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Ser cearense é ser único. Pense num orgulho véi besta! – Algumas considerações sobre a cearensidade. 1  Carlos Augusto Pereira dos Santos 2   A invenção [...] resulta da ação dos homens no tempo, envolvendo seus aspectos não apenas materiais, mas também simbólicos, os projetos e sonhos que pensaram poder realizar, combinando identidade nacional e civilização, numa sociedade atravessada por tensões  profundas em virtude da escravidão e de um  processo violento de exclusão de parte significativa de sua população desse projeto nacional . 3  Sem dúvida, o conceito de identidade é um dos mais importantes de nossa época.  No seu entrecruzamento com outros conceitos e temas, poderíamos relacioná-lo com cidadania, etnia, gênero, globalização, indústria cultural, interdisciplinaridade, memória, miscigenação, índio, negro, patrimônio, dentre outros. Essa importância surge com a emergência dos debates em torno da tão propalada, difusa, complexa e indefinida pós- modernidade. Vale ressaltar que, a compreensão da necessidade atual de uma certa afirmação de identidades que se delineiam nos efeitos globalizantes com a aproximação das culturas, passa também pela crise dos paradigmas que sustentavam os Estados  Nacionais, dos valores iluministas ou mesmo àqueles trazidos com o advento da Revolução Industrial. Dentro desta crise paradigmática, pensar, por exemplo, em termos de identidade nacional seria um esforço de análise praticamente nulo. Embora que existam um compartilhamento e aceitação de lendas, mitos, comportamentos e valores nas comunidades e até algumas mentalidades coletivas, há de se levarem conta o caráter histórico e efêmero destes aspectos, sujeitos à mudança e substituição de “forma 1 Texto apresentado no II Simpósio de Ipu-CE – Cearensidades: memórias e identidades. Conferência: Os arquitetos das cearensidades: seus nomes e feitios. 2  Professor do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Líder do Grupo de Estudo Cidade Trabalho e Poder da mesma IES. 3  Manoel Luís Salgado Guimarães. Apresentação. In: SANTOS, Afonso Carlos Marques. A Invenção do  Brasil. Ensaios dehistória e cultura. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2007, p.11.

cearensidade

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  • Ser cearense ser nico. Pense num orgulho vi besta! Algumas consideraes sobre a cearensidade. 1

    Carlos Augusto Pereira dos Santos 2

    A inveno [...] resulta da ao dos homens no tempo, envolvendo seus aspectos no apenas materiais, mas tambm simblicos, os projetos e sonhos que pensaram poder realizar, combinando identidade nacional e civilizao, numa sociedade atravessada por tenses profundas em virtude da escravido e de um processo violento de excluso de parte significativa de sua populao desse projeto nacional.3

    Sem dvida, o conceito de identidade um dos mais importantes de nossa poca. No seu entrecruzamento com outros conceitos e temas, poderamos relacion-lo com

    cidadania, etnia, gnero, globalizao, indstria cultural, interdisciplinaridade, memria,

    miscigenao, ndio, negro, patrimnio, dentre outros. Essa importncia surge com a

    emergncia dos debates em torno da to propalada, difusa, complexa e indefinida ps-

    modernidade. Vale ressaltar que, a compreenso da necessidade atual de uma certa

    afirmao de identidades que se delineiam nos efeitos globalizantes com a aproximao

    das culturas, passa tambm pela crise dos paradigmas que sustentavam os Estados

    Nacionais, dos valores iluministas ou mesmo queles trazidos com o advento da

    Revoluo Industrial.

    Dentro desta crise paradigmtica, pensar, por exemplo, em termos de identidade

    nacional seria um esforo de anlise praticamente nulo. Embora que existam um

    compartilhamento e aceitao de lendas, mitos, comportamentos e valores nas

    comunidades e at algumas mentalidades coletivas, h de se levarem conta o carter

    histrico e efmero destes aspectos, sujeitos mudana e substituio de forma

    1Texto apresentado no II Simpsio de Ipu-CE Cearensidades: memrias e identidades. Conferncia: Os arquitetos das cearensidades: seus nomes e feitios. 2 Professor do Curso de Histria da Universidade Estadual Vale do Acara UVA. Lder do Grupo de Estudo Cidade Trabalho e Poder da mesma IES. 3 Manoel Lus Salgado Guimares. Apresentao. In: SANTOS, Afonso Carlos Marques. A Inveno do Brasil.Ensaios dehistria e cultura. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2007, p.11.

