aos Coríntios, transplantou o Evangelho nas formas gregas de pensar...5

Mas o influxo de helenismo, do espírito grego somente aconteceu em um modo significante no séc. II (Harnack até datou especificamente por volta de 130 d.C.), e o catolicismo propriamente, a igreja da doutrina estabelecida e de forma fixa, somente emergiu na luta com o gnosticismo, no conflito entre helenização e "helenização radical"6.

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Essa visão da matéria foi questionada de dois lados. Na escola da História das Religiões a helenização, que é o fundamento do catolicismo, foi identificada, mais precisamente, como o sacramentalismo que se intrometeu do meio-ambiente religioso da missão gentílica para o entendimento cristão primitivo do batismo e a ceia do Senhor. O catolicismo aí é definido em termos de dependência sobre o ato ritual externo e visível e a ordenança, uma atitude já presente nas cartas de Paulo (assim catolicismo primitivo), ainda que estivesse em conflito com o próprio entendimento de Paulo da fé7.

Sobre uma nova política totalmente diferente R. Sohm tomou a distinção de Lutero entre a igreja visível e invisível como o ponto de partida em vez do pensamento, as sociedades ou religiões helenísticos. Ele definiu a essência do catolicismo como

...a recusa de fazer qualquer distinção entre a igreja no sentido religioso [a Igreja de Cristo] e a igreja no sentido legal [a igreja como uma entidade legalmente constituída], O ensino da visibilidade da igreja de Cristo... é o dogma básico sobre o qual a totalidade da história do Catolicismo se fundamenta desde o princípio8.

s Harnack, History of Dogma, vol. I, p. 218. Ver também as pp. 56s.

6 Harnack, What is Christianity?, 1900, ET Williams & Norgate 1901, Lecture XI. Harnack definiu gnosticismo como: "A radical (ou aguda) helenização do cristianismo" (Dogma, I, p. 227).

7 Heitmüller, Taufe, pp. 18-26, E. Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches, 1911, ET Allen & Unwin 1931,1, pp. 95s.

8 R. Sohm, Wesen und Usprung des Katholizismus, 2a ed., 1912, Darmstadt 1967, pp. 13,15.

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O catolicismo, então, primeiramente, emergiu quando a organização carismática que caracterizava a igreja primitiva deu lugar a institucionalização, em que a instituição era identificada como igreja com tudo o que isso significava em termos de autoridade de ofício e de lei eclesiástica. O passo decisivo aí foi tomado em 1 Clemente que assim marca o surgimento do catolicismo. No debate subseqüente sobre a relação entre carisma e ofício aqueles que aceitavam que houve uma transição de um para o outro podiam vê-la como já tendo acontecido dentro do NT, com as Pastorais fornecendo a evidência primária e a posição de Atos como discutida.

O elemento novo mais importante a ser introduzido no debate desde então é a demora da parusia. Se o cristianismo primitivo era de caráter entusiástico apocalíptico, então o catolicismo primitivo poderia ser precisamente definido

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em termos do reconhecimento da igreja de que o fim ainda não chegara, que precisava, portanto se acomodar sobre um período prolongado de espera com tudo o que isso envolve em padrões mais estáveis de organização preparados para preservar a identidade da igreja com o passado e sua continuidade no futuro. M. Werner, de fato, argumentou que a conseqüente mudança na pressuposição sobre a demora da parusia era o ponto de retorno que direciona o cristianismo para o catolicismo primitivo.

O surgimento da doutrina cristã, ou seja, a transformação da fé cristã primitiva na doutrina do catolicismo primitivo, foi realizada como um processo da descatologização do cristianismo primitivo no curso de sua helenização9.

E. Kàsemann contribuiria muito a esse debate nas décadas do pós- guerra; ele define o catolicismo primitivo assim:

O catolicismo primitivo significa aquela transição do cristianismo primitivo para assim chamada igreja antiga, que é completada com o desaparecimento da expectativa iminente... há um movimento característico em direção a essa grande Igreja que se entende como a Una Sancta Apostolica10.

9

M. Werner, The Formation of Christian Dogma, 1941, ET A. & C. Black 1957, pp. 25,297.

10 E. Käsemann, "Paul and Early Catholicism" (1963), NTQT, p. 237.

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Assim também, com efeito, ele redefine a tese primitiva de Heitmüller: o catolicismo não emergiu da piedade sacramental do entusiásmo-místico do cristianismo helenístico, mas deve ser entendido precisamente como reação contra toáo "entusiasmo", tanto o entusiasmo helenístico como (em meus próprios termos) entusiasmo apocalíptico.

A luz de tudo isso se torna honestamente claro que o estamos procurando. O catolicismo primitivo pode ser distinguido por três traços principais11:

(a) A diminuição da esperança da parusia: "o desaparecimento da iminente expectativa (Naherwartung)" o afrouxamento da tensão escatológica entre o "já", do ministério terreno de Cristo e o "ainda não" de sua iminente re-aparição, para trazer o fim.

(b) Crescente institucionalização: isso incluiria alguns ou todos os traços seguintes - a emergência do conceito de ofício, de uma distinção

11 Cf. agora G. Strecker, Die Johannesbriefe, KEK Göttingen, 1989, pp. 348-54. Cf.

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F. Hahn, "Frühkatholizismus als ökumenisches Problem", Exegestische Beiträge zum ökumenischen Gespräch, Göttingen 1986, pp. 66-75. Schulz trabalha com uma lista maximizada das características católicas primitivas (incluindo "o equívoco da mensagem paulina da justificação como a teologia da cruz" e "o entendimento não-paulino da Lei" - Schrift, p. 80) de modo que "catolicismo primitivo", na discussão de Schulz, torna-se um conceito muito amplo abarcando seja o que for que não esteja de acordo com o paulinismo das cartas paulinas principais (ele encontra tendências e características católicas primitivas em não menos que

20 dos 27 escritos do NT). Pouca consideração é dada às outras forças e considerações que moldaram muito do material não paulino (particularmente os documentos mais especificamente cristãos judaicos); veja p.ex. seu tratamento de Mateus e a Lei (pp. 183-9) e sua descrição de Lucas-Atos como "anti-en- tusiástico" (pp. 153-5). Para uma esquematização alternativa do catolicismo primitivo veja U. Luz, "Erwägungen zur Entstehung des 'Frühkatholizismus", Eine Skizze", ZNW 65, 1974, pp. 88-111. Hahn, apropriadamente, indica que: "A designação Frühkatholizismus é útil somente como um conceito parcial para

o fenômeno individual, não como uma descrição completa de um período da história contínua da igreja primitiva com o cristianismo primitivo" (Das Problem des Frühkatholizismus", Beiträge p. 49). Ver também as renúncias do §53 acima. O debate, incluindo a contribuição de Schulz, em particular, foi resenhada por J. Rohde, "Die Diskussion um den Frühkathozismus im Neuen Testament, dargestellt am Beispiel des Amtes in den spätneutestamentlichen Schriften", em J. Rogge & G. Schille, Frühkatholizismus im ökumenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 27-51.

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entre clero e laicato, de uma hierarquia sacerdotal, de uma "sucessão apostólica", de um sacramentalismo, de uma identificação entre igreja e instituição assim ordenada.

(c) Cristalização da fé em formas estabelecidas, a emergência de uma regra de fé, com o objetivo específico de fornecer um baluarte contra o entusiasmo e o falso ensino - o senso de que a era da fundação da revelação já estava no passado, com os correlativos que a responsabilidade do presente se torna a preservação da fé dos pais fundadores para o futuro, e que reivindica a nova relação do Espírito profético se torna mais a marca do entusiasmo e do herético do que da igreja12.

Certamente esses foram os traços que distinguiram a ortodoxia católica emergente no séc. II quando visava se proteger dos desafios do gnosticismo e do montanismo (ver também acima §26). A questão que nos confronta aqui é: em que grau esses traços já são visíveis nos próprios escritos do NT? Em qual

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medida podemos falar apropriadamente de um elemento católico primitivo dentro do NT? Quando a trajetória do catolicismo (primitivo) primeiramente apareceu? Nossas investigações anteriores já tocaram nesses assuntos em diversos pontos, de modo que neste capítulo seremos capazes de reunir alguns fins soltos.

§ 71. O DESVANECIMENTO DA ESPERANÇA DA PARUSIA, "A EXPECTATIVA IMINENTE"

Vimos no cap. XIII que a expectativa de uma parusia iminente era integrante do cristianismo primitivo e era um forte traço do auto-enten- dimento cristão durante a primeira geração de cristianismo. Até certo ponto o catolicismo primitivo é o desenvolvimento inevitável de uma segunda geração e que não pode retroceder aos inícios do cristianismo; pois o catolicismo primitivo não é, simplesmente, matéria de organização, mas a respeito da organização resultante; o catolicismo primitivo é propriamente definido como, pelo menos em parte, uma conseqüente reação diante da falha da esperança da parusia. Então, onde no NT encontraremos a evidência do desvanecimento da esperança da parusia?13

12 Ver M. Hornschuh em Hennecke, Apocrypha, II, pp. 74-9.

13 Cf. o que se segue em P. J. Achtemeier, "An Apocalyptic Shift in Early Christian Tradition: Reflections on Some Canonical Evidence", CBQ, 45,1983, pp. 231-48.

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1. O Paulo tardio e as Pastorais. No §68.1. notamos como as categorias apocalípticas fortemente moldaram a pregação (primitiva) de Paulo e ensino na missão gentílica. Até onde concerne a expectativa de um fim iminente ainda podemos adicionar ICor 7.26-31 e 15.51s., ou a poderosa convicção de Paulo do significado escatológico de seu apostolado - que sua missão aos gentios era o ato final na história da salvação antes do fim (Rm 11.13ss; 15.15ss.; ICor 4.9).14 Contudo, há evidências de que essa expectativa iminente começou a desvanecer em algum momento antes do final de sua vida.