  • inesperadamente rpida por outros parmetros normativos e outras tradies que logo

    passam a ser percebidas como pilares centrais do acervo nacional. 4

    Por outro lado, as questes que envolvem tambm os aspectos relativos ao

    multiculturalismo no sc. XX com suas influncias no debate e produo da Histria,

    tambm se faz presente com a necessidade de compreendermos melhor a

    interdisciplinaridade do conceito, procurando buscar entender as mudanas nos

    costumes e valores nas construes das identidades de grupo, de gnero, tnicas e

    regionais 5, onde, creio, se coloca o objeto de nossa discusso: a cearensidade.

    Com efeito, a noo de identidade tendo sua origem na Filosofia e na Psicologia,

    tem na Antropologia o lugar mais profcuo nas Cincias Humanas. Portanto, para os

    historiadores, a identidade uma preocupao recente, principalmente para aqueles que

    a incluem como forma de promover o entendimento da diversidade cultural brasileira

    atravs do ensino, por exemplo. A este respeito, Mary Del Priore enftica:

    [...] Esse debate deve ser alimentado, especialmente em um pas onde as identidades comeam agora a ser construdas. Ns temos ainda um problema de identidade no Brasil que muito complicado. Ainda no conseguimos resolv-lo e estamos sempre em busca de identificaes. [...] Ns ampliamos o escopo de possibilidades de pesquisa, mas est faltando, talvez, uma reflexo sobre a funo desse trabalho em um pas que no tem memria e ainda est em busca de uma identidade. 6

    Mas o que seria a tal identidade, visto que a mesma pode ser percebida sob os

    mais diversos pontos de vista e geradora de muitos outros conceitos? O socilogo

    Dominique Wolton7 a define como o carter do que idntico a si prprio; como uma

    caracterstica de continuidade que o Ser mantm consigo mesmo. Essa conceituao pressupe que a identidade pessoal, para se firmar e ser entendida como tal, necessita de

    uma permanncia dessas caractersticas individuais ao longo do tempo.

    Por outro lado, essa percepo por parte do indivduo exige que o mesmo torne-

    se semelhante a si mesmo para que possa se sentir diferente dos outros. dessa

    concepo de identidade pessoal que se passa para uma identidade cultural, que seria a 4MANSILLA, H. C. F. O dilema da identidade nacional e do desenvolvimento autctone em uma era de normas e metas universalistas. In: Estudos Histricos, Rio deJaneiro, vol. 5, n. 9, 1992, p. 61 5SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionrio de conceitos histricos. So Paulo: Contexto, 2005, p.204. 6 Entrevista. Mary Del Priore.Descobertas apaixonantes. Revista de Histria da Biblioteca Nacional. Ano 5, n 55, abril de 2010, p.54. 7Doutor em sociologia, Dominique Wolton diretor de pesquisa do Centro Nacional da Pesquisa Cientfica (CNRS), onde dirige, desde 2000, o laboratrio de 'Informao, Comunicao e Implicaes Cientficas'. diretor da revista cientfica Herms, e um dos grandes especialistas europeus em poltica e comunicao. Escreve regularmente, entre outros, para os jornais Le Monde e Libration.

  • partilha de uma mesma essncia entre diferentes indivduos 8. Penso que a partir

    desta discusso que podemos debater, compreender, construir e desconstruir a

    identidade cearense neste simpsio.

    O que seria esse jeito cearense de ser que o torna diferente dos outros? Como os

    cearenses se apropriam dessas caractersticas e a reivindicam como parte integrante de

    um pretenso way life cabea chata? (a prpria expresso popular, s vezes tomada como

    forma pejorativa e que referencia uma caracterstica do nosso bitipo se torna sinnimo

    de uma identidade?). 9 Quais seriam seus arquitetos e seus feitios?

    No temos dvida de que a literatura, a histria e agora os meios de

    comunicao de massa contriburam e contribuem enormemente para a construo

    dessa identidade. O projeto literrio de Jos de Alencar, por exemplo, no seu af de

    dotar o pas de uma identidade atravs do filtro romntico indigenista talvez seja a

    maior expresso neste campo. Como nos diz Ismael de Andrade Pordeus Jr., o Brasil:

    teve que buscar justificativa para a sua existncia histrica ao romper com Portugal e reinventar sua identidade associando nao, cultura e identidade. falta de um passado tnico, foi criada uma mitologia da mestiagem das trs raas a branca, a negra a ndia 10

    Identidade, portanto, inveno, fruto da necessidade dos homens em

    manifestarem seus interesses. Alencar manejou sua pena e acabou por construir dentro

    dessa conjuntura a ligao entre o colonizador e o nativo, j alijando o negro desse

    encontro. Os ndios, como se sabe, vo sendo dizimados pelos confrontos de dominao

    com o branco e, posteriormente, solenemente extintos pela convico de um presidente

    provincial num ato de apoteose burocrtica um decreto extinguindo a raa!

    8Para o conceito de identidade ver: SILVA, Kalina Vanderlei. Op.cit. p.202. 9 Nesse sentido, ver como os grupos acabam se apropriando de termos pejorativos que outros grupos rivais lhe impingem como xingamento no reforo da identidade, esvaziando o carter de humilhao ou escrnio contido anteriormente nessas ofensas. Esse fenmeno especialmente encontrado no futebol no mbito das torcidas organizadas e nas refregas polticas. A este respeito escreveu mtria de Jornal O Povo de 14/04/2010, traz: Em So Paulo, por exemplo, os palmeirenses adotaram a alcunha de ``porcos``. O mesmo aconteceu no Rio de Janeiro, com os ``urubus`` flamenguistas. Na Argentina, os fanticos pelo Boca Juniors se autoproclamaram ``bosteros`` (quem cheira mal) e berram o nome pelos quatro cantos de La Bombonera (o estdio do Boca, em Buenos Aires). O escritor Jos Miguel Wisnik, no livro Veneno Remdio - O Futebol e o Brasil, publicado em 2008, comentou o assunto. Segundo ele, torcedores ``assumem a partir de certo momento a alcunha, fazendo do suposto estigma o prprio antdoto e a sua marca de identidade``. Alm do mais, ``adotando o xingamento, revertem o carter pretensamente negativo da expresso, imprimindo-lhe conotao orgulhosamente provocativa. Sou Stella sim, e da? Jornal O Povo de 14/04/2010, capturado em 14/04/2010 no site: http://opovo.uol.com.br/opovo/esportes/972706.html. 10PORDEUS JR. Ismael Andrade. Cearensidade. In: CARVALHO, Gilmar. Bonito pra chover. Ensaios sobre a cultura cearense. Fortaleza: Edies Demcrito Rocha, 2003, p. 12.

  • Assim, Iracema se insere dentro dos padres de inveno literria, no apenas

    sendo o anagrama de Amrica ou a me que pariu o filho da dor, o legtimo cearense

    Moacir. A personagem alencarina, burilada no romantismo indigenista tambm

    smbolo da identidade nacional. Esse romantismo foi um fenmeno que no ficou

    apenas restrito ao Brasil: em toda a Amrica Latina o ndio virou o paradigma

    identitrio dos novos pases que emergiam da colonizao.11

    Vale ressaltar que na produo destes discursos sobre a nacionalidade, muito

    antes de vir lume a obra indigenista de Jos de Alencar, desde as primeiras dcadas do

    sc.XIX que j vinha se propondo uma representao desta identidade nacional atravs

    do ndio. Ferdinand Denis, intelectual francs radicado no Brasil em 1826 j sugeria que

    os escritores brasileiros deveriam explorar este vis identitrio do ndio ser o autntico

    habitante do Brasil, representando um passado pr-colonial, que os intelectuais queriam

    valorizar em detrimento de um passado colonial. 12

    nessa busca do passado autntico que a histria entra no teatro de operao

    desse projeto de identidade nacional coma criao do Instituto Histrico e Geogrfico

    Brasileiro IHGB. A misso dos historiadores da poca seria o levantamento desse

    passado fundador da nacionalidade e trazer para esta empreitada a participao dos

    escritores no sentido de populariz-lo, inclusive preenchendo lacunas com a

    imaginao literria, atendendo sempre necessidade de transmitir ao povo sentimentos

    de amor e empatia pela Nao.13 Histria e Literatura, portanto, se tornaram

    complementares neste projeto.

    Voltando ao universo literrio alencarino, quase dois sculos depois, a Iracema

    est viva nos lugares de memria, na nomenclatura oficial, no imaginrio dos cearenses,

    nos artigos, dissertaes e teses dos intelectuais. a fora das idias e a beleza das

    palavras se perpetuando. Nesse sentido, identidade tambm tradio. Nesse escopo de

    inveno das tradies, quis o literato-mor na sua criao, incluir Ipu neste processo de

    construo desta identidade. Mesmo que a referncia seja apenas o lugar do banho da

    ndia guerreira, ns contemporneos mergulhamos tambm nessas guas como se

    estivssemos na companhia anacrnica da mulher formosa, realizando o exerccio dessa

    construo identitria.