A indicação mais antiga de tal mudança de perspectiva pode estar na própria ICor 15.51s, em que, embora a parusia ainda fosse esperada dentro de sua própria geração, morrer antes da parusia já se tornava a norma. Mesmo que menos especifica seja Rm 13.11s., em toda a intensidade de sua esperança - próxima? Sim; mas quão próxima?15 E na época das últimas cartas de Paulo o contraste é claro com o entusiasmo escatológico de 1 e 2 Tessalonicenses. Em Filipenses a esperança da parusia ainda é forte (F11.6,10; 2.16; 3.20; 4.5), mas Paulo não está mais confiante de que ele próprio estará vivo quando "O dia de

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Cristo" chegar (F11.20ss.),.como evidentemente estava em lTs 4.15-17 (ver também p. 96).

Em Colossenses há somente uma referência explícita à vinda de Cristo (Cl 3.4), mas não nenhum sentimento de iminência ou de urgência (cf. Cl 1.5, 12, 23, 27; 3.6, 24). Além disso, como já vimos (p. 431s), há uma ênfase mais forte na escatologia realizada em Cl 1.13 e 2.12, 2.20-3.3: onde nas epístolas paulinas mais antigas a herança e entrada no reino de Deus é ainda algo a se efetivar (ICor 6.9s; 15.50; G15.21; lTs 2.12; 2Ts 1.5), em Cl 1.13 Paulo fala dos crentes como já sendo transferidos para o reino do Filho (na conversão), e onde em Rm 6.5 e 8.11 Paulo falava de ressurreição com Cristo como algo no futuro, parte da consumação do ainda não, em Cl 2.12 e 3.1 a ressurreição com Cristo já se realizou, parte do já. Não seria inteiramente clara a implicação de que em Colossenses vemos Paulo se afastar da esperança urgente

14 Cf. Dunn, Jesus, §20.2.

15 Cf. particularmente G. Klein, "Apokalyptische Naherwartung bei Paulus", Neues Testament und christliche Existenz: Festschrift für Herbert Braun, org, H. D. Betz e L. Schottroff, Tübingen 1973, pp. 244-58. Ver também acima pp. 92,487, nota 45.

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de uma parusia iminente que anteriormente o conduzia para uma esperança mais amena e mais firme que agora reconhecia um intervalo mais longo antes da parusia, com relacionamentos humanos mais duradouros (Cl 3.18-4.1), e de modo a focar a atenção mais sobre o que Cristo havia realizado?

Em Efésios o mesmo sentido de esperança se expressa ainda com mais força. Ainda há um olhar para frente, para uma consumação futura (Ef 1.14,18, 21; 4.4, 30; 5.5) e também um urgência na exortação que relembra o Paulo mais antigo (Ef 5.16). Mas por outro lado, a expectativa de um fim iminente está inteiramente ausente e a parusia nem mesmo é mencionada (cf. Ef 5.27). Ao contrário, Paulo parece prever um período muito mais longo sobre a terra durando diversas gerações antes que o Fim derradeiro chegue (Ef 2.7; 3.21; 6.3); o já da nova vida e a salvação são fortemente enfatizados (2.1, 5s, 8; 5.8); e a esperança da consumação e completude em Cristo em Ef 2.19-22 e 4.13-16 foram destituídos de toda feição apocalíptica (ainda que um resíduo apocalíptico seja evidente em Ef 1.10,20-23). Mesmo que essa mudança na perspectiva seja posterior a Paulo ou não, é de tal mudança na perspectiva que o catolicismo emergiu.

Nas Pastorais a posição não é tão diferente. A crença no dia do Senhor ainda continua forte (2Tm 1.12,18; 4.8) e o mesmo se dá com a aparição de nosso Senhor Jesus Cristo (lTm 6.14; 2Tm 4.1, 8; Tt 2.13). Pode até ser que o autor

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creia que ele e seus leitores (ainda) estejam nos últimos dias (lTm 4.1; 2Tm 3.1), embora 2Tm 4.3 possa indicar que para o autor os últimos dias ainda não tenham começado. Ou por isso ou porque os últimos áias tenham se tornado uma expressão formal sem seu fervor escatológico original, pois claramente em 2Tm 2.2 a perspectiva se alongara perceptivelmente, e outras declarações visando o futuro são muito mais a linguagem da piedade tardia que sustenta uma doutrina das "últimas coisas", mas sem a urgência de uma expectativa iminente do fim (lTm 4.8; 5.24; 6.7; 2Tm 2.10ss; 4.18). Assim, de novo, aqui vemos evidenciada essa mudança de perspectiva, esse desaparecimento da tensão escatológica que é parte e parcela do catolicismo primitivo.

2. Lucas-Atos. O desapontamento da "expectativa iminente" dos cristãos primitivos talvez em nenhuma outra parte do NT seja tão marcante como em Lucas-Atos. A prqva mais notável disso é a redação

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de Lucas do apocalipse marcano e a sua apresentação da comunidade primitiva de Jerusalém em Atos.

(a) É muito aparente que Lucas esteja escrevendo em um período depois da queda de Jerusalém (70 d.C.), enfatizando o problema de o que fazer com Marcos 13, em que, como vimos (§68.2), a destruição de Jerusalém foi vista como parte dos infortúnios messiânicos, o começo do fim. Pois quando comparamos Mc 13 com Lc 21 se toma mais evidente que Lucas cuidadosamente separou esses dois elementos (queda de Jerusalém e parusia), e que estendeu a nota de cautelar de Marcos para abarcar um período maior (e longo) de tempo. Lucas 21.8 - em Marcos os falsos profetas somente dizem: "Sou eu" (Mc 13.6); Lucas adiciona outro oráculo, "O tempo (do fim) está próximo!"; a proclamação de iminência do fim tomou-se uma falsa profecia! Marcos falara da grande desordem mundial como o: "Início das dores do parto" (Mc 13.8); Lucas igualmente omite a expressão (Lc 21.11). Marcos dissera, "Aquele, porém, que perseverar até o fim, será salvo" (Mc 13.13); Lucas omite a referência ao fim (Lc 21.19: "E pela perseverança que mantereis vossas vidas") - o sofrimento conectado com a queda de Jerusalém não deve ser ligado com a tribulação dos últimos dias. Marcos pensara do sofrimento causado pelo sítio e queda de Jerusalém como a tribulação escatológica - tão severa que Deus a teria abreviado por amor dos eleitos (Mc 13.20); Lucas separa completamente a queda de Jerusalém do fim - "Jerusalém será pisada por nações até que se cumpram os tempos das nações" (Lc 21.24). Marcos havia ligado firmemente a destruição de Jerusalém com o caos cósmico do fim: "Naqueles dias..." (Mc 13.24); Lucas apenas cortou a ligação disso ao não posicionar as expressões juntas (Lc 21.25). Como também notamos (p. 481), parte do objeto de Lucas ao separar desse jeito a expectativa iminente da parusia da queda de Jerusalém em Marcos era que se poderia reafirmar a

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esperança da parusia a despeito do fracasso da expectativa de Marcos. Mas o que precisamos notar aqui é que ele foi capaz de reafirmar a parusia somente por negar efetivamente sua imediata iminência por Jesus e ao "adiar" a mesma (para outra geração?), distanciando o fim de um estágio além ou época da história ("os tempos das nações" = o tempo da igreja).16 Aqui, então, a esperança é adiada, "a expectativa iminente" desvanece.

1 Ele consegue o mesmo efeito ao introduzir a parábola das minas - Lc 19.11; e sua redação de Mc 12.1 (Lc 20.9: "Por muito tempo"); cf. Lc 17.20s; 22.69 (par. Mc 14.62).

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(b) Como demonstramos no (§67.3) a comunidade cristã primitiva em Jerusalém era marcadamente apocalíptica em seu pensamento e auto-entendimento. Pouco entenderíamos de um conceito-chave como a ressurreição de Jesus e o dom do Espírito como "as primícias" da ceifa do fim dos tempos que emergiu ou como uma expressão como "ma- ranata" ("Nosso Senhor, vem!") se torna estabelecida na linguagem de adoração (ICor 16.22), ou como uma prática imprevidente como a comunhão de bens (sem estocagem) posta sob os pés da liderança da nova seita, a menos que todos estivessem imbuídos mais ou menos das expressões espontâneas de uma convicção dominante de que o tempo do fim havia chegado, a parusia logo tomaria lugar, o Fim era iminente. E ainda esse sentido de expectativa furtiva seja completamente ausente do relato de Atos. Nada da invocação "Maranata" encontra expressão em Atos. Ainda se fala de parusia (At 1.11), mas a atenção se focaliza antes sobre a responsabilidade da missão mundial (1.6-8), e o senso de iminência é ousadamente preservado no uso de Lucas do material primitivo em At 3.20s. Fala-se também do dia do juízo (At 10.42; 17.31; 24.25), mas somente como uma ameaça ainda distante (as últimas coisas) e não mais como algo urgentemente próximo. A linguagem apocalíptica de Joel 2.28-32 é citada, incluindo os sinais cósmicos (At 2.17- 21), mas como uma profecia já cumprida em Pentecostes. Por outro lado, não resta nenhum vestígio do fervor apocalíptico do cristianismo primitivo - e o mesmo é verdade da expectativa de iminência do Paulo

primitivo, ainda que Lucas dê alguns detalhes da obra missionária de Paulo em Tessalônica (At 17). Deve haver alguma explicação, pois Lucas, dificilmente, não teria noção de que o cristianismo primitivo possuía um alto grau de temperatura escatológica: Lucas deve ter decidido ignorar ou suprimir esse traço (ainda que o custo de fazer a comunhão de bens parecesse mais um ato de completa irresponsabilidade do que um ato de fé fervorosa). Para o presente, tal quadro da primeira geração do cristianismo, embora efervescente desde o princípio até o fim, tão marcadamente não-apocalíptica, certamente constituiria uma qualificação para o título católico primitivo.

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Precisamos simplesmente adicionar que, como foi amplamente reconhecido na segunda metade do séc. XX, o próprio ato de escrever uma história do cristianismo primitivo (em vez de um apocalipse) foi uma admissão de que a esperança primitiva da parusia estava equivocada e que a esperança da parusia £m si havia desvanecido. Quando

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Lucas escreveu não somente uma "vida de Jesus", mas também uma história da igreja, ele, com efeito, estava interpondo toda uma nova época entre a ressurreição/ascensão de Jesus e a parusia. A morte de Jesus e a ressurreição não mais seriam consideradas como o início do fim, o clímax (final) escatológico, como Jesus e os primeiros cristãos o haviam entendido, mas antes como o ponto intermediário da história, com uma época estendida em direção ao futuro de um lado, bem como esticando para trás de outro lado. E desnecessariamente confuso, de fato é errado, dizer que Lucas substituiu a idéia da história da salvação pela escatologia primitiva, como um meio de resolver o problema posto pela demora da parusia17. A escatologia iminente e a história da salvação não são de nenhum modo contraditórias ou entendimentos mutuamente exclusivos: a perspectiva da história da salvação é francamente básica para todos os principais escritores do NT e a tensão do já/ainda não está quase que totalmente presente na perspectiva escatológica do NT18. Mas em Lucas-Atos a tensão escatológica certamente foi afrouxada em uma medida significativa; e para Atos em particular a espera pela parusia é somente como uma realidade ainda tão distante do clímax mais para o fim do tempo da igreja. Portanto, ao apresentar o cristianismo como diante da própria necessidade de se organizar para um termo futuro mais longo Lucas certamente abriu a porta ao catolicismo primitivo.

3. Não podemos ignorar o fato de que a expressão mais forte de escatologia realizada no NT se encontra no Evangelho de João. Seus traços mais proeminentes são a convicção de que o juízo é algo que já tomou lugar na vinda de Jesus como a luz do mundo e na reação humana a ele (Jo 3.19), que aqueles que ouviram e creram na verdade de Jesus não vêm a julgamento, mas já passaram da morte para vida (Jo 5.24), que o próprio Jesus é tanto a ressurreição como a vida - conhecê-lo é conhecer a vida eterna, a ressurreição da vida aqui e agora (Jo 11.25s). Quando João diz: "Nós vimos a sua glória" (1.14), em um sentido real ele demons17

Assim P. Vielhauer, "On the 'Paulinism' of Acts" (1950, ET 1963), SLA, pp. 45-8; H. Conzelmann, The Theology of ST Luke, 1953,2a ed., 1957, ET Faber & Faber 1961, pp. 131s; E. Käsemann, "New Testament Questions of Today" (1957), NTQT, pp. 21s; Schulz, Schrift, p. 134.

18 O. Cullmann, Salvation in History, 1965, ET SCM Press 1967; e acima pp. 345s.

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trou o passado e a glória futura do Filho de Deus no período de seu ministério terreno com seu clímax da cruz e ressurreição; e a fé resultante que o Evangelho busca engendrar é uma crença naquele que não pode mais ser visto, sobre o testemunho daqueles que viram sua glória, e sem qualquer contemplação antecipada para a sua manifestação futura (Jo 20.29-31). Ou de novo, quando o Jesus joanino fala de sua iminente partida e nova manifestação (Jo 14.18; 16.16-22) o que tem objetivamente em mente é a vinda do Paráclito (Jo 14.15-26; 16.7); em um sentido real a parusia do Paráclito, o Espírito doador da vida, tem preenchido o lugar de Jesus porque não há motivo para se pensar de uma parusia futura tranqüila.

Não seria verdade, contudo, dizer que não há nenhuma escatologia futura em João; passagens como 5.28s, 6.39s, 12.48 (cf. ljo 2.18, 28; 3.2; 4.17) não podem, simplesmente, ser consignadas a um redator e convenientemente descartadas. Antes, a esperança que elas expressam é muito menos imediata que a esperança dos primeiros cristãos. Jo 14.1-3 é provavelmente a única passagem no Quarto Evangelho que em si fala da segunda vinda de Cristo como tal, mas é mais um tipo de passagem que (certamente) conforta os corações aflitos do que expressa qualquer sentido de iminência urgente do Fim. E no epflogo em Jo 21, o pequeno episódio final que chega ao clímax no v. 23 parece ser incluído a fim de solucionar o problema causado pela morte de João antes da parusia. Resumindo, é quase como que o movimento para frente da história da salvação, em João, fosse suspenso em um "agora" escatológico atemporal, em que tudo o que preocupa é a resposta do indivíduo às palavras de Jesus, palavras que são Espírito e vida (Jo 4.23; 5.25; 6.63). Se isso é uma teologia que propriamente pode ser chamada de católica primitiva é outra questão a que retornaremos mais adiante.

Hebreus não está tão distante da escatologia de João. Certamente, o escritor da carta sustenta uma expectativa mais vívida da iminente parusia (Hb 10.25, 37; cf. 1.2; 6.18-20; 9.27s.). Mas sua escatologia foi modificada significativamente pela incorporação da doutrina judaica (apocalíptica) das duas eras com a distinção platônica entre o mundo celestial real e o mundo de sombras terreno (veja pp. 393s e nota 61). Ao fazer isso ele anexou um bocado de esperança à plena participação na realidade celestial da crença em uma consumação ainda futura (Hb 4.14-16; 7.19; 10.19-22; 12.22-24). Desse modo ele é capaz de encorajar seus leitores em sua luta e sofrimento e: "A imprimir sobre os crentes

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a proximidade do mundo invisível sem insistir sobre a proximidade da parusia"19.

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4. Precisamos também mencionar 2 Pedro, provavelmente o último dos escritos do NT. O traço marcante é sua escatologia que é uma ortodoxia tanto quanto oca. E ortodoxo o suficiente em sua fala de entrar no "reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2Pd 1.11), do dia do juízo (2.9,17; 3.7), dos escarnecedores dos últimos dias (2Pd 3.3), do dia do Senhor que vem como um ladrão à noite (2Pd 3.10), de uma dissolução cósmica em vívidas cores apocalípticas (3.10,12), e da chegada de novos céus e uma nova terra (2Pd 3.13). Mas a demora da parusia, claramente, tornou-se um grande obstáculo: "Em que ficou a promessa da sua vinda?..." (3.4). A resposta do autor é na sua maior parte de caráter tradicional - o argumento do propósito de Deus na história da salvação (2Pd 3.5-7); o argumento de que a demora é a misericórdia de Deus dando tempo para o arrependimento (3.9), e assim por diante. E algo sem sentido que vem no argumento de 2Pd 3.8 - a consideração embora insatisfatória de que conceitos de tempo são inadequados quando se pensa acerca de um ato de Deus: "Para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um dia". Isto é, ele nega que o cristão possa relacionar esperança a quaisquer eventos do presente; o tempo humano e a promessa de Deus não são prontamente correlativos. Isso inevitavelmente confere um grau de arbitrariedade para a ação de Deus (pelo menos do ponto de vista humano) e extirpa o nervo da escatologia apocalíptica20. Aquele que argumenta assim perdeu toda a esperança de uma parusia iminente e não se surpreenderia se séculos (até mesmo dois milênios) se passariam antes da esperança tradicional da parusia ser efetuada. Resumindo, em 2 Pedro a linguagem original do fervor apocalíptico torna-se uma linguagem dogmaticamente mais calculada das últimas coisas. Se o: "Catolicismo primitivo" é uma reação ao desapontamento repetido da esperança apocalíptica, então 2 Pedro é um excelente exemplo de catolicismo primitivo.21

19 C. K. Barrett, "The Eschatology of the Epistle to the Hebrews", BNTE, p. 391; cf. H. Conzelmann, An Outline of the Theology of the New Testament, 2a ed., 1968, ET SCM Press 1969, pp. 312s.

20 Cf. E. Käsemann, "An Apologia for Primitive Christian Eschatology" (1952), ENTT, p. 194.

21 Ver também R. J. Bauckham, Jude, II Peter, Word Biblical Commentary 50, Word 1983, pp. 151-4.

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As cartas paulinas tardias e as Pastorais, Lucas-Atos, João e 2 Pedro - estes são os escritos do NT que, mais claramente, refletem as mudanças de ênfase e auto-entendimento que a demora da parusia impos aos cristãos primitivos na segunda metade do séc. I e além. Esses exemplos são suficientes para demonstrar a questão de que se o catolicismo primitivo é definido, pelo menos

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em parte, pelo desvanecimento da esperança iminente da parusia, então o catolicismo primitivo já está bem estabelecido dentro do NT.

§ 72. A INSTITUCIONALIZAÇÃO GRADUAL

A institucionalização gradual é a marca mais clara do catolicismo primitivo22 quando a igreja se torna, gradualmente, identificada com a instituição, quando a autoridade se torna, gradualmente, coextensiva com o ofício, quando a distinção básica entre clero e laico se torna, gradualmente, auto-evidente, quando a graça se torna gradualmente estreitada aos atos rituais definidos. Vimos anteriormente que tais traços estavam ausentes do cristianismo da primeira geração (caps. VI e VIII), embora na segunda geração o quadro já estivesse começando a mudar.