    11PORDEUS JR. Ismael Andrade. Op.cit, p. 13. 12Sobre o conceito de Romantismo ver SILVA, Kalina Vanderlei. Op.cit. p.376. O romantismo brasileiro comea oficialmente em 1836 com a publicao do livro de Gonalves de Magalhes, Suspiros poticos e saudades. Jos de Alencar s publicaria Iracema em 1865. 13 Ibid, p. 376-7.

  • Ipu -Terra de Iracema, lemos hoje nos prospectos com finalidade histrica e

    turstica. Soaria melhor do que Camocim Terra de Pinto Martins? Entre a aluso

    literria no terreno da fico e a homenagem ao conterrneo aviador distante no tempo,

    os percalos para o estabelecimento da memria e identidade dos lugares podem

    assumir papis interessantes para a pesquisa histrica. Atualmente tenho um aluno

    disposto a procurar e compreender o sentido dos lugares de memria do aviador-heri

    produzido pela mdia da poca e as relao de pertencimento dos camocinenses com sua

    histria.

    Suas primeiras concluses so de que para muitas pessoas, a praa e a biblioteca

    em seu nome, uma esttua, um avio nesta praa, a criao de um dia, uma comenda,

    concursos de redao em torno do seu feito herico, que foi em estabelecer

    pioneiramente um vo entre Nova Iorque e Rio de Janeiro para marcar o Centenrio de

    nossa Independncia, esto muito circunscritos ao mbito escolar e mais marcadamente

    no ms de abril. Em contraponto, peo licena para contar um episdio ocorrido com

    um colega professor de portugus que ingenuamente tentou dizer do carter ficcional do

    personagem Iracema.

    Referido professor ministrava um curso de produo textual para professores do

    municpio, quando pensou realizar a culminncia na Bica. Pensava ele que a sada para

    aquele ambiente facilitaria a fluidez da escrita, face natureza emolduradora da famosa

    cascata. O referido colega um daqueles professores metidos a poeta, cantor. Sacou do

    seu violo, criou um clima musical e perguntou aos seus alunos o que os inspiravam

    naquele momento. Dois ou trs lembraram que ali era onde Iracema tomava banho,

    tirava o sal, como de diz em bom cearencs. O incauto professor ento aproveitou a

    oportunidade para falar dos seus conhecimentos de crtica literria para situar a pea de

    ficcionismo de Jos de Alencar.

    - Como ?! Iracema no existiu de verdade?!!! Exclamaram quase em unssono

    boa parte das professoras. O professor tentou contemporizar dizendo que na verdade,

    muitas outras ndias e ndios tomavam banho e viviam ali, que o nome Iracema nem

    tupi-guarani era, etc. Enfim, contou-me ele tempos depois, que o negcio ficou brabo

    para ele levar a atividade ldica at o fim e ainda teve que ouvir de uma aluna mais

    audaz: - S pode ser mesmo de Senador S! E a camisa que tinham comprado para ele

    de presente, provavelmente com os dizeres: Ipu, Terra de Iracema, no lhe foi dada. S

    de mal!

  • Contudo, foroso dizer que a histria e a literatura, para o bem ou para o mal

    so construtores dessa identidade. E essa fora nem sempre atende s condies da

    representao social, dos homens em seu cotidiano de relaes e conflitos. Muitas vezes

    a identidade enquanto elemento da tradio tributria de indivduos e grupos nos

    processos de dominao.

    Neste ponto, trazendo a discusso para os problemas locais, acompanho pela

    internet interessante embate que tem a ver com a noo de identidade relacionada com o

    patrimnio a alienao do Mercado Pblico Chico Mouro. Fica claro nos discursos o

    conflito que a tradio e a modernidade estabelecem quanto preservao de uma

    memria (simblica e arquitetnica) de um lado e a modernizao de um espao para

    atender a novos conceitos e interesses. Usando a poesia, os defensores da tradio

    exclamam:

    MERCADO CHICO MOURO

    No sou nascida no Ipu, Mas ipuense de corao. Lamento ver o descaso, Manchando a tradio. Lamento que mercadores

    Da no cultura atores, Propaguem a destruio.

    Quem vende sua histria Por ela no tem afeio.

    E o mercado do Ipu, No pea de leilo!

    um recinto sagrado, No deve ser profanado, So brados da populao.

    Em prol do velho mercado,

    Protesta cada cidado, Que tem apego aos bens, Conquista de seu rinco.