1. Efésios e as Pastorais. A evidência mais forte que uma perspectiva católica primitiva se manifesta já em Efésios é o uso de ekklésia e Efésios 2.20. Enquanto que no Paulo primitivo ekklésia (igreja) quase sempre denota todos os cristãos vivos ou reunidos em um lugar, em Efésios ekklésia é usado exclusivamente para a Igreja Universal (Ef 1.22; 3.10, 21; 5.23-25, 27, 29, 32; comparar com Cl 4.15s.). Em Efésios 2.20 facilmente pode ser lido como uma expressão da veneração pela segunda geração dos líderes da primeira geração. Ainda, de outro lado, há fortes paralelos entre a imagem da ordem da igreja em Efésios 4 e a metáfora do corpo em Romanos 12 e 1 Coríntios 12. De modo que não podemos ter certeza somente da evidência interna se Efésios é obra de Paulo ampliando sua visão da igreja local como uma comunidade carismática para as dimensões cósmicas (Ef 1.22s; 2.19-22; 3.10; 5.23-32; cf. Cl 1.18,24),

1 Ver p.ex. H. Conzelmann, RGG3, III.139; F. Mussner, LTK, VI.89s. veja mais no capítulo VI (nota 27). ’

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ou obra de um discípulo de Paulo da segunda geração começando a pensar no ministério em termos de ofícios válidos para toda a Igreja universal23. Mesmo no último caso, a ausência de qualquer menção de bispos ou anciãos torna muito discutível que o autor esteja resistindo às pressões da catolicização primitiva tanto quanto possível24.

Com as Pastorais a posição é mais clara. Necessito somente me referir ao que foi apresentado anteriormente (§30.1). Note particularmente como o conceito de ofício já claramente tinha emergido: anciãos, supervisores (bispos) e diáconos são títulos para ofícios bem estabelecidos (lTm 3.1 - "ao episcopado"). Mais notável ainda são as posições respectivas de Timóteo e Tito. Não são, obviamente, simples emissários de Paulo visitando uma de suas

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igrejas como seus porta-vozes, com nos tempos passados (ICor 4.17; F1 2.19; lTs 3.2, 6; 2Cor 7.13s;

12.18). Ao invés, eles começam a assumir um tanto do papel dos bispos monárquicos, com a autoridade sobre a comunidade e seus membros concentrada em si mesmos: deles é a responsabilidade de preservar a fé pura (lTm 1.3s; 4.6ss, 11-16; etc.),de ordenar a vida e relacionamentos da comunidade (lTm 5.1-16 - Timóteo tem a autoridade de arrolar uma viúva ou recusar o arrolamento, aparentemente sem se referir aos outros; lTm 6.2,17; Tt 2.1-10,15 - "com toda autoridade"), de exercitar a disciplina e a não aceitar denúncia pelo menos no caso de anciãos (lTm 5.19ss. - Timóteo é o tribunal de apelo, acima do presbitério), a impor as mãos (lTm 5.22 - uma função já reservada a Timóteo?), e a constituir anciãos (Tt 1.5). Há também um conceito de sucessão apostólica começando a emergir - de Paulo para Timóteo para "homens fiéis" para "outros", embora a sucessão ainda não seja concebida em termos formais, de ofício para ofício, não fica claro (2Tm 2.2). Também não está claro se um tipo de sacramentalismo já desponta o: "Fiel é a palavra" de Tt 3.5-7 não é, significativamente, diferente do entendimento paulino (primitivo) do batismo (ver acima p. 257ss), embora seja possível que a metáfora de lavados fosse agora igualada com a água do batismo pelo autor. Antes é mais provável que o dito em si sugira desde outros lugares nas Pastorais que de uma teologia clara da ordenação que emergiu com o carisma não mais como uma livre manifestação do Espírito realizada por qualquer membro da igreja, mas o poder do

23 Ver mais em Dunn, Jesus, p. 346s.

24 Cf. K. M. Fischer, Tendenz und Absicht des Epheserbriefes, Göttingen 1973, pp. 21-39.

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ofício outorgado pela imposição de mãos (lTm 4.14; 2Tm 1.6.25 Com tal evidência seria difícil negar que as Pastorais já estão à caminho do catolicismo primitivo.

2. Lucas-Atos. A evidência sugerindo tendências católicas primitivas em Lucas-Atos, neste ponto, não é difícil de reunir (cf. acima pp. 196s), ainda que haja outro lado da história. Em primeiro lugar está firmemente claro que Lucas tenta retratar o cristianismo primitivo como muito mais unificado do espírito e uniforme na organização do que era de fato.

(a) Considere primeiramente o modo que ele revestiu as mais sérias e profundas divisões entre cristão-judeus centrados em Jerusalém e a crescente missão gentílica. Ele apresenta o cisma inicial entre Hebreus e helenistas como meramente obstáculo administrativo (At 6), enquanto que a realidade era

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evidentemente mais séria (veja acima §60). A discordância a respeito da circuncisão entre Paulo e Barnabé e alguns homens da Judéia era séria, mas amigável e unanimemente solucionada no concílio de Jerusalém (At 15). Não ficamos sabendo nada em Atos do confronto subseqüente entre Paulo e Pedro em Antioquia (envolvendo: "Alguns homens da parte de Tiago"), que Paulo obviamente considerava com muita seriedade (G12), nem da profunda animosidade entre Paulo e os apóstolos da Palestina em 2Cor 10-13, para não mencionar as violentas explosões de G1 1.6-9, 5.12 e F1 3.2ss. ou de suas causas. Similarmente seu relato da última visita de Paulo (para entregar a coleta) e de modo a desenhar um véu sobre o que foi, provavelmente, a ruptura mais triste de todas entre Paulo e a liderança de Jerusalém (ver acima §56). Tudo isso dá peso adicional às observações conhecidas a respeito de Atos desde que foi primeiramente documentado por M. Schneckenburger, Über den Zweck der Apostelgeschichte:26 a saber, o paralelismo entre a atividade de Pedro e de Paulo At 9 cf., particularmente 3.1-10 com 14.8- 10; 5.15 com 19.12; 8.14-24 com 13.6-12; 9.36-41 com 20.9-12); o retrato de Paulo como aquele que cumpriu os requisitos da Lei (note parti25

Ver mais em Dunn, Jesus, pp. 348s.

26 M. Schneckenburger, Über den Zweck der Apostelgeschichte, Bern 1841; resumido no estudo útil de W. W. Gasque, A History of the Criticism of the Acts of the Apostles, Tübingen 1975, pp. 34ss. Ver também Mattill, "Purpose of Acts" (Bruce Festschrift), pp. 108-22. 1

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cularmente At 16.1-3; 18.18; 20.16; 21.20-26; e cf. 23.6; 24.17; 25.8; 26.5; 28.17), e que mostrou o devido respeito pelos apóstolos de Jerusalém (At 9.27; 15; 16.4; 21.26); e o caráter dos sermões atribuídos a Paulo em Atos que são mais como sermões na primeira metade de Atos e contém pouco daquilo que é caracteristicamente paulino (cf. particularmente At 2.22-40 com 13.26-41). Em tudo isso Lucas, apenas, deu um quadro imparcial e totalmente completo do ocorrido nos episódios e áreas que ele escolheu cobrir. Não é necessário concluir que Lucas inventou tudo ou mesmo muitos desses detalhes; nem necessitamos presumir que o tratamento do próprio Paulo dos assuntos entre ele e a igreja de Jerusalém sejam inteiramente objetivos e francos. Mas se o tratamento de Paulo é unilateral, assim também o é o de Lucas. No mínimo, Lucas encobriu os ângulos salientes da personalidade e polêmica de Paulo o tanto quanto era necessário para encaixá-lo confortavelmente em retrato unificado do cristianismo primitivo. Não seria isso um tipo de abafamento católico primitivo sobre as rupturas do séc. I?

(b) Devemos notar como, claramente, Lucas focaliza essa unidade da igreja primitiva em Jerusalém como fonte de inspiração. Seu evangelho começa no Templo e as narrativas da infância Lucanas terminam no Templo (Lc 1-2),

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assim como o clímax da versão lucana das tentações de Jesus se situam sobre o Templo (Lc 4.9ss.). Mais de um terço desse evangelho é apresentado na estrutura de uma viagem da Galiléia para Jerusalém (Lc 9.51-19.46). E o evangelho termina onde começou com os discípulos que: "Estavam continuamente no Templo louvando a Deus" (Lc 24.53). Mais notável de tudo é o modo que Lucas concentrou todas as aparições da ressurreição em Jerusalém. Por uma simples redação ele omite toda a referência das aparições da ressurreição na Galiléia. Onde em Marcos se lê: "Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galiléia. Lá o vereis, como vos tinha dito" (Mc 16.7 com referência a 14.28), em Lucas se lê o contrário "Lembrai-vos de como vos falou, quando ainda estava na Galiléia, é preciso que o Filho do Homem seja entregue nas mãos de pecadores..." (Lc 24.6s., com Mc 14.28, simplesmente, omitido). Evidentemente então, Lucas desejava apresentar Jerusalém como fonte inspiradora do Evangelho, o lugar incontestável do nascimento e Igreja mãe do cristianismo. Assim, não é nenhum acidente que o programa de sua história tenha o Evangelho saindo de Jerusalém em círculos mais amplos até alcançar Roma (At 1.8; 28.30s.). Nos estágios primitivos ele é capaz de mostrar as

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figuras de ponta em Jerusalém supervisionando os estágios decisivos da missão em desenvolvimento (At 8.14ss; ll.lss, 22ss.). E, na última parte, onde o foco está exclusivamente sobre Paulo ele alcança seu objetivo ao apresentar Paulo como um visitante regular de Jerusalém e sua missão como uma série de viagens missionárias fora e de volta a Jerusalém (At 9.28; 12.25; 15.2; 18.22 - a igreja de Jerusalém é "a igreja"; 20.16; 21.17).27 Tudo isso é historicamente fundamentado, pelo menos, em parte, porque Paulo reconhecia uma certa primazia de Jerusalém (Rm 15.27). Mas Lucas claramente apresenta sua opinião ao retratar o cristianismo primitivo como um todo unificado com o progresso do Evangelho, desde Jerusalém até Roma, apoiado pelos recursos de uma igreja unida ao redor de Jerusalém e ameaçada de forma séria e duradoura e por nada - muito mais desse tipo de apresentação se pode esperar de um historiador católico primitivo.

(c) Lucas também concentra seus esforços para focalizar a unidade da Igreja da primeira geração nos Doze apóstolos em Jerusalém e a pintar as igrejas primitivas como uniforme em organização. Como vimos anteriormente, os Doze e os apóstolos não eram inicialmente o mesmo grupo (pp. 196s), e enquanto a igreja de Jerusalém, evidentemente, reunia-se em torno dos Doze nos primeiros estágios de sua vida (pp. 197s), sua extensão inicial ultrapassa os limites da Palestina e dos gentios, provavelmente focalizado em torno dos apóstolos, com o "apostolado" reconhecido em termos de missão (pp. 196s). Mas Lucas, com efeito, funde esses dois grupos (sobrepostos) e os faz sinônimos - o foco de unidade para toda a Igreja mundial (note particularmente

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Lc 6.13; At 1.21-26; 2.42s; 4.33; 6.2, 6; 8.14; 9.27; 11.1; 15.22s; 16.4). Isso apresenta dois corolários curiosos. Em primeiro lugar, em At 8.1 ele retrata toda a igreja de Jerusalém como se espalhando por toda a Judeia e Samaria (cf. At

1.8) - isto é, toda exceto os apóstolos. Ao preservar a continuidade apostólica em e com Jerusalém Lucas abandona inteiramente o sentido primitivo de apóstolo = missionário, e retrata os apóstolos em Jerusalém como representantes, ou deveríamos dizer centro institucional de toda a igreja em desenvolvimento. Mais importante, em segundo lugar, ao se utilizar de At 1.21 s. como sua definição de um apóstolo - aquele que acompanhou Jesus desde o início de seu ministério e testemunhou sua

27 Ver mais em G. W. H. Lampe, St Luke and the Church of Jerusalem, Athlone Press 1969. 1

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ressurreição e ascensão - ele efetivamente exclui Paulo de seu grupo central de apóstolos, os Doze.28 Provavelmente é pela mesma razão que ele trata a aparição de Jesus a Paulo na estrada de Damasco como, simplesmente, uma visão (especificamente em At 26.19) e, portanto, não como uma (muito tangível) aparição da ressurreição, como àquelas que os apóstolos desfrutaram e que qualificavam o apostolado (cf. particularmente Lc 24.39). Aqui, novamente, vemos Lucas o defensor de Paulo pouco ansioso em retratar a igreja da primeira geração do cristianismo como unificada e em concordância, porque está ansioso em admitir um dos pontos que o Paulo histórico defendia mais veementemente contra (pelo menos alguns) cristãos judeus (G11.1,15-17; ICor 9.1-6; 15.7-9). Lucas realiza a reconciliação com Jerusalém que evitava Paulo no fim, mas somente por apagar suas diferenças com Jerusalém e por apresentá-lo como alguém com os apóstolos de Jerusalém e subordinado a eles.

O mesmo efeito é realizado na área do governo da igreja - pois ele retrata Paulo como estabelecendo anciãos em todas as igrejas (At 14.23)

- um ato e um ofício do qual agora encontramos menção nas cartas paulinas e que contrariam a sua visão de igreja como comunidade carismática (ver acima pp. 197s e §29) - mas um ato e um ofício que fazem das igrejas paulinas concordantes com o padrão de governo de Jerusalém desde o início (ver acima pp. 199ss). Note também o uso de supervisores (At 20.28) = anciãos (20.17) - um uso e equação prenunciando a fusão pós-paulina do desenvolvimento de ordem das igrejas paulinas e a forma de Jerusalém de governo de igreja, e de novo implicando um altíssimo grau de uniformidade que era evidentemente o caso (acima §30). De novo, não é necessário concluir que o relato de Lucas é inteiramente fabricado, visto que a maioria das funções que vieram a se

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concentrar nos supervisores e anciãos na situação pós-paulina tem muito, provavelmente, sido cumpridas desde o início por diversos membros (carismaticamente) nas igrejas paulinas. Mas temos que dizer que o relato de Lucas é, no mínimo, anacrônico e envolve o que apropriadamente pode ser chamado de um catolicismo se ordenando a partir dos

28 Lucas não chama Paulo e Barnabé de "apóstolos" em Atos 14.4, mas somente na "viagem missionária" que foi imediatamente sustentada e diretamente ligada à igreja de Antioquia (At 13.1-3), de modo que "apóstolo", nessas duas passagens, é usado no sentido primitivo de "missionário" = apóstolo de Antioquia, e não carrega o mesmo peso de "apóstolo" quando usado para os Doze em Jerusalém (cf. 2Cor 8.23; F1 2.25).

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sinais antes que formas diversas para um padrão mais uniforme das décadas posteriores (cf. 1 Clemente 42.4).

Uma conclusão bastante relevante emerge de tudo isso - isto é, que o entendimento de F. C. Baur de Atos não estava tão distante da verdade depois de tudo, a despeito de seu relato dogmático hiperbólico. O quadro de Lucas do cristianismo primitivo e do papel de Paulo nisso é, antes de tudo, um pouco de um compromisso entre o cristianismo judaico e gentílico, um abrandamento das diferenças e um disfarce das lágrimas que desfiguravam a roupagem do cristianismo da primeira geração constituindo em uma conveniência que ambos poderiam achar razoavelmente aceitáveis29. O compromisso, contudo, não é tanto entre Paulo e Pedro, como Baur argumenta, como entre Tiago e Paulo, com Pedro, de fato, a figura intermediária a quem ambos estão adaptados (Tiago - ver At 15.13ss.; Paulo - ver acima p. 508)30. Isso não justifica ser designado católico primitivo? Mas ainda há mais a ser dito.

(d) Precisamos nos recordar neste ponto que já temos descrito Lucas como um entusiasta (§44.3), e que o catolicismo primitivo tem de ser entendido em parte, pelo menos, como uma reação ao entusiasmo, uma tentativa de: "Construir uma barragem contra o dilúvio de entusiasmo"31. O que fazer desse paradoxo surpreendente? O fato é que muito embora de Lucas deseje apresentar o cristianismo primitivo como um todo unificado, ele também deseja apresentar a liberdade soberana do Espírito sobre a igreja. Daí, até mesmo mais que a conclusão dos Doze apóstolos, a missão da Igreja precisa esperar a vinda do Espírito (At 1-2). Até, mesmo mais que os ensinamentos oficiais dos apóstolos, a inspiração profética é enfatizada (pp. 292s). Daí, até mesmo mais que a supervi29

"O estudo histórico dos último 100 anos mostraram que os conflitos, tensões, e resoluções descritas por F. C. Baur são imaginários; mostraram que eles

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pertencem à datas mais antigas do que aquelas às quais Baur tinha atribuído" (Barrett, "Pauline Controversies", p. 243).

30 Pedro tinha um papel significativo a desempenhar na preservação da unidade do cristianismo primitivo (ver mais abaixo pp. 555ss). Mas se a apresentação acima está absolutamente em bases corretas, torna-se impossível traçar de volta ao catolicismo primitivo, ou em particular, o conceito católico (Romano) da primazia de Pedro, apostolado e sucessão apostólica, seja ao começo do cristianismo ou à intenção de Jesus (ver também acima cap. VI; contra tal tese como aquela de P. Batffol, Primitive Catholicism, 5a ed., 1911, ET Longmans 1911, e O. Karrer, Peter anã the Church, ET Herder 1963).

31 Kãsemann, NTQT, p. 22. 1

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são de Jerusalém na missão da igreja, a direção do Espírito e a visão extática recebe mais proeminência (At 1.8; 8.29,39; 10.19; 13.2-4; 16.6s; 19.21; 20.22; e ver acima pp. 192ss). Acima de tudo, é o dom do Espírito que é decisivo para o ingresso no cristianismo, não a aprovação ou ratificação de Jerusalém e dos apóstolos; esses não são opostos para Lucas, é claro (At 8.14-17), mas onde a ênfase principal recai está suficientemente claro no episódio do eunuco Etíope (At 8.38s. - nenhuma ratificação aí), na conversão de Paulo (9.10-19 - Ananias é descrito como um judeu devoto, At 22.12, mas nenhuma tentativa é feita para ligá-lo com Jerusalém ou para representá-lo como um agente de Jerusalém), em Cornélio e seus amigos (At 10.44-48,11.15-18; 15.7-9) e Apoio (18.25s. - Priscila e Aqüila são tão independentes de Jerusalém como Ananias, e não adicionam nada de fundamental ao cristianismo de Apoio).