    Sepultar sua histria riscar da memria

    Tijolos de uma construo. 14

    Ou ainda:

    14 Mercado Chico Mouro. Maria de Lourdes Arago (Dalinha). Recebido por e-mail de J.P. Mouro Imveis. Em 07/04/2010. Grifos meus.

  • de casa, d licena,

    Quero falar com o Major O caso a indiferena

    Com o nosso bem maior.

    [...]

    Testemunha o senhor E muito mais do que ciente

    Pois sendo o construtor Desta obra imponente Sabe bem do seu valor

    Para o passado e o presente.

    Como disse Dalinha Catunda Tem nome tem tradio O velho mercado do Ipu

    Vender? Nem por um bilho! So 120 anos de histria

    Impregnados na memria Na medula do corao.

    - - - - - O Major Quixad construiu o mercado pblico de Ipu em 1890. 15

    Recorrncias tradio, memria, histria, passado, presente, patrimnio,

    personagens etc, so facilmente perceptveis nesta defesa, mas, e a populao, como fica

    diante desse embate. Dalinha e Jos Airton Pereira Soares falam em nome dela ou

    apenas a expresso individual dos cordelistas diante de seus lugares sociais? Talvez a

    audincia pblica da prxima semana possa mostrar se essa uma demanda consciente

    do povo ipuense com o bem em questo

    Voltando para o plano da questo central Desta forma, tanto a historiografia,

    como a literatura aparecem como criadores da identidade cearense, seja no reforo da

    miscigenao das trs etnias formadoras do homem cearense, que de resto, tambm

    uma tendncia nacional, ou mesmo da negao do elemento africano, 16 criando o mito

    da Terra da Luz. Alis, contemporaneamente, num lugar de memria como o Museu

    do Cear, esse mito acaba se cristalizando na concepo museolgica ao optar por uma

    exaltao ao movimento abolicionista: em meio a quadros,documentos expostos em vitrinas, exaltao aos personagens do movimento encontra-se a nica referncia ao negro:

    15 Portanto Senhor Prefeito. Jos Airton Pereira Soares. Recebido por e-mail de J.P. Mouro Imveis. Em 09/04/2010. 16 A este respeito ver GIRO, Raimundo. Aboliono Cear. Fortaleza: Editora Batista Fontenele, 1956.

  • palmatrias e algemas, isto , instrumentos de tortura utilizados por aqueles que eram contra a explorao do homem pelo homem. 17

    A reboque desse esquecimento do negro omite-se tambm as etnias indgenas e,

    nesse sentido, a historiografia deve ficar atenta para os processos de mudana e

    redimensionamento cultural por que passam, principalmente, quando a agenda atual nos

    territrios da identidade, passa pelo reconhecimento tnico dessas populaes e do

    registro das manifestaes que remetem a um passado que atestam a existncia de

    negros e ndios no Cear por suas prticas culturais, como coroao do Rei Congo, s e

    a Dana do Torm, s para ficar nestas.

    Por outro lado, outros cones foram criados na esteira e subjacente ao

    esquecimento oficial que aludimos acima. Fruto da viso euclidiana da fortaleza do

    sertanejo, tambm romanceado por Jos de Alencar, temos os desdobramentos aqui no

    Cear das figuras do jangadeiro, do vaqueiro, da rendeira e do retirante. Nas produes

    culturais esses cones so elevados condio de bravos heris por seus arquitetos que

    vo desde Juvenal Galeno, Rodolpho Thefilo, Oliveira Paiva, Jos de Alencar,

    passando por Luiz Gonzaga, Patativa do Assar, dentre muitos outros. 18

    Essa cearensidade, portanto, que vem sendo construda desde o sc. XIX,

    continua se atualizando e sendo apropriada e reapropriada para os mais diversos usos.

    Se dermos uma vista nos portais da internet relativos histria do estado, a grande

    maioria ainda se forja naquela concepo de exaltao dos grandes nomes e fatos. Se

    formos ver as vrias edies da comenda do Sistema Verdes Mares de Comunicao

    Sereia de Ouro, que quer se constituir como um prmio cearensidade, o que temos ali?

    Um desfile de personalidades na rea da engenharia, poltica, militares, empresrios,

    industriais, artistas, escritores, jornalistas, mdicos, advogados, religiosos, alguns

    professores. Sem entrar no mrito do merecimento ou no ou dos critrios de escolha,

    por onde se constri a cearensidade a partir de um evento miditico como este?