Esses episódios também sublinham o ponto porque não há nenhum sacramentalismo desenvolvido em Atos. Não há nenhuma dependência do Espírito sobre o batismo em Atos 8,10 ou 19; ao contrário a clara mensagem é que o dom do Espírito é a única coisa que vale acima de tudo isso (At 8.12-17; 19.2), e que onde o Espírito já foi dado o batismo serve principalmente como o reconhecimento do ato anterior de Deus e o rito de ingresso na igreja (At 10.44-48)32. O certo é que Lucas fala do Espírito como: "Dado mediante a imposição de mãos dos apóstolos" (At 8.18; cf. 5.12; 14.3; 19.11), mas a conseqüência, uma vez mais, elimina uma interpretação sacramentalista (At 8.19ss.), e em outros lugares em Atos a imposição de mãos é um ato inteiramente carismático, o ato espontâneo de identificação e oração pelo dom apropriado da graça (ver particularmente At 3.6s; 6.6; 9.17; 13.3; 19.6; 28.8). A tentativa de Kàsemann de apoiar essa evidência em conformidade com esse entendimento de Lucas como católico primitivo força completamente a evidência de Atos além da resistência33. Similarmente com sua tentativa de argumentar que em Atos a palavra é subordinada à Igreja34. De modo algum! - um tema central de

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Atos é o livre e vitorioso progresso da palavra de Deus. Não é tanto o caso de a Igreja levar a palavra

32 Ver mais em Dunn, Baptism, cap. IX e acima pp. 261ss.

33 Kàsemann, "The Disciples of John the Baptist in Ephesus" (1952), ET ENTT, pp. 136-48.

34 Kàsemann, NTQT, p. 22.

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de Jerusalém até Roma como a palavra levar a igreja até Roma (ver particularmente At 6.7; 12.24; 13.49; 19.20).35

Portanto, eu não vejo razão para aceitar que Lucas é tanto católico primitivo e como de postura entusiástica - contudo o paradoxo é estranho. Talvez ele seja capaz de sustentar duas correntes contrastantes juntas porque escreve na situação de uma segunda geração quando o entusiasmo diminuía grandemente e as atitudes católicas primitivas se tornavam mais dominantes. Mas visto que Lucas se recusou a subordinar o Espírito ao sacramento, ou a palavra a Igreja, e assim se recusou a retratar o ministério cristão primitivo como um tipo de sacerdócio, por tudo isso ele não pode ser designado como católico primitivo. A descrição de Lucas de católico primitivo tem de ser qualificada pela descrição de Lucas o entusiástico - e vice-versa. Pode-se argumentar, é claro, que sua apresentação implica em uma restrição do entusiasmo para o passado primitivo idealizado. Mas o fato que ele, ao mesmo tempo em que afasta a esperança da parusia dos primeiros cristãos, sugere preferivelmente que ele desejava retratar o cristianismo primitivo em sua vida e missão como um modelo para a sua própria época. E visto que ele poderia da mesma forma ter facilmente descartado ou ignorado os outros traços entusiásticos do período primitivo, o fato de ele não ter feito assim (pelo contrário - ver acima §44.3) nos leva a concluir que o próprio Lucas era um entusiasta. Resumindo, se concluirmos que as tendências católicas primitivas estavam operantes no escrito de Atos de Lucas, temos também que concluir que seu próprio entusiasmo forneceu freio eficaz sobre essas tendências.

3. As Pastorais e Lucas-Atos são as únicas candidatas sérias do NT ao título de "católico primitivo" com respeito a crescente institucionalização, embora 2 Pedro 1.19-21 possa ser entendida como exegese restritiva das Escrituras para um ministério oficial de ensino.36 Mateus e João podem, também, somente ser considerados, somente se devido a ambos falarem em uma passagem da Igreja como universal, a Una Sancta (Mt 16.18; Jo 17.20-23). Mas como vimos, sua eclesiologia

35 Ver também C. K. Barrett, Luke the Historian in Recent Study, Epworth 1961, e Fortress Facet Book 1970, pp. 68, 70-76; Haenchen, Acts, p. 49; H.

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Conzelmann, "Luke's Place in the Development of Early Christianity", SLA, p. 304.

36 Kàsemann, "Apologia", ENTT, pp. 187-91.

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ó realmente muito menos institucionalizada, muito mais individualista, do que a das Pastorais (ver acima §§30.3, 31.1), e sua ênfase sobre a Igreja universal é de fato mais próxima de Efésios do que o catolicismo primitivo das Pastorais. Um juízo similar deve ser feito, mutatis mutan- dis, com respeito a 1 Pedro, Hebreus e Apocalipse (ver acima §§30.2, 31.2, 3), e nenhuma impressão pode ser retirada de Judas neste ponto (embora Judas 20ss tenha fortes ecos paulinos). Nem há qualquer sacramentalismo evidente nesses escritos. Mateus 28.19, provavelmente, prevê uma cerimônia batismal mais formal, mas não dá nenhuma pista de uma visão sacramentalista de batismo. 1 Pedro 3.21 define o batismo como a expressão da fé (não como um canal de graça), e nenhuma outra referência em 1 Pedro (ou Tiago) envolve uma referência ao batismo. Hebreus 10.22 descreve o batismo somente como um lavar do corpo com água pura e assim situa o batismo sobre o mesmo nível das abluções judaicas (também Hb 6.2). E uma passagem como Apocalipse 7.14, dificilmente, refere-se ao batismo (lavados em sangue).37

Em particular, o individualismo de João é mais plausível de ser entendido precisamente como um protesto contra o tipo de correntes institucionalizadoras tão evidentes nas Pastorais (acima pp. 211ss, cf., novamente, Hebreus e Apocalipse - §§31.2,3). Igualmente os Escritos Joaninos parecem, de alguma forma, opor-se ao tipo de sacramentalismo que já está, claramente, estabelecido no catolicismo primitivo de Inácio ("A medicina da imortalidade" - Ef 20.2) (ver acima §41). Mais intrigante ainda é o ataque do ancião a Diótrefes em 3 João 9s. Diótrefes claramente estava no controle dessa igreja: não somente era capaz de rejeitar receber os cristãos visitantes, mas também: "Expulsava da igreja" àqueles que o enfrentavam. Diótrefes, em outras palavras, estava agindo com a autoridade de um bispo monárquico (cf. Inácio, Ef 6.1; Trai, 7.2; Esm. 8.1s.), e era contra esse luxo para a proeminência e poder eclesiástico (philoprõteuõn) que "o ancião" escreveu. Em outras palavras, assumindo que 3 João procede do mesmo círculo de 1 e 2 João, é melhor vê-la como a resposta de um tipo de convenção ou assembléia do cristianismo, um pietismo anti-institucional individualista, protestando contra a crescente influência do catolicismo primitivo.38

17 Ver Dunn, Baptism, caps. XVII-XVIII.

M Cf. p.ex. von Campenhausen, Autority, pp. 122s; Kummel, Introduction, p. 448; J. Lieu, The Second and Third Epistles of John, T. & T. Clark 1986, pp. 162-3; e a tese

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Resumindo, se a crescente institucionalização áo catolicismo primitivo começa a emergir dentro do próprio NT, em parte em Lucas - Atos e mais formidavelmente nas Pastorais, então também um protesto contra o catolicismo primitivo, em parte em Hebreus e Apocalipse, e em parte até mesmo em Atos, mais fortemente no Evangelho de João e as epístolas joaninas, e muito fortemente ainda em 3 João.

§ 73. CRISTALIZAÇAO DA FE EM FORMAS ESTABELECIDAS

Não precisamos nos deter muito nesta área, visto que o cap. IV já cobriu a maior parte, os resultados ali nos conduzem diretamente à questão de que nos ocupamos aqui. E muito claro que havia uma tendência de formular a fé cristã em declarações particulares mais ou menos desde o início {p.ex. Rm 1.3s; 10.9; ICor 15.3ss.; 2Tm 2.8). Mas somos forçados a concluir de nosso estudo do papel da tradição no cristianismo do séc. I que em Paulo e em João o mínimo de tradição não era algo que, posto em palavras, apresentava-se em formas inflexíveis que eram simplesmente transmitidas do apóstolo para a nova igreja, e do mestre para aprendiz. Para ambos, Paulo e João, a fé era fé viva, a tradição era tradição pneumática, e o ensino era tanto (ou mais) carisma como ofício. Assim, por exemplo, o Evangelho que Paulo

proclamou aos Gálatas não era simplesmente uma série de formulações transmitidas a ele pelos apóstolos de Jerusalém, mas o kerygma interpretado por ele de um modo que causava ofensa a muitos cristãos judeus (embora os apóstolos pilares aceitassem tal interpretação). E em ICor 15 o argumento que ele usa não é, simplesmente, uma repetição simples da tradição acerca da morte e aparições da ressurreição de Jesus, mas uma interpretação daquela tradição que batia de frente contra à interpretação (da mesma tradição) sustentada pelos coríntios gnósticos (ICor 15.12). Igualmente o Evangelho de João é, dificilmente,

extremada de Kàsemann (acima nota 5). Alguns discernem traços "católicos primitivos" nas epístolas joaninas, particularmente, na ênfase sobre a tradição e a verdade; mas ver C. C. Black, "The Johannine Epistles and the Question of Early Catholicism", Nov Test, 28, 1986, pp. 131-58; Strecker, Johannesbriefe, pp. 351-4. ’

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o depósito literário simples de tradições de Jesus que permaneceram estabelecidas desde o início, mas sua própria re-proclamação inspirada, isto é reinterpretação do material tradicional primitivo. Assim como a fórmula com que os docetistas são denunciados em 1 João não é uma tradição original, mas a fé primitiva interpretada e reformulada frente aos novos desafios (ver mais acima

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§§17.1, 18.4, 19.3; também 47.3, 64.3). Assim fica claro, neste ponto pelo menos, que o catolicismo primitivo não possui nenhum ponto de sustentação em Paulo e João, pois a marca do catolicismo primitivo não é simplesmente a estrutura ou a transmissão de tradição, mas a cristalização de tradição em formas estabelecidas, sem a liberdade de reinterpretar e remodelar essas formas também de negá-las ou limitá-las estritamente a umas poucas seletas. Onde, então, há evidências no NT de tal atitude para com a tradição?

(a) Vimos acima que uma atitude mais conservadora para com as tradições do judaísmo era uma marca da comunidade primitiva de Jerusalém e, com efeito, do cristianismo judaico em geral (§§16.3, 54.2, 55). Portanto, uma questão óbvia é se qualquer dos escritos mais, caracteristicamente, judaicos no NT apresenta traços católicos primitivos com respeito à tradição cristã. Nem Tiago, nem Hebreus mostram qualquer sinal real de catolicismo primitivo nesse ponto: a exortação de Hebreus aos seus leitores é para sustentar firmemente sua confissão é o mais próximo disso (Hb 3.1; 4.14; 10.23), e isso é o mais próximo. Mas há, talvez, alguma evidência mais positiva em Mateus. Estou pensando, particularmente, aqui de Mt 16.19,18.18,24.35 e 28.20.39 Mateus 24.35 fala da validade atemporal das palavras de Jesus, e, embora o dito seja extraído sem alteração de Marcos 13.31, pode ter sido destinado por Mateus a denotar uma fixidez da tradição de Jesus similar àquela da Lei em Mt 5.18. Mateus 28.20 formula a comissão final aos discípulos em termos de: "Fazer discípulos... e ensiná-los a observar tudo o que eu vos ordenei" - com algum contraste ao paralelo mais próximo em Lucas (Lc 24.47). O mais marcante de tudo é o uso da linguagem de ligar e desligar em Mt 16.19 e 18.18 - material peculiar a Mateus; pois muito, provavelmente, Mateus tem em mente aqui termos técnicos aramaicos para o veredicto de um doutor da Lei que pronuncia

1 Sobre a atitude de Mateus para o entusiasmo carismático, incluindo a inspiração imediata, ver acima pp. 289,31 ls, 375s.

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algum juízo proibido (ligar) ou permitido (desligar), o juízo sendo feito à luz da lei oral40 - sendo a conseqüência que o ensino de Jesus toma o lugar da lei oral.

Por outro lado, já notamos que a própria apresentação de Mateus do ensino de Jesus é, em si, um desenvolvimento e interpretação da tradição de Jesus (cf. §§18.1-3), embora, é claro, sempre é possível que ele esperasse que sua representação da tradição - Jesus fosse determinante e definitiva (daí, talvez, sua apresentação do ensino de Jesus em cinco blocos ecoando o Pentateuco - ver acima p. 374). Vimos também que o próprio Mateus parece ter virado a sua cara contra a tradição oral dos rabis e insistido que os cristãos deviam interpretar a Lei pelo amor. Para Mateus o ensino de Jesus não tinha se tornado parte da Lei, para dividir sua natureza fixa e inviolável, mas forneceu

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uma ilustração ampliada de como os cristãos deveriam interpretar a Lei pelo amor. E finalmente devemos recordar que para Mateus a autoridade de ligar e desligar não se restringia a Pedro ou a alguma hierarquia eclesiástica, mas era precisamente a prerrogativa de cada membro na comunidade (§30.3). Precisamos concluir, portanto, que enquanto há atitudes expressas em Mateus que poderiam se desenvolver em uma visão católica primitiva da fé, o próprio Mateus dificilmente se qualifica como um candidato ao título de católico primitivo.

(b) Outra atitude ainda mais conservadora para com a tradição era aquela das Pastorais. E aqui, com efeito, temos a mais forte evidência no NT de uma atitude católica primitiva para com a tradição cristã. Como notamos acima (§17.4), nas Pastorais um corpo coerente de tradição já havia cristalizado em formas estabelecidas e servia como um critério bem definido da ortodoxia: a fé, sã doutrina, aquilo que foi confiado, etc. A possibilidade dessa tradição sendo (radicalmente) remodelada ou moldada em novas formulações em nenhum lugar é prevista, e, com efeito, é quase certamente excluída. O papel da hierarquia da igreja é preservar, segurar e proteger a tradição (lTm 6.14, 20; 2Tm 1.14; Tt

1.9), não reinterpretar ou remodelá-la. A profecia, que Paulo sempre tinha valorizado muito mais do que o ensino (Rm 12.6; ICor 12.28; 14.1; Ef 4.11), é evidentemente vista pelo autor como pertencendo mais ao passado do que ao presente ou, concebivelmente, tinha sido reduzida

40 Dalman, Words, pp. 214s.

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a um elemento formalizado dentro do ritual de ordenação (1 Tm 1.18; 4.1, 14).41 Por qualquer razão, ela não mais se coloca em uma interação dinâmica com a tradição mais antiga, como em Paulo e em João, e a possibilidade de novas revelações que colocariam em questão as formulações estabelecidas do ensino, dificilmente, é imaginada, ou ainda mais, tais questionamentos já estão condenados como especulações ociosas, assim chamados de conhecimento, controvérsias estúpidas e coisas semelhantes (lTm 1.4; 6.20; Tt 3.9). Até mesmo Paulo é retratado mais como um guardião da tradição do que seu criador, e o Espírito é o preservador da tradição passada antes que como aquele que conduz a uma nova verdade (lTm 1.11; 2Tm 1.12-14; Tt 1.3). Se nas cartas de Paulo o entusiasmo era contido, nas Pastorais é totalmente excluído (iacima §47.2). Catolicismo primitivo de fato!

(c) Em outros lugares no NT a única evidência real do desenvolvimento de uma regra de fé católica primitiva procede de Judas, onde o falso ensino não é discutido, mas simplesmente confrontado com as formulações da fé estabelecida: "A fé que uma vez por todas foi entregue aos santos" (Jd 3; cf. v.

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17)42 - e 2 Pedro, onde novamente vemos o conceito já desenvolvido de um corpo doutrinal autoritativo e claramente definido transmitido a partir dos profetas e apóstolos de uma geração mais antiga (2Pd 1.12; 3.2; cf. 2.2,21; também 3.15s. - Paulo, agora, um pouco inoportuno parte de uma tradição sagrada inspirada).

Contudo, não há nenhum sinal real em Atos de uma cristalização similar da fé em formas estabelecidas, a despeito das alegações, mais uma vez, de Kàsemann43. Certamente Lucas apresenta um retrato do ensino (autoritativo) dos apóstolos em Atos 2.42 (cf. 1.21s; 6.2,4), e fala prontamente da fé em 6.7 e 13.8 (cf. 14.22; 16.5); mas dizer que: "Esse princípio de tradição e sucessão legítima percorre como um cordão vermelho através da estrutura de toda a primeira seção de Atos"44 é uma conclusão que força muito a evidência. Há certa fixidez de tradição na tríplice repetição de episódios-chave da conversão de Paulo (At 9; 22; 26) e a conversão de Cornélio (10; 11; 15.7-11), assim como as

41 Dunn, Jesus, cap. XI, n. 14.

42 Discutida por Bauckham, Juãe pp. 8-11, que também nota a medida em que Judas é dependente dos escritos apocalípticos, 1 Enoque e Ass. Moisés.

43 Kàsemann, "Ministry", ENTT, pp. 89ss; "Ephesians and Acts", SLA, p. 290.

44 Kàsemann, "Ministry", ENTT, p. 89.

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ênfases repetidas em muitos dos sermões em Atos, provavelmente, indicam o que Lucas considera que deveria ser o caráter e conteúdo central da pregação evangelística em sua própria época45. E em 20.29s aparece a visão típica da ortodoxia de mais tarde (cf. acima pp. 63ss), por que a heresia é um desenvolvimento (por definição) um desenvolvimento pós-apostólico. Ainda, ao mesmo tempo, os sermões não são de nenhum modo estereótipos repetidos: não há nenhum paralelo com o outro em nenhum lugar, cada um tem seus próprios elementos característicos (p.ex. 2.14-21; 10.34-39; 13.16-25), e os discursos de Atos 7 e 17 são muito diferentes de todo o restante.46 Similarmente, os três relatos da conversão de Paulo diferem significativamente nos detalhes. Em nenhum caso podemos realmente falar de Lucas fixando a tradição em formas estabelecidas. Nem há qualquer tentativa de Lucas em retratar uma "sucessão apostólica", ou instrução na fé como uma transmissão de tradição apostólica na maneira sugerida pelas Pastorais, Judas e 2 Pedro - nem mesmo em Atos 20.18-35;47 Lucas l.lss., certamente não precisa ser interpretado assim, e Atos 16.4, o caso mais plausível em questão, é melhor entendido como parte da tentativa de Lucas de mostrar a unidade do cristianismo primitivo e não representa uma catolicização primitiva da tradição

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(ver mais acima pp. 508ss). Uma vez mais, portanto, Atos não preenche o critério que requereria de nós para designá-lo como "católico primitivo". Somente as Pastorais, Judas e 2 Pedro obtém passagem nesse ponto.

45 Cf. Schweizer, "Concerning the Speeches in Acts" (1957), ET SLA, pp. 208-16; e acima §4. Mas também ver Schweizer, Jesus, pp. 147-51.

46 Cf. mais em W. W. Gasque, "The Speeches of Acts: Dibelius Reconsidered", New Dimensions in New Testament Study, org., R. N. Longenecker & M. C. Tenney, Zondervan 1974, pp. 247-9.

47 Ver H.-J. Michel, Die Abschiedsrede des Paulus and die Kirche Apg. 20.17-38, München 1973, pp. 91-7; outra visão H.-F. Weiss, "'Frühkatholizismus' im Neuen Testament?", em J. Rogge & G. Schille, Frühkatholizismus im ökumenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 18-20. O debate mais antigo é habilmente resenhado por E. Grässer, "Acta Forschung seit 1960", ThR, 41,1976, pp. 275-86 (aqui particularmente pp. 281-3). !