    Por outro lado, mesmo numa consulta popular do cearense do sculo, em que

    medida a escolha dos nomes para votao se guiaram por parmetros representativos

    dessa tal cearensidade. Qual o sentido da eleio de Padre Ccero neste certame para os

    evanglicos ou mesmo para atualizar o debate, a proposta de se mudar o nome de

    Juazeiro do Norte para Juazeiro do Padre Ccero? Enfim, so perguntas que merecem 17 PORDEUS JR. Ismael Andrade. Op.cit, p. 15. 18 Ibid, p.16-17.

  • ser respondidas no s para compreendermos as entranhas de um conceito como a

    cearensidade, mas tambm para a participao da mdia e dos interesses polticos nessas

    escolhas.

    Por fim, gostaria de ressaltar outros caminhos que esto popularizando esse

    conceito e, muitas vezes o deturpando. A apropriao de um certo marketing turstico

    em evidenciar exausto nossos recursos naturais e hospitalidade, tornando o territrio

    numa ilha da fantasia ou mesmo, nossa intensa predestinao (?) em rir de tudo, nos

    elevando a capital do humorismo nacional. claro que um prospecto de viagem ou uma

    pea publicitria no vai mostrar os bolses de pobreza ou a violncia urbana, contudo,

    a veiculao dessa imagem selecionada acaba operando como filtro da omisso de

    nossas mazelas na construo de uma realidade que teima em revelar-se na prpria

    mdia.

    Mas, como o Cear moleque, inevitvel neste mundo interntico a circulao

    de um vocabulrio cearencs, (a lingstica tambm um componente da identidade)

    para as situaes do cotidiano. A maneira de assaltar, de dizer de suas enfermidades,

    dentre outras mensagens, talvez esteja a merecer um estudo da rea competente para

    dizer se isso de fato um novo componente da identidade e se de alguma forma, levanta

    a autoestima do cearense, tema at de concurso de redao nas escolas da rede estadual

    de ensino, como atestou em crnica Joaquim Cartaxo, enfatizando as referncias da

    cearensidade sentida por ele no evento de 2010: O Quinze de Rachel, a Fome de Rodolfo, A Normalista de Caminha, as tiradas do Quintino que era Cunha, os improvisos de quem v do cego Aderaldo, a poesia antropolgica do Patativa; e padre Ccero: religioso, poltico e ecolgico ao ensinar o povo a plantar sem destruir a natureza. Tudo isso e mais uma ruma de coisas do sustana autoestima cearense. S conheo o verbo coisar no cearencs, uma ao que serve para qualquer coisa em qualquer tempo e lugar. Outra coisa, peixada com ovo cozido foi inventada aqui. Pense! So Francisco de Canind das Chagas ou de Assis? Responder uma indagao dessas uma parada federal na praa do Ferreira em Fortaleza, no Beco do Cotovelo em Sobral ou na praa Padre Ccero em Juazeiro. E menino com os zi maior que a barriga que tem que comer tudim para no istruir a comida.19

    Penso que esse debate sobre a identidade cearense passa tambm por uma

    reflexo acerca das sensibilidades, um campo que cada vez mais vem se estabelecendo

    nas relaes da histria com o campo da cultura. como nos diz Serge Gruzinski: 19 Joaquim Cartaxo. Coisas da cearensidade. Jornal O Povo. 06/02/2010.

  • o sabor dos abacaxis ou do arroz, os aromas das especiarias, uma paisagem luxuriante, a lembrana de uma noite de prazer, as harmonias de uma missa indgena, a repulsa provocada pelos sacrifcios humanos ou pela antropofagia, tudo isso serve para enriquecer um artigo ou para apimentar uma conferncia. 20

    Dentro de minhas limitaes, esse foi o texto possvel para contribuir com esse

    debate que tem o mrito de deslocar essa discusso pra uma cidade interiorana que se

    firma a cada dia no cenrio cearense, seja pela produo historiogrfica revigorada

    tributria de uma safra de novos historiadores que j ultrapassam os limites da academia

    cearense, alguns dos quais tive o prazer e a oportunidade de orientar suas produes. De

    qualquer forma, fico disposio para alongarmos a conversa, talvez compensando

    algumas falhas neste texto na austeridade do caf filosfico ou na azfama do bar

    histrico. Obrigado!

    Ipu-CE, 15/04/2010.

    20 GRUZINSKI, Serge. Por uma histria das sensibilidades. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy e LANGUE, Frdrique (orgs.) Sensibilidades na histria:memrias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: Editora da UFGRS, 2007, p.7