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§ 74. CONCLUSÕES

1. Dificilmente se discute que o catolicismo primitivo já poáe ser encontrado no NT, que há tendências evidentes e claras em alguns escritos do NT que se desenvolveram diretamente no catolicismo de séculos posteriores, de que a trajetória do catolicismo primitivo começa dentro do séc. I e alguns documentos do NT recaem firmemente sobre ele. Os exemplos mais claros são as Pastorais: nelas a esperança da parusia é uma luz fraca de sua expressão mais antiga, nelas a institucionalização já está bem avançada, nelas a fé cristã já se estabelece em formas fixas. A questão se Efésios também deveria ser classificada como católica primitiva depende da interpretação de uma ou duas passagens-chave, quer dizer, depende de Efésios ser considerada de origem paulina ou pós-paulina: se paulina, então as passagens são melhores interpretadas como um desenvolvimento do entendimento da igreja não partem significativamente de sua visão da igreja como comunidade carismática; se pós-paulina, então elas podem ser interpretadas como um movimento (um movimento relutante? - ver acima p. 507, nota 24) em direção do catolicismo primitivo das Pastorais. O outro exemplo mais claro de catolicismo primitivo dentro do NT é 2 Pedro, em virtude, particularmente, de seu tratamento da parusia e de seu apelo à sagrada tradição da era de fundação do cristianismo que agora ficou no passado. Judas também, provavelmente, qualifica-se somente porque para ele muito da fé já tinha se tornado fixo e estabelecido - embora haja também evidência em Judas de uma vívida e menos formalizada experiência do Espírito do que seria típico do catolicismo primitivo (Judas 19s.).

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O Evangelho de João e 1 a 3 João não deveriam ser consideradas como católicas primitivas. A despeito da evidência de alguma reação contra uma iminente esperança da parusia, esses Escritos Joaninos são melhores compreendidos como uma reação contra o próprio catolicismo primitivo. As Pastorais e o círculo joanino são de fato modos muito contrastantes de abordar o mesmo problema da demora da parusia. Finalmente Lucas-Atos, os documentos mais intrigantes do NT sobre a questão do catolicismo primitivo, são melhor entendidos como uma tentativa de tipo de fusão entre uma perspectiva católica primitiva e o entusiasmo dos primeiros cristãos. Baur estava no caminho certo quando viu Atos como uma acomodação entre o cristianismo judaico e o

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gentílico, e tal acomodação é a base da visão católica primitiva da Una Sanct Apostolica. Mas Lucas, evidentemente, estava consciente do risco de comprimir o Espírito, de subordiná-lo a uma igreja hierárquica, de confiná-lo dentro de formas definidas e de ritos, e assim escreveu como alguém que desejava ver a igreja de sua época tanto unificada como também aberta ao Espírito - aberta ao Espírito da maneira que os primeiros cristãos haviam sido, unificada da maneira que não haviam sido.

2. Em termos de origem histórica dentro do séc. I, o catolicismo primitivo foi uma arrancada tardia. O cristianismo como vimos acima (§67.3), começou como uma seita apocalíptica entusiástica, sendo que o catolicismo primitivo possui todas as marcas de uma reação subseqüente diante dos desapontamentos e dos excessos de tal entusiasmo. O catolicismo primitivo é a típica segunda geração solidificando e padronização de formas e esquemas que foram muito mais espontaneamente diversas na primeira geração, de modo que, por exemplo, a institucionalização das Pastorais é a reação pós-paulina ao fracasso da visão paulina de comunidade carismática de fornecer uma estrutura sustentadora de relacionamentos internos e intra-eclesiásticos.

Esse juízo tem de ser qualificado em um aspecto, visto que é claro que a organização da igreja de Jerusalém que se desenvolveu sob Tiago (ainda na primeira geração), era em muitas maneiras mais propícia ao catolicismo primitivo do que o modelo paulino - particularmente, tão distante do esquema sinagogal de governo e o respeito cristão judaico para com a tradição fornecida para uma transição mais fácil para o catolicismo primitivo. E precisamente a fusão do padrão de Jerusalém e a forma pós-paulina que constitui algumas das evidências claras do catolicismo primitivo em Atos e nas Pastorais (At 14.23; 20.17, 29

- ver acima p. 511; lTm 3.1-7; 5.17,19; Tt 1.5, 7ss.). Sendo assim, então a visão disso por Harnack e Heitmüller mencionados acima (pp. 484ss), é digna de nota por que se alguma coisa mais de catolicismo primitivo esta enraizada mais

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no conservantismo do cristianismo judaico do que no sincretismo do cristianismo helenístico48.

48 Cf. W. Wiefel, "Frühkatholizismus und synagogales Erbe", em J. Rogge &

G. Schille, org., Frühkatholizismus im ökumenischen Gespräch, Berlin 1983, pp. 52-61.

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3. O catolicismo primitivo não foi a única trajetória ou forma de cristianismo a emergir do séc. I. É algo que se tornou dominante nas últimas décadas, mas na virada do século já não era tão dominante. E se o juízo fosse somente nos termos do NT não haveria nada a sugerir porque poderia se tornar a expressão normativa do cristianismo. Infelizmente, contudo, as alternativas principais, no fim do séc. I, não foram tão bem constituídas para fornecer um padrão de vida eclesiástica que se sustentaria. O cristianismo apocalíptico, quase por definição, é incapaz de sobreviver mais que uma geração; a falha da esperança da parusia, se não destruiu a fé que a comportava, resultaria, em muitos casos, em uma reação de algum tipo de catolicismo primitivo; o fim iminente é, dificilmente, uma tradição que se transmitiria de uma geração à outra, mas pode ser somente renascer como algo inteiramente novo nas gerações sucessivas49. Tanto para o cristianismo judaico como para cristianismo helenístico, o catolicismo primitivo pode ser entendido, precisamente, como aquela acomodação entre os dois que absorveu os elementos mais sustentadores de ambos e que deixou aos cristãos dos sécs. II e III uma escolha entre a largueza do solo médio agora ocupado pelo catolicismo primitivo ou as alternativas radicais do ebionismo e gnosticismo cristão. A alternativa joanina ao catolicismo primitivo prosperou de fato após uma moda, mas (no Ocidente) somente como confinada a uma tradição mística dentro do cristianismo, ou comprimida às margens do cristianismo para emergir esporadicamente como a assembléia ou acampamento de protesto contra o autoritarismo da grande Igreja. E a tentativa de Atos de fornecer um último equilíbrio entre a visão católica primitiva da Una Sancta e o entusiasmo dos inícios do cristianismo também fracassou, visto que os intérpretes subseqüentes, procurando por um modelo eclesiástico, comumente, falharam em reconhecer o equilíbrio Lucano e foram cativados de um lado pelo seu catolicismo primitivo (a tradição católica de interpretação) ou de outro lado pelo seu entusiasmo (a tradição pentecostal de interpretação). Portanto, foi por isso que o catolicismo primitivo se tornou gradativamente, a trajetória dominante quando o cristianismo ao se mover pelos sécs.

II e III, torna-se de fato o rota de fuga da ortodoxia, de modo que o

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49 Como foi demonstrado no séc. XX pelas sucessivas ondas de pentecostalismo primitivo, "Última Chuva", neo-pentecostalismo, e o movimento carismático.

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preço que Paulo teve de pagar a fim de ser incluído dentro do cânon foi sua adaptação a essa norma (veja acima §63.4).

4. Uma questão intrigante surge de tudo isso: se, a partir da perspectiva das origens cristãs, o catolicismo primitivo poderia ser considerado capaz de expressão herética? O cristianismo judaico, o cristianismo helenístico, o cristianismo apocalíptico foram todos amplamente reconhecidos por terem tendências dentro deles que quando não verificadas conduziam à heresia (ebionismo, gnosticismo, montanismo). Quer dizer, foi amplamente reconhecido que havia elementos em cada um que poderiam ser super-enfatizados e serem a causa do todo se tornar inaceitavelmente desequilibrado. Não teria sido melhor se as tendências equivalentes tivessem sido (mais amplamente) reconhecidas como presentes dentro do catolicismo primitivo? Não seria porque entre aqueles que, eventualmente, deixaram a reivindicação mais efetiva para o título de ortodoxo existisse bem pouco reconhecimento que o catolicismo pudesse se tornar similarmente torto? Em particular, um reconhecimento bem pequeno de quão essencial uma esperança escatológica viva é para um cristianismo vivo50, da importância de sustentar a tensão escatológica, e bem pouco reconhecimento de que a vida eclesiástica e a organização da igreja poderiam ser gravemente super-estruturadas, o Espírito contido no ofício e no ritual; muito pouco reconhecimento de que a fé poderia ser reduzida a fórmulas e reprimida dentro de formas definidas, não apenas cristalizadas, mas petrificadas. Lucas e João, ambos, emitiram advertências contra tais desenvolvimentos, mas foram amplamente ignorados. Subseqüentemente, os únicos protestos realmente efetivos, pelo menos no cristianismo ocidental, foram encontrados no monasticismo, no surgimento das ordens e na Reforma. Talvez, então, a tragédia do catolicismo primitivo fosse o seu fracasso em perceber que a maior heresia de todas é a insistência que há somente uma única obediência eclesiástica, somente uma única ortodoxia.

"Profecia e expectativa iminente se pertencem mutuamente" (U. B. Müller, Prophetie und Prediat im Neuen Testameht, Güttersloh 1975, p. 238